Diários de PrósperoWalcott & A pata na poça António Cabrita - 23 Mar 2017 17/03/2016 [dropcap style=’circle’]H[/dropcap] oje somos hoje acossados por um novo tipo de ignorância: a dos que só sabem inglês. Mas desta vez dou a mão à palmatória: morreu um dos melhores poetas do século XX, Derek Walcott, de língua inglesa, nascido no mesmo ano do Herberto, 1930. Era negro, filho das Caraíbas, nascido numa família metodista e anglófona cercada de católicos e francófonos por todo o lado – eis um excelso exemplo da crioulagem dos arrabaldes do mundo, um homem sulcado de periferias como se cicatrizes do seu corpo fossem e que moldou uma obra poética e teatral de «ressonância estereoscópica», no dizer de Brodsky, para quem era «o melhor poeta actual em língua inglesa». De idêntico juízo comungavam Seamus Heaney, outro irrelevante prémio Nobel, Rushdie e Robert Graves, o qual assentiu que nenhum poeta inglês de nascimento seria capaz do extraordinário uso que Walcott fazia do inglês. Quatro nomes veneráveis que o veneraram. Mas não em Portugal, local onde terá sido um dos poucos nobéis que não tiveram direito a edição. Só vejo uma explicação para isto, mesmo que inconsciente: era negro. Os espanhóis, com menos complexos em relação aos seus crimes coloniais, traduziram-no com profusão. E assim me foi apresentado, antes de me atrever ao “seu” inglês – experiência, para mim, igual a espreitar uma paisagem através das persianas. Mas a paisagem é mesmo magnífica. No Brasil existe uma tradução de Omeros, um poema unitário de 200 páginas que verte os ingredientes homéricos para o ambiente dos pescadores antilhanos, e recomendaria igualmente, de entre os cinco ou seis livros que lhe pude ler, Midsummer e The Arkansas Testament. E hoje consegue-se baixar, free, da net, os Selected Poems. Aqui deixo um poema, breve, Arquipélagos, numa versão minha: «No fim desta frase começará a chover./ Da bainha dessa cortina de água desponta uma vela.// Com vagares, há-de a vela perder de vista as ilhas;/ a crença nos portos de toda uma raça/ esfiapar-se-à na névoa.// Terminou a guerra dos dez anos./ O cabelo de Helena, um cirro gris./ Tróia é um fosso de cinzas brancas/ amassadas pelo chuvisco, na orla do mar.// Engrossa a chuva como as cordas de uma harpa./ Um homem de olhos nublados tange-a com os seus dedos/ e recita o primeiro verso da Odisseia». 20/03/17 Eu, judeu, me confesso: chateia-me que Guterres tenha metido a pata na poça e mandado retirar do site da ONU um relatório elaborado por juristas e académicos idóneos e que, examinando as políticas e práticas de Israel, acusava Israel de cometer “apartheid”. Nova era a acusação emanar da ONU. Creio que Guterres cedeu ao medo da reacção de Trump, capaz de deixar a organização descalça. Que pena Edward Said não estar vivo para o ouvirmos comentar, ele que foi sempre justo com um lado e outro. Mas lembremos o que o insuspeito judeu George Steiner, há dezassete anos, já lamentava: «Há trinta anos eu escrevi um ensaio onde dizia: “este estado de Israel vai torturar seres humanos. Terá de fazê-lo para sobreviver!” (…) Durante dois mil anos, na nossa fraqueza de vítimas, pertenceu-nos a aristocracia suprema de não torturar o outro. É para mim a maior proeza da nossa herança. E agora, em Israel, é necessário, é necessário criar-se um campo armado, armado até aos dentes. É preciso ter gente nos calabouços em condições muitas vezes terríveis. Isto parece-me um preço que eu não vejo como queira pagar.» Pois. Depois da tortura, o apartheid. Esfuma-se a dignidade, a diferença de ser judeu. Só sobram os falcões e uma máquina de guerra imparável, que se autolegitima quando a retórica sombria das identidades se torna matéria de vida. Temendo o próximo passo – já dado pelos extremistas do DAESH –, recordo que a escravatura foi abolida não em razão dos bons sentimentos mas porque já saía mais caro ao sistema pré-industrial e era-lhe menos lucrativo do que transformar os escravos em operários. E eis-nos de novo expostos aos ventos da arbitrariedade com que a diabólica razão financeira distorce as percepções das prioridades no governo das nações para lhes impor os mais abjectos desígnios, ou para esconder (de si mesmo?) as suas enfermidades mais grosseiras. Nos idos de oitenta do século XX houve um teólogo afrikander que, dado o milagre que conduzira as mãos do dr. Barnard no transplante do coração, defendeu que a raça negra fora criada por Deus para servir de “banco de órgãos” para os transplantes dos boers. Será o próximo passo face aos palestinianos? Era vital que a ONU tivesse tido a coragem de aceitar os resultados do relatório que mandou elaborar. 21/03/17 As dimensões ocultas. Baixo da net um ensaio precioso de Cynthia Fleury, que há anos desejava ter: La Fin du Courage (Hachette, 2010). Imprimo-o. Ao fim de 40 páginas, a minha entusiástica leitura é interrompida pela empregada – quer instruções para o almoço. Dá-se então um sobressalto da geografia e sou abanado pela irreprimível saudade de comer javali. Fica-me de tal modo aguada a boca que abandono tal matéria superlativa para o espírito e rumo ao restaurante da esquina para adoçar a boca com um leitão de medíocre confecção. Salvam-me do desconsolo os lúzios peregrinos (assim no século XVIII se chamava aos “galanços”) de uma trintona, parda, bonita e atrevida, que me faz imaginar que o meu triste bacorinho é um artista de circo e anda de mota. Resisto à tentação e volto disciplinadamente para casa, sem sequer trocarmos números de telefone. Agarro-me ao ensaio da Fleury mas a minha determinação fraqueja, a vontade de pensar até ao fundo das suas consequências as hipóteses que o texto levanta não é o mesmo; desconcentra-me a falta de sentido de oportunidade para seguir as vias do apetite. Terá sido falta de courage? Adoraria estar em paz quando repito o Aldous Huxley: “sou um intelectual, há coisas que me interessam mais do que o sexo!”.