Marrocos | Martin Scorsese cancela presença em festival por razões pessoais

O realizador norte-americano Martin Scorsese cancelou a sua presença no Festival Internacional de Cinema de Marraquexe, onde deveria participar como padrinho do programa de formação de novos talentos do cinema.

De acordo com fontes da organização citadas pela agência noticiosa Efe, o cancelamento da presença de Scorsese, de 81 anos, deveu-se a razões pessoais. Scorsese participou no certame marroquino por cinco vezes chegando, em 2018, a entregar um prémio honorário a Robert de Niro, actor com quem tem um histórico de colaborações.

Scorsese seria, nesta 20.ª edição do festival, o patrono dos Ateliers Atlas, dedicados a desenvolver o talento de jovens realizadores africanos e árabes. O festival começou na sexta-feira com uma gala que contou com uma homenagem ao actor dinamarquês Mads Mikkelsen e com a apresentação do júri, presidido pela actriz norte-americana Jessica Chastain.

Scorsese, considerado um dos maiores e mais influentes realizadores do cinema contemporâneo, conta no seu currículo com películas como “Taxi Driver” (1976), “Tudo Bons Rapazes” (1990), “O Touro Enraivecido” (1981), “O Lobo de Wall Street” (2013) ou “Gangues de Nova Iorque” (2002), e “Entre Inimigos” (2006), este último que lhe valeu os Óscares para o melhor filme e o melhor realizador.

O seu mais recente filme, “Assassinos da Lua das Flores”, lançado no último mês, conta a história verdadeira da nação Osage, em Oklahoma.

Protagonizada por Leonardo DiCaprio, Robert DeNiro, Lily Gladstone e Jesse Plemons, a produção mostra como a tribo indígena Osage, que ficou milionária depois de encontrar petróleo na sua reserva, foi alvo de múltiplos assassinatos e de uma conspiração para lhes retirarem as propriedades.

“O que eu queria captar era a natureza do cancro que criou uma sensação de genocídio vagaroso”, disse, então, o realizador Martin Scorsese, numa conferência de imprensa em Los Angeles para o lançamento da longa-metragem.

27 Nov 2023

Scorsese, It is what it is (Parte II)

[dropcap]É[/dropcap] então ao cabo de quase duas horas de “O Irlandês” que se dá O Acontecimento. Durante a caprichosa confecção de uma salada, a salada perfeita, Joe Pesci sugere a De Niro que resolva o caso de Al Pacino.

(A história do cinema já nos habituou a que no subgénero dos filmes de gangsters, talvez aquele em que a morte esteja mais exposta, muito poucas ordens sejam dadas. As indicações são insinuadas, ou seja, não há transferência de responsabilidade, cada um é senhor dos seus actos e fica individualmente comprometido com as suas consequências. Mais do que uma estratégia judicial é uma determinação moral.)

Pela primeira vez De Niro vê-se agrilhoado a um dilema, vicissitude a que fora escapando por se ter restringido a cumprir as tarefas que lhe eram cometidas sem esboço de objecção ou dúvida. Doravante, decida o que decidir na sua consciência para sempre se ferrará o labéu de Judas.

Quem irá o irlandês Frank Sheenan trair? Se não cumprir a incumbência homicida, trairá Joe Pesci, o mistagogo a quem deve, mais do que a vida, o ser e a existência (esse identidade que a filha renega castigando o pai com o infinito silêncio das mulheres das tragédias gregas privadas da palavra. Já agora, poucos actores foram vistos a dizerem tanto de lábios fechados como Anna Paquin em “O Irlandês”). Se, por outro lado, assassinar Pacino trairá a confiança supostamente inviolável daquele que lhe foi afiançado guardar e proteger, com quem estreitara laços de amizade, manchando e penhorando ad aeternum a sua credibilidade.

Adensa o dilema que Pesci ilibe De Niro pondo a culpa de lado com uma simples frase: “we did all we could for the man.”

Durante 20 minutos seguintes “O Irlandês” transfigura-se por completo, desde a cena da salada até à sequência mais trágica do filme, em que para conquistar e merecer um pouco de respeito da filha, De Niro telefona à mulher de Pacino, e sabendo que só a verdade a consolaria mostra-se incapaz de assumir o seu ónus despenhando-se na mentira com um discurso atropelado e cobarde, tornando-se a seus próprios olhos um ser abjecto – um Judas.

Até aqui “O Irlandês” fora um filme de diálogos, firmado em prolíficas e destras tomadas em campo / contra-campo, com os planos muito cingidos ao torso dos atores, quase todo em interiores e bastante nocturno. Neste 20 fulminantes minutos abundam os planos exteriores filmados com uma grande angular que diminui as figuras humanas, apequenadas no espaço e com muito ar à volta. São cenas diurnas e o clima é primaveril.

Será especulativo, mas não imprudente, evocar de novo a influência de John Ford – talvez o da “trilogia da cavalaria” – nesta forma de enquadrar na vastidão do mundo as suas personagens tolhidas por um pecado original que tentam superar ou ignorar norteando-se apenas pela missão que têm de cumprir.

