Cristalizações Pictóricas Contemporâneas: Macau e o Império

I.Introdução
A integração de Macau no Império Português caracterizou-se por um conjunto de especificidades invulgares, mercê não só da distância a que se encontrava da sede metropolitana mas igualmente do modo como a sua população encararia e viveria o estatuto de colónia ultramarina.
A ocupação gradual de Macau a partir do século XVI por navegadores portugueses tornou-a num entreposto comercial entre a China, a Europa e o Japão e assim foi até à devolução da soberania macaense à China, em 1999. Porto europeu na China desde meados do século XVII, Macau desenvolveu-se dentro da estrutura administrativa ultramarina portuguesa e foi visitada – e vivida – por um conjunto de artistas que deixaram nas suas telas representações, e imagens, de uma geografia que constituiu o último território do império português.
Centrando-nos na época contemporânea, escolheram-se dois dos artistas que melhor conseguiram transmitir as especificidades de Macau ligando-a a uma arte transversal à polarização Oriente-Ocidente.

II.Corpus
Marciano António Baptista (1826-1896), pintor macaense dos finais do século XIX, foi um dos raros artistas a deixar um legado pictórico da colónia portuguesa da Macau Oitocentista.
Cedo conheceu o pintor inglês George Chinnery (1774-1852), do qual se tornou aluno. Como os demais pupilos, primeiro seguiu o estilo de pintura do professor, e em seguida desenvolveu técnicas e feições próprias. Segundo Geoffrey Bonsall, da Hong Kong University Press, os seus “esboços e aguarelas são especialmente precisos no que concerne ao detalhe e carregam a marca do seu mestre”, “mesmo quando interpretava os temas com um estilo próprio. As obras mais tardias de Baptista são disso prova, tanto na temática como na estilística e, mais concretamente, através de inscrições nas suas pinturas”.
É preciso notar que, na altura em que Marciano Baptista aprendia os rudimentos das regras clássicas da pintura, e obsorvia a influência da escola da paisagem inglesa do século XIX, Macau vivia um período conturbado, mercê da Guerra do Ópio (1839-1842), tendo a cidade de Macau chegado quase à ruína. Terá sido após o fim desta contenda que Baptista decide ir viver para Hong Kong, episódio que terá ocorrido entre os finais dos anos 40 e o início da década seguinte, quando o território luso-chinês se encontrava devastado e empobrecido pelas consequências do conflito anglo-chinês.
Pintor, professor de arte, desenhador, ilustrador gráfico, cenógrafo e fotógrafo, Baptista ligou-se a artistas chineses de Hong Kong, contribuindo deste modo para um dos primeiros intercâmbios entre pintura ocidental e oriental. Paralelamente, vê-se confrontado com as produções em série, de artistas chineses menos criativos da China Trade, que proliferaram nessa época, e terá sido a qualidade artística das suas pinturas que o fez destacar-se dos demais congéneres. Pinturas de maiores dimensões, de cenas de portos de mar e de paisagens, executadas principalmente em aguarela; álbuns de aguarelas de tamanho médio, com vistas de locais turísticos; desenhos e pinturas de cenas de rua e de motivos históricos.
Assim, na segunda década do século XX, as suas obras começaram a ser objeto de atenção, por parte de um público mais atento. Foi considerado, por muitos, um dos melhores pintores de Macau do século XIX: Silva Mendes, em 1914, chamou-o “aguarista notável”; em 1918, o editor da revista Macau, Humberto de Avelar, classificou-o como “o melhor artista que até hoje nasceu em Macau”.
O artista utilizou poucas cores nas suas pinturas, preferindo as cores primárias azul e vermelho, e algumas vezes o verde e castanho. A sua pincelada mostra-se de cunho claramente chinês, mas em combinação com técnicas ocidentais de perspetiva linear e coloração. Importa salientar que os trabalhos artísticos do pintor mostram uma Macau em vias de extinção: pagodes, fortalezas, juncos de diferentes tipos, não se esquecendo de introduzir frequentemente navios a vapor, simbolizando o século que se aproximava. Mostrou particular agrado em pintar o Templo de A-Má, o que fez com que existam quadros de diferentes perspetivas sobre o tema, tendo ainda pintado o teto e o altar das igrejas de Santo António e de São Lourenço. Um outro aspeto a considerar, “é o facto de haver uma intertextualidade entre as narrativas escritas e as pictóricas, à qual também se pode chamar diálogo inter artes, tendo-se tornado evidente no que diz respeito à descrição da Macau oitocentista, sobretudo nas franjas marítimas da península, as quais são mencionadas nas descrições de Francisco Maria Bordalo (1821-1861) e compare-se com as vistas pintadas por Marciano Baptista”:

Vamos a um dos altos montes da cidade contemplar esta cidade que está otimamente situada, e apresenta uma bela coleção de edifícios por qualquer parte que se encare. Subamos à Penha de França sob a qual se encurva ante as águas do Oceano, essa extensa baía da Praia Grande, toda orlada de formosas habitações. (…) No extremo os penedos escalvados, que formam uma muralha exterior à fortaleza de S. Francisco. Isto é pelo lado do mar.

