A China e os chineses em Broken Blossoms

Broken Blossoms (Lírio Quebrado é o título português) é considerado pela crítica como um dos melhores filmes de Griffith, a par de O Nascimento de uma Nação e Intolerância. Estreou em Nova Iorque no dia 13 de maio de 1919, no George M Cohan Theater. O enredo desenvolve-se em torno de Lucy, uma rapariga de 15 anos do bairro de Limehouse em Londres. O pai, Battling Burrows, é um pugilista ébrio e violento que lhe torna a vida infernal. Certo dia, Lucy procura refúgio na loja de um jovem chinês, Cheng Huan. Este admirava em segredo a beleza da rapariga. Quando o pai de Lucy descobre, espanca a filha até à morte. Ao encontrá-la moribunda, Cheng Huan mata Battling Burrows e suicida-se. Lucy é interpretada por Lillian Gish numa época em que não tinha ainda atingido o auge do estrelato. A história, embora trágica, era simples e, como afirma Rotha, “confiou no cinema para ter sucesso” (1967, 172).
Broken Blossoms baseava-se no conto ‘The Chink and the Child’, parte da colectânea Limehouse Nights (1916) do escritor inglês Thomas Burke. Burke fora funcionário e jornalista na cidade e alcançara popularidade como cronista sensacionalista dos bairros sórdidos de Londres como Limehouse, retratando os seus habitantes como personagens pecaminosas entre o erotismo, a traição e a vingança (Kepley 1978, 41).
O filme foi rodado numa época em que vigorava um intenso preconceito anti-asiático na Europa e na América, fenómeno que começara no século XIX e se prolongaria pelas primeiras décadas do século XX. A animadversão contra os asiáticos podia ser encontrada nas políticas do governo britânico e dos EUA através de leis de imigração e de restrição de imigrantes, bem como em práticas imperialistas nas Caraíbas e na Ásia. Por exemplo, no caso do Supremo Tribunal da Califórnia People vs. Hall (1854), o tribunal descreveu os imigrantes asiáticos como
“uma raça de pessoas que a natureza marcou como inferiores e que são incapazes de progredir ou de desenvolvimento intelectual para além de um determinado ponto, como a sua história demonstra; com uma diferença na linguagem, nas opiniões, na cor e na constituição física; e entre quem e a nossa natureza colocou uma diferença intransponível”. (citado por Yang 2016, 10)
E a subsequente Lei Anti-Coolie dos EUA prosseguiu na mesma veia, pintando os asiáticos como “coolies, uma raça degradada de viciados em ópio, prostitutas e jogadores sem Deus” (citado por Yang 2016, 10).
A animadversão contra os asiáticos podia também ser encontrada nos meios de comunicação, na literatura, no teatro e no cinema. Os asiáticos, chineses e japoneses em especial, eram invariavelmente retratados como a encarnação viva de um mal insidioso. Tornaram-se figuras familiares na literatura e nas revistas populares através de romances e histórias de autores como o já referido Thomas Burke e o criador do conhecido Dr. Fu Manchu, Sax Rohmer, que sonhou com a China governando a Europa e a América.
Quando Broken Blossoms foi rodado, Hollywood tornara-se num centro catalisador de animadversão contra os asiáticos. Os filmes que produzia retratavam asiáticos indignos de confiança e que constituíam uma ameaça aos valores americanos, às mulheres americanas e à América enquanto país. Por exemplo, em The Yellow Menace (1916), os maléficos chineses unem forças com os mexicanos para erguer uma conspiração subversiva contra os EUA. O título do filme recorda o termo “Perigo Amarelo”, usado pelo Kaiser alemão Guilherme II para incentivar os impérios europeus a invadir e colonizar a China, a fim de impedir que uma hipotética aliança sino-japonesa conquistasse e subjugasse o mundo ocidental.
Não esqueçamos que o nascimento do cinema coincidiu com a proliferação de ideologias pseudo-científicas como o darwinismo social e a eugenia, que promoviam a noção de raça através de uma hierarquia natural das culturas humanas. O topo pertencia aos anglo-saxónicos, o nível seguinte aos restantes caucasianos e os mongólicos e negros eram colocados no fundo. Desde então
“O cinema americano tem construído consistentemente a brancura, a forma representativa e narrativa do Eurocentrismo, como a norma perante a qual todos os “Outros” falham por comparação. As pessoas de cor são geralmente representadas como ameaças desviantes à regra branca, exigindo assim punição civilizada ou brutal, ou como objectos fetiches de beleza exótica, ícones para uma escopofilia racista” (Bernardi 1996, 3).
