Diários de Próspero MancheteUm tremendo fotógrafo António Cabrita - 24 Mai 201824 Mai 2018 [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”. Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho. À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”. Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”. Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto. Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava. Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se. O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone. Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína. Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.