Ana Cristina Alves Via do MeioMeditando com Han Shan Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 27.09.2024 I António Graça de Abreu possui vasta obra poética publicada, entre os títulos destaco: China de Jade (1997), China de Seda (2001); Terra de Musgo e de Alegria (2005); China de Lótus (2006); Cálice de Neblinas e Silêncios (2008); A Cor das Cerejeiras (2010). O poeta e sinólogo é ainda tradutor de poesia clássica chinesa, tendo traduzido para português os seis maiores poetas da China: Li Bai (1990); Bai Juyi (1991); Wang Wei (1993); Han Shan (2009); Du Fu (2015) e Su Dongpo (2023). Lançou em setembro de 2024, em segunda edição, Han Shan Poemas寒山詩 (2024) com a Editora Grão-Falar, dirigida pelo Editor, Jornalista e Escritor Carlos Morais José. Em Han Shan Poemas寒山詩, António Graça de Abreu convida a visitar o mundo poético deste budista Chan, Zen no Japão. O poeta, cujo nome significa “Montanha Fria”, talvez tenha vivido no século VIII, durante o período áureo da dinastia Tang (618-906), tendo-nos brindado com uma meditação existencial única sobre o vazio. O Eremita da “Montanha Fria”, se acaso viveu no século VIII, ter-se-á cruzado, como sugere António Graça de Abreu no Prefácio à obra que traduziu, com os maiores vultos poéticos da dinastia Tang, quer dizer, Wang Wei, Li Bai e Du Fu. A verdade é que, tirando a lenda a seu respeito e do filho adotivo e irmão espiritual Shi De, pouco mais se sabe sobre ele. No entanto, a lenda tem a vantagem de nos alertar para o essencial quer da vida de Han Shan quer de Shi De, já que o poeta abandonou a mulher bonita que tinha, no sopé da Montanha Tai, na aldeia de Qinfeng, na província de Shandong, por acreditar que o coração dela pendia para o filho adotivo adolescente, Shi De; e este último ao perceber a confusão gerada foi procurar por muito tempo Han Shan até o encontrar no mosteiro budista de Han Shan em Suzhou para onde entraria também como monge. A atitude de ambos denota que o traço de união entre eles era a dedicação à religião Budista, dedicação essa vivida poeticamente por Han Shan. Este legaria um estilo poético budista Chan (禪 Chán), que seria transferido no Japão de Matsuo Bashô (1644-1694) para a forma Zen. Já antes na dinastia Song, o primeiro-ministro, poeta e letrado Wang Anshi (1021-1086) se referira à imitação necessária para os estetas crentes mas quase impossível do estilo poético de Han Shan, nas palavras apresentadas por Graça de Abreu “Procuramos a água e apenas ele encontrou a nascente” (Han Shan, Apud Abreu, 2024, 23). II Dos 311 poemas de Han Shan, 15 foram traduzidos por Graça de Abreu, tendo anteriormente 25 sido por Jacques Pimpaneau, adaptados na versão poética de Ana Hatherly para português. Qual é então o estilo que inspirou tantos poetas e anima os poemas de “Montanha Fria”? O estilo filosófico de Han Shan revela, antes de mais, o amor à natureza, que permite enquanto paisagem a concentração no essencial, o coração-mente (心 xīn), seguindo-se a par do elogio do vazio, contraponto a uma existência efémera, eivada de sofrimento, doença e morte, pelo que a meditação sobre o vazio, auxilia o coração-mente a cultivar uma atitude tranquila e desprendida das paixões e prazeres terrenos, bem como a suportar, com a paciência possível, às vezes com alguns desabafos, as dificuldades, limitações e desafios de uma vida curta, repleta de pobreza e frugalidade. O sentimento da brevidade da vida e o envelhecimento, magoam-no, sobretudo por comparação aos tempos de juventude. Apesar de toda a meditação, é perpassado por forças contraditórias, que expressa poeticamente, por exemplo, em as pessoas “São flores num dia de Primavera, /abrem de manhã, murcham ao entardecer” (Abreu, 2009, 12). Satiriza e crítica gente poderosa, rica e avarenta, apontando o tal caminho frugal, cultivado por taoistas e budistas, revelando ainda estranheza por certos monges budistas se apegarem a atitudes mundanas, denotadoras de valorização de bens materiais em lugar de se