Livro | Representações de Macau como símbolo de ostentação e riqueza na cidade de Salem

O académico Rogério Miguel Puga lança este ano, com o cunho da Fundação Macau, o livro “To the Farthest Gulf for the Wealth of India – Representações de Macau no Peabody Essex Museum (Salem)”, que revela fotografias, diários, objectos e quadros de americanos que viveram em Macau no século XIX, então símbolo de negócio, ostentação e riqueza

Salem, cidade norte-americana do estado do Massachusetts, é conhecida do imaginário de todos pelas “bruxas de Salem”, mas a verdade é que no museu Peabody Essex da cidade perduram objectos, quadros, fotografias e escritos que constituem representações do que Macau foi no século XIX: um rico interposto comercial que acolhia todos os estrangeiros e portugueses que ambicionavam fazer negócio com a China. De Salem, partiam famílias norte-americanas para explorar as oportunidades de comércio, vivendo em Macau por um período de tempo. Já nos EUA, mostravam às famílias o pitoresco território onde viveram e as vivências culturais que experienciaram, embora muitas destas pessoas, de religião protestante, tenham falecido em Macau e sido sepultadas no cemitério protestante junto ao jardim Luís de Camões.

Rogério Miguel Puga, professor associado do departamento de línguas, culturas e literaturas modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, e com extensa pesquisa sobre Macau, lança este ano uma obra bilingue sobre essas representações, intitulada “To the Farthest Gulf for the Wealth of India – Representações de Macau no Peabody Essex Museum (Salem)”, livro que nasce de uma investigação realizada entre 2009 e 2011 e que já se encontra à venda no território na livraria Plaza Cultural Macau, Livraria Seng Kwong (Starlight Bookstore) e no Centro de Informações ao Público da Fundação Macau. A obra será ainda lançada em Portugal este ano.

Ao HM, Rogério Miguel Puga conta que esta aventura começou em 2005 com uma visita ao museu Peabody Essex, “o museu mais antigo dos EUA que nunca fechou portas”.

“Percebi que numa das salas do museu estavam várias representações de Macau. Achei curiosa a ligação [do território] a Salem. Estava um quadro identificado como sendo Macau, mas era, na verdade, uma representação de Xangai. Falei com o curador do museu que me disse que havia mais obras de reserva que não estavam expostas, nomeadamente de George Chinnery e outros artistas.”

No museu, constam diversos objectos como leques, mesas de encaixe, tampos de mesas, retratos, mesas de costura com representações de Macau ou retratos encomendados por norte-americanos. Rogério Miguel Puga escreve não apenas sobre esses objectos, mas também sobre o contexto histórico da época, tendo realizado também investigação em cidades como Nova Iorque, Filadélfia e Washington.

Diários e pinturas

Chegados a Macau, e sem a hipótese de irem à China, nem sequer a Cantão, as famílias norte-americanas viam-se obrigadas a viver uns meses no território que servia como interposto comercial, disponibilizando serviços em matéria de transporte, tradução ou desalfandegamento de mercadoria, entre outros. Foi assim até à fundação de Hong Kong, em 1841, altura em que o comércio ganhou fulgor do outro lado.

Rogério Miguel Puga destaca os diários de Rebecca Kinsman, que acompanhou o marido numa viagem ao Oriente, e Harriet Low, que viajou com os tios. Existe ainda o caso de Lucy Cleveland, que esteve em Macau em 1829 e que viajou com o marido até Timor. Esta reproduziu quadros do conhecido pintor George Chinnery, deixando diversas ilustrações em cadernos.

“Lucy Cleveland ficou na casa de Harriet Low, que escreveu um diário. Lucy, como ficou adoentada, parou de escrever no seu diário e começou a desenhar. Assim, usei o diário de Harriet Low para estudar os desenhos de Lucy Cleveland”, contou. O académico analisou também um álbum de Leonel Forbes Backwith, membro da família Forbes.

Destaque ainda para a obra de George Chinnery, onde se vislumbra uma importante representação etnográfica do território e, sobretudo, da comunidade chinesa, com os pescadores, as tancareiras, os vendedores ambulantes. Os seus quadros constituem, portanto, um exemplo de um “orientalismo visual”, descrevendo as “figuras tipo” dos chineses que, então, habitavam no território. “George Chinnery saía de manhã com um banco, desenhava, tomava anotações para depois terminar e melhorar os desenhos que fazia no seu estúdio.”

