Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasUma dispersão do diabo António Cabrita - 21 Out 2021 Eis-me numa dispersão do diabo, igual à da senhora australiana que, como foi noticiado esta semana, descobriu já tarde que tinha duas vaginas, quando, num assomo de curiosidade, perguntou à mãe (que pelos vistos nunca lhe mudara a fralda) se costumava meter primeiro o tampão na da esquerda ou na direita. Há vidas santas! Excertos de três livros em curso: Excerto 1 A minha vida? Feita de restos, de ingratos desencontros. Entra aquela mulher atraente no café, dá-me a espertina e ponho os óculos: é o casamento feliz de Joni Mitchell e da Suzanne Vega. Tirando a dentuça. Paira, nesse esplendor condoído da metade dos quarenta. Que pena não ter nove vidas como o meu gato Sebastião (faz hoje anos) para poder cantar com ela o Blue e o Luka. Ainda teríamos filhos, dois, e numa visita ao Etna, falar-lhe ia de Empédocles, com cuidado, pra não tropeçar em arbusto incandescente. (Mete-se a minha mulher, E eu, também não vivo de restos, não tenho os mais vivazes desencontros? Já não estamos sós nem na escrita! Tranquilizo-a: tens sim, meu amor, por isso não cometo o risco que te defraudaria: Viste, acabei de cair no Etna!). Não te esqueceste dos bróculos, pergunta-me da cozinha (- mudei de parágrafo e de geografia!). A Jade canta A Pedra Filosofal, a Luna ensaia pela nonagésima vez o Dangerously, de Charlie Puth (quem é?) eu faço o print de duas antologias de Emily Dickinson, roubadas ao amorfo manto da net. “Tão fugitivo como o poente na neve”, diz a poeta. Fala da mente, digo eu: nenhum de nós tem razão. Para quê dar nome àquela bela miragem? Na varanda, os jacarandás despem já o seu enxoval. Onde se meteu o noivo? Excerto 2 De todos os livros sugeridos pelo bibliotecário, o único cujo tema me interessou logo e de que já tinha ouvido falar era o Moby Dick. Por um daqueles acasos felizes com que a vida nos trama, numa tarde de cata-caracol no Camponesa do Alva, assistira a uma conversa em que o primo açoriano de alguém, de visita ao bairro, enquanto chupava os gastrópodes, se entretivera a fascinar a plateia com um assunto absolutamente inesperado: a degola do cachalote. A sua narrativa, brutal, foi tão arrebatadora que o dono do café, no fim, ofereceu à mesa uma travessa de amêijoas, pois, repetia, naquele dia “tinha-se fartado de aprender”. E como remate da conversa o primo açoriano recomendara a leitura do Moby Dick: “É um livro que sabe mais de baleias que a Bíblia sabe de anjos”. Ainda hoje me pergunto o que me teria fascinado em Moby Dick, um livro de uma densidade excessiva para a capacidade de absorção de um rapazola de onze anos. Já não falo do vocabulário, que tiraria eu das «enxárcias lassas do sobrejoanete de proa», ou que poderia deduzir ao ler que «dos assuntos úberes medram os capítulos»? Ter-me-iam atraído os vários afluentes de curso fantástico que o Melville vai largando como quem não quer a coisa, ao jeito de ganchos narrativos: «Dizem que os pais de New Bedford oferecem às filhas baleias como dotes», «em Nantucket as pessoas plantam cogumelos diante das casas para conseguirem um pouco de sombra de Verão», «Hossea Hussea mandara encadernar os seus livros de contas com pele de tubarão de superior qualidade», «a alma é uma espécie de quinta roda numa carroça», «aquela mãe egípcia que deu à luz filhas já grávidas à nascença»? Seria da lenda que Melville relata sobre um lago da Serra da Estrela onde apareceriam misteriosamente carcaças de velhos baleeiros? Seria de ter intuído a absoluta precisão vocabular de Melville: «Foi portanto numa noite silenciosa que se avistou um jacto prateado», «empoleirado a desoras no alto do mastro», ou, como se lê num dito do Capitão Ahab: «foi Moby Dick que me desarvorou»? Tudo isso mais o contraste deste genial romance de inabalável pulsação digressiva com as narrativas correctas, antisépticas e arrumadinhas de hoje. Hoje, na maioria dos livros, está tudo certo, o que lhes falta é a vertigem. A vertigem que nos assalta à leitura das primeiras páginas de Trópico de Capricórnio, a vertigem em que nos submerge o narrador quântico de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou a que nos imprime a loucura descabelada de A Música do Acaso, de A Noite e o Riso, de Partes de África ou a que é patente em muitos momentos de Manuel da Silva Ramos; esta sensação de torvelinho que transmite Melville e o absoluto domínio com que apesar do caos que pletoricamente parece invadir tudo nos tatua com uma impressão de irrefutável unidade. Excerto 3 A arte é um reino da poligamia ou um estado do polígono? Continuo indeciso. Há lugar para a indecisão na mise en âbime? Nos sonhos sou visitado pela imagem de um homem que envelhece, sentado à janela do comboio. Furta-se a descer nas estações e apeadeiros, a ir lá para fora, como a mosca que se embriaga com os capitosos vapores da sopa mas receia cair na panela, o ruído fragoroso de cada cicatriz. Envelhece na janela do comboio, pois foi seu destino vaguear, como outros viveram indefinidamente em hotéis a ele coube-lhe a velocidade dos cometas, entre carris. Uma noite, eram três da manhã e escrevia um artigo que me tinham encomendado, senti que metiam uma chave na ranhura de minha porta. Eh! – gritei. Fez-se silêncio. Seguido por uma corrida de retirada, célere como o fósforo que aprende a arder. Quem tem uma chave de minha casa e se apresta a visitar-me, sem avisar, às três da manhã, com intenções enviesadas? Esta noite não voltará. E amanhã terei de trocar a fechadura, pensei. Mas não troquei. Para me sentir seguro, apanhei o comboio. O primeiro comboio da manhã para o Porto.