Desistir

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]odos os meus dicionários tinham o verbo “desistir” riscado a vermelho. Desistir não era opção. Mas a vida não exprimia a insistência à beira da desistência, como tantas vezes acontece. Já não apetece. Perdeu-se o gosto, e, de seguida, o sentido. Fica-se farto. Poder vencer uma contrariedade não é vencer a adversidade. Há tantas formas de insistência quantos os seus objectos. Não desistir varia sempre consoante o seu complemento. Há tempos também diferentes. Pode parar-se para recomeçar mais tarde. Há recuos tácticos, para podermos avançar. É uma espécie de descanso activo, em que não ir e ficar permite perceber o quanto gostamos de uma actividade a que nos dedicamos, física e desportiva ou literária ou de qualquer outro tipo. Não desistir e insistir pode ser um comportamento gizado nas nossas vidas. Como se não desistir e insistir fosse uma opção, a qual, ainda que difícil, é a certa, uma maneira de ser, uma compreensão da própria vida. Aderimos ao que aderimos por gosto, amor, entusiasmo e paixão, actividades e pessoas, o que fazemos, tudo é assim descoberto. Como se não houvesse opção, dedicamo-nos a tudo o que começamos por entusiasmo ou com alguma dúvida mas sempre com espaço de manobra para progressão. Podemos dedicar-nos com devoção ao que quer que seja, e talvez toda a devoção seja acompanhada de renúncia. Na renúncia e na recusa, percebemos o lado negativo das nossas vidas. O lado positivo é o que fica registado nas nossas agendas e diários, define calendários e horários, a nossa vida tal como tem sido, com tudo o que fizemos e tudo o que não fizemos. Não desistir é não desistir do que temos feito, de alguém que faz parte da nossa vida, de nós tal como nos conhecemos. É como se houvesse um apego aos momentos inaugurais: os primeiros dias na prática de um desporto, os primeiros ensaios de um grupo musical, os primeiros dias de uma qualquer prática ou habilitação. E há um mundo de coisas e de pessoas que deixamos cair porque a devoção implica insistência, presença e tempo. O que acontece quando o que definiu as nossas vidas tende a perder o encanto, o fascínio, aquele filtro que cria para nós uma atmosfera e uma dimensão onde, como no amor, não há tempo? Há tempo, mas é como se não percebêssemos a sua passagem, tal como nos sábados de outrora ou nos dias da infância, quando, diziam as avós, nos esquecíamos do tempo. Tudo aquilo a que nos dedicamos tem esse condão de esconjurar em nós o tempo em que reinamos e excluir o tempo todo daquelas coisas que têm de ser feitas mas sem gosto e contra a nossa vontade. Quando insistimos em ficar naquilo a que nos dedicamos é porque o amor perdido e a falta de entusiasmo, o fascínio ainda poderão ser ressuscitados. Não se sabe bem como, mas se lá ficarmos, se repetirmos gestos, se entoarmos canções, se fizermos cópias de textos antigos, se deixarmos que o tempo venha na sua onda magnífica de outrora, talvez o tempo do fascínio de outrora nos leve daquele instante parado, estagnado, sem por ir por lado nenhum. Pode ser um dia, uma semana, um mês, um semestre. Insistimos junto do fantasma do fascínio: um ginásio, uma sala de aula, um estúdio de ensaio. Pode ser também o pensamento de alguém que se eclipsou e foi, mas tentamos que fique, como se a nossa própria vida dependesse de fantasmas sob o eclipse, na latência das vidas. Mas é também em nós que insistimos, porque aquilo a que nos dedicamos, o que fazemos, define-nos na sua presença e no exercício da sua actividade. É nós que não queremos deixar ir, porque uma das figuras da morte é deixar-nos ir com quem amamos, quando o amor desapareceu.

Não apaguei ainda o risco encarnado que expulsa o verbo “desistir” dos dicionários. Mas, como nos versos finais do poema “A Palavra” de Stefan George “Assim, com tristeza, aprendo a renúncia. Coisa nenhuma existe, quando lhe falta uma palavra.”

20 Out 2017