É de lá

No dia quatro de Outubro de 2021 muito terá acontecido neste planeta. Muitas vidas, muitas mortes. Muito espanto, muita desilusão. Muita alegria, muita tristeza. E muito truísmo em diferido, como podeis agora mesmo comprovar por estas constatações que certamente o mundo aguardava com ansiedade.

Agora a sério, por uma vez. Permitam que volte a abusar da vossa generosidade para regressar às pequenas coisas que engrandecem mesmo à nossa frente, minério demasiado nobre para este modesto mas teimoso garimpeiro: esse foi o dia em que algo se terá passado com o servidor Google que alimenta as principais redes sociais deste mundo. De repente, tudo desapareceu. Angústia, horror, dúvida, impotência: o que terá acontecido, o que posso fazer, como manter o contacto com quem queremos e, ainda mais terrível, de que maneira poderão entrar em contacto comigo? Será do meu telemóvel? Será, para reabilitar uma antiga e patusca expressão dita sempre que a ainda púbere televisão portuguesa deixava subitamente de transmitir – será “de lá”?

A questão técnica pouco importa para o que me interessa. Menos ainda o prejuízo financeiro que terá custado ao pobre Zuckerberg – fala-se de seis mil milhões de dólares – a que, estou certo, conseguirá sobreviver. Não: foram as consequências desse hiato tecnológico que me levaram a escrever. Ou seja: de repente, de forma inesperada aconteceu isto: houve gente que ligou. Assim, de viva voz. Lembram-se do que isso era, amigos? Usava-se muito, anexado a outro costume em extinção a que se deu o nome de “conversar”.

Aqui chegado, importará dizer-vos ou repetir para os pobres que insistem em ler-me desde o início: não tenho nenhuma simpatia ou convicção pelo “antes é que era bom”. Nada. Agora é que é. Mas existem coisas que funcionam, que atravessam os dias e continuam a fazer a vida melhor. A voz de um amigo, por exemplo, é uma delas. Não um eco no WhatsApp, não uma fotografia no Instagram. A voz, alguém que vos telefona – ainda é assim que se diz? -, um outro ser humano como interlocutor nem que seja para oferecer as mais terríveis notícias. Ou as melhores.

Agora e graças à facilidade que as redes sociais nos oferecem os pêsames têm o mesmo valor do que as felicitações. Apenas mudam os desenhos escolhidos para significar emoções e as palavras, sejam elas quais forem, sacrificam a sua vida numa caixa de comentários para que possamos ficar de consciência tranquila e longe do que é humano – a dor e a alegria.

Por isso é que nunca irei esquecer aquele quatro de Outubro de 2021.Através de uma falha numa máquina abriu-se uma brecha que deixou entrar o anacronismo de uma voz humana que procura por nós. A humanidade regressou, por breves instantes. Mas, sem surpresa, foi “de lá”.

20 Out 2021