Receando que a ausência de uma posição anti-asiática óbvia em Broken Blossoms irritasse ou desapontasse o público, Griffith decidiu manipular previamente a leitura que dele faria, promovendo com sucesso o filme como uma obra de arte séria. Devido à aura artística, a superação do preconceito racial talvez viesse a ser tolerada. Griffith concebeu um plano elaborado para a distribuição do filme nos EUA que se assemelhou a uma grande produção teatral. E assegurou-se de que a campanha publicitária não fazia referências claras ao tema do filme (Kepley 2009).
Broken Blossoms retrata a China como um lugar anacrónico de vida contemplativa onde as pessoas estão ligadas pela família, as amizades, a comunidade e a continuidade entre gerações, enquanto Londres é dinâmica, violenta e inóspita. Não obstante ter sido filmado em 17 dias, detecta-se por parte do realizador um certo esmero e exigência de autenticidade nas cenas passadas na China. Isso era muito raro na época e continuaria a ser raro durante largas décadas. É verdade que as duas principais personagens chinesas (Cheng Huan e Evil Eye) são interpretadas por caucasianos, como era então a norma, mas todos os outros chineses são chineses de facto. As roupas chinesas são roupas chinesas e os sapatos chineses são sapatos chineses. Além disso, e isto é ainda mais notável, os caracteres chineses são caracteres chineses reais e as frases que formam são frases plausíveis. Na maioria dos filmes ocidentais, os caracteres chineses ou eram rabiscos falsos ou apareciam de cabeça para baixo, como no close-up de uma carta em The Forbidden City (1918), de Sidney Franklin.
Para além disso, Broken Blossoms parecia ir deliberadamente contra a maneira de retratar os asiáticos então dominante nos meios de comunicação populares. Na história de Burke, Cheng Huan era retratado como “o inútil de um oriental” (citado por Yang 2016, 12). Griffith tentou distanciar-se do conto sensacionalista de Burke tornando o seu ‘homem amarelo’ numa personagem melhor, enfurecendo o escritor por não o ter consultado (Kepley 1978, 46).
Durante várias noites, Griffith levou Richard Barthelmess, o actor então desconhecido que interpretava Chen Huang, a passear pela Chinatown de Los Angeles para observar os chineses, como preparação para desempenhar o seu papel (Koshy 2001, 75).
Nas cenas passadas na China, Cheng Huan é retratado como uma personagem poética que sonha em ensinar o amor budista pela paz no Ocidente, um homem eloquente que abraça valores eternos, como a eternidade de Buda e a eternidade da civilização chinesa. Vestido com vestes ricamente ornamentadas, parece sereno, digno até.
Todavia, quando se muda para Londres, o seu sonho missionário soçobra. Não se mostra capaz de ultrapassar os obstáculos inerentes à tarefa de transplantar a espiritualidade asiática para o Ocidente. Torna-se paulatinamente apenas mais um ‘chinoca’ do bairro de Limehouse. A expressão facial é melancólica, pouco fala, usa roupas envelhecidas e adopta, como Lucy, uma postura encurvada. Conserva amiúde os olhos baixos, os braços enrolando-se sobre si próprio. Com os seus ideais despedaçados, Cheng Huan transforma-se num solitário viciado em ópio e num alienado desiludido incapaz de prosperar num ambiente hostil. Na verdade, as roupas de Cheng, a sua loja, a sua casa e o seu fumo de ópio parecem conservá-lo para sempre numa existência asiática. O filme alerta deste modo para os perigos das travessias culturais e para a degeneração daí resultante.
A dificuldade em ajustar-se a uma cultura diferente é sugerida logo no início do filme. “Os bárbaros anglo-saxónicos”, os britânicos, os marinheiros americanos, são encarnações de auto-confiança machista, mulherengos e bêbados que gostam de lutas. Mas “o sensível Homem Amarelo encolhe-se de horror” ao ver os marinheiros americanos a lutar. E embora a sua mensagem budista seja semelhante à cristã (“O que não queres que os outros te façam, não faças tu aos outros”) há um equívoco na percepção cultural. Cheng Huan interpreta como violência o que foi, de facto, segundo Griffith, “Apenas uma luta livre e sociável para os Jackies”. Em suma, provavelmente não se entendem.
Ainda assim, Cheng Huan irá apaixonar-se por uma rapariga branca. A ameaça de miscigenação é, portanto, um tema central do filme. A miscigenação era um tema popular, intrigante e repulsivo ao mesmo tempo. Um dos estereótipos em voga era que o homem asiático nutria um apetite voraz por mulheres brancas. Tal como em Broken Blossoms, a luxúria era unilateral, mas os homens asiáticos conseguiam impressionar as mulheres brancas através de uma gentileza calculista, embora nunca através de proezas físicas. The Cheat (1915) de De Mille servia como protótipo, ao retratar a história de um japonês rico e perigoso que prospera na sociedade branca e é uma ameaça para as mulheres, um violador (Kepley 1978, 39). Na sequência final, é claro, as mulheres eram invariavelmente salvas por um herói branco, de preferência americano.
