Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoDa Ira Identitária II António Cabrita - 26 Mar 2021 Há livros clarividentes que constituem um antídoto contra esta maleita mas as hordas fazem alvorecer os equívocos. Devia ser obrigatório ler “As Identidades Assassinas”, do Amin Maalouf, ou o magnífico “A Identidade Cultural não Existe”, do François Jullien. Mas não foram escritos por africanos… e hoje a inteligência e a memória são rejeitadas como elementos espúrios, em não tendo um selo étnico. Na semana passada evoquei a irreparável ofensa que constituiu a deficiência cognitiva programada pelo colonialismo, comentarei agora a abominável “perda de realidade” e a perversão dos valores que os regimes pós-coloniais imprimem na percepção das novas gerações, praticadas em nome da “identidade”. Há uma jovem do Malawi, cujos livros estoiraram em todo o mundo. Chama-se Upile Chisala e foi publicada na Leya/Brasil. Li-lhe o primeiro livro, “Eu destilo melanina e mel”. Que tal é? Cite-se: «Eu gosto de pensar que Deus sorri/ quando uma mulher negra é corajosa o suficiente/ para amar a si mesma.»// «Diga a ela que há deusas nos seus ossos/ E histórias de triunfo na sua pele./ E que essa negritude não é um pecado». Sobressaem no livro três temas: a cor da pele, a necessidade de auto-estima e o difícil respeito mútuo no amor. Upile cresceu no Malawi, entre negros, fez o curso universitário nos EUA, e depois voltou a casa e agora vive na África do Sul, maioritariamente negra, e, em entrevista, diz pretender ser a voz, não de todas as mulheres, mas, “das negras”, contra a discriminação que as vexa. Fico baralhado quanto aos alvos e em que “lugar” ela localiza o racismo e a discriminação: afinal, não vive em África? Talvez Upile sofra do mesmo problema que um jovem “filósofo” moçambicano que nas suas palestras excita a plateia com as mesmas histórias e argumentos histórico-filosóficos, que conduzem invariavelmente ao despertar para a consciência do homem negro, no bairro de Harlém, em 1920 – à terceira vez que ouvi o mesmo discurso, perguntei-lhe se ele já havia dado conta de que vivia em Maputo, terra libertada, em 2019. Até hoje não despertou para a sua realidade e papagueia o seu discurso anti-esclavagista, evitando pronunciar-se contra os erros grosseiros do poder actual que conduziram a Cabo Delgado e à decapitação de crianças. Outros poemas do livro: «Você/ e eu/ e todos os nossos vícios.»//«Meu amor,/ você não acreditaria em todos os lugares/ em que achei que encontraria você.»// «Milhares de poemas vêm dançando no meu peito/ desde a primeira vez que você me beijou.»//«Tenha cuidado com a maneira como você ama as pessoas./ Não as destrua./ Não se destrua». Isto tem consistência como poesia? Até como auto-ajuda é medíocre. Porquê o sucesso? É simples, é uma mulher negra num mundo polarizado, não importa a vulgaridade do que diga. Coitadas das poetas de outras latitutudes e raças: têm de estudar todos os poetas da sua tradição, dois mil anos de poesia, antes de se atreverem a escrever uma linha que seja consistente. Esta crónica vai ser lida como racista quando é o contrário disso: apela a que os africanos readquiram a sua dignidade trabalhando mais e melhor e auto-guetizando-se menos. Uma moçambicana passou-me o manuscrito de “uma novela”. Como novela era pífia; salvei umas frases no meio da hulha, que montei, o que resultou num poema unitário de 20 páginas. Ela publicou o poema. Vejo-a depois entrevistada pela RTP África onde, com desfrute e vaidade, se ufanava de ser estudada nas universidades do Brasil. Em que farsa me meti eu, interroguei. De outra vez, deram-me um manuscrito de trezentas páginas para ler, sem estrutura, martelado na sintaxe com que se acomodarão os alimentos no bandulho de um pangolim. Estruturei-o e reduzi-o a cento e dez páginas. Pensei, isto, claramente, ainda precisa de ir às oitenta mas não quero assustá-lo de antemão. O tipo, radiante, meteu imediatamente o livro na tipografia antes de eu conseguir enxugá-lo devidamente. Nunca mais privou comigo ou voltou a escrever outro livro. Ou antes, contactou-me dez anos depois para que eu exercesse de novo as minhas habilidades de alfaiate, mas disse-lhe que não. Recebi agora um daqueles livros colectivos, emanados dos Departamentos de Estudos Africanos: lá vinha um aperaltado estudo académico sobre a famigerada “obra-prima”. Ao qual se segue outro artigo “científico” sobre uma poeta que não consegue, literalmente, no domínio da língua, fazer coincidir um botão com a sua casa. Assim se produzem teses, de fora, sobre “o cânone” literário, ancoradas num paternalismo estupidificante. (Não distorçam, existem bons escritores, ainda esta semana escrevi o prefácio para um jovem novelista, falo antes dos “efeitos da mentira” alimentados pelo duplo critério da complacência, que impedem a autonomia e o crescimento). O predomínio da cultura oral é patente, explicando a dificuldade de grande parte dos estudantes africanos que vão estudar para fora com bolsa. Não estão habituados a uma tal exigência de ritmo de leitura e de pressão. Em casa, os trabalhos nunca visavam a excelência e nas avaliações prevalece um critério de mitigação: “Dado o contexto, não é mau…”. “Subtilezas” enquadradas num proselitismo auto-desculpabilizador e avesso à crítica. Neste contexto, a cultura instalada – de cultivar o discurso vitimista em detrimento do esforço e da produção, quer de conhecimento, quer de modos de vinculação ao presente -, é um erro programado que politicamente beneficia a alguns. O que gera tensões e leva a que os comportamentos se polarizem entre a baixa estima e a auto-indulgência como desporto nacional, num desvanecimento colectivo que tem como mecanismos principais a busca de bodes expiatórios e a catarse hedonista. Por isso são sociedades essencialmente consumistas, destinadas a estar em pane: orgulhosamente, querem ter “a autoria” sem trabalhar o suficiente para aprender os processos. Eis a contradição, gritam por soberania ancorados em sistemas de vida que os engaja na dependência. Houve um inquérito de uma rádio à boca da universidade sobre se era prioritário fazer o curso universitário ou pertencer ao Partido. Adivinhe-se.