António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPeste III [dropcap]O[/dropcap]s corpos dos mortos amontavam-se. Criaturas meio-mortas cambaleavam. Juntavam-se à volta de todos os fontanários. Os lugares sagrados encontravam-se pejados de cadáveres. À medida que a catástrofe passava todos os limites, os homens, sem saberem o que lhes ia acontecer, tornavam-se completamente indiferentes a tudo, fosse sagrado ou profano. (Tucídides H. 2, 52.3-4). Os homens atreviam-se, agora, a fazer às claras o que, anteriormente, procuravam fazer sem dar nas vistas. O rápido desaparecimento das pessoas e daquela maneira atroz, o prejuízo dos melhores e o benefício dos piores levava que tudo esbanjassem, sobretudo no que desse prazer. A riqueza era tida como coisa de um só dia. Perde-se a vergonha e a honra. A conduta tinha como única regra o gozo do presente. Apenas o gozo é honroso e útil. O medo dos deuses e das leis dos homens não constituía limite algum ao modo de viver “Ninguém esperava viver o tempo suficiente para ser levado a julgamento por causa das suas ofensas, antes sentiam que uma pesada pena havia já sido lavrada contra todos eles, estando suspensa sobres as suas cabeças. Pelo que, antes que lhes caísse em cima, era justo que não pensassem noutras coisa senão em gozar a vida.” Toda a especulação acerca da origem e das causas da doença, se é que é possível encontrar causas capazes de produzir tão grande devastação, é deixado ao cuidado de outros, leigos ou profissionais. A descrição, identificação, isolamento e reconhecimento do decurso e história clínica da doença bem como dos seus sintomas tem como único objectivo a possibilidade de poderem ser reconhecidos, caso a doença volte a aparecer. É isso que Tucídides pretende. Em causa está a possibilidade da prevenção, da profilaxia. Os indícios estão no passado. Mas são indícios no interior do horizonte humano. O seu rastreio é por mor do futuro. Não enquadra nenhum outro interesse senão esse. O estatuto ontológico da investigação não visa nenhuma apreensão do que se passou, mas o reconhecimento possível do que poderá vir a passar-se. É talvez o destino da res humana e da nossa condicio estender-nos entre o que se passou e o que poderá vir a passar-se. Mas se a causa fáctica se encontra objectivamente dada, é do futuro que ela abre. Talvez a causa final não esteja identificada. Mesmo com as 17 ocorrências do substantivo em Th.. Mas ela opera de modo tão fundamental que não permite por defeito de finitude o seu reconhecimento ou isolamento. Em causa não está nenhuma disputa de estilo literário, mesmo quando em causa estão formulações líricas, trágicas, técnicas. A narrativa não é um conto. O que se pretende é examinar com transparência o que terá acontecido, porque o que aconteceu será possivelmente o que poderá acontecer outras vezes no futuro, de acordo com a constituição humana. Tem em vista a utilidade. Não o prazer.” O que Tucídides escreve é sempre por mor do futuro. É uma posse para a eternidade. As causas da Guerra terão de ser reconhecidas para a podermos evitar. Os sintomas da doença habilitar-nos-ão ao tratamento eventual ou à prevenção profilática. Trad. David Martelo