A arte perdida de andar na rua

[dropcap]P[/dropcap]ara quem vive e escreve de dentro dos dias são sempre as pequenas coisas que contam. São muitas vezes sinais quase prosaicos, tão embrenhados na normalidade do quotidiano que só merecem atenção para o coleccionador de acasos relevantes. Como esta história de que fui testemunha: um dia como os outros, uma estação de metro lisboeta apinhada. Uma vez saída das carruagens a multidão dispersou para os seus destinos e vidas, alheia a tudo o que não lhe dissesse respeito.

À minha frente, um cavalheiro idoso avançava apoiado numa bengala, com o esforço dos anos em cada passo. A cabeça estava inclinada para a frente, o que atribuí à sua idade. Errei: na mão tinha um telemóvel, que parecia naquele momento todo o centro do seu mundo. Subitamente, sou ultrapassado a grande velocidade por uma mulher de meia-idade. A mesma posição cabisbaixa e pela mesma razão. Nem por um segundo terá pensado em erguer o rosto, saber onde estava, para onde ia. O resultado foi inevitável: com alguma violência abalroou o cavalheiro que seguia à sua frente. O homem caiu, mais surpreso do que ferido; a mulher olhou-o de forma quase indignada, à beira de pedir satisfações. Alguns transeuntes ajudaram o homem a levantar-se, a mulher balbuciou algo remotamente parecido com uma desculpa e continuou, cabisbaixa, a sua marcha irreversível.

O que me interessa e choca neste episódio não é a sua originalidade: é a sua banalidade. Todos os dias presenciamos esta gente cabisbaixa que invadiu o nosso mundo, as nossas ruas. Muitas vezes pertencemos-lhes por sermos iguais. Os passeios estão repletos de gente como nós, olhando para algo que não sabe o que é mas que aparentemente tem sempre uma urgência absoluta. Perdemos a capacidade de olhar, de ver o outro através do rosto e não de um ecrã. E perder o olhar para o outro é, quer-me parecer, abdicar um pouco de ser humano.

Exagero? Talvez. Mas experimentem parar, olhar, contemplar, flanar. Vejam o que vos rodeia. Vejam se gostam do que vêem. Não me interpretem mal: não é minha intenção lançar aqui um libelo contra as modernas tecnologias, que muito fazem para nos simplificar a vida. Mas não podemos desistir do olhar, da curiosidade pelo que está à nossa volta. Andar na rua – olhar, perceber, enfrentar, sorrir – começa a ser uma arte perdida, algo a que só estetas nostálgicos e exilados destes tempos parecem dar importância. Num romance de Evelyn Waugh, Put Out More Flags, há um personagem – um dandy decadente chamado Ambrose Silk – que lamenta o mundo em que vive, suspirando pela arte desaparecida da conversação e o “mundo sepultado de Diaghilev”. Daqui a pouco tempo suspeito que alguém irá lamentar a arte perdida de andar na rua. Na verdade já o estou a fazer.

Conseguimos, em séculos de evolução, chegar ao homo erectus. A ideia seria pelo menos conseguir manter esta condição. Porque ao olharmos apenas para um falso espelho arriscamo-nos a deixar a vida passar ao lado. Ou abalroar-nos de surpresa e sem desculpas.

24 Out 2018

A perfeição

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi um ano bom por esse mundo fora. Morreu gente que é imortal, elegeram-se pessoas tortas, fizeram-se guerras estúpidas, tão estúpidas como todas as outras guerras de que reza a história, a comprovar que nós, os comuns mortais, não aprendemos. Morreu gente sem nome a tentar chegar a uma terra nova, a fugir da miséria, a fugir de onde nunca quis sair, com as raízes ainda agarradas ao corpo. Houve gente morta por quem mata só porque sim, numa outra guerra estúpida que nos diz, todos os dias, que os homens não sabem nada uns dos outros.

Nós, por cá, tudo bem. Não há mal grave que dure por aqui. Os nossos dilemas, colocados em perspectiva, são coisas pequenas, leves, a roçar a insignificância. Os nossos males não têm armas nem sangue, não nos invadem a casa, não nos deixam com o coração nas mãos, com medo de fecharmos os olhos e de nunca mais os podermos abrir.

Mas com as dores dos outros podemos nós bem. Por mais que, num exercício quase religioso, façamos a relativização da nossa dor perante o sofrimento alheio, é-nos impossível fugir ao dramatismo das pequenezas do quotidiano. Porque é o nosso quotidiano e é nele que respiramos. E porque é dos homens quererem sempre mais. Ainda bem.

Sucede que, por estes lados do mundo, a medida da perfeição está ali ao virar da esquina, como se fosse facilmente atingível. A malta contenta-se com pouco na cidade onde tudo, ou quase tudo, podia ser infinitamente melhor. Resmunga-se, mas baixinho, não vá o vizinho ouvir e perceber exactamente o que acabou de ser resmungado. Critica-se, mas sempre com um elogio no princípio e no fim, como se de uma moldura se tratasse, para que as bordas do reparo não provoquem rasgos nas sensíveis almas criticadas.

Por estes lados do mundo, nunca sou eu que penso – são eles, a população, o povo. O povo é que não gosta, a população é que diz que é melhor ter cuidado, eles é que estão descontentes com o rumo da situação. Nunca sou eu que penso porque não tenho coragem de pensar. E também nunca somos nós, que a colectividade caiu em desuso.

Com as dores dos outros podemos nós bem e até com as dores daqueles que nos deviam ser próximos, mas não são. Por aqui, encobrimos histórias feias, não lavamos roupa nos jornais, os cafés às vezes servem de lavandaria mas rapidamente se esconde a roupa, mais o detergente, quando a palavra dita ousa ser perigosa para o estado feliz em que nos encontramos, nós, gente sem guerras nem sangue, nem ideias e muito menos opiniões.

Passou mais um ano que foi mau, mas nós por cá tudo bem. Enquanto o emprego for certo e houver bacalhau no Natal, nós por cá tudo bem. Engolimos tudo com um tinto e preparamo-nos para a contagem decrescente, conta-se baixinho e grita-se baixinho, dançar é que não que ainda pensam que sou louca, olhem que bem comportados que somos todos nós, tão assim, tão de bem com tudo. Com as dores dos outros podemos nós bem.

30 Dez 2016