concentrarem em desenvolver a força espiritual que os poderá aproximar do Dharma, a lei de Buda. Os grandes oficiais, os ministros de estado, a quem os portugueses chamaram mandarins, são de igual modo satirizados e denunciados pela prepotência e injustiça com que exercem os seus cargos. Para chegar à conclusão de que “Hoje compreendo melhor: riquezas, honrarias, / o nome, a fama, tudo é inútil e vazio.” (Abreu, 2009, 16). O prefácio à obra, primorosamente organizado, encontra-se dividido em: apresentação biográfica do poeta, intitulada “Do poeta e da bruma”; “Da Poesia”; “Da Tradução” e “Conclusão”. No que respeita à tradução, a poesia de Han Shan, segundo nos informa o seu tradutor, não é das mais complicadas de traduzir, porque, por um lado, não se encontra repleta de sentidos figurativos e alusões históricas, por outro, utiliza uma linguagem simples e coloquial de modo a que possa ser entendida por todos. Os poemas, sem título, são na sua maioria Lǜshī律詩, 8 versos regulares compostos por cinco ou sete caracteres. As rimas são paralelas e tonais, com alternância entre os tons uniformes, e oblíquos, sendo na concordância tonal que o poeta terá recebido maiores críticas por parte dos letrados, com pouco fôlego poético e muita atenção às convenções. Quanto ao tradutor, confessa-se a trabalhar num registo de sombra cujo silêncio o ilumina (Abreu, 2024, 37). Considera ainda que a empatia com o poeta marca decisivamente os poemas a traduzir (Abreu, 2024,38), bem como “a busca de identidade cultural e afetiva entre o tradutor e o poeta a traduzir” (Abreu, 2024, 39). Considera-se ainda grato pelo seu trabalho não ser um percurso solitário, mas realizado em companhia da consorte, Wang Haiyuan e do velho amigo tradutor ao jeito dos letrados, Zhang Weimin, ilustre tradutor de Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões para Chinês. A rematar o Prefácio recorda como são importantes as traduções para manterem vivos os diálogos poéticos entre toda a humanidade. Assim, devido à tradução de Jacques Pimpaneau, com versão poética de Ana Hatherly, em 2003, e da sua própria tradução, publicada primeiro em 2009 e agora em 2024, o poeta Han Shan torna-se cada vez mais familiar dos leitores portugueses. III Esmiuçando a análise temática da poesia traduzida de Han Shan por António Graça de Abreu, comecemos pelo último poema da coletânea, o 155, uma quadra chinesa jueju (绝句 juéjù) sobre e, perdoe-se o paradoxo, vazio plenamente vivido pelo eremita na sua bela montanha fria: Habito a montanha, ninguém me conhece. Entre nuvens brancas, o silêncio, sempre o silêncio. 我居山 勿人識 白雲中 常寂寂 (Abreu, 2024, 158/9) Esta é a postura meditativa que todos os monges budistas procuram alcançar. Coexistir santamente na paisagem, com uma tranquilidade de espírito só possível pela fusão com a natureza, na contemplação silenciosa das nuvens brancas, tal como se ele próprio ao habitar na montanha tivesse incorporado as suas características, ao jeito do trigrama “Montanha” (艮gěn) do Clássico das Mutações (《易经》) fazendo crescer em si, a força, a solidez e a firmeza necessárias a uma postura exteriormente imóvel, mas que desenvolve a máxima energia a partir do seu interior, porque a viagem na montanha é mental. O corpo permanece no mesmo lugar, enquanto o espírito do eremita procura o domínio que lhe pertence e o vazio iluminante, recetivo e compreensivo de todos os males que afligem os seres vivos a nadar num mar de sofrimento até que a força da mente os liberte. Como adverte no poema numerado por Graça de Abreu 154, no qual declara ter mais de 100 anos, não se deve usar o coração para alcançar a “vã glória” mundana, já que ela arrasta inúmeros desejos fatais às pessoas “Quando se usa o coração para renome e fama/ entram no corpo cem diferentes desejos” (心神用盡為名利/百种貪婪進己軀) (Abreu, 2024, 158/9). Aconselha o monge que o coração das pessoas seja tão vazio quanto possível, mas não indiferente aos outros, eis a grande distância entre as pessoas que vivem