Ricos tempos

De todos estes objectos e imagens fica a ideia de que Macau era representada como “um símbolo de riqueza para os EUA e para os norte-americanos”. “Ir para Macau e para a China equivaleria a fazer ou refazer fortuna, em alguns casos. Macau era um símbolo de riqueza e ostentação. Muitos destes quadros que têm a vista da baía da Praia Grande eram levados para os EUA para decorar as casas”, como exibição de riqueza e “dessa pertença ao grupo do ‘China Trade’ [comércio com a China]”.

O território, então administrado por portugueses, era um “espaço com exoticidade, que os estrangeiros tentavam descodificar através da escrita e dos quadros, que eram levados pelos viajantes para as casas para estes mostrarem às famílias onde tinham vivido”. Muitos destes quadros eram, aliás, pintados das varandas das casas onde moravam, situadas, na maioria, nas zonas da baía da Praia Grande e Penha.

“O curioso é que quando lemos relatos de viajantes do século XIX, sejam ingleses, portugueses ou norte-americanos, ou mesmo franceses, estes funcionam como uma legenda perfeita para os quadros do George Chinnery. Os seus quadros funcionam como uma ilustração perfeita dos apontamentos e descrições dos ferreiros, barbeiros e ruas de Macau, desses tipos sociais”, descreveu o autor.

Em Macau os norte-americanos tinham acesso a um mundo duplamente exótico. “Falamos de protestantes que tiveram, pela primeira vez, contacto com católicos. Uma procissão católica era, para os protestantes, tão estranha como uma dança do dragão ou do leão. Há este confronto com dois outros mundos que tem de ser compreendido.

Ir a Macau, para os norte-americanos, era como ir à China, pois não podiam passar das Portas do Cerco. “Macau era a primeira e única porta de acesso à China, e o interessante é que os diários destas mulheres eram enviados para Salem, Nova Iorque e familiares, sendo lidos em grupo nos EUA em voz alta. Podem, assim, ser considerados instrumentos de uma sinologia amadora, porque bairros inteiros liam as suas descrições de rituais chineses e portugueses.”

Todas estas representações presentes no museu Peabody Essex permitem também compreender “o planeamento urbano de Macau em muitas dimensões”.

De frisar que muitas das obras de George Chinnery eram imitadas em estúdios de artistas chineses que as vendiam aos ocidentais que passavam por Macau para levar como recordação, num período em que a fotografia era algo raro.

“Estes objectos foram parar a Salem devido ao intercâmbio comercial e ao facto de os norte-americanos que compravam chá e outras mercadorias à China viverem em Macau até à fundação de Hong Kong. Era de Macau que levavam esses quadros, comprados muitas vezes em colecção. Muitas famílias de Salem estão historicamente ligadas ao comércio com a China e que ainda hoje apoiam financeiramente o museu, fazendo ainda doações de peças familiares ao museu”, apontou Rogério Miguel Puga.

O académico lança o repto de se fazer uma investigação transversal sobre as representações de Macau nos vários museus dos cinco continentes. “Seria interessante estudar a representação de Macau em várias instituições ou num determinado período, para termos uma ideia mais abrangente, mas aí seria fundamental ter uma grande equipa. Em Nova Iorque, por exemplo, encontrei um museu com uma imagem legendada como sendo de Macau, mas que é uma representação de Xangai.”

11 Mai 2023

Delta do Rio das Pérolas retratado em conferência multidisciplinar

É já nos próximos dias 8 e 9 de Julho que se realiza a palestra online “Narrating Pearl Delta River” [Narrando o Delta do Rio das Pérolas], organizada por Mário Pinharanda Nunes, da Universidade de Macau (UM) e Rogério Miguel Puga, da Universidade Nova de Lisboa. A ideia é olhar para esta zona do sul da China não apenas de uma perspectiva literária ou histórica, trazendo também para o diálogo áreas como as artes plásticas, incluindo um ângulo de contemporaneidade.

“Queríamos que a conferência tivesse uma perspectiva mais alargada”, disse ao HM Mário Pinharanda Nunes. Para o académico, o Delta do Rio das Pérolas “é um imaginário cada vez mais presente”, apesar de hoje “se mencionar mais como a Grande Baía”.