Houve quem se enfadasse com a demora de Scorsese em chegar a este ponto e aferisse essas duas horas como redundantes em relação a “Goofellas.” Mas o movimento dos filmes é de todo antinómico. O andamento de “Goofellas” é em accelerando para a precipitação. Queda que ratifica a traição final de Ray Liotta, reduzido a um “schnuck” suburbano que vem de roupão recolher o jornal à porta pela manhã. É em sentido contrário que corre “O Irlandês;” o percurso de De Niro não só se consolida num modo de vida prático, estável e perfunctório (oposto à euforia criminal de “Goofellas”) como vai mesmo progredindo até à liderança do sindicato, com direito a concorrido jantar de homenagem e baile. A traição é em “Goofellas” o epílogo consumado por um destino; em “O Irlandês” a traição é a tragédia inerente ao livre-arbítrio.
Desde o início de “O Irlandês” que Scorsese se defronta com uma dificuldade diegética: como impulsionar a expectativa dramática e insuflar alento emocional numa história cujo desfecho toda a gente prevê?

Mal se apresenta a figura de Jimmy Hoffa quem conheça um bocadinho da História dos EUA – essa História que vai cuidadosamente pontuando o filme – sabe que ele desapareceu sem deixar rasto e embora nunca tenha havido nem cadáver nem factos comprobatórios, saberá também que foi a mafia que o suprimiu. Quem desconheça Hoffa mas esteja a par do repertório de Al Pacino discerne que as suas personagens raro morrem com os sapatos calçados. Mas em “O Irlandês” até os virgens da História e da cinefilia pressentem que aquilo é capaz de não acabar bem. Scorsese sabe, portanto, que a magnitude sísmica do dilema que dilacera a existência de De Niro só será partilhada emocionalmente por todas estas espécies de espectadores se estes se resignarem a presenciar um rosário de peripécias que malgrado o seu defluxo narrativo produzem a sensação de não se orientarem para um climax. Ora no cinema há uma ferramenta privilegiada para causar lassitude e desguarnecer a atenção – dilatar o tempo, de modo aparentemente desnecessário.

Que não haja equívoco, “O Irlandês” tem a duração exacta e necessária. Pode é não obedecer à medida do tempo fora dele ou do tempo de um espectador que tem outras coisas que fazer além de ficar 3 horas a contemplar um filme.

10 Jan 2020

Scorsese, tradição e memória (I)

[dropcap]É[/dropcap] de reter na memória e guardá-la tanto quanto esta o permitir a última sequência de “The Irisman” de Scorsese.

A enfermeira acaba de medir a tensão arterial ao decrépito De Niro assegurando-lhe que não está mal e ele graceja por ter a confirmação clínica de que ainda está vivo. A câmara sai atrás da enfermeira no seu demorado percurso até ao guichet da enfermaria. Para nossa surpresa não se passa nada e o travelling retrocede rumo à porta do quarto. Percebemos então ter havido uma elipse de tempo. De Niro está agora à meia-luz a terminar uma oração com o padre. O diálogo não acrescenta qualquer informação ao que anteriormente fora dito entre ambos a não ser que o Natal se aproxima e De Niro não sabia. À saída do padre De Niro pede-lhe para deixar a porta entreaberta. Será por essa frincha que o veremos pela última vez, lá dentro na penumbra a olhar para cá.

Esta sequência é simétrica na forma de outra executada horas antes, quando a câmara segue o guarda-costas que abandona o seu protegido na barbearia indo pelo corredor fora onde se cruza com os matadores, volvendo atrás deles até ao ponto de partida. Mas não entra, fixa-se num vivíssimo ramalhete de flores e deixa ouvir os tiros e os subsequentes gritos de pânico que já esperávamos escutar, porque tal movimento, de tão invulgar e redundante, entrega-se à inteligência e à sabedoria do espectador experiente que sabe muito sabe que um plano assim, a dilatar e suspender o tempo, anuncia uma eclosão.

Mas se nesta primeira versão temos a descrição de um dia como os outros na vida de um mobster, a posterior e conclusiva variante, embora decalque o processo, conduz-nos a outra instância.

No mais fordiano dos seus filmes Scorsese redarguiu com este final, de maneira explícita, ao célebre desfecho de “The searchers.” Aqui, com a família enfim reunida, enquadrado pelo umbral, John Wayne fica fora de casa, sozinho e à torreira do sol, afastando-se para a vastidão do continente enquanto a porta se fecha e a música canta “ride away.” Em “The irishman” a porta não se escancara porque nenhuma família reconciliada entra por ela, apenas o padre a transpôs de saída, mas também não se fecha porque De Niro se queda encafuado na penumbra de um canto do quarto. Não há música.

Uma revisão retrospectiva de “The irishman” à luz deste desenlace, se não condescendermos em entende-lo como uma trivial citação, artifício que na sua pobreza diegética margina-se estreitamente entre o paródico e o panegírico, concede-nos observar como Scorsese nos fora conduzindo a ele pontuando o filme com uma iconografia propriamente fordiana. São repetidas com persistente intenção as sequências litúrgicas, sublinhadas por planos hieráticos, silentes e despojadamente solenes do coro de wise guys, num friso que dir-se-ia retirado das adorações da pintura florentina do renascimento. Composição grupal que pode sem esforço ser assacada como um dos mais característicos códigos da narrativa fordiana. Scorsese apropria-se do vocabulário dos mestres, incrusta o seu filme numa linhagem que faz sua, porque sente que a velhice – o tema que só tarde compreendemos ser o central de “The irishman” – e a obra anterior lhe consente pertencer a essa tradição.

13 Dez 2019