Sérgio Godinho, músico e escritor: “Voltar é mesmo uma alegria”

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Regressar a cidades onde já se esteve é ter a sensação de que o mundo não é só a nossa casa. Sérgio Godinho está a caminho de Macau, desta vez como romancista, para participar no festival Rota das Letras. Ainda em Lisboa, contou ao HM como nasceu o primeiro romance, que relação é esta com um novo tipo de escrita, e falou do disco novo que sai depois do Verão. Um álbum com uma cinematográfica ligação ao território

[dropcap]C[/dropcap]Como é que aparece este “Coração Mais que Perfeito”?
Aparece um pouco na sequência, ao nível do ofício da escrita, do livro de contos que saiu há dois anos, “VidaDupla”. São nove contos nos quais descobri uma vontade de escrever e também uma linguagem própria, uma voz própria. Surgiu um pouco por acaso, porque me pediram um conto – que está no “VidaDupla” – e depois apeteceu-me continuar. Quando acabei, senti que tinha de me abalançar, no sentido de ter vontade e de ter esse ímpeto criativo, a algo de mais fôlego, mais extenso, em que estivesse mais tempo com as personagens, onde as criasse e elas convivessem comigo e crescessem, fossem aparecendo outras. O romance não tem muitas personagens: tem duas principais. Tem uma mulher, que é a personagem principal, e um homem que é muito importante para a acção. Depois, tem mais algumas – poucas – personagens. Mas foi esse fôlego mais longo no qual me abalancei durante ano e meio. Não sou pessoa que escreva muito por dia, mas todos os dias tenho vontade de escrever. Não me obrigo. E por isso foi um grande prazer.

Como é que se passa da escrita da canção para o poema, que tem outra estrutura, para o conto e, de repente, para o romance, que implica um envolvimento muito maior com as personagens e com a construção da narrativa?
Foi uma aventura nova para mim porque nunca tinha tido uma coisa de continuidade assim, com todo esse tempo de maturação da história, das personagens, dos novos acontecimentos que vou descobrindo à medida que vou escrevendo. Não tinha uma estrutura fixa à partida. Tinha uma ideia de condução do fio da narrativa mas, depois, muitas coisas aconteceram, felizmente. Não tinha o esquema todo feito. Agora, como é que se passa? Não se passa. Embora nas canções, muitas vezes, haja personagens e narrativas, são actos completamente diferentes. A escrita de canções, desde logo, joga duas formas de expressão – a música e as palavras, as frases. A música tem códigos muito estritos, tem harmonias, tem progressões harmónicas, tem estribilhos, geralmente, tem regras muito fixas, dentro das quais há uma grande liberdade. As palavras têm uma métrica muito própria, que tem de ser musical, e não é por acaso que começo geralmente pela música. As palavras, quando aparecem, estão já a espraiar-se numa determinada frase musical. E têm rimas, quase sempre, é raro não ter uma canção com rimas, até porque gosto delas. Depois, há a conjugação dessas duas formas de expressão, para que pareça uma coisa única. A grande vitória de uma canção é nós sentirmos que aquela letra e aquela música sempre conviveram, e não podiam existir uma sem a outra. É evidente que também tenho versões instrumentais e já publiquei textos das minhas canções, mas é sempre uma parte de um todo. O todo é a canção, é o objecto canção. Portanto, são abordagens completamente diferentes. A escrita de ficção é uma escrita que vai acontecendo continuamente e que se vai estruturando. Uma canção é uma peça de joalharia. Ou de relojoaria.

“Coração Mais que Perfeito” é uma história de amor – e eu diria que não poderia ser de outra maneira. Eugénia é uma mulher que nos é apresentada através de um acontecimento trágico.
Depois vamos voltar atrás mas, de facto, há um suicídio, embora não seja completamente expresso, de um grande amor – e foi um amor mútuo. O amor não se degradou, simplesmente o homem, o Artur, começou a ter um processo de decadência psíquica em que vai perdendo o pé e ninguém o pode agarrar.

E quem é esta Eugénia? “Fala de ti própria, Eugénia”, lê-se no primeiro capítulo.
Eugénia é uma mulher forte – é uma sobrevivente –, embora os seus valores não sejam sempre os mais recomendáveis. Ela não é um exemplo, mas também não é um livro pedagógico, não tem de ser uma personagem exemplar. É uma mulher cheia de defeitos, os valores dela são fortes mas, por vezes, também são um pouco voláteis. Não tem muitas referências: a mãe não é referência para nada, o pai desaparece muito cedo, e ela vai vogando na vida sem grande rumo. Os trabalhos dela não têm um fito profissional, ela vai vivendo as coisas. Mas vai vivendo com intensidade. Há uma altura em que resolve prostituir-se, durante pouco tempo, porque sim, porque uma amiga o faz e ela tem uma certa atracção por isso, por experimentar – mas, a certa altura, aquilo corre mal. É o contrário dele: ele é um actor, que esteve na escola de teatro, que sempre teve um fito na vida. Quando comecei a construir as personagens, não descobri logo o que é que ele faria, qual seria a sua profissão, porque achei que deveria ter uma profissão que o interessasse. A personagem do actor sempre me interessou porque eu estou a criar personagens – no fim de contas, estou a ser um dramaturgo. E o actor, à sua maneira, está a criar personagens – já existem, mas está a dar-lhes o seu corpo, a sua intenção, a sua voz estilística. E esse sim, é mais próximo de mim, porque também já fiz trabalho de actor e achei que esse desdobramento de uma vida noutras vidas era interessante. Como se verá, é também por essa outra vida que tem que ver com o teatro que ele começa a perder o pé psiquicamente. Depois fica mesmo psicótico, mas é um processo longo, que ocupa a segunda parte do romance.

