MancheteO contrabaixista Isabel Castro - 15 Jan 2016 [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] principal culpado chamava-se Sérgio e tinha mais meia dúzia de anos do que eu, o suficiente para perceber das coisas importantes da vida. Gostava de ir àquela casa porque o jantar era sempre pizza caseira, numa altura em que não havia pizza em lado algum, e porque o Sérgio – Serginho para a mãe brasileira – tinha um órgão, um objecto que até hoje não suporto mas que, na altura, me fascinava. O Sérgio deu-me uma flauta, daquelas de plástico, quando fiz sete anos. Passado um mês, a meu pedido, entrei para uma escola de música. Passado um ano, tive o meu primeiro violino, um três-quartos de fabrico chinês que produzia um som que os meus pais estoicamente aguentaram até que foi substituído por um violino a sério, antigo, que hoje mora comigo em Macau. Tive a sorte de crescer numa cidade pequena que tinha cinco escolas de música, uma delas de ensino profissional integrado. Era raro o miúdo que não tocava uma coisa qualquer, que não tinha uma banda, que não passava os finais de tarde na garagem de um amigo transformada em sala de ensaios. Nunca fui uma violinista dedicada, apesar de ter sido a única responsável pela minha opção musical, e só mais tarde, quando já dividia o tempo entre os jornais e a universidade, é que comecei a estudar a sério, num conservatório, com exames e madrugadoras horas de estudo. Foi também a altura em que me aproximei de um lado mais profissional da música, em que pisei palcos a sério, em que fiz testes de som e tremi antes do início de concertos. Por causa do violino que hoje guardo no armário de casa, também os meus últimos anos de Portugal foram de relações alimentadas pela música. Amigos músicos, de todas as idades, dentro e fora do conservatório. Amigos músicos, de todos os instrumentos, do mundo erudito à música de raiz tradicional portuguesa. Com vários deles toquei noite fora, nas casas em que não havia vizinhos, e com vários deles toquei na rua, aquela experiência inesquecível da música que se oferece sem pré-aviso às pessoas que passam apressadas, com as ideias longe, com os problemas perto. Vê-las parar e sorrir. Vê-las parar. Acabar com o barulho dos dias, ao entardecer. Estar ali só porque sim. Estar ali só porque se gosta de estar. Com a vinda para Macau, o meu violino conquistou um lugar num armário. Rapidamente percebi que nesta cidade o ambiente era diferente. Quase todos os músicos profissionais de instrumentos do género do meu têm limitações contratuais que fazem com que não possam tocar quando querem, com quem querem. Também não podem andar por aí a dar aulas a adultos que já não estão interessados em regressar ao conservatório. Macau não é propriamente uma cidade musical, apesar de todos nós, sem excepção, termos um vizinho pianista, quase sempre uma miúda de oito anos. Esta semana, ficámos a saber que dois estrangeiros – um por causa de umas fotografias, outro por causa de estar a tocar violino – foram parar umas valentes horas à esquadra. Queixam-se de que foram tratados como criminosos, que não percebem a razão de terem sido levados pela polícia por aquilo que estavam a fazer. Segundo contaram aos jornalistas, foram acusados da prática de uma ilegalidade. E a ilegalidade foi tamanha que não bastou um ó-amigo, arrume-a-tralha-e-vá-se-lá-embora. Às prevaricações fotográfica e musical correspondeu uma visita de estudo às instalações policiais. Um-toma-lá-para-aprenderes. Aprender o quê? Aprender que Macau é uma cidade em que aquilo que se pode fazer na rua corresponde a estranhos critérios de permissão. Não sei há quantos anos é que anda um homem aos saltos no centro da internacional e turística cidade, a pular entre os automóveis, aos gritos em reivindicações que só ganham dimensão pelo ruído que fazem, altifalante na mão de manhã à noite. Conheço pessoas que trabalham no centro da cidade e que dizem estar prestes a enlouquecer com a moldura sonora que os acompanha. O mesmo acontece com quem tem o azar de morar ali. Dizem que não há descanso e eu acredito. Com estes episódios aprende-se também (caso ainda não se saiba) que Macau é uma cidade internacional basicamente para o que não interessa, sobretudo internacionais acontecimentos de ilegais contornos com que as autoridades se poderiam ocupar dias a fio. Casos bem mais interessantes e importantes para a Humanidade do que as seis horas que perderam com cada um dos infelizes turistas que tiveram o azar de expor os seus dotes artísticos nas ruas do território. Não vi as fotos do rapaz russo que anda a dar a volta ao mundo e tenho pena de não ter ouvido o violinista francês, de não ter sido surpreendida com música que se oferece sem pré-aviso às pessoas que passam apressadas, como eu, com as ideias longe, com os problemas perto. Poder parar e sorrir, como parava e sorria quando descobri a música pelo insuportável órgão do Sérgio que, entretanto, cresceu e se tornou contrabaixista.