“Optámos por este título porque a maioria dos trabalhos se centram em épocas passadas, como o século XIX, e temos mesmo um trabalho sobre o século XVII. Felizmente, conseguimos captar também o interesse de colegas que trabalham a contemporaneidade, nomeadamente na área da literatura.”

Rogério Miguel Puga confessou que o objectivo desta conferência “não é apenas estudar Macau, Hong Kong ou Cantão de forma isolada, mas tentar também comparar os mesmos espaços na representação do Delta do Rio das Pérolas como um espaço geopolítico e também psicogeográfico do sul da China, através de uma abordagem comparatista”.

“É um espaço terreno e fluvial ao mesmo tempo, que nasce do comércio e que ainda hoje se centra nessa área”, acrescentou.

Para o académico, o Delta do Rio das Pérolas “continua a ter interesse e cada vez mais na vertente da actual política chinesa”. “É um espaço comercial e político da China e é único na história universal de encontros e desencontros, e interesses transaccionais. É um espaço histórico palimpsesto, que pode ser estudado por camadas e que exige ser estudado desta forma comparada, tendo sempre em mente o passado histórico e a sua importância actual”, referiu.

Do passado ao presente

Quais são então os autores que podem ser vistos e ouvidos neste evento que traz “uma abordagem global e interdisciplinar”? Os organizadores destacam o diálogo sobre o trabalho de Kit Kelen, onde será feita uma leitura ilustrada da sua poesia. “A ideia era alargar o evento às artes plásticas e temos a contribuição do professor Kit Kelen, já aposentado, mas que é bastante conhecido em Macau pelo trabalho que fez na década de 90 até há uns cinco anos atrás. Trabalhava muito com jovens poetas”, referiu Mário Pinharanda Nunes.

Sara Augusto, académica do Instituto Politécnico de Macau, irá falar da “Poemografia, a escrita a preto e branco de António Mil-Homens”, imprimindo à conferência um tom mais contemporâneo, enquanto que Paul Van Dyke vai falar sobre casas de penhores. Será também dado destaque às obras de Maria Ondina Braga ou Rodrigo Leal de Carvalho, sem esquecer a obra de Henrique de Senna Fernandes.

“Mónica Simas falará sobre ‘Os Dores’ de Henrique de Senna Fernandes, um autor macaense que também se ocupa de vários espaços do Delta do Rio das Pérolas nos seus romances, incluindo Portugal e cidades chinesas”, explicou Rogério Miguel Puga. Everton Machado, da Universidade de Lisboa, irá ainda falar do poeta Wenceslau de Moraes. Esta conferência conta também com a participação do Centro Cultural e Científico de Macau.

A conferência pode ser vista aqui.

2 Jul 2021

Conferência | Cultura na Grande Baía discutida a partir de domingo

O académico português Rogério Miguel Puga, da Universidade Nova de Lisboa, é um dos oradores convidados da conferência que arranca este domingo, intitulada “A Missão Cultural para o Desenvolvimento e a Construção da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, promovida pelo Governo. Ao HM, o investigador revela que vai abordar sobretudo “o papel pioneiro de Macau nas relações sino-ocidentais desde o século XVI”, um ponto diferenciador face às restantes cidades que integram o projecto político de Pequim

 

[dropcap]M[/dropcap]uito se fala do projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau como o próximo hub tecnológico do sul da China, à semelhança de Silicon Valley, nos Estados Unidos. Contudo, o Governo da RAEM decidiu olhar para o projecto desenvolvido pelo Governo Central de uma perspectiva cultural, ao organizar a conferência “A Missão Cultural para o Desenvolvimento e a Construção da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”. A iniciativa é da Direcção dos Serviços de Estudo de Políticas e Desenvolvimento Regional, liderada por Mi Jian, e tem lugar entre este domingo e a próxima quarta-feira, dia 14.

Um dos convidados portugueses é Rogério Miguel Puga, académico da Universidade Nova de Lisboa (UNL) que se tem debruçado nos últimos anos sobre o estudo da história e cultura de Macau e que vai falar da importância que o território tem para a história e cultura da zona da Grande Baía.

Ao HM, o investigador adiantou o tema da sua palestra. “Falarei sobre o papel pioneiro de Macau nas relações sino-ocidentais desde o século XVI, sobretudo até à fundação de Hong Kong pelos britânicos”. À data, o pequeno território no sul da China teve um papel “primordial como porta de entrada dos ocidentais na China e de saída de chineses, onde, nessa câmara de descompressão cultural, se habitavam as costumes e línguas ocidentais”.