Broken Blossoms foi uma inovação no sentido em que não há nenhum herói branco por quem Lucy se apaixone e que a vá salvar. O herói só podia ser branco e, portanto, Cheng Huan não a podia salvar.
Um aspecto representado na grande maioria destes filmes era a violência perpetrada contra um membro (e às vezes ambos) de um casal bi-racial, muitas vezes separando-os nesse processo. Assim, a miscigenação, mesmo que retratada de uma forma mais positiva, esteve quase sempre ligada à violência e era vista, em geral, como algo a abordar com cautela. (Hui 2010, 6)
As uniões bi-raciais estão condenadas a falhar e Cheng Huan não podia concretizar carnalmente o seu desejo pela rapariga branca. Abstém-se mesmo de beijar Lucy, pois esta parecia encolher-se de terror perante tal perspectiva. Tudo quanto podia fazer era demonstrar por ela uma espécie de amor maternal: “A falta de resposta infantil de Lucy à paixão de Cheng inicia uma transformação no papel deste como um potencial amante para o de mãe substituta.” (Koshy 2001, 65).
Cheng Huan, um misto de luxúria carnal e de espiritualidade, sublimou o desejo por Lucy em adoração pela sua brancura. O seu quarto torna-se num altar de adulação à Menina Branca, à Flor Branca. Esta, no entanto, só na aparência permite ser orientalizada, ao envergar vestes chinesas, “seda azul e amarela acariciando a pele branca”. Na verdade, está imobilizada entre a brutalidade do pai e o alienado Cheng Huan, entre o abuso e a miscigenação, entre a vida de escrava e a vida de prostituta. Sem herói branco à vista, para Lucy a única saída é a morte.
Ainda assim, na altura, Broken Blossoms foi recebido como uma forma de arte e como uma declaração contra a brutalidade masculina e os preconceitos raciais. Através de uma combinação ambígua de racismo e de antirracismo, surgiu como “uma das representações mais positivas de miscigenação entre asiáticos e brancos que a indústria cinematográfica americana apresentaria durante muitos anos.” (Hui 2010, 23).

Referências:
Andrew, Dudley (1981), “Broken blossoms: The art and the Eros of a perverse text”, Quarterly Review of Film Studies, 6:1, pp. 81-90.
Barry, Iris (1940), D. W. Griffith, American film master, New York: The Museum of Modern Art, 1965, pp. 28-9.
Beach, Christopher (2015), A Hidden History of Film Style: Cinematographers, Directors, and the Collaborative Process, University of California Press, pp. 48-52.
Bernardi, Daniel (1996), “Introduction: Race and emergence of US Cinema”, The Birth of Whiteness: Race and the Emergence of US Cinema, Rutgers University Press, pp. 1-11.
Flitterman-Lewis, Sandy (1994), “The Blossom and the Bole: Narrative and Visual Spectacle in Early Film Melodrama Author(s)”, Cinema Journal, Vol. 33, No. 3 (Spring, 1994), pp. 3-15.
Hui, Arlene (2010), “Fantasies of the “Yellow Peril”: Miscegenation in The Cheat (1915) and Broken Blossoms (1919)”, Film Journal 1 https://www.ucl.ac.uk/filmjournal/content2011 (accessed July 3, 2018)
Kepley Jr., Vance (1978), “Griffith’s “broken blossoms” and the problem of historical specificity”, Quarterly Review of Film Studies, 3:1, pp. 37-47.
Koshy, Susan (2001), “American Nationhood as Eugenic Romance”, Differences: a Journal of Feminist Cultural Studies, 12 (1), pp. 50-78.
Rotha, Paul e Griffith, Richard (1967), Survey of World Cinema. The Film Till Now A Survey of World Cinema, New York: Twayne Publishers, pp. 169-79.
Torregrosa, Daniel C. Narváez (2008), “La Vision Cinematográfica de D. W. Griffith”, Frame: revista de cine de la Biblioteca de la Faculdad de Comunicación, Nº 3 2008, pp. 44-57.
Yang, Helen (2016), “White Washed Out: Asian American Representation in Media” https://sites.duke.edu/bakerscholars/files/2017/02/Yang_AsianAmericanMediaRepresentation.pdf (accessed June 29, 2018)

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