Filipa Araújo Manchete SociedadeFilipa Guadalupe, coordenadora do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau A coordenadora de um dos poucos centros que se dedica à promoção do Direito descreve o Direito de Macau como um “adolescente”, que poderá ser uma excelente mais valia para o Governo Central. Filipa Guadalupe diz que é preciso fazer mais, até porque a sociedade ainda não tem totalmente interesse na questão Ao final de três anos, qual o balanço que se pode fazer do CREDDM? Este é um centro que faz parte da Fundação Rui Cunha mas que tem um regulamento próprio, sendo uma unidade orgânica. Foi criado precisamente porque o escopo móvel principal da Fundação é a preservação e difusão do Direito de Macau. Entendeu-se por isso que seria importante automatizar, criar uma centralidade dentro Fundação só dedicada a essa área e daí nasceu há três anos e meio este centro. Há quem defenda que o Direito de Macau tem mais de 450 anos, mas não é verdade. Este Direito tem de facto uma herança portuguesa, mas faz este ano 15 anos. Antes da transição era tudo muito fácil, tudo se resolvia em Lisboa. Precisávamos de uma decisão judicial, o Supremo Tribunal de Justiça ou o Tribunal da Relação de Lisboa resolvia, precisávamos de uma lei, a Assembleia da República resolvia. Depois da transferência da soberania, Macau começou a ter órgãos próprios – como a Assembleia Legislativa (AL) e os tribunais – mas faltava-lhe o mais importante: o background, substratos. Os juízes não tinham como fundamentar as suas decisões, a AL recorria à herança portuguesa mas era uma herança que cada vez mais se ia afastando da realidade local. Era preciso criar coisas novas… Sim era preciso dotar o território de instrumentos que serviam não só para desenvolver, criar e expandir, mas acima de tudo que trouxessem às pessoas que aqui moram o conhecimento que elas precisam de ter do Direito que têm. O que se passa é que não só os operadores jurídicos estão órfãos e têm falta de meios para trabalhar, como a população – esmagadora maioria chinesa – não faz a mínima ideia do que é o Direito de Macau. A partir deste princípio nasceu este Centro e é criada uma política de reflexão, estudo e difusão. [quote_box_left]“As pessoas ainda não têm interesse em perceber porque é que as coisas são A e não B. Há temas mais quentes que outros, claro, e aí vê-se algum movimento, mas as pessoas ainda não sabem como reagir, como intervir”[/quote_box_left] Em termos práticos o que é que o centro faz em cada uma dessas três áreas? O Centro organiza-se nestas três partes. Achámos que para tudo é preciso reflectir, portanto esse é o primeiro passo. É preciso ouvir as pessoas, olhar para a sociedade e ver o que faz falta, é preciso ver quais as tendências e qual o caminho a seguir. Isto só se faz a pensar em voz alta e em Macau, pela sociedade que é muito mais comedida, ainda há a ideia que falar é ser contestatário, ou contra o sistema, o que é errado. Aqui pretende-se ser construtivo, portanto o Centro quer dar palco a todos os que queiram contribuir de uma forma positiva para a construção de uma sociedade melhor. Portanto nesta parte organizamos conferências e seminários. Normalmente fazemos ao final do dia, na biblioteca da Fundação, tentamos sempre ter convidados internacionais com locais para que se consigam juntar os pontos de vista e perceber o que é que existe aqui e o que existe lá fora e como conseguimos congregar essas mesmas ideias. Sempre em duas línguas? Sim, todas as conferências, seminários e debates são bilingues, ou seja, se os oradores não forem de nacionalidades diferentes há sempre tradução simultânea. Esta é a tentativa de alargar sempre o mais possível as nossas iniciativas. Sendo que toda esta parte de reflexão é transmitida em directo pelo nosso site. Posteriormente ao evento é feita uma revista, a ‘A pensar Direito’, também bilingue e que é uma súmula do que aconteceu, das ideias e do que se decidiu. E nas duas outras áreas? Na parte do estudo, temos protocolos com instituições locais e internacionais que nos permitem no território fazer formações práticas, todas dentro da área jurídica. Nestas formações convidamos juízes, professores e advogados mais experientes para darem um conjunto de aulas – normalmente de oito ou dez horas – sempre com tradução. Estas actividades não pretendem substituir-se ao que é ensinado na universidade, mas sim preencher o espaço vazio que existe entre o mercado do trabalho e a saída da universidade, que também acontece em Portugal. No caso de uma revisão à lei é também feita uma formação para que os actuais profissionais percebam o que foi alterado e quais as implicações que isso traz. A difusão é precisamente a criação de lastro, ou seja, não se consegue perpetuar o Direito só pelo passa palavra, temos que criar alicerces, e no Direito estes alicerces