Macau desempenhou esse papel “único” até ao século XIX, possuindo uma importante história no contexto do Delta do Rio das Pérolas, na China, em Portugal (a nível nacional) e a nível internacional, pois “a partir do ano de 1700 chega a Companhia das Índias Inglesas e no final do século XVIII os norte-americanos”.

Primeira em quase tudo

Não é por acaso que Pequim deseja que Macau desempenhe um papel primordial no contexto da Grande Baía, dando um enorme destaque político ao seu posicionamento. Rogério Miguel Puga recorda que foi em Macau que começou quase tudo o que estava ligado ao Ocidente.

“Foi através do território que se introduziu a medicina ocidental na China, onde houve o primeiro hospital e a primeira universidade ocidentais na China, teve o primeiro farol ocidental e a primeira imprensa ocidental. Aliás, os marcos históricos das relações sino-ocidentais até 1842 envolvem sempre Macau”, recorda.

O Templo de Kun Iam foi o local escolhido para a assinatura do primeiro tratado sino-americano, algo que aconteceu “na mesa de pedra que ainda lá está”. O território acolheu também o primeiro museu na China, organizado por ingleses e americanos, “a primeira biblioteca em língua inglesa e foi o espaço feminino do comércio ocidental na China, pois as mulheres ocidentais não podiam entrar na China”.

Estas ficavam então estabelecidas em Macau, “onde ajudavam a cuidar dos negócios dos maridos quando eles subiam a Cantão, como aconteceu com Rebecca Kinsman, cujo marido está sepultado no Cemitério Protestante de Macau”.

Neste sentido, o académico português considera que “a dimensão histórica e cultural da Grande Baía, nomeadamente no que diz respeito às relações sino-ocidentais, não pode ser esquecida, e este congresso é prova de que não está a ser”. “Macau foi pioneiro nas relações exteriores da China e tem uma relação especial com Portugal, podendo reclamar a si esse papel simbólico”, acrescentou.

“Uma posição ímpar”

Tendo em conta todo este manancial histórico, Rogério Miguel Puga defende que o Governo deve fomentar o relacionamento de Macau com o espaço lusófono, pois o território foi “o primeiro espaço-fronteira de contacto contínuo com ocidente, onde sempre houve tolerância cultural”. Deve-se, por isso, “estimular as relações com os países lusófonos e continuar a rentabilizar, em termos de património e de turismo cultural, a dimensão portuguesa do passado histórico da cidade. Como, aliás, tem sido feito”.

Questionado sobre a preservação da cultura macaense face a outras expressões culturais da China, Rogério Miguel Puga adiantou que devem ser aproveitadas as “especificidades culturais e históricas, como RAEM da China, para destacar a sua identidade própria no seio da China multicultural e diversificada”.

Macau “é uma cidade-fronteira e de contacto desde o século XVI, virada para o mar, que nasceu da pesca e do comércio internacional, logo é um símbolo essencial e antigo da Grande Baía e da actual Rota da Seda, é um Janus cultural, como alguém já lhe chamou”.

No que diz respeito a Hong Kong, Rogério Miguel Puga acredita que existem “objectivos idênticos, comuns”. “Deve ser levado a bom porto os objectivos do desenvolvimento sustentável da Grande Baía, também através das relações e dos negócios com o estrangeiro. Deve existir um papel local, regional, nacional e internacional, como Macau sempre teve”, frisou.

Outras áreas abordadas

O HM contactou a Direcção dos Serviços de Estudo de Políticas e Desenvolvimento Regional no sentido de saber a lista completa de oradores. O organismo dirigido por Mi Jian esclareceu que foram convidados para o evento “60 académicos, incluindo dois portugueses”. Até ao fecho da edição, não o HM não conseguir confirmar a identidade do outro convidado português.

A conferência irá debruçar-se sobre áreas como a história, filosofia, religião, política, Direito, linguagem, arte e literatura nas nove cidades que compõem a iniciativa da Grande Baía.

O Governo de Macau justifica a realização desta conferência com o facto de Macau “ter uma missão muito explícita e específica que é diferente de outras cidades da Grande Baía”, uma vez que o próprio projecto do Governo Central tem a missão de se desenvolver “na base do intercâmbio e cooperação onde a cultura chinesa é a base e diversas culturas coexistem”.

Além disso, este papel constitui “uma afirmação das raízes profundas de Macau no que diz respeito ao seu estatuto cultural e histórico”, sendo que Pequim “depositou grandes expectativas para o próximo papel que Macau irá desempenhar no intercâmbio cultural global e na integração”.

A direcção de serviços liderada por Mi Jian relembra ainda que “a história única de Macau formou uma ecologia cultural muito especial”, existindo não apenas uma forte presença da cultura chinesa, mas também de um multiculturalismo “baseado na cultura Ocidental, que tem vindo a espalhar-se”.

A realização desta conferência tem como objectivo “responder à confiança e expectativa do país” e também demonstrar “as características humanísticas únicas e o charme da coexistência multicultural de Macau”, sem esquecer a promoção do conceito de “construir uma comunidade com um futuro partilhado em mente”.

7 Ago 2019

Rogério Miguel Puga, académico: “Forbes reforçou a fortuna em Macau”

Até à fundação de Hong Kong, Macau era a porta de entrada na China, facto que levava a que muitas famílias anglófonas se fixassem no território administrado por portugueses. O cruzamento entre fontes em língua inglesa e portuguesa permitiriam ao investigador Rogério Miguel Puga desvendar o século XVIII e XIX de Macau e da região

 

A passagem de comerciantes britânicos por Macau originou uma forma linguística própria. Qual a dimensão identitária deste dialecto?

O chinese pidgin english foi uma língua comercial que primeiro faz um decalque do crioulo, do papiação de Macau, e que depois os ingleses e os americanos em Macau utilizam para falar com os chineses. É uma língua comercial, com uma estrutura uma estrutura sintáctica muito básica. Não chega a ser crioulo, o pidgin passa a crioulo quando as crianças aprendem esse pidgin como língua nativa, como nunca se instalou nunca passou a crioulo. É daí que vêm as expressões como “long time no see”, “no can’t do”, são expressões de chinese pidgin english, traduções directas do cantonense e que entram na língua inglesa em Macau e em Cantão no século XVIII e XIX. Como a palavra “savvy” que vem do português “saber”. O pidgin morreu, ninguém o fala, mas o primeiro relato de viagem que fala no século XVIII do pidgin english é quase todo português. Surge com um chinês a perguntar a um inglês “queles pequena ou glande whole”, “queres uma prostituta alta, ou baixa”. O pidgin começa a ser um decalque directo do português, com a palavra whore sem o fonema “r”. Quando os americanos e os ingleses regressam aos seus países continuam a utilizar estas expressões, são copiadas e acabam por entrar na língua inglesa. Esse chinese pidgin english passa a ser um traço identitário dessa comunidade comercial que viveu no sul da China, que regressou multimilionária e que o pidgin como tique de alguém que esteve na China para fazer “show off” e criar uma noção de identidade.

O chinese pidgin inglês não teve a penetração, durabilidade e identidade do patuá.

Não, porque os ingleses eram temporários aqui. Vinham com a Companhia das Índias e iam embora. Mas foi falado em Macau, nos portos todos que foram abertos depois da Guerra do Ópio e em Hong Kong. Em Hong Kong desaparece nos anos 50, mas ainda hoje se utiliza muito a expressão “Kowloon Side”, isto é uma expressão fóssil do chinese pidgin english que ficou no dia-a-dia, mas que desapareceu com a comunidade mercantil e a internacionalização do inglês no século XX.

Os britânicos e norte-americanos que vinham para Macau tinham uma vida social muito particular. Quais as suas especificidades?

Viviam em “golden ghettos”. Os americanos vinham para Macau comprar chá. Aliás, o Boston Tea Party, que marca o início da independência norte-americana, é com chá de Cantão. Logo a seguir à independência dos Estados Unidos da América eles enviam um navio para Macau e o responsável por essa missão torna-se no primeiro embaixador dos Estados Unidos na China e vivia em Macau. Isto foi antes da abertura de Hong Kong, portanto, Macau era a única porta de entrada para a China, ou para o complexo de feitorias em Cantão que também era fechado, tal e qual como Macau. Estes “golden ghettos” eram constituídos por grupos de comerciantes americanos, ingleses, dinamarqueses e portugueses que viviam em Macau, porque não podiam viver na China e que depois subiam a Cantão onde viviam numa espécie de aglomerado murado de feitorias, de onde não podiam sair. Não chegavam a entrar em Cantão, por isso é que é um “golden ghetto”, eles iam fazer comércio, ficavam lá seis meses, as mulheres ficavam em Macau. As mulheres estrangeiras não podiam entrar na China. Há um episódio de uma jovem e a tia entram disfarçadas de homens e os chineses param o comércio enquanto as senhoras não saíssem de Cantão.

Porquê esta restrição?

Acho que era uma forma de evitar que os estrangeiros se estabelecessem com famílias na China de forma duradoura. Era uma maneira de serem apenas pássaros migratórios, que apenas estavam de passagem. Por isso é que Macau ficou tanto tempo sobre administração dos portugueses, foi muito útil para as administrações chinesas. Tinha o comércio e depois era delegado nos portugueses a administração dos estrangeiros todos, Macau funcionava como um tampão. Era um “ghetto” porque viviam fechados em Macau e em Cantão. “Golden” porque eram pessoas ricas, quem vinha como comerciante para a China já era rico. Os próprios sobrecargas da Companhia das Índias inglesa também já eram de famílias abastadas. Já tinham dinheiro mas reforçavam as fortunas. A família Forbes reforçou a fortuna em Macau. Os Delano, nomeadamente o tetra-avô do presidente Franklin Delano Roosevelt morou em Macau. Mas também havia muitos comerciantes que faziam fortuna durante quatro ou cinco anos, regressavam aos Estados Unidos, investiam e perdiam a fortuna e regressavam mais uns anos a Macau para recuperar o dinheiro perdido. Construíam mansões onde punham todas as coisas chinesas, os artefactos culturais e isso tornava-se uma marca de riqueza, sobretudo na zona e nos portos de Boston, Nova Iorque e Filadélfia. Era uma marca de um estatuto especial, uma forma de “show off”. Hoje usamos BMWs e Audis, na altura eram os artefactos chineses, as sedas, os leques de marfim e o uso do chinese pidgin english.

Ainda existem vestígios destas comunidades por cá?

Existem, sobretudo arquitectónicos. O Cemitério Protestante, onde estão sepultados muitos dos americanos que morreram em Macau e que não podiam ser sepultados em território católico. A Companhia das Índias compra o terreno e todos os norte-americanos, ingleses eram enterrados aí. Pode-se fazer a história do comércio e da presença americana, das suas famílias, com base no cemitério. Ainda hoje há muitos turistas americanos que vêm a Macau visitar os antepassados que estão sepultados no Cemitério Protestante, fazem excursões e faz parte da mitologia das famílias. Macau é assim uma coisa distante e exótica. O Cemitério Protestante é muito referido nos diários das mulheres que viveram em Macau. A Casa Garden é portuguesa, mas tem um nome inglês, porque foi arrendada ao director da Companhia das Índias inglesa cá em Macau. Não havia viajante que não visitasse a Casa Garden e a Gruta de Camões. O nome do poeta é internacionalizado em Macau, todos os viajantes americanos que vinham a Macau eram levados à gruta e diziam-lhes que, de acordo com a lenda, Camões terá escrito uma grande parte de “Os Lusíadas” naquela gruta. Macau funcionou sempre como um espaço de divulgação da cultura portuguesa para qualquer viajante que fizesse uma circunavegação, uma viagem científica. Paravam aqui e eram confrontados com a cultura portuguesa. Nomearia a Casa Garden, o Cemitério Protestante, a Capela Protestante. Grande parte da colecção da Biblioteca Morrison da Universidade de Hong Kong foi feita com base nos livros de língua inglesa que estavam em Macau e Cantão que esses comerciantes traziam e deixavam em Macau. O primeiro museu que abriu portas na China foi em Macau, pela mão destes ingleses, quer missionários, quer comerciantes. Há uma série de heranças que persistem.

Como académico e investigador, como começou este fascínio por esta zona do globo?

Foi em miúdo. Lembro-me de estar na escola, no 9º ano, e a minha professora de história fazer uma exposição das casas portuguesas de Macau. Desde aí senti um fascínio. A arquitectura portuguesa na China foi algo que mexeu comigo. Depois quando fiz a investigação para o doutoramento decidi estudar Macau na literatura inglesa e nas fontes inglesas, que era uma coisa pouco estudada, podendo cruzá-la com as fontes portuguesas. Porque há muitos vazios nas fontes portuguesas que eram revelados nas fontes inglesas e vice-versa.

