A amigologia

“Which of all my important nothings shall I tell you first?”
― Jane Austen

 

Ah, leitores. Se de facto ainda têm a benevolência de entregar um pedaço da vossa vida às palavras que por aqui vão saltitando, eu louvo e agradeço. E derivada dessa que para mim é uma inexplicável atenção (mas que, pronto, da qual vou dependendo) saberão quase ad nauseam que entre mim e o mundo existe uma relação – para usar um adjectivo científico – “complicada”. Estamos a dar um tempo, eu e o mundo. O fenómeno, devo confessar, é pessoal e cíclico; mas pela idade, tédio, inadequação, falta de pachorra ou tudo junto a coisa tem vindo a agravar-se. Há muitas, muitas luas, sentindo a mesma angústia, cheguei a tentar ingressar – espaço para gargalhada do público – numa ordem religiosa que, pensava eu, me iria garantir tudo: oração, silêncio, leitura e beleza. Sem surpresa não me aceitaram. Percebo: eu teria feito o mesmo e sem a pedagogia e doçura.

Mas agora, mas agora? Tudo me cansa, amigos. Se ouso abandonar por um instante os meus refúgios solitários – a literatura, a filosofia, a música, a fé – sou atropelado pelo que existe. E o que existe é aquilo que o profeta Nelson Rodrigues há muito vaticinou: o triunfo do idiota. Num clima tão extremado como o que vivemos em que a ideia de debate ou da possibilidade do outro começa a ser um ramo de arqueologia é natural que isso possa acontecer.

Mas irrita. Agarradas às circunstâncias sanitárias que vivemos começam a medrar e a ter eco as linhas chalupistas que sempre estiveram latentes: curas através de calhaus judiciosamente esfregados nas costas; desaparecimento de doenças terminais através da meditação ou da convocação de “energias positivas”; diagnósticos através da “aura”; a certeza de que a “Mãe Terra”, bem invocadinha, irá substituir a ciência. E por aí fora.

Cautela: eu não acho que por mais obnóxias que pareçam – e serão – muitas destas “teorias” devam ser dispensadas sem sequer serem ouvidas. Eu tenho o meu Against The Current de Isaiah Berlin aqui ao meu lado e sei bem o que implica a ausência de voz e de resposta. Mas ainda assim.

Então para vos dizer o quê? Que não sou imune. Que também tenho direito às minhas teorias e proclamá-las com a vantagem de não querer discípulos. E num mundo em que se prefere a Humanidade ao humano, a massa ao indivíduo, eis o que vosso oferecer: a amigologia.

Não se trata de uma ciência – se o fosse seria a mais inexacta; não se trata de uma ideologia porque os dogmas não são universais; não se trata de uma arte, porque existe muito para lá do prazer estético. E no entanto é tudo isso e ainda mais baseada no maior risco e privilégio que nos é atribuído: a possibilidade da escolha. A mesma maravilha que nos salva todos os dias é a que nos condena e fere quando as coisas correm mal. E no entanto, e no entanto.

Reparai o pouco que nos custa: quando a amizade é natural não exige assiduidade: os anos de ausência são transformados em segundos no momento do reencontro. Não há perguntas nem julgamentos a não ser esta: «Estás bem? E se não, o que posso fazer?».

Exige trabalho, certamente. Dói, tantas vezes, quando a perdemos. Talvez mais do que o amor. Mas nesta altura é provável que possa ser santuário e redenção. A amigologia apenas observa, não ensina. Mas a sua mera presença lembra-nos do tanto que ganhamos num pequeno ou grande gesto que não exige reciprocidade, apenas reconhecimento.

De forma que é isto. Num mundo em que toda a gente parece mobilizada para salvar prefiro refugiar-me e esforçar-me por aqueles que estimo, que posso ajudar e me ajudam. Que se danem as grandes causas, desculpem: prefiro dois minutos de trivialidades com amigos. Prefiro as pessoas ao que as pessoas são. E estou disposto a embarcar nesse risco e, como o estou a fazer agora e contra a minha natureza, exortar a que o façam. O resto, com sorte, virá depois. Ou então não e não faz mal.

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