Tentativas de dessemantização da língua e de vocalização da escrita – Aude Locatelli

Tradução de Emanuel Cameira

Para Mallarmé, que pedia que «não puséssemos Música ao pé dos seus versos», a poesia é, na essência, a própria Música: «não é das sonoridades elementares dos metais, cordas, madeiras, mas, sem dúvida, do ápice da palavra intelectual, que a Música, em toda a sua plenitude e evidência, enquanto conjunto das relações existentes em tudo, deve resultar.» Se é inadequado, segundo essa perspectiva, falar de «musicalização» da linguagem poética, podemos dizer que toda uma parte da poesia experimental se empenhou, à sua maneira, em retomar o seu «contributo» para a música, valorizando a dimensão fónica da linguagem. A este respeito, J.-M. Gleize distingue dois pólos, não deixando de especificar que a polarização «admite todas as práticas intemédias»: por um lado, um «pólo a-semântico ou infra-semântico: poesia fonética (sons, onomatopeias), talvez ruidosa» e, por outro, um «pólo semântico: um texto numa “língua” classificada ou não, mas cujo significado parcial (porventura o essencial, em certos casos) depende da sua realização acústica através da activação dos parâmetros musicais da linguagem falada (timbre, potência, tempo…), com ou sem adjuvantes técnicos (microfones, amplificadores, gravadores, vídeos, etc…)».

Ao primeiro pólo correspondem diversas tentativas de dessemantização da língua: a poesia fonética (H. Ball, K. Schwitters) e o movimento letrista de I. Isou são dois exemplos de experimentações que levam assim a uma saturação sonora da escrita, que se transforma numa «música» onomatopaica. Isou usa precisamente, para os seus poemas, indicações de tempo (andante, allegro, lento…), de silêncio (uma pausa de um segundo), de tom (tom selvagem, rouco, patético…). Como destaca F. Escal, «a primazia dada ao aspecto sonoro do texto confere então à língua o mesmo funcionamento simbólico (o simbólico é o que resiste à “degradação” em signos ou em imagens) da música: o seu sentido, não formulável, é a sua forma». O facto de esta música ser capaz de integrar todos os tipos de sons, incluindo os não fonéticos (inspiração, expiração, respiração ofegante, espirro, estalido de língua, crepitação, escarro…) aproxima-nos, segundo ele, do segundo pólo, que nasce de um desejo de vocalizar a escrita.

Essa preocupação com a vocalização é ainda mais significativa nas diferentes formas de poesia sonora, se se pensar nos «poemas para gritar e dançar» do precursor P.-A. Birot, nas «permutações» de B. Gysin, nos «grito-ritmos» de F. Dufrêne, nos «audio-poemas» de H. Chopin, na «poesia-acção» de B. Heidsieck ou nos poemas elementares de J. Blaine. A poesia sonora, que nem sempre se empenha no processo de dessemantização da linguagem, mesmo se perde muitas vezes as suas referências semânticas, aspira, antes de mais, à vocalização do poema. B. Heidsieck, que opta por uma «propulsão directa» da poesia durante as leituras públicas e que mobiliza recursos electro-acústicos para multiplicar a sua voz e criar, a partir dela, efeitos de polifonia, afirma que o dever do poeta sonoro é o de «ARRANCAR o texto da página, [de] o descolar do papel, desse suporte que carrega o peso de tantos séculos, para o projectar para uma audiência no momento certo e ao vivo». O poema também não é concebido como um simples objecto sonoro mas como um facto que envolve todo o corpo. Neste sentido, tomando em consideração o corpo e a violênca que pode ser detectada na palavra poética viva, junta-se à poesia sonora (pense-se na vociferação do texto poético a que se presta, por exemplo, J. Blaine) alguém como A. Artaud, proferindo, após mais de vinte anos de censura, o seu poema radiofónico intitulado «Para acabar [de vez] com o juízo de Deus».

