Greve geral e surreal

Um casal membro de um sindicato pertencente à CGTP-Intersindical encontrava-se num dilema no passado dia 11, dia de greve geral, antes de sair de casa. O problema era desejar ir à manifestação organizada para protestar contra a absurda proposta do Governo Montenegro sobre uma eventual nova Lei Laboral, uma greve geral que há muitos anos não juntava a UGT e a CGTP. O dilema prendia-se precisamente com a greve geral. O casal, residente na Amadora, não tinha qualquer transporte para se deslocar para o centro de Lisboa. O seu melhor vizinho também tinha decidido não ir à manifestação porque o Metropolitano estava em greve total.

Milhares de trabalhadores ficaram impedidos de ir à manifestação por falta de transporte. O surrealismo estava à vista. Vontade de protestar, sim. Como, impossível. Mais surreal foi o facto de os motoristas de dezenas de autocarros que as centrais sindicais alugaram para transportar manifestantes, terem de trabalhar num dia de greve geral, Portugal político está mesmo dividido ao meio. De um lado, os conservadores e neofascistas. Do outro, a esquerda democrática e radical.

Uma divisão triste para quem deseja um país melhor e uma redução no número de portugueses a viver no limite da pobreza. As centrais sindicais anunciaram que a greve geral foi estrondosa, a melhor de sempre e com uma adesão invulgar a rondar os 80 por cento. A greve paralisou transportes aéreos, ferroviários, rodoviários, marítimos e fluviais, além de escolas, creches, hospitais, centros de saúde, lares para idosos, centros de dia, tribunais, universidades e museus.

O Governo Montenegro veio, com ar de desprezo e arrogância pela realização da greve geral, dizer que a adesão foi diminuta e que não teria passado dos cinco por cento. E a sua demagogia imperou quando “ordenou” aos canais de televisão que controla, que mostrassem bem que na Autoeuropa estavam imensos trabalhadores a não aderir à greve geral. O costume dos números. Para uns, excelente. Para outros, um fiasco. A verdade é que a greve geral mexeu com milhares de portugueses, de uma forma ou outra.

O mais importante nem era a greve geral. O que está em causa é o protesto generalizado, incluindo por parte de alguns antigos dirigentes do PSD e do CDS, contra o conteúdo absurdo e prejudicial da proposta governamental para uma nova Lei Laboral. A preocupação que mais tem crescido nos inquéritos às empresas é a falta de trabalhadores, muitas áreas de actividade enfrentam sérias dificuldades com a falta de pessoal qualificado e as limitações ao recrutamento de mão-de-obra estrangeira a pôr em risco os objectivos do PRR.

Num contexto de escassez de mão-de-obra os salários reais têm crescido nos últimos anos acima da inflação, com destaque para a área da construção, com valorizações acima de oito por cento. Face a este cenário o que resolveu o Governo na sua fúria ideológica? Abrir um incompreensível conflito social em torno das leis laborais, já profundamente revistas várias vezes este século.

Nada se tem percebido sobre a abertura negocial do Governo relativamente aos temas principais da sua proposta. Obviamente que ao fim de quatro meses de orelhas moucas do Governo, tinha de ser organizada uma greve geral. Retrocesso no pacifismo laboral é o Governo pretender a possibilidade de despedimento sem processo nem justa causa nas empresas até 50 trabalhadores, com a dispensa de reintegração caso o despedimento seja considerado ilegal pelo tribunal, a possibilidade de contratar em outsourcing no dia seguinte ao despedimento colectivo, com banco de horas individual, com contrato a prazo para toda a vida, com a possibilidade de reclassificação profissional com a redução de salário, com obrigatoriedade dos pais das crianças trabalharem ao fim-de-semana ou com a descriminalização do trabalho não declarado e pago por baixo da mesa.

Estas são algumas das “inovadoras” propostas do Governo, que em nenhuma altura aceitou retroceder, mas que em nada contribuem para a competitividade, a modernização digital e a qualificação dos trabalhadores. Depois de meses de hipocrisia do diálogo e de inocentes lamentos acerca de uma greve “inoportuna”, Montenegro veio misturar a ameaça sobre o cumprimento dos serviços mínimos, e o terrível impacto económico da greve geral. Simplesmente balelas com uma vaga de demagogia de promessas sobre salários que nem lembrariam aos sindicatos como pedidos ao Pai Natal…

Até Bagão Félix e Silva Peneda vieram já reconhecer a inoportunidade e natureza desequilibrada da reforma da legislação laboral. E estas personalidades não são sindicalistas, nem socialistas e muito menos frequentaram manifestações de protesto ou participaram em greves.

O mais surreal disto tudo, é que o Governo irá esperar que depois de se ter esquecido a greve geral e passado o Natal possa impor a máquina trituradora que levará os trabalhadores portugueses a perderem direitos como nunca sonharam. Só falta que a aliança PSD/Chega anuncie que o regime democrático também será alvo de uma reformulação laboral…

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários