OI, de Luís Brito (parte 2)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste confronto com o Brasil é decisivo, pois como diz o David de São Paulo, o Brasil é harcore. E a situação torna-se mais radical ao chegar ao Rio, em visita a um amigo que decidiu passar a viver ali, com a sua namorada brasileira. As diferenças sociais no Rio vêem-se, contrariamente a São Paulo, estão expostas a cada esquina, a cada bar junto à praia. O Rio é um abismo permanente. Depois de uma visita a uma favela, e muitas das favelas no Rio estão junto dos bairros nobres da cidade, ele escreve: “Nada é mais autoritário do que uma pele branca e, por eu a usar como uma farda, podia ter levado um balázio nos dentes. (…) Um ou dois mortos por dia não é assim tanto, e só cá vindo se percebe (…).” (p. 37) Mais tarde, no calçadão de Copacabana, quando encontra Milson, o homem que se lavou com livros na prisão, depois de ter morto um polícia, escuta-o dizer que “(…) um dos seus sete irmãos foi assassinado por outro, apenas por se insinuar à sua esposa.”

E eu mesmo, aqui a ler-vos este texto, conheci dois irmãos, do interior da Amazónia, que andaram aos tiros um com o outro, por causa de uma mulher, até que um deles fugiu para os EUA. É como escreve o seu amigo Tó, que gosta de escrever aforismos: “Os Brasileiros pecam por falta de culpa.” Mas no Rio é fácil de esquecer o mal, pelo menos nos primeiros tempos. Em menos de nada, podemos estar a repetir estas frases, que Brito escreve no final do nono arrepio: “Este país faz-me sentir que tudo é possível, todas as árvores dão um fruto e nada me garante que lá dentro não esteja o amor da minha vida.” (p. 44) E imediatamente em contraposição a esta demanda por o amor da sua vida, Luís Brito descreve um carioca de gema, à página 46: “ele anda de tronco nu todos os dias, tem dívidas nos botecos e nos quiosques, cumprimenta a vizinhança, joga futebol e gosta de mergulhar no mar.

De vez em quando tem de ir às cachoeiras, é tarado sexual, come açaí, coxinhas de frango, feijão preto com farofa e toca precursão numa escola de samba.” (p. 46) De facto, um dos lugares mais cobiçados no Rio é o de percussionista numa escola de samba. Por outro lado, todo o mundo joga futebol. Saem do trabalho e vão para uma quadra jogar. Joga o médico junto com o zelador, joga o engenheiro junto com o vendedor ambulante. Ali, na quadra, não tem divisões, não tem classe social. O futebol no Rio é uma religião. E eles praticam. O futebol não é, como para nós, algo a que se assiste. Por isso encontrei, em 2005, muitos flamenguistas que assistiam aos jogos do Fluminense (na Tv, claro), porque gostavam de ver jogar o Petkovic, jogador da Sérvia, que em 1995 tinha jogado no Real Madrid e em 2001 e 2002 jogou no Flamengo. Imaginem, as senhoras e os senhores que gostam de futebol, um benfiquista assistir aos jogos do Sporting, porque joga lá um João Vieira Pinto, e ele é um grande jogador!? O Rio tem adoração pelo futebol, pelo samba e pelo sexo, como fica muito bem claro neste livro.

Livro que é também uma viagem ao sórdido do Brasil, aos lugares que ninguém visita quando vai de férias, como a Vila Mimosa, no Rio, que, e passo a ler, à página 57: “Antes de mais o cheiro. (…) Por outro lado, talvez seja a mistura de esgoto e de suor, de cerveja e de vómito que se espalha pela calçada portuguesa, esburacada e barrenta, acinzentada, onde muitos homens já caíram desmaiados. Tudo tresanda mais por causa do calor, este sítio fede tanto quanto fode.” Mas julgo que é nesta curta passagem, acerca de uma puta de 42 anos, que parecerá ter chegado ali com as caravelas, imagino eu, que melhor explica este lugar, esta Vila Mimosa, este lado escuro do Brasil, como tantos pelo Brasil adentro: “Espreitar o mal dos outros é coisa de ricos, a curiosidade mórbida é um luxo, porém o facto é que Sabrina aprecia a minha companhia, só porque eu não tenho doenças, nem lhe vou bater ou cuspir para a cara, possuo os dentes todos na boca e digno-me a tratá-la como um ser humano.” (p. 60)

Mas há também Vanda. A bela e jovem Vanda, que se aproxima do narrador e diz: “E aí? Vamos namorar bem gostoso?” E esta situação, a da beleza surgir no meio do nada e aproximar-se de nós como uma miragem, como um sonho, como a verdade que não existe, leva o narrador a escrever: “Uma mulher bela dizendo coisas porcas é como se falássemos com nós mesmos.” E depois de Vila Mimosa há o verdadeiro interlúdio deste livro, pois não se trata de um interlúdio formal: os arrepios 14 e 15; os arrepios da Y. Nestes arrepios, onde o narrador tem um caso, que julga ser único, o verdadeiro amor, com essa mulher que “tem uma relação agridoce com o consumismo” (p. 78), a Y, o autor faz-nos ver por dentro o quão ridículo é estar apaixonado e ao mesmo tempo tão diferente, tão especial. No fundo, estar apaixonado é um interlúdio na existência.

E Luís Brito escreve-nos nestas páginas, que são brilhantes em tantos momentos, a infantilidade de querer ver no outro aquilo que ninguém é ou pode ser. Escreve até as frases que dizemos nesses momentos, escreve até as que pensamos, e que se ditas em voz alta, coramos de vergonha, mas aqui fazem todo o sentido serem ditas em voz alta, e eu passo a lê-las: “Esfregar a minha cara na dela foi como voltar à barriga da minha mãe, reunir-me com o Universo, deixar de me sentir mutilado, voltar a ter o que perdi antes de nascer.” (p. 72) Mas ele não escreve apenas o que pensou ou o que disse. Ele descreve esses dias, fazendo-nos continuamente – ao viajar não apenas nas imagens dele, mas nas nossas memórias – ir da saudade à vergonha.

E no início do décimo sexto arrepio já tudo volta à normalidade, a vida encontrou modo de assumir a sua natureza, e Y acaba com uma relação que nem sequer tinha começado, fazendo com que o narrador volte a levar-nos nesta viagem por si mesmo e pelo Brasil. E, um dia depois de Y, no décimo arrepio, aparece Z, uma mochileira que o narrador encontra na estação de ônibus, quando se prepara para viajar para norte. E passo a ler: “Não interessa para onde vou, ou pelo menos por agora. O que interessa é isto: na estação de autocarros, enquanto espero pelo meu, vejo uma mulher com uma mochila de viagens, igual à que guarda as minhas coisas. A mesma marca, o mesmo modelo.” Comento eu agora: se isto não é um sinal dos deuses, então não percebo nada do cosmos. E o narrador escreve: “Aproximo-me para me certificar de que ela é real. Ou melhor, quero saber se ela é bonita, pelo menos o suficiente para lhe poder chamar Z. / Confirma-se. Damos um beijo na boca, ali naquela estação, meia hora depois de nos conhecermos.” E assim termina o décimo nono arrepio.

O livro balança magistral e continuamente entre a comédia e a tragédia. O narrador mais do que viajar nele mesmo, parece viajar de mulher em mulher, como um D. Juan. Mas aqui, neste livro, um D. Juan de papel, um D. Juan que ao invés de seduzir é continuamente seduzido e descartado. Mais do que uma viagem pelo Brasil, por uma pequeníssima parte do Brasil, que também é, evidentemente, é uma viagem pelo feminino, uma viagem pela necessidade de feminino que o narrador tem. E o leitor pressente, talvez erradamente, que ele só não fica numa das letras do abecedário, porque as letras o vão sucessivamente rejeitando. É um livro onde a fragilidade da natureza humana é exposta parágrafo a parágrafo. Não estamos apenas sós, estamos sós e já nem sequer fascinados por um resgate eficaz dessa solidão. Deixamos de acreditar, ao fazer do corpo o único deus que existe. E o Rio, talvez mais do que qualquer outra cidade, é a Meca do corpo. E é precisamente aqui que um homem, o narrador, busca um além-corpo, como um cristão em busca de Cristo na Meca do Médio Oriente. Se o livro é pontuado por paradoxos, quase à exaustão, este é o paradoxo leitmotiv do livro, que já o dissemos no início deste texto: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Depois de um fascinante vigésimo arrepio, em Búzios, onde o narrador reencontra Mariano, um argentino que conhecera cinco anos antes em San Sebastian – remetendo-nos para o seu primeiro livro Alcatrão – o vigésimo primeiro arrepio começa assim: “O abcedário deu a volta. Conheci a letra A. É das mulheres mais bonitas que vi na vida. (…) e dou-lhe a letra A, como quem diz que ela é ‘a mulher’. Ela, a A, a mulher que me cuspiu na cara, e a quem agradeço por isso.” (p. 89) Mas esta mulher, “a mulher”, ele conhece-a através da mãe, dona do hostel onde o narrador fica, em Itacuatiara, lugar das melhores ondas do Brasil, e através da mãe, com quem faz jejum de sete dias, começa a apaixonar-se por uma das filhas, que ainda não conhece. A mãe é Rosângela, macrobiótica convicta, depois de anos e anos nos ácidos. E o narrador escreve: “A partir do sétimo dia, diz a bíblia macro-biótica, os efeitos do jejum alastram-se à mente e ao espírito, curando problemas existências ou traumas, conspirando-se até que é possível chegar ao contacto com vidas passadas, à nossa alma e à amostra da divindade.” Quantos homens já não disseram à sua amada: por ti deixava de comer? Pois o narrador deste livro fá-lo mesmo, e por sete dias. Escreve: “Eu fi-lo para conquistar uma mulher, e o melhor de tudo é não ter conseguido.” (p. 113) Percebemos que o conjunto de poemas, intitulado “Jejum”, foram escritos durante essa provação (que palavra estranha para um jejum de sete dias). O último suspiro, o vigésimo quarto, é belo e triste como um azulejo gasto, onde através dele adivinhamos tudo o que foi, incrustados agora em tudo o que é.

Oi? é um livro belo e triste, uma trágico-comédia, como a própria vida, em que o narrador nos surge tantas vezes como alguém que vive a sua vida a brincar com bonecas, mas que ao invés de as partir, são elas que o partem. E, nesta sua forma de brincar, mostra-nos o mundo à volta dele e dos outros. O mundo à nossa volta. E como ele é grande e diverso, contrariamente ao que as frases que nunca saem de casa, nos dizem. Luís Brito escreve o seguinte, logo à página 25: “Se uma pessoa decidir viajar por causa dos meus livros, para curar angústias, tédios, depressões amorosas ou qualquer comichão inquieta, tudo isto valeu a pena.” E eu termino esta apresentação, parafraseando-o: se depois destas páginas, vocês sentirem vontade de ler o livro, este texto valeu a pena.

5 Dez 2017

OI, de Luís Brito

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]i é o quarto livro de Luís Brito. Três deles de prosa e um de poesia, embora este de poesia esteja dentro de um dos livros de prosa, precisamente o livro que aqui nos traz. Todos os três de prosa são livros imersos na vivência da viagem. O humano abre-se à viagem quando se abre ao outro. Abraçar o outro é começar a viagem. O livro está dividido em vinte e seis partes: vinte e quatro arrepios (é assim que o autor divide os capítulos, por arrepios) e dois interlúdios, um em prosa – “O Ser Português” – e outro em poesia – Jejum (e que teve entretanto uma edição autónoma pelas edições Tea For One).

Mas antes de falarmos sobre o livro, é necessário uma breve nota acerca do título do mesmo. “Oi”, que aqui para nós é apenas o modo como os brasileiros cumprimentam os outros, no Brasil é uma interjeição que pede explicação. Porque no Brasil há “oi” com e sem ponto de interrogação. E o livro refere-se ao “oi” com interrogação. Oi? Quer dizer exactamente, “desculpe, não entendi”. E o não estou a entender, pode ter várias razões: ou porque você está a ser indelicado, “mas o que é isso?”; ou porque você não se fez ouvir claramente, “pode repetir, por favor”; ou porque simplesmente o que você diz parece não fazer sentido, de tão estranho que parece, “pode explicar, por favor?” Oi? Por conseguinte, o autor deixa claro que se trata de um livro imerso no Brasil, na sua cultura, na sua perplexidade.

O livro começa no aeroporto de Lisboa e no de Madrid, muito cedo, de madrugada, quando os voos são mais baratos. E o narrador vai iniciar uma viagem ao Brasil com a sua ex-namorada, a X, com quem tinha já planeado e comprado os bilhetes muito tempo antes do tempo se fazer sentir. Agora a viagem, que deveria ser uma celebração, é uma tortura, uma espécie de pena a pagar. O narrador viaja com X, mas logo à saída do aeroporto de São Paulo, separam-se no táxi, depois dele a deixar em casa de familiares, e de ela o aconselhar a ir alojar-se num hostel em Vila Madalena. Ele está apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por ele. Separam-se no início do livro, e ele irá percorrer todas as páginas com ela na cabeça, com ela no coração, com ela na imaginação, que é o lugar aonde nunca se deve levar uma ex-mulher. Mas como se diz no Rio, “não tem tu, vai tu mesmo”. Ou na letra de uma canção When I need to replace her / I am a eraser / anything goês, repetida ao longo do livro, como um refrão do próprio livro. Começa aqui uma viagem das mais estranhas que, hoje em dia, um homem pode encetar: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Provavelmente todos os livros, desde a Ilíada e a Odisseia, dividem-se entre livros de vingança e guerra, por um lado, e livros de viagem por outro; embora os livros de amor sejam também livros de guerra ou de vingança, e livros de viagem. E neste livro de Luís Brito, que é um livro de viagem, estabelece-se logo desde o início um paralelismo entre a viagem e a relação amorosa. Já não se trata apenas do paralelismo entre a viagem e a aceitação do outro, como em Alcatrão, que é um modo de nos entendermos a nós, aqui a viagem encontra um outro modo de nos fazer ver mais sobre nó mesmos: o nós no outro.