As telas macaenses de Marciano Baptista ilustram a cor local desta narrativa de viagem, tornando o pintor num cronista visual que cristaliza a paisagem macaense, dentro de uma certa exotização propositada. Mais uma vez a tela Fortaleza de São Tiago da Barra, de 1875-80, ilustra pictoricamente as palavras de Francisco Maria Bordalo.

Por outros termos: há uma remissão da crónica de viagem para a obra do pintor macaense, numa altura em que a palavra-chave entre os teóricos daquela época era “pitoresco”.
Para se ter uma visão do território imperial português, à altura mais distante da metrópole, basta observar o quadro de Baptista Vista da Praia Grande, de 1870-75, ainda que numa estética comum na época, como refere Patrick Conner: “As aguarelas do pintor estão de acordo com muitas das regras do pitoresco”, conforme se denota, por exemplo, nas suas variações sobre o Templo de A-Má.
Interessa mencionar que, depois de Hong Kong se ter tornado britânica e um porto franco, o governo de Macau não tardou a copiar os ingleses nos benefícios de uma zona económica livre de barreiras alfandegárias. Assim, em 1845, Portugal declarou a cidade um porto franco, ordenando-se o fim do pagamento do aluguer anual e dos impostos chineses, a expulsão dos mandarins de Macau e a abolição, em 1849, da alfândega chinesa. Porém, essa ação não conseguiu reter a sua importância económica e estratégica, enquanto porto europeu na China, pois o centro do comércio havia-se mudado para Hong Kong. Ora é essa Macau, em vias de perecer, que Marciano António Baptista exibe nas suas diferenciadas telas, constituindo testemunhos singulares de um território luso-macaense, estruturado a partir de uma vivência peculiar, entretanto desaparecida.

100 anos depois, e já num âmbito de passagem para a época pós-colonial surge uma outra cristalização macaense. Num tempo-símbolo, da entrega de Macau às autoridades chinesas em 1999, Nuno Barreto (1941-2009) pinta uma outra cidade, já distante da idealização da província do extremo oriente do império português de Marciano mas cujas particularidades a tornam relevante.
Até à década de 1980, Nuno Barreto repartiu o seu tempo entre a pintura e as aulas na Escola de Belas Artes do Porto. Daí partiu para Macau, onde iniciou uma fase completamente nova da sua pintura, explorando a matéria luso-asiática. Aí viveu mais de vinte anos, tendo mergulhado profundamente na vida macaense, o que se refletiu na sua obra na qual explora a temática luso-chinesa, combinando vários elementos artísticos.
Foi ele o principal dinamizador da Escola de Artes Visuais, inaugurada em 1989, e que está na origem da atual Escola Superior de Artes. Muita da sua produção pictórica, produzida em Macau, encontra-se nas instituições oficiais da atual região administrativa especial chinesa, nomeadamente na cidade de Xangai. E foi a partir de Macau que a sua pintura mais se projetou e distinguiu destacando-se o “talento para captar o espírito de um lugar, assim como os sentimentos das pessoas que o povoam”.
Em especial nos últimos anos da presença portuguesa, a temática da sua produção assentou numa particular atenção às peculiaridades do território e às diferenças de mentalidades. Essa característica evidenciou-se numa tela em particular, pintada cinco meses antes da transferência de Macau para a China e intitulada O Embarque no Pátria I, uma alegoria ao fim da administração portuguesa daquela colónia na China – e que marca, em simultâneo, o fim do império português. O quadro retrata um momento histórico do ex-território português e representa a despedida, num porto imaginado, dos chefes de Estado da China e de Portugal. Nele cabem figuras como o Infante D. Henrique, Camilo Pessanha (1870-1926), entre mandarins e população local.
Note-se que foi pintada uma segunda versão que, embora quase idêntica à primeira, inclui pequenas alterações: intitulada O Embarque no Pátria II, dá ênfase ao casco do navio, em detrimento das pessoas que se encontram no cais. Nesta versão, o pintor realça tudo o que terá sido levado pelas autoridades portuguesas, nomeadamente peças de arte e antiguidades diversas. Em ambos vê-se o Pátria atracado em Nam Van, ao fundo, o hotel Lisboa – ainda em construção – e Jorge Sampaio, a apertar a mão a um dirigente chinês. Há dirigentes chineses vestidos segundo a dinastia Qing e também individualidades de Macau.
“Com o arrear da bandeira portuguesa na Fortaleza do Monte encerrou-se também um capítulo da minha obra”, afirmava, em entrevista publicada na “Galeria Imaginária”.