A problemática da vocalização da escrita convida, por outro lado, a sublinhar a influência do blues, contraparte profana dos espirituais negros que M. Yourcenar se esforçou por traduzir, sobre a literatura americana do século XX, e em particular sobre os poetas da geração beat, conforme testemunha o carácter sincopado dos Mexico City Blues de Kerouac. Se temos criticado o carácter arbitrário dos paralelismos estabelecidos por C. Elsen, «para quem o jazz está para a música o que a poesia está para a literatura e que associa Ellington a Verlaine, Miles a Milosz e Monte a Péret», ou por P.-L. Rossi, que faz corresponder «Monte a Ponge, Parker a Mallarmé, o movimento bop ao movimento dada, o scat ao letrismo, Coltrane a Artaud, Ellington a Reverdy, Mingus a Michaux, O. Coleman a A. Césaire, Rollins a Tzara, a improvisação do jazz à escrita automática», existem muitas relações efectivas entre o jazz e a poesia, de que são prova não só os poemas inspirados pelo jazz, como a recolha Carte noire, de F. Valorbe, mas também experiências poético-musicais originais: por exemplo, quando J. Cocteau, em 1929, recita poemas da sua colectânea Opéra acompanhado pela orquestra de jazz de D. Parrish, ou quando, em 1937, P. Reverdy grava com o trompetista P. Brun e o guitarrista D. Reinhardt um poema intitulado «Fonds secrets».

Tradução de: Locatelli, Aude, Littérature et Musique au XXe siècle, Paris, Presses Universitaires de France, 2001, pp. 96-99.

18 Jun 2021

Mallarmé

[dropcap]S[/dropcap]téphane era um homem extremamente bonito. Olhamo-lo com respeito e inspiração, como àquelas paisagens por onde um deus abriu caminho e nele nos mostrou locais encantados que até aí desconhecíamos. A sua função pioneira é em si a sua força, o engenho do desbravar tecendo o acaso, que os dados mesmo lançados estão sujeitos a essa estranha partitura. Se ao escutar o poema ele o adensa numa floresta alfabética é porque sabia que ela desliza até à saciedade na sua extraordinária plasticidade. Vamos no seu encalce nesse efeito de ressonância e tudo é símbolo, tudo é convite, tudo é singular (que o Simbolismo nem tudo explica das cargas fonéticas desta mestria) é a sua palavra que gera o Movimento e todos os outros que hão de vir agarrados à entrada do século vinte que para sempre será eterno Modernismo.

Mallarmé media o tempo na composição do seu verso. Há nele uma roda giratória perfeita que sabe trabalhar no ínfimo infinito do que escuta e entende, e se nele nada é fácil, também nada é óbvio: que sentir pode ser maior que escutar com palavras graus finíssimos de um som galáctico? Que sistema desenvolvem certos humanos que lhes permite captar coisas tamanhas? É este Mallarmé o que mais interessa, o poeta como agente delicado de acordes inexplicáveis. Hoje ele não seria possível! Esta espécie morreu, o barulho da perturbação do mundo e do seu enredo fez que para sempre se esgotassem certas saídas de emergência. Padecemos por isto, e não por tudo aquilo que julgamos perturbar-nos.

O verso gera aqui um redentor estado de lúcida compreensão ao atalhar para a «linguagem suprema» onde todas, sem ela, são imperfeitas, e como conduzir ao entendimento sem a consciência do mantra que se desfaz em todos os recreios onde quiséramos que existisse? Aguardar! – Temos de aguardar. Sabemos que não estão lá os signos que faltam para este magistério, e que, a poeira dos ensaios incita à obscura análise e ao estéril desejo. Não deve o ser esforçar-se demasiado por aquilo que nunca será o seu caminho, que caminhar assim, é uma espécie de feliz resolução tendo à espreita todas as dores «La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les livres… des oiseaux sont ivres» e mais tarde, até o barco de Rimbaud. Estamos todos embriagados às portas do Inferno!

No dia 7 de Setembro nasceu Camilo Pessanha e temos dele o mais melodioso emblema nacional do Simbolismo e da música que desejou reter da corrente que assim corria a um tempo como uma suave nortada. Mallarmé morreria a 9 de Setembro, quase a findar o século. Pessoa persegui-os na marcha e todas as coisas alcançam intimidade quando estão no “verso” de um mesmo Ovo. Que o Ovo não tem re(verso) é certo, e os que dele nascem são considerados na maior parte das vezes, aves. Da própria beleza dos dois, ninguém diz, mas podemos afirmá-lo que trajavam qualquer essência habitada, toda corrigida pela tinta negra da palavra, olhá-los é já contemplar um poema em corpo num raro acaso que os próprios dados já lançados não prevêem. Equilíbrios frágeis, fazem dos seres acordes lindíssimos!

Choveu nas palavras em verso de Mallarmé! Elas lançavam-se livres e desenlaçadas no alaúde da composição, tão visual, quanto melodiosa, por que a língua encontra todos os planos quando dança! E quando deixa a dança, e ao não encontrar os seus arautos, morre, asfixia. Os exegetas judeus talvez tenham razão quando se debruçam anos infindos numa frase só e encontram frases outras, que nós lemos tudo na horizontal com as páginas em crescendo até ao fim, e grande parte não vê mais que um filamento de ideias nas letras. Querer ser entendido é a maior praga que se instalou na linguagem! Deveria ter calado isto tudo, mas não sei, não sei como calar.

Mallarmé morreu amargurado. Fora um grande anfitrião e pela sua casa passaram os que a História reservou, qualquer coisa se esgotara neste belo ser que anteviu dias antes o seu fim. Talvez estivesse cansado e com pressa de regressar ao diálogo alargado das suas competências. Para onde vão as almas destes homens que voltam de quando em vez para nos interpelarem de formas tão surpreendentes «musicienne du silence»?
Um Mallarmé talvez um pouco desconhecido este que aqui ficou.

16 Nov 2020

Dormir com Lisboa

04/09/20

[dropcap]“A[/dropcap] explicação órfica da terra é o único dever do poeta.”, Mallarmé. Um encolher de ombros, um leve enfado: tudo o que me provoca hoje este tipo de sentenças peremptórias e redutoras. Imagine-se: o único. E logo “patrocinado” por Orfeu que, ao contrário de Alceste, não teve os tomates para trocar a sua alma pela da amada, ou de deixar a sua lira como penhor no Hades. Há muito de burguês e de balofo nesta pretensão mallermeniana. Para que lhe servia então o dom, se face à morte recuou? Puro ilusionismo de feira. Que o poeta reivindique esse desígnio para si é magnífico (foi o caso de Herberto, entre outros), que o torne condição sine qua non para toda a poesia é excrável. Há muitos raios para chegar ao núcleo da roda.

05/09/20

A este selo com dois cudos a correrem, desenhados com esmero e dinâmica, posso garantir que Pessoa não o teria na sua colecção porque a sua emissão só teve lugar dez anos após a sua morte. Perdeu-se a sua colecção de selos, reunida com tanto empenho, ainda que tenha chegado até nós o seu álbum. Quem lhe teria extraviado os selos, como? Tê-los-ia trazido consigo, no regresso a Lisboa desde Durban, ou já considerava isso coisas de menino? Qual foi a medida do impulso coleccionista em Pessoa? Há imensas zonas de penumbra que a investigação (felizmente) não tem conseguido dilucidar, aspectos que na vida de um homem reaparecem com uma irrelevância quotidiana, mas sem desfalecimento. Por exemplo, o umbigo de Fernando Pessoa seria do tipo dos que atraem a formação de cotão ou não? Nesse caso, quantos quilos de cotão produziu o poeta em vida? Todas as coisas de molde inaparente, menores, que podem reger a vida de um homem sem ele dar conta. A primeira vez que Sir Walter Raleigh se despiu diante da Rainha Isabel esta, percorrendo-lhe com o olhar o tronco escorreito, largou uma gargalhada ao dar-se conta de que Raleigh estava nu em todos os lugares menos no umbigo, onde repontava uma bola de cotão. Essa gargalhada, que Raleigh nunca recebera de qualquer mulher sinalizou para Elizabeth uma superioridade que a fez ter sobre o seu amante um ligeiro ascendente.