criam-se com a chamada doutrina e jurisprudência. A doutrina é o que sai das universidades, a jurisprudência é o trabalho dos tribunais. Isto só existe se existirem meios para editar. O que acontece em Macau é que há um número muito pequeno de manuais jurídicos. O que o Centro fez foi criar uma editora jurídica em que, à medida das nossas possibilidades, vamos publicando manuais, teses de doutoramento feitas por professores e alunos locais e outras publicações periódicas. Estamos a construir um arquivo e uma biblioteca de artigos técnicos que podem ser utilizados por qualquer pessoa. Quem é o vosso público alvo? A sociedade. Pensar que as nossas conferências ou formações são só para juristas é um erro. Depende do tema. Vamos discutir o património de Macau, claro que vamos fazer uma conferência com arquitectos e com um jurista da AL que esteja responsável pela elaboração daquela lei. Queremos sempre ter o outro lado, o lado da pessoa que na prática vai ter a preocupação sobre aquele tema. Há conferências em que não participa nenhum advogado ou jurista. Isto é muito importante, porque vem ajudar os que fazem as leis. Há leis mal feitas porque as pessoas não têm conhecimento do terreno, um jurista é jurista mas não é especialista em engenharia, ambiente, património cultural. Precisa de quem o ajude, quem lhe explique. Tudo isto partindo do princípio que não há sociedade sem Direito, tudo são regras. Pretendemos assim que o Direito de Macau seja o que as pessoas queiram que ele seja e que melhor sirva às pessoas do território. Claro que para isto tem que existir esta participação entre todos. Como é que se chega às pessoas? Como é que se ensinam as pessoas sobre o seu Direito? O Centro tenta ensinar começando nos mais novos, tentamos sempre ir para a rua. Temos programas com as escolas, por exemplo o ‘Fazer Justiça’ para os alunos do secundário em que eles simulam durante meses um julgamento e no final a sessão pública desse mesmo julgamento. Isto não é só uma peça de teatro, estão envolvidos juízes e juristas que vão ensinar este jovens, que lhes transmitem a noções do Direito. São três meses de trabalho de partilha e ensino que permitem aos alunos assumirem os papéis activos. Para os mais novos, os da primárias, temos formações de Educação Cívica, coisas muito simples, como por exemplo, passar a rua na passadeira, explicar porque é que no autocarro me devo levantar para as pessoas mais velhas se sentarem, educação ambiental. Abordamos inúmeras áreas para que todas estas crianças sejam educadas pelo Direito de Macau e no futuro não seja algo que desconhecem. Naturalmente assim se constrói uma sociedade mais consciente daquilo que tem. Voltando à origem, é errado compararmos o Direito de Macau com o português? Sim, é. Por duas razões. Até 1999 Macau tinha o Direito antigo português. Portugal também mudou em 1986 com a entrada na União Europeia e isso veio mudar tudo. Portanto, em Macau o que tínhamos era um Direito português antes de 1986, só por aí já há uma enorme diferença, porque mesmo depois de 1999 – ainda que Macau quisesse recorrer ao Direito de Portugal – este já tinha ido por caminhos diferentes. Logo aqui há uma separação. Segunda razão: Macau reinventou-se a partir da transferência e criou o seu Direito. Temos uma região administrativa especial que faz parte da China, portanto tem sempre um pai. Nunca nos podemos esquecer que, apesar da nossa autonomia, há sempre o Governo Central, as directrizes mestras são as da China. Até 2049 foi-nos dada a possibilidade de continuarmos com um Direito especial com a Lei Básica, portanto conseguimos ter um Direito ocidentalizado sem perder a consciência que é um Direito chinês. O que é que Macau deve fazer? É preciso ir construindo o Direito de Macau à medida em que a sociedade vai crescendo. Este Direito era novo e agora é um adolescente, ainda com muitos problemas da adolescência, que tem uma coisa boa: uns pais poderosos, a China e Portugal. Mas sem nunca esquecer que é um desafio muito difícil manter a singularidade que temos, até pelos nossos vizinhos: Hong Kong e a China. O desafio é continuar a manter a identidade sem cair na tentação do fácil, que será a absorção. Como é que se consegue isso? Com muito trabalho mas sobretudo a dar a conhecer à população a importância disso mesmo. Como é que a sociedade tem reagido? Estamos a falar de uma área técnica portanto dentro dos operadores jurídicos estão a reagir espectacularmente bem. Temos uma excelente receptividade de todos, quer dos institucionais, quer das associações, entidades governamentais, etc. Aderem em massa. A população é muito mais difícil, tem que ser aos poucos e poucos e temos nós que chegar até eles através destas acções muitos específicas nas escolas, nos mais jovens. Falou nos problemas de um Direito adolescente. Que dificuldades