O escritor

Estava sentado numa esplanada do centro histórico de Santarém. Tinha pedido uma bifana e uma imperial. Pensava nas pessoas que ia vendo passar. Na diferença com que os humanos exteriorizam os seus hábitos nas mais diversas formas de se apresentarem. Passavam raparigas e rapazes com a nova moda de auscultadores nas orelhas, algo que, segundo vários clínicos, vais deixar a nova geração completamente surda aos 60 anos de idade, porque ouvem a música no máximo de decibéis; passavam reformadas com a sua bengala; passavam mães com os seus carrinhos transportando os bebés.

É uma satisfação constatar que a natalidade não pára, mas é triste saber que muitas jovens não podem e não querem ter filhos por falta de condições financeiras para os criar e porque a situação das urgências hospitalares para grávidas está um caos; passavam apressadamente homens de pasta e fato e gravata, possivelmente advogados ou funcionários superiores da municipalidade; passavam crianças aparentando 12 ou 13 anos com a mochila às costas de tal forma pesadas que em nada beneficia o futuro das suas colunas vertebrais; passavam idosos com demência com uma senhora africana de braço dado.

Ai, se não fossem os imigrantes… não sei quem é que trabalhava nas instituições de cuidados continuados, nos lares, nos milhares de casas de portugueses das classes média e alta como empregadas domésticas, nos restaurantes e cafés, na agricultura e nas obras de construção civil. E ainda temos políticos que querem os imigrantes fora de Portugal, quando nós fomos sempre um país que obrigou à factualidade de termos milhões emigrados pelos quatro cantos do mundo; passavam vendedores disto e daquilo. Penso que disse umas seis vezes que não estava interessado em relógios, carteiras, óculos, chapéus ou isqueiros; passavam polícias na conversa e sem boné na cabeça. Ainda me recordo quando os agentes policiais percorriam as ruas garbosamente fardados e faziam continência quando passava um militar superior fardado. Hoje, não ligam a ninguém e até parece que somos nós que temos a culpa dos seus baixos salários.

A dado momento, chegou-se junto a mim um cidadão com o cabelo grisalho mal arranjado, a barba por fazer, com a roupa velha ou pouco limpa e disse-me qualquer coisa que não percebi. Respondi que não tinha trocado porque pagava a conta com o cartão multibanco. O indivíduo balbuciou mais umas palavras e eu pedi para repetir. Ele disse-me que não estava a pedir dinheiro. Desejava que eu lhe pagasse um bolo porque tinha fome. Respondi-lhe afirmativamente e acto contínuo perguntei o que fazia. Respondeu-me, surpreendentemente, que era escritor. Escritor? Mandei-o sentar na mesa e perguntei-lhe se queria uma bifana e uma imperial. Respondeu-me com um sorriso.

– Então, você é escritor e tem fome, certamente por falta de dinheiro, não?

– É assim.

– Mas, não tem dinheiro porquê?

– Porque tenho uma reforma de 700 euros, pago 450 pela renda, tenho de comprar alguns medicamentos não comparticipados, pago a electricidade, o gás, a água e fico com muito pouco dinheiro para a alimentação. Não compro roupa ou sapatos há cinco anos.

– E a Segurança Social não lhe dá apoio?

– Já tentei três vezes e ainda não consegui nada.

– Oiça, meu caro, o que escreve?

– Já escrevi dois livros sobre o capitão Salgueiro Maia e um sobre o que foi o Movimento das Forças Armadas?

– E onde posso comprar os seus livros?

– Esgotaram.

– E a editora não lhe pagou as comissões das vendas?

– Não, porque acordámos que eu não pagaria nada pela produção das obras mas também não receberia nada pelas vendas.

Chegou a bifana e a imperial para o meu interlocutor e de um golo bebeu o líquido alcoólico e de quase uma dentada a bifana. A fome era grande e as lágrimas emudeceram-me os olhos.

– Ó amigo, coma mais uma bifana…

– Se o senhor puder, agradeço muito.

– Não me trate por senhor, chame-me André e dê-me a sua morada para eu lhe enviar qualquer coisa que me diga que precisa e o número da sua conta bancária para quando eu puder enviar-lhe uns euritos.

O escritor, que me pediu para não mencionar o seu nome, depois de lhe dizer que eu escrevia na blogosfera e que iria abordar aquele encontro. Agradeceu-me sensibilizado e ao retirar-se apenas me disse que eu tinha “caído do céu”.

– Porque é que diz isso?

– Porque nos dias de hoje há muita pouca gente que ajude o próximo.

O escritor foi à sua vida e deixou-me a meditar na pobreza escondida que grassa pelo nosso Portugal. Uma pobreza que se intensifica de ano para ano e que os políticos assobiam para o lado. A pobreza em Portugal é uma realidade que afecta quase dois milhões de pessoas, representando 16,4 por cento da população em risco de pobreza ou exclusão social, de acordo com dados recentes. Embora a taxa de risco de pobreza tenha diminuído em 2023, a desigualdade de rendimentos e a pobreza continuam a ser desafios significativos para o país, com crianças, jovens e famílias monoparentais sendo os grupos mais vulneráveis. Em Portugal, uma em cada cinco pessoas vive em risco de pobreza ou exclusão social.

Os pobres estão mais pobres em Portugal. A evolução dos principais indicadores de desigualdade, pobreza e exclusão social divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, realizado em 2024, evidencia alguns sinais contraditórios, que devem ser lidos com um cuidado adicional. Uma parte desses sinais contraditórios resulta dos diferentes períodos de observação das suas principais variáveis.

Enquanto os indicadores de nível de rendimento, de desigualdade e de pobreza reflectem a realidade de 2023, os indicadores de privação material e social e de exclusão social traduzem a realidade existente na data do inquérito, isto é, de Março a Junho de 2024.

Contudo, o mais importante é que existe muita pobeza escondida no nosso país e há “escritores” com fome e que têm a dignidade e a coragem de pedir pelas ruas que alguém lhes mate a fome e, isso, é o mais triste de uma realidade que a classe política não demonstra ter preocupação, especialmente em manter reformados com pecúlios mensais de 200, 300 ou 400 euros.

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