Como por exemplo…

Tricas com barcos, ou amantes locais que mantinham, rixas locais que não queriam que os directores da Companhia das Índias soubessem, mas os portugueses referiam-nas na documentação que enviavam para Portugal e vice-versa. Segredos que os portugueses não gostavam que chegassem a Portugal e que os estrangeiros de língua inglesa referem, até porque havia espionagem comercial. Este cruzamento de olhares é muito interessante. Por exemplo, os americanos estranhavam uma coisa que um português nunca estranharia: o repicar os sinos a toda a hora. Um protestante acha que nós somos malucos e queixa-se dos incessantes toque dos sinos. Este olhar protestante sobre Macau é muito interessante porque nos permite perceber as especificidades do quotidiano de Macau que, como portugueses, não conseguimos por não haver distância suficiente.

A partir do momento em que se dá a fundação de Hong Kong e o comércio anglófono se desloca para lá, como fica a situação social de Macau?

Não é uma transição assim tão rápida, é gradual. No início de Hong Kong havia muitas doenças, a cidade estava a ser construída. Se alguém tivesse uma família não a levaria imediatamente para Hong Kong. O êxodo é gradual. Mas muitas firmas mantiveram uma representação em Macau, apesar da grande debandada anglófona.

Como é que isso foi sentido pelas comunidades portuguesa e chinesa de Macau?

Economicamente foi um grande choque. As águas do Porto de Hong Kong eram profundas, ao contrário de Macau, então os barcos a vapor deixam de vir para cá a passam a ir para Hong Kong. Ferreira do Amaral e os sucessivos governadores tentam responder tornando o Porto de Macau franco, exigindo da China as mesmas garantias que tinham dado a Hong Kong, em muitos casos em vão. Mas a importância regional de Macau muda completamente, sobretudo, com a Guerra do Ópio que dá na fundação de Hong Kong. Foi uma mudança de grande impacto ao nível do arrendamento de casas, aluguer de barcos, comércio, mobílias, todas as despesas que essa comunidade endinheirada tinha em Macau desaparecem. Há um impacto grande na economia local e na sociedade. A comunidade inglesa promovia eventos culturais. Houve representações de Shakespeare em Macau, óperas, o Chinnery pintava os cenários das peças de teatro que eles encenavam. Claro que isto era muito circunspecto à comunidade britânica. Mas, de qualquer forma, animavam a vida cultural da cidade e o Governador e a elite portuguesa era convidada para estes acontecimentos.

9 Fev 2018

Rogério Puga, académico e investigador: “Enid Blyton é uma pioneira”

Escreveu livros que marcaram a infância de várias gerações. Enid Blyton, que deu vida a “Os Cinco” e “Os Sete”, nasceu há 120 anos. Em Portugal, a Universidade Nova e a Biblioteca Nacional assinalam a data, com um conjunto de palestras e uma mostra bibliográfica. Rogério Puga explica por que vale a pena ler e estudar a obra da escritora inglesa
Rogério Puga

[dropcap]E[/dropcap]ntre os leitores de Macau, é conhecido sobretudo pelos estudos que faz acerca da história do território. Sendo certo que as mulheres – e as mulheres que escrevem – estão muito presentes no seu percurso, como é que surge o interesse por Enid Blyton? o é que surge o interesse por Enid Blyton?
A escrita feminina interessa-me como objecto de estudo académico, nomeadamente a de língua inglesa. Enid Blyton, que terá redigido mais de 600 obras, começou a publicar poemas em 1917 e diversos livros na década de 20 do século passado, tornando-se uma das autoras que mais vende, mais de 600 milhões de cópias de livros. O meu interesse surgiu primeiro enquanto leitor adolescente e agora como fã académico (o chamado aca-fan). O imaginário e as referências culturais que apre(e)ndi com a obra de Blyton permanecem como memórias individuais partilhadas com as personagens das aventuras de “Os Cinco” e de “Os Sete”. Recentemente descobri, inclusive, que a famosa personagem Noddy foi também criada por Blyton, o que eu desconhecia. O interesse surge, então, da leitura e da investigação.

