Antonio Miguel Campos Via do MeioNota sobre o Li (理, lǐ) dos taoistas Como complemento ao artigo ontem publicado sobre o 理Li, apresentamos hoje a contextualização do conceito no pensamento taoista. O caracter li (理, lǐ), cuja grafia evoca os veios (里) do jade (王), representa a ordem e a coerência que existe na aparente falta de regularidade da textura dos objectos naturais e dos fenómenos da natureza. Os grãos do jade e da madeira têm li, mas também as fibras dos músculos, as nuvens, o mármore e os padrões no fluxo da água. Todos nós reconhecemos o li que se revela nas texturas naturais; mas não há uma maneira simples de o definir. Os artistas taoistas tentam exprimir a sua essência nas suas pinturas cujo tema é a Natureza. Por extensão, li é também utilizado para exprimir a «textura natural» das situações, ou seja, o «fluir natural das coisas», que um taoista deve seguir para conseguir agir «sem agir», aderindo à coerência das transformações naturais (em harmonia com o Tao). Note-se que, quando se cliva o jade, para que ele não quebre, é preciso fazê-lo seguindo a coerência dos seus veios. Na obra de Sun Zi só surgem três referências ao conceito de li : quando se diz que um bom general deve adequar o grau de flexibilidade das suas forças à textura (理, lǐ) do terreno; quando se fala na importância de conhecer a textura (理, lǐ) do mover e ficar imóvel do inimigo; e quando se fala na importância de examinar com minúcia a textura (理, lǐ) das emoções humanas. Mas o conceito de li está implícito no modo de proceder recomendado. O general tem de reconhecer e se ajustar às mudanças da «contextura» da situação, ou seja, ao li da situação. O conceito de li é muito importante no pensamento taoista. Zhuang Zi diz que é reconhecendo e respeitando a textura natural das coisas, ou seja, o seu «li celestial» (天理, tiānlǐ), que se consegue «discernir onde está a segurança e onde está o perigo, ficar sereno perante a adversidade e a sorte , e ser cuidadoso ao se distanciar e ao se acercar delas», evitando assim que alguma coisa nos consiga fazer mal. Zhuang Zi conta-nos a história do cozinheiro Ting que conseguia talhar um boi sacrificial de um modo extraordinariamente exímio, por o fazer seguindo a textura natural da carne, os «veios celestiais» (天理, tiānlǐ) da carne. Depois de um longo período de aprendizagem, já não via o boi com os olhos, mas com a intuição espontânea do espírito. Assim, as respostas adequadas para cada situação apareciam-lhe espontânea e instintivamente, perante as circunstâncias presentes em cada momento, como se fossem o reflexo da situação num espelho. A lâmina da sua faca avançava seguindo pelos espaços entre as articulações, sem nunca cortar nem rachar, e, ao fim de talhar milhares de bois, estava ainda como nova. O conceito de li é muito importante na cultura chinesa e tem sido erroneamente associado no Ocidente ao de ideal e de razão. Isso deve-se ao facto dos eruditos chineses do final do século XIX terem criado termos novos com base no conceito de li para tentarem exprimir as noções ocidentais de ideal e de razão, que são estranhas ao pensamento chinês. Para exprimirem o conceito ocidental de ideal (platónico) ou de perfeição, optaram pelo termo «conceber o li» (理想, lǐxiǎng), ou seja, «conceber qual é a textura natural» das situações, o «fluir natural das coisas». No pensamento chinês, o que pensamos ou fazemos nunca é «perfeito em si», de um modo absoluto. É a harmonia com o todo em que eles se inserem que os podem tornar «perfeitos». Como se diz no Dao De Jing, «A grande realização parece incompleta», mas «o Tao empresta o que falta e completa» o que parece incompleto. Para exprimirem o conceito de razão, os eruditos chineses optaram pelo termo «a sabedoria do li» (理智, lǐzhì), ou seja, «a sabedoria da textura natural». Para tentarem exprimir o conceito de verdade, como no pensamento chinês não existe o conceito de verdade absoluta, no sentido da conformidade do discurso ou da ideia com a realidade, e apenas se discute o certo e o errado (是非, shìfēi), os eruditos escolheram o termo «o li genuíno» (真理, zhēnlǐ). Como se vê, para os chineses, o ideal, a razão e a verdade, correspondem ao que está em harmonia com o que é natural. Por isso, em vez de procurarem «a verdade», de um modo lógico e racional, pretendem apenas encontrar intuitivamente o que é adequado (o «certo»), seguindo as propensões naturais. Para eles, ficar preso a um modo de pensar demasiado lógico e racional tenderia a dificultar a tomada de decisões atempadas e adequadas, porque perturbaria o fluir natural do pensamento, ou seja, «a sabedoria do li» (理智, lǐzhì). No modo de pensar chinês, muito influenciado pelo pensamento dos mestres taoistas, tudo o que de relevante se diz sobre a realidade é encarado como uma metáfora que «aponta» para a transformação natural contínua, ou seja, para o Tao, o grande Caminhar do mundo.