enfrenta Macau? Primeiro é ter especialistas nesse Direito. Neste caso fazemos o nosso Direito com as pessoas locais e estas pessoas tiveram que se adaptar a uma nova realidade, porque estavam habituadas a um conforto que vinha de Portugal. O maior desafio é pensar para onde é que queremos ir de que forma, depois é ir construindo. Temos que perceber os problemas reais da sociedade, perceber o que nos faz falta, estudar os melhores exemplos internacionais e adaptá-los a esta realidade. Macau pode ir buscar os bons exemplos, algo que não está a acontecer, por exemplo no Direito Ambiental. Como é que uma terra tão pequena e com tanto poder económico não pode fazer disto um exemplo ambiental? Não se percebe. [quote_box_right]“Se a China perceber que o Direito de Macau está a funcionar bem e que é um bom aliado na ligação comercial e económica acredito perfeitamente que ele se perpetue”[/quote_box_right] Um Direito que se vai experimentando… Sim, claro. Nada se faz bem à primeira. Macau tem que perceber os seus erros e ir aperfeiçoando com debate e auscultação. Podemos ter uma óptima ideia mas não ser a melhor para o território. Macau tem que perceber que não pode fazer uma lei e ela ficar imutável para todo o sempre, não. É preciso perceber todo o cenário. Tendo como exemplo a Lei da Violência Doméstica que há três anos que está a ser estudada. Faz sentido tanto tempo? Justifica-se? Acho que sim, porque para nós [portugueses] é muito complicado percebermos isso porque vimos de um país ancestral e Macau também o é. Mas o que é um facto é que tudo isto é novo, as coisas vão mudando, a terra mudou, a economia, o Jogo, as pessoas. Houve um avanço muito rápido. Imagino que não deva ser fácil construir uma sociedade com tantas informações exteriores. Não deve ser fácil, ainda por cima numa população que tem pouco interesse em discutir este tipo de coisas. As pessoas ainda não têm interesse em perceber porque é que as coisas são A e não B. Há temas mais quentes que outros, claro, e aí vê-se algum movimento, mas as pessoas ainda não sabem como reagir, como intervir. Tudo isto são coisas que têm de ser ensinadas e partilhadas, mas é preciso tempo. Muito tempo. Não nos podemos ainda esquecer que não somos um país, estamos dependentes. No geral, apesar de tudo, as coisas estão a caminhar bem. O Direito de Macau pode fazer a diferença se for mantido? Sim. Este Direito tem que existir, porque a China entende que não só a população o quer, mas também é uma mais valia para o próprio país. Como é que isso pode ser? Nesta tal ligação com os países lusófonos, nesta plataforma internacional que a China tanto quer e em que o Direito de Macau pode ser essa diferença. Se a China perceber que o Direito de Macau está a funcionar bem e que é um bom aliado na ligação comercial e económica acredito perfeitamente que ele se perpetue. Mas é preciso mostrar a diferença. Teremos Direito de Macau depois de 2049? Tenho fé nisso e todos nós trabalhamos para que isso aconteça. Também acredito que todos os que trabalham no terreno querem isso, mas é preciso democratizar, é preciso alastrar, é preciso que a população também queira e faça por isso. Curso jurídico em Português “é um sucesso” Filipa Guadalupe afirma ainda que o “Português Jurídico” é uma das formações do CREDDM com mais sucesso. Um curso que, como indica a coordenadora ao HM, é totalmente dedicado à comunidade chinesa, ainda que seja dado em Português. “Temos imensas inscrições de recém-licenciados, juristas e muitos tradutores. O que se pretende é desmistificar as figuras jurídicas portuguesa de uma forma simples. Por norma, um jurista chinês tenta perceber o que significa o que está a ler para Inglês, isto é um erro porque o Direito em Inglês é muito simples, há palavras que significam várias coisas, ou que em Português usamos [de forma] diferente”, explica. “Por exemplo ‘rent’ que significa aluguer ou arrendamento é usado – em Inglês – para tudo, isso não acontece em Português, em que temos o aluguer, o arrendar ou até a alocação.” O curso, diz Filipa Guadalupe, tem sido um sucesso e até já há novos planos para este ano. “Vamos fazer uma parceria com a Universidade de São José que se irá focar na parte mais técnica, análise de documentos, por exemplo”, frisa ao HM. Nova actividade para a população A partir de Setembro, o CREDDM vai começar a reproduzir 12 programas, na TV Cabo, sobre Direito, totalmente em Chinês. “Será uma espécie de ‘talk show’ em que temos três convidados – dois advogados, mas assumem-se como juristas – e é dado um caso da vida quotidiana, por exemplo, um acidente de viação. Eles explicam quais os direitos e quais os deveres”, refere Filipa Guadalupe. “No fundo é tentar ir chegando à comunidade chinesa através destas pequenas coisas diárias, afastando-nos da lei para um estilo mais prático e simples.”