Esse desdobramento de uma vida noutras vidas acontece também no segundo romance, que já está escrito?
Não. É outra coisa, é um assunto completamente diferente. Está escrito. Daqui a um ano, espero, falaremos outra vez, mas não. É um assunto diferente, um romance mais concentrado, no sentido em que tem quase exclusivamente duas personagens e, a dois terços do livro, aparece uma terceira. É mesmo outro assunto. Este assunto passa-se ao longo de vários anos, num período extenso de tempo, e o outro não. O terceiro [livro] está parado porque estou a canções. Este ano sairá ainda um novo álbum, lá para Setembro.

Sobre esse novo disco, o que é que já está pensado?
O disco vai ter várias parcerias musicais. Já aconteceu, nalgumas canções, outros compositores fazerem as músicas e eu fazer as letras todas – desde as colaborações brasileiras aos Clã, com “O Sopro do Coração”, que tem música do Hélder Gonçalves e letra minha. Aqui, quis levar um pouco mais longe isso e, portanto, há canções que vão estar neste disco em que a música não é minha, mas em que estou a fazer também esses casamentos. Há duas canções – e essas são letra e música minha – que são originalmente do filme do Ivo Ferreira que está a ser rodado aí em Macau, e que são cantadas no filme pela Margarida Vila-Nova. O filme tem três canções minhas – duas delas, vou cantar à minha maneira no álbum.

Há quase seis anos, quando falámos a propósito dos 40 anos de carreira, dizia que tinha vontade de voltar a Macau. Na altura, não era algo que estivesse em perspectiva. Depois disso, já houve dois convites e uma participação num filme que está a ser rodado aqui.
Macau está a entranhar-se cada vez mais. É a sexta vez que vou a Macau. A primeira vez que fui, Macau era muito diferente, como é evidente. Foi em 1990. A Fundação Oriente convidou-me e fiz aí um concerto, depois também fomos a Goa e a Pangim, fui para a abertura oficial da delegação. Na altura, o Lisboa era o grande casino e depois havia os casinos flutuantes. Depois, há quase 12 anos, estive no Festival de Artes de Macau, mas entretanto tinha voltado lá. Estive no 10 de Junho há dois anos e agora regresso. Macau está a tornar-se cada vez mais familiar, porque vou conhecendo gente, outras pessoas com quem me cruzo. Estou muito curioso em relação ao festival Rota das Letras. Há dois anos, tinha estado com o Hélder Beja e o Ricardo Pinto, que tinham manifestado a vontade de ir ao festival e o aparecimento do romance propiciou isso. É mesmo com alegria que volto a Macau. Gosto muito de voltar aos lugares que vou conhecendo, ver o que está intacto, o que mudou, passear por ruas que já me foram familiares. Gosto muito de descobrir lugares, mas também gosto muito de voltar. Estive no início do ano no Rio de Janeiro, um lugar onde tenho onde ficar, em casa de amigos, que é uma cidade extremamente familiar e é muito bom tornar a calcorrear aquelas ruas. É a sensação de que o mundo também nos pertence. Sou um observador do que está à volta – observador em todos os aspectos, até no criativo – e voltar a Macau é mesmo uma alegria.[/vc_column_text][vc_cta h2=”Palavras e música no Rota das Letras” h2_font_container=”font_size:40px” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” h2_css_animation=”none” shape=”square” style=”flat” color=”chino” use_custom_fonts_h2=”true” css=”.vc_custom_1488974315816{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”]A primeira intervenção de Sérgio Godinho no festival literário de Macau está marcada para o próximo domingo, dia 12. Às 19h, no edifício do antigo tribunal, é apresentado o livro “Coração Mais que Perfeito”. No dia seguinte, no local que serve de sede ao Rota as Letras, pelas 18h, participa numa sessão com o autor guineense Abdulai Silá, em que vai estar em discussão o papel do escritor na construção da identidade nacional. Sérgio Godinho vai ainda participar nas sessões destinadas aos mais novos: na segunda-feira, está na Escola Portuguesa e, no dia seguinte, na Escola Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes. Na quarta-feira, o escritor de canções sobe ao palco do teatro do Venetian, para um concerto que começa às 20h30. O músico vem acompanhado pelo pianista Filipe Raposo.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]

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