O que tem de especial o universo literário de Enid Blyton?
As obras de Blyton dirigem-se a um público infanto-juvenil de forma (então) original, e o imaginário das aventuras das suas personagens é caracterizado pelo suspense, pelo ultrapassar de obstáculo e pela reposição da ordem final, numa paisagem marcadamente inglesa, enriquecida por referências culturais, tendo sido adaptado para a televisão várias vezes, nomeadamente através da série que eu segui em criança, “The Famous Five”, produzida em 1978 e 1979. A sua obra foi criticada como simplista, xenófoba e elitista, estando obviamente marcada pela época em que foi produzida. No entanto, as aventuras das suas famosas personagens influenciaram e acompanharam muitos de nós, leitores. É sabido que a literatura infantil é produzida, comercializada e lida por adultos, como estratégia de socialização, colocando-se, portanto, a questão da ideologia veiculada por esses mesmos universos literários, e a obra de Blyton não é excepção.

Enid Blyton causou muita polémica, também pela quantidade absurda de livros que escreveu, a um ritmo que levou a que se achasse que não seria a autora de todas as obras. Por outro lado, também pelos conteúdos considerados xenófobos e elitistas. São críticas que faziam sentido?
A sua obra foi criticada, a partir dos anos 60 do século passado, como simplista, racista, xenófoba e elitista sobretudo no que diz respeito à caracterização de personagens e de atitudes estereotipadas em termos de etnia, género e de nacionalidade. A obra de Blyton está obviamente marcada pela época em que foi produzida, entre as duas guerras mundiais, e ecoa alguns dos ‘tiques’ negativos da classe média britânica desse período. Essa crítica literária é também fruto das novidades na academia e da (nova) forma de questionar a literatura, quer para adultos, quer para crianças. Uma crítica literária mais socialmente consciente e interventiva. No entanto, as aventuras das suas famosas personagens influenciaram e acompanharam muitos de nós, leitores. É sabido que a literatura infantil é produzida, comercializada, adquirida e lida em primeiro lugar por adultos (antes que seja lida à criança), como estratégia de socialização, colocando-se, portanto, a questão da ideologia veiculada por esses mesmos universos literários, e a obra de Blyton não é excepção. Essas críticas levaram a que algumas das suas obras fossem “actualizadas” e adaptadas, nomeadamente “The Faraway Tree”, em que, em edições mais recentes, desaparecesse o castigo físico de crianças. Em 2010 a editora Hodder adaptou os textos de “Os Cinco” para modernizar termos como “school tunic” (“uniform”), ou “mother and father” (“mum and dad”), projecto que foi abandonado em 2016, por não ter tido o êxito desejado.

As várias personagens que criou e os livros que escreveu tiveram imenso sucesso, e é algo que perdura. Como se explica este fenómeno?
A receita mágica do enredo baseado na descoberta, no suspense, nas aventuras picarescas tão desejadas por adolescentes, na relação do ser humano com a natureza, e numa visão moral(izada) do universo. A adaptação desses livros em formato de série ou filme também ajuda a vender livros. Blyton é, deveras, uma pioneira no que diz respeito à literatura infanto-juvenil.

A literatura infanto-juvenil foi, durante muitos anos, considerada uma arte menor, apesar de haver grandes autores que também escreveram para leitores mais jovens. Ainda é assim?
Já não, felizmente. Basta recordar o recente fenómeno literário e cultural de Harry Potter. É talvez das áreas do mercado livreiro que mais lucro gera, movimentando milhões. O diálogo entre o texto e a ilustração de qualidade enriquece o livro-objecto que agrada a graúdos e a miúdos simultaneamente, e permite um momento único de partilha entre pais/avós e filhos. Determinados livros e personagens tornam-se parte daquilo a que poderíamos chamar o nosso ADN cultural, da nossa memória familiar e pessoal, como acontece com “Os Cinco” de Blyton. O livro infantil é divertimento, mas sobretudo é visto por quem o oferece e lê como uma ferramenta didáctica que também estimula a criatividade. E cada vez mais autores conhecidos e lidos por adultos são convidados a escrever para um público mais jovem, de José Saramago, que publicou “A Maior Flor do Mundo” e o “Conto da Ilha Desconhecida”, entre outras obras para crianças, ou António Lobo Antunes, que publicou “A História do Hidroavião”, de temática pós-colonial, e logo complexa, que exige um leitor curioso, ou interessado, crítico e interventivo. A literatura infantil começou também a abordar temas que eram tabu na educação das crianças, como a morte ou a perda de entes queridos, os direitos humanos, os refugiados, a exclusão social, a sexualidade e o género.

22 Jun 2017