Assim, as relações fortuitas, casuais, as “one night stand” são o modo de se ser turista e as relações duradoiras o modo de se ser viajante. Escreve logo na segunda página (página oito do livro): “O problema não és tu – sou eu –, ou o problema não sou eu, o problema é o mundo. É ele que nos torna incapazes de amar, ou talvez seja a pequenez asquerosa do nosso país que nos põe tão tristes e mesquinhos. Separações e divórcios trocados por envolvimentos efémeros. Shots de prazer que em nada compactuam com aquilo que deve ser uma vida a dois – paciência, perseverança, diálogo e caminho na infelicidade.”

Já desde Alcatrão, o seu primeiro livro, Luís Brito traça uma ontologia do ser viajante em contraposição ao ser turista, mas aqui vai mais longe. Neste seu livro, a viagem é muito mais interior do que exterior, as paisagens traçadas são mais subjectivas do que objectivas, são mais acerca do humano que escreve do que dos humanos que são “escritos”. Não no sentido de um auto-centramento, mas antes no reconhecimento de que o outro descrito é uma extensão nossa, ainda que se faça da própria vida uma contínua viagem pelo mundo. Assim, quanto mais o mundo estica, mais o humano encolhe. Podíamos ler à página 169, de Alcatrão, o seguinte: “Saídos de casa começamos por prestar vassalagem à diversidade.

Admiramos os tons de pele e as culturas, vivendo a excitação do incógnito e os choques dos momentos sempre novos. Depois, com o tempo e a prática, ganhamos profundidade na observação e desvendamos comportamentos mais parecidos com aqueles a que chamamos nossos.” Nesse livro, entendíamos o exercício de  viajar como uma tentativa de se perder de si mesmo, isto é, como um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos. Mas aqui, em Oi?, a viagem é a viagem no outro. E também aqui, nesta terra que nos perdemos e nos encontramos. E viajar é parar. Viajar é ter atenção.

Provavelmente, tudo aquilo que o turista evita, pois – escreve Brito, ainda na mesma página da anterior – “Não há nada mais terrível do que uma evidência erguida à nossa frente.” E esta evidência a que o autor se refere é a nossa própria existência, que assume contornos de factualidade na confrontação com o outro diante de nós, do outro em quem atentamos, realmente. Pois há na existência um tremendo paradoxo: a procura de alguém e a impossibilidade de ficar. Luís Brito começa o capítulo “Segundo Arrepio” com as seguintes palavras: “Porque nos juntamos em rebanhos? De quem estamos à procura quando nos pomos no meio da multidão?” Este ímpeto não é o da viagem, mas o do turista. Ir é o verbo turístico por excelência, ficar é o verbo do viajante. Só fica quem viajou, pois quem nunca partiu não fica, está ali agarrado ao lugar como uma árvore agarrada à terra onde foi plantada. Mas quem viaja, mais cedo ou mais tarde irá ficar em outro lugar.

Desde o início, o narrador está perdido. Perdido de amores e perdido no mundo. E Luís Brito – penso que aqui podemos estabelecer esta intimidade entre narrador e autor – não se perde nele mesmo, porque não há um ele mesmo onde se perder. Ele perde-se no mundo a cada instante, neste caso na noite paulista, vertiginosa, como no exemplo radical de David, um sem-abrigo que tinha sido internado num manicómio pela sua tia, de modo a ficar-lhe com a herança, e que lá, no manicómio, foi violado por um enfermeiro e contraiu HIV. É o Brasil “hardore”, que o põe a duvidar, não apenas de si mesmo, mas da sua existência: “David, o homem que parecia um judeu fugido de um campo de concentração, foi-se embora e eu fiquei sozinho em São Paulo. Se é real nunca saberei. Se eu próprio sou real, também é uma questão sem resposta. Por isso aqui está o livro.” (p. 24)

[continua]

28 Nov 2017