Diários de PrósperoTer galo e ser galo António Cabrita - 20 Jul 2017 18/07/2016 [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez escrevi um sketch de teatro que contava o drama de um assaltante de bancos que amargou sete anos na cadeia sem ter dito onde havia escondido o bolo do assalto e que quando sai finalmente para a sua suprema recompensa dá conta de que houve na semana anterior uma alteração das células e que com a conversão perderá milhões. Este tipo de situação – “ter galo”, chama-se na gíria – é-me comum. Vou dar um exemplo. A semana passada fui a um congresso. Designava-se assim: “Cartógrafo de memórias: a Poética de João Paulo Borges Coelho”. Em Moçambique há um deserto no que toca a textos para teatro e à dramaturgia. Decidi então levar ao congresso não um trabalho de académico, mas de um prático, e intentar explicar como se poderia operacionalizar a tradução de um romance de Borges Coelho em peça de teatro. Enfim, só esquematicamente, porque não apresentei a peça mas uma sequencia sinóptica que inclusive só pode servir como ponto de partida pois o teatro é sempre um work in progresso. Cheguei a Lisboa e estive três dias fechado a imaginar a coisa e a escrever a comunicação. No dia, fui até o primeiro a chegar ao Anfiteatro III, na Universidade de Letras, e enquanto esperávamos tive uma deliciosa conversa com a Ana Paula Tavares sobre o meu emérito bisavô, o explorador de África novecentista Henrique Dias de Carvalho, que lhe serviu como sujeito de tese. E depois demos início aos trabalhos. Eu era o primeiro a falar, coloco o texto à frente dos meus olhos e espero que o moderador da mesa faça de lebre. Tiro da partida. E à primeira sílaba engancha-me, por causa do ar condicionado, uma irritação na garganta que me faz tossir, tossir sem remissão. Um verdadeiro nó de crude. Nos primeiros dez minutos (tinha direito a 20 m) tossi e fiquei áfono e só consegui ler a primeira página da comunicação. Cavalgo depois o texto, desenfreadamente, enquanto a moderadora da mesa me ia mostrando pequenos alertas, primeiro o cartão amarelo (FALTAM CINCO MINUTOS), depois o vermelho, vários (TERMINE A SUA COMUNICAÇÃO; POR FAVOR), que atrapalharam a menor hipótese de fluência e distraíram a recepção de algo que já estava a ser transmitido com ruído. Foi um verdadeiro acto não-comunicacional. Enfim, a moderadora fez o seu papel, eu tentei agonicamente fazer o meu, mas no ar condicionado havia um um diabo sentado. Eis o que é ter galo! Veja o meu texto aqui: https://revistacaliban.net/teatralizar-as-m%C3%A1scaras-eab0401ef35b. Mas desta vez o galo não é só meu. É uma vergonha haver um escritor do calibre de Borges Coelho (muito resolutamente um dos melhores no espaço da língua portuguesa) que é contemplado com um congresso internacional – com gente vinha de Moçambique, Brasil e Estados Unidos –, e não haver espaço nos jornais para uma notícia, não se ter deslocado um único jornalista para cobrir e divulgar o acontecimento. Pelo contrário, temos páginas duplas dedicadas ao regresso de A Guerra dos Tronos e outras tantas que bordam sobre o falecimento de George Romero, o crânio que institucionalizou em sub-género os filmes sobre zombies. Faz-me lembrar que uma vez no décimo segundo ano, na disciplina de Português duma filha minha, a professora pediu que eles escrevessem sobre um livro e autor à escolha e a minha filha escolheu um romance do Carlos de Oliveira, o que levou à perplexidade a professora porque não sabia quem era. As prioridades mediáticas estão todas trocadas e assim de lixo em lixo vamos entristecendo. Em Macau talvez não, que o escritor moçambicano vai deslocar-se até aí para a semana para, em companhia de Helder Macedo e de Carlos Morais José, oferecerem com certeza uma sessão magnífica a quem se atrever acompanhar tais ventanias mentais. 19/07/2017 Lisboa está mesmo transfigurada por causa do turismo. “Já houvera dizer”, como dizia o outro mas não há memória descritiva que assimile uma tal enxurrada. Filas intermináveis nas bilheteiras e um afã desfigurador nas tascas e restaurantes são sinais que exasperam. Aconteceu-me duas vezes, esta semana, sentar-me com um amigo em restaurantes que frequento há vinte anos e ter de sair porque não reservara previamente uma mesa. Tudo muda, mas por que não poderá ser para melhor? E há claramente um excesso de oferta cultural na cidade. É uma borbulhagem, um ziguezague que não pode obter qualquer inscrição, qualquer anelo para a memória – pois esta funciona como a arquitectura de jardins, só é despertada se a um nicho de árvores se suceder uma clareira. Se só houver uma mancha opaca de árvores estas tornam-se anónimas, anulam-se entre si. Como não entender isto? Contra esta massa, densa como todos os equívocos, entrei na INCM e tive a inspiração de pedir o II volume da Obra Poética do Vitorino Nemésio (que me tinha sido surripiada por empréstimo). Há 15 anos que não lia o Limite de Idade e Sapateia Açoriana. Não têm uma ruga, o Nemésio continua a ser um dos grandes poetas do Século XX português, só precisa de leitores menos distraídos. Veja-se o início do poema O AFILHADO: « O meu afilhado epiléptico veio ver-me./ Veio verme. / Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?/ Os anelídeos têm os seus anéis elásticos, / Num começo de élan superior, bem soldado,/ A blocos de controlo e direcção,/ Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos/ E fica pobre e triste entre os apáticos.// O meu afilhado epiléptico/ Veio ver-me/ Veio verme, / Veio eclético (…)», e continua, numa liberdade que não acaba e que faria inveja ao Cesariny. Sempre que adormeço a ler Nemésio, volto pela manhã a ouvir os galos. Os que são, não aquele que se tem.