sem pensar, nem em si nem nos outros, e os monges, como o poeta, atentos ao fluir da existência e ao auxílio e libertação de todos das amarras que mantêm, segundo a filosofia budista Chan, os seres humanos prisioneiros sem de facto estarem encarcerados numa prisão física. Estes podem até mover-se, aparentemente de uma forma livre, mas na realidade são cativos dos múltiplos desejos com que enchem e enfrenesiam as suas vidas e as alheias, pelo que o melhor é o despojamento meditativo que conduz a uma existência simples e desprendida. Esta é a via certa, a da libertação das manchas e poeira do mundo, a única que apazigua o coração, em comunhão profunda com a falésia, a névoa, o arroio e porque o faz, sabemos o que sente no poema 154 “No meu corpo nem manchas, nem poeiras, /no meu coração nem traço de inquietude.” (身上無塵垢,/心中那更憂。) (Ibidem). O poeta não é insensível à beleza feminina das meninas, das flores e dos elementos naturais, mas a consciência da efemeridade da felicidade, que não passa de breves momentos em longas existências, às vezes mais de cem anos, como talvez a dele, condu-lo ao distanciamento dos prazeres da vida, como nos informa no poema 152 relativamente à brevidade do riso e gozo, que encaminham inexoravelmente para o choro e sofrimento. Só por meio da meditação é então possível relativizar as forças positiva e negativa em ação, equilibrando-as de uma forma tensional, onde a ponderação da vacuidade da existência fenomenal é decisiva ao bem-estar espiritual do poeta, já que as necessidades e carências corpóreas são supridas pela harmonia no coração-mente em contacto com o incenso exalado pela resina do pinheiro e pelos rebentos do cipreste, de acordo com o poema 150, “Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,/harmonia no coração, encostado às rochas” (飢餐一粒加陀藥,/ 心地調和倚石頭) (Abreu, 2024, 156-157). Pode e deve estar silencioso e tranquilo “o coração como a lua de outono/ reflexo imaculado num lago esmeralda” (吾心似秋月/碧潭清皎洁) (Abreu, 2024, 53). O ideal de muitos eremitas, de Han Shan em particular, é conseguir afastar-se e descansar dos males do mundo, num lugar abençoado pela beleza natural, propício, por isso, à manifestação da força espiritual, na única companhia dos elementos naturais e dos textos sagrados, incluindo os dos poetas do passado e sobre imortais, assim alcança a energia, que se esconde se transferida para a sociedade humana, impelida pelos ventos fortes das paixões individuais. Aqui fica a confissão de bem-estar de Han Shan, no poema 8: Desejei um lugar para descansar, a Montanha Fria deu serenidade. Um vento leve sopra entre os pinheiros, de perto ouve-se melhor a canção da brisa. Sob as árvores, um homem de cabelos brancos recita velhos textos taoístas. Não deixo este lugar há já dez anos, esqueci o caminho por onde vim. 欲得安身處 寒山可長保 微風吹幽松 近听聲逾好 下有斑白人 喃喃讀黃老 十年歸不得 忘卻來時道 (Abreu, 2024, 54/5) Que melhor sítio para envelhecer do que este entre montanhas e penhascos, rios e lagos, acompanhado pela suave brisa ou pelo canto dos pássaros, aprendendo a escutar a voz da natureza em todas as estações, das mais suaves e convidativas às agrestes, estas últimas, úteis para despertar a força de vontade e a resistência a um mundo ilusório que, apesar da sua inexistência em termos da verdadeira realidade, deixa marcas, que doem e transtornam os corações, tumultuando-os como se em lugar de ventos suaves soprassem no interior impiedosos tufões. Enquanto os contrastes e oposições naturais produzem beleza, como as negras rochas e as nuvens brancas de que nos fala o poema ou, ainda, o salto imprevisível das estações da Primavera diretamente para o Outono, o certo é que os conflitos e oposições ao nível humano causam feridas profundas, por vezes insanáveis, pelo que o eu poético confessa a sua preferência por um fluir sossegado dos dias sem confrontos dilacerantes para o seu coração. Prefere então suportar os rigores de uma montanha de que o gelo não se aparta, nem mesmo no Verão. Dada a opção, terá