Isabel Castro VozesOs desterrados [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]ouve um tempo, há suficiente tempo para ser um passado distante, que a Taipa ficava lá longe. As famílias iam de barco até ao outro lado do rio, em passeios de fim-de-semana que se assemelhavam a excursões ao campo, o verde campo. A Taipa era ali um mundo à parte, uma aldeola. Macau era o centro deste mundo. Quem se portava mal, muito mal, ia para o desterro. O desterro era Coloane, essa ilha onde ainda era mais difícil chegar. Não havia istmo, nem casinos, nem Cotai, nem strip, e Las Vegas também não. Coloane era o destino dos leprosos que ninguém queria ver e dos larápios, dos funcionários públicos que se queria despromover por se terem portado menos bem. Coloane era quase o fim deste mundo. As coisas entretanto mudaram. Os larápios e os malcomportados nem imaginam a sorte que tiveram por puderem viver junto do verde, perto do mar. Apesar dos insectos e de outra bicheza, é certo. O metro quadrado é agora muito mais caro na quase ex-ilha, quase ex-verde. Há autocarros com turistas que entopem o trânsito da vila. Também a Taipa sofreu alterações com a construção da ponte que tem o nome de um antigo governador. Modificou-se de tal maneira que já não se vai de barco, de aldeia não tem nada, fizeram-se mais duas travessias e pensa-se agora numa quarta. Há prédios como cogumelos, obras como polvos, cheias de tentáculos, e o metro quadrado é mais caro do que na península, sobretudo se for a olhar para ela. As ilhas deixaram de ser o fim do mundo, apesar de Macau continuar a ser o centro, até porque é na península que está o poder. O território cresceu, as pessoas acomodaram-se no buraco disponível, sem terem especial consideração pela centralidade. Macau, o território, esticou e ganhou novas características demográficas. Parece, porém, que o passado distante das ilhas continua presente na cabeça de alguns. Esta semana, as autoridades policiais decidiram desviar para a Taipa o trajecto de uma marcha lenta de veículos que estava programada para Macau. A ideia do protesto deste sábado era chegar perto da representação do poder – a sede do Governo e a casa da Assembleia Legislativa –, e não da piscina olímpica ou do estádio do território. Assim sendo, os organizadores da manifestação sobre rodas decidiram cancelar o evento. É curiosa a proposta de percurso feita pela polícia. A um sábado, dia em que não se trabalha, há que entupir a Taipa e não Macau. Os menos bem-comportados que fiquem pelas ilhas que aqui, na cidade, não queremos disso. Nem sequer tem grande importância haver obras em literalmente todas as ruas da Taipa, o que não sucede no percurso proposto pela organização. O que interessa mesmo é libertar as ruas da península de gente que pode ser um perigo à imagem de Macau, cidade harmoniosa sempre muito preocupada com quem a visita. E um bocadinho a marimbar-se para quem vive nela. Tiveram sorte os organizadores. Uma marcha lenta em Coloane e ninguém dava por ela – corria-se o sério risco de ser confundida com um casamento. O campus universitário na Ilha da Montanha também seria uma boa alternativa: sem vivalma naquelas avenidas e jardins, ninguém dava por ela e não se corria o sério risco de ser confundida com coisa alguma. O Governo de Macau tem, em termos gerais, sérias dificuldades em lidar com a dissonância. Quer-se longe quem discorda. As manifestações são uma coisa muito desagradável, uma chatice, as pessoas andam aí pela rua a gritarem contra quem decide. O que é bom é o sossego. Por isso é que também se bate com a porta no nariz dos vizinhos de Hong Kong que têm outras ideias, não venham eles doutrinar o povo de cá, com panfletos e livros lá de outros sítios do mundo, muito distantes. Não, a Taipa já não é o desterro, as notícias não chegam por telegrama com vários dias de atraso, o mundo mudou e o modo como se lida com a contestação também. Quanto mais se deixa engrossar o coro do protesto, pior. Há que abraçar a discordância. Em nome da harmonia e coisa e tal.