III.Balanço em Aberto
Na ida ultramarina e no torna-viagem do regresso ao cais do império, Macau revelou-se um território d’além mar que, pela distância, foi pouco experimentado e invulgarmente visitado. Daí as cristalizações pictóricas de Marciano António Baptista e Nuno Barreto constituírem exceções de inusitado valor plástico, estético e histórico. Claro que ouve outros artistas a pintar a Macau portuguesa: Fausto Sampaio, Júlio Resende ou Graça Morais, entre muitos outros, mas as suas obras foram pontuais não resultando de uma vivência local efetiva e demorada. Por isso, o olhar pictórico de Marciano António Baptista e Nuno Barreto traduzem muito mais do que um lugar distante do império: ele revela influências e paradoxos que se articulam entre 2 povos profundamente diferentes ligados por uma história pretérita da qual se condensam imagens que nos devolvem um olhar sobre o “outro” que não é mais do que uma projeção daquilo que achamos que fomos ou somos.
Na verdade, a reduzida geografia do Portugal insular foi engrandecida em terras d’além mar, muito à conta de a metrópole se ter esquecido de embarcar na viagem efetiva, cristalizando esse outro mundo e mitificando-o, a partir de um cais de onde nunca saiu…
Ganha a consciência imperial demasiado tarde – com o Ultimatum – e renovada pelo sofrimento quase sete décadas depois, com a guerra colonial, os novos ventos trouxeram a derrocada do primeiro, e último, império europeu. Um império que durou 500 anos e se estendeu do Minho a Timor (o seu último raio), fechando um ciclo histórico.
À luz dos novos dias, tem-se tornado percetível que, no que respeita à criação artística, o império colonial português teve poucos interlocutores, remetendo a pintura para um solilóquio de escassos ecos. Embora não tivesse sido rara, a pintura em contexto colonial esteve longe de ser a norma, merecendo pouca atenção por parte da tutela. Apesar de dificilmente ter sido marginal ou pontual, em bom rigor o desinteresse generalizado – e até de uma apatia crónica, por parte da maioria dos artistas metropolitanos – fez com que a produção pictórica de matriz ultramarina se concretizasse numa viagem de muitos silêncios, frugais apontamentos e raros gritos.
Se os pintores nacionais não souberam, não quiseram ou não puderam aproveitar o desafio e a oportunidade que o espaço d’além mar oferecia, isso não impediu que os artistas desses territórios tivessem aproveitado as escassas oportunidades para desenvolver uma arte verdadeiramente sua. Não é possível esquecer que colono e colonizado têm uma história comum, e que os discursos pictóricos de colonialidade sofreram influências recíprocas, ainda que frequentemente transversais e/ou dissimuladas. Se mais não fosse, note-se que o imperialismo não modificou apenas o mundo colonizado mas implicou, igualmente, uma transformação profunda nas sociedades colonizadoras; daí que uma visão desocidentalizada da história seja a condição primordial para o avançar do conhecimento contemporâneo.

REFERÊNCIAS
Bonsall, Geoffrey. George Chinnery. His Pupils and Influence. Hong Kong: Hong Kong Museum of Art, 1985.
Bordalo, Francisco Maria. Um Passeio de Sete Mil Léguas, Cartas a um Amigo. Lisboa: Typ. Rua Douradores N.º 31, 1854.
Castro, Maria João. Pintura Colonial Contemporânea. Da Solidão da Metrópole a um Horizonte de Possibilidades. Lisboa: ArTravel, 2021.
Conner, Patrick. Marciano Baptista e A Sua Arte. Macau: Gráfica de Macau, 1990.
Jesus, Montalto. “Abbé Huc” in Historic Macau. Oxford: Oxford University Press, 1984.
Macau. Semanário Artístico, Literário e Social. Ano I, 16 de dezembro de 1918.
Mendes, Manuel da Silva. “Um Museu em Macau” in O Progresso. 1º Ano, N.º 13, Macau 29 de novembro de 1914.
Nuñez, Cesar. Marciano Baptista e A Sua Arte. Macau: Gráfica de Macau, 1990.
Pereira, Fernando António. Galeria Imaginária. Lisboa: Fundação Oriente, 2006.
Puga, Rogério Miguel. Conferência sobre George Chinnery. Lisboa: FCSH 8 de março 2017.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
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26 Nov 2022