07/09/20

A gafe foi monumental. A empregada enganou-se na panela e aqueceu a errada, servindo à mesa a sopa que estava azeda. Apressar-nos a contar que foi imediatamente despedida não salva um jantar liquidado à nascença. Recomecemos agora a narrativa por um ângulo à Claude Chabrol e mais afim do imaginário da luta de classes: a criada fez a ronda da mesa, vertendo colher e meia de sopa por prato, e os convidados aguardaram cerimoniosos que o anfitrião fosse servido. Este colocou o guardanapo sobre as pernas e acabou de contar a anedota de um anão que fora dormir à alma do canhão do circo, antes de num gesto magnânimo, sugerir, Comam, façam favor de começar antes que arrefeça, e para dar o exemplo foi o primeiro a levar a colher à boca. Foi também o primeiro a baquear, envenenado.

09/09/20

Dois livros sobre Lisboa retiveram-me a atenção nas últimas semanas. O primeiro é de fotografias, Lisboa Deserta, de Maria Margarida Chaves Marques, um álbum com design de Ivone Ralha. Eis o testemunho de uma Lisboa em puro insílio, nua, despojada de gente. Tinha ouvido falar por familiares desse período de isolamento obrigatório por causa do Covid e das suas regras quase militares, mas nunca se imagina quanto. O livro mostra-nos e ganha um relevo quase sociológico. Uma cidade sem ninguém é um organismo em ferida, constata-se neste “belo” álbum que percorremos com a inquietação que antecede os sismos. Um alerta que não nos deixa esquecer de quanto o rosto de uma cidade depende da sua fosforescência humana.
Outra curiosidade interessante: as fotografias deste álbum foram todas tiradas com um telemóvel, sendo a prova de que, como queria Paracelso, é a mente quem faz ver os olhos. Uma boa foto só depende de se ter um ponto de vista – e desta carência o livro não sofre.
Encontra-se à venda na Livraria Snob.

O outro é um romance da Fausta Cardoso Pereira, Dormir com Lisboa. Um belíssimo livro que foi obrigado a um percurso sinuoso por causa da sua peculiaridade narrativa: o protagonista é a própria cidade. Como “supostamente” lhe faltava um personagem com quem o leitor se identificaria (o que é falso, aqui como em Manhatthan Transfer, de John dos Passos, retrata-se a cidade com um ritmo, uma riqueza de perspectivas e uma pulsação orgânica que nos leva a não abandonar a leitura) o livro foi sendo rejeitado até que ganhou na Galiza o Prémio Antón Risco de Literatura Fantástica e vários encómios após a sua edição, pelas virtudes que em Lisboa lhe negaram. Agora vai ser finalmente editado em Portugal, por uma editora portuguesa mais sensível à eficaz estrutura coral do livro e menos arreigada à uniformidade do mainstream.

A edição galega é de 2017 mas o covid e as ausências da mole humana na cidade devido à pandemia deram a esta narrativa um carácter quase profético. A trama é simples: quebrando a sua rotina, numa aleatoriedade que desafiará a criatividade de cientistas chegados de todo o mundo para estudar o fenómeno, a calçada de Lisboa ganha hábitos de bivalve e engole alguns cidadãos comuns. O desconforto, a desorientação e o pânico tomam conta da urbe, que ameaça desertificar. É a “alma” da cidade que se revolta contra a indiferença e as equívocas políticas urbanas dos seus edis? Será algum tipo novo de “doença” urbana? Que espécie de cataclismo e de assombramento ameaçam Lisboa? Um romance imperdível com um enredo imaginativo e uma escrita ágil, que ameaça ser um dos livros do ano. Pelo menos, a singularidade ninguém lho tira.

10 Set 2020