Antonio Miguel Campos Via do MeioA Via do Meio em Zhuang Zi De como ele fala da “Via do Meio” ou “linha do meio”, no início do Capítulo III (Nutrir a Vida). A nossa vida flui dentro de margens, mas o conhecimento não tem margens. Perseguir o que não tem margens usando o que tem margens, já é arriscado. Se acreditarmos que temos conhecimento para o fazer, o perigo está à espreita! Fazendo bem sem nos avizinharmos da fama, fazendo mal sem nos avizinharmos da punição, e seguindo pela linha média, consegue-se proteger o corpo, manter intacta a vida, dar apoio aos familiares e esgotar os anos que nos cabem de vida. Comentário Este capítulo parece estar estruturado para ilustrar estas suas primeiras linhas que dizem que a nossa vida é como um rio, que não deve sair das margens. É perigoso usar o conhecimento como guia, porque ele consegue exceder todas as margens, querendo saber mais do que é possível sobre a realidade. Tentar saber o que fazer com a vida é fútil, porque ela não é norteada pela compreensão consciente. Para nutrirmos a vida, não devemos usar o conhecimento (ou devemos usá-lo de modo que ele se adapte a cada situação da vida e não o contrário) para podermos seguir dentro da linha média, sem nos aproximarmos da margem da fama nem da margem da punição. Se fizermos algo que as convenções consideram bom, devemos evitar a fama. Se fizermos algo que as convenções consideram mau, devemos evitar o castigo. Ou seja, embora não nos devamos deixar guiar pelas convenções sociais, quase sempre muito limitativas da ordem natural das coisas, devemos tê-las em conta nas nossas acções. Nem as devemos seguir inteiramente, nem as devemos ignorar. Teremos uma vida mais feliz se seguirmos pelo «caminho do meio». E as flutuações espontâneas do comportamento, entregues a si mesmas, têm tendência para nos fazer seguir por ele. A primeira frase deste texto (吾生也有涯而知也無涯), que literalmente significa «a nossa vida tem margens, mas o conhecimento não tem margens», é um aforismo muito conhecido, usado na China para exprimir a ideia de que «a vida é curta, mas o que há para aprender é ilimitado». É a expressão usada para transcrever para o chinês o aforismo «Ars longa, vita brevis» (Ὁ βίος βραχύς, ἡ δὲ τέχνη μακρή) de Hipócrates, que viveu um século antes de Chuang Tse. O caracter que traduzimos por «linha média» é 督 (dū), que significa «controlador» ou «supervisor» e é também um termo da acupunctura chinesa que designa o meridiano que percorre verticalmente o centro das costas. Os «meridianos» (經絡, jīng luò) são canais de energia, que percorrem o corpo e o protegem. Neles circula o ying chi (營氣, yíng qì), um sopro nutriente que, segundo a tradição chinesa, é capaz de produzir sangue. Uma tradução mais literal do que «seguindo pela linha média» seria: «circulando no meridiano supervisor». Repare-se que o conhecimento de que se fala neste texto é essencialmente o que se relaciona com a definição do que é a conduta certa e a conduta errada. Parece uma rejeição da moralidade. No entanto, como se depreende do resto do capítulo, a conduta recomendada não corresponde a rejeitar os objectivos práticos da moral, como o bem-estar pessoal e a consideração pelos outros. O que se afirma é que, se queremos «nutrir a vida», em vez de orientarmos as nossas acções deliberadamente, tentando seguir as normas morais, devemos tomar por modelo o modo de agir dos artífices exímios e seguir espontaneamente o caminho que responde de uma forma mais ajustada, adequada, eficaz ou harmoniosa às circunstâncias de cada momento. Este texto não deixa de nos chamar a atenção, como Nietzsche, na “Genealogia da moral”, para que a avaliação e a orientação da conduta humana em termos distintamente morais é uma prática cultural, adoptada em determinadas circunstâncias para certos fins, e que pode não ser nem necessária nem inevitável, nem a melhor para a preservação da nossa vida individual.