de seguir uma vida frugal, satisfazendo apenas as necessidades alimentares básicas, pelo que sobrevive dos frutos que a dadivosa mãe-natureza coloca ao seu dispor, por isso explicita no poema 10, “Retirado na Montanha Fria, /Alimento-me de frutos da montanha” (一自遁寒山/養命餐山果) (Ibidem). Tal não significa que o eu poético não tenha momentos de desalento e de humana solidão, isso sucede quando se deixa vencer pelo cansaço e pelo sentimento da fugacidade da existência, como confessa no final do poema 27: “O tempo foge, os cabelos brancos, tão brancos,/ o ano acaba e eu velho triste, tão triste”( 時催鬢颯颯/歲盡老颯颯) (Abreu, 2024, 70/1) Já no tempo de Han Shan, presumivelmente o século VIII da dinastia Tang, o mais importante para muitos senhores de então era o dinheiro, como explica nos últimos verso do poema 41: “mais importante que tudo é o dinheiro (愿君似今日/錢是急事爾)(Abreu, 2024,80/1)”, a valorização dos bens materiais que o eu poético constata parece ser uma constante de todos os tempos em pessoas apenas concentradas nos interesses mundanos, que não conseguem entender que existem outras necessidades para além das físicas, tão importantes como estas e apenas alcançáveis pela via da meditação. Pois para lutar contra os vãos desejos do mundo, o conselho dado ao sábio é: “como arma, leva apenas a espada da sabedoria,”( 常持智慧剑) (Abreu, 2024, 82/3), ele sabe que tudo o que é necessário para se viver bem se encontra nos cinco elementos Wu Yin (五陰Wǔ Yīn ) do Budismo Mayahana (Grande Veículo) : a forma, a sensibilidade, a perceção, a vontade e a consciência, essenciais na compreensão da pobreza e do vazio existenciais, mas ainda de uma certa leveza de um corpo tornado quase espírito na Montanha Fria, como se lê nos últimos versos do poema 63 “Um vento cortante, a lua fria como gelo,/ o meu corpo, um grou solitário voando” (寒月冷颼颼/身似孤飛鶴) (Abreu, 2024, 94/5). Por fim, um conselho de estética religiosa que o eu poético deixa a todos os seus leitores no poema 64, naturalmente a seguir, porque a poesia é a música das palavras que vai direta ao coração-buda: Em casa, ter poemas de Han Shan é melhor do que ler sutras. Escrevam os poemas num biombo e olhem-nos, de vez em quando. 家有寒山詩 胜汝看經卷 書放屏風上 時時看一遍 (Ibidem) Bibliografia Abreu, António Graça de (Org. e Trad.). 2024. Han Shan Poemas寒山詩. Lisboa: Grão-Falar. Hatherly, Ana (Adapt.). O Vagabundo do Dharma. 25 poemas de Han-Shan. Tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly e caligrafias de Li Kwok-Wing.
Hoje Macau Via do MeioHan Shan – Os poemas da Montanha Fria Tradução de António Graça de Abreu 141 Vivo algures numa aldeia, no campo, não tenho pai, não tenho mãe. Não tenho nome, nem família ilustre, chamam-me “velho Zhang” ou “velho Wang”. Ninguém me ensina coisa alguma, pobre e simples, tal foi o meu destino. No coração, gosto muito da verdade, firme e sólida como um diamante. 142 O tempo passou por aqui, regresso hoje, após setenta anos. Velhos amigos, já nenhum me visita, foram enterrados em túmulos antigos. Hoje, os cabelos todos brancos, mas guardo ainda as nuvens da montanha. Que posso ensinar aos homens do futuro? Apenas palavras do passado. 143 É sagaz o espírito do homem superior, ouve, conhece a essência das coisas. É claro o espírito do homem mediano, pensa, entende o que é necessário. É lento o espírito do homem inferior, difícil penetrar num crânio entorpecido, só quando o sangue lhe sobe às meninges, compreende como foi demasiado longe. Surpreendidos, todos olham o culpado, no julgamento amontoa-se o povo da cidade. Condenado, o cadáver é tratado como lixo, ninguém tem mais nada a dizer. Rapazes, gente crescida, um golpe e cortam o corpo em dois, Um rosto de homem, um coração de animal. Quando terminarão estes negócios? 144 Alcandorado nas rochas, num lugar secreto, escondido, impossível de descrever. Não há vento, as lianas agitam-se, não há névoa, os bambus envoltos em bruma. Os regatos cantam, mas para quem? De súbito, na montanha, rolos e rolos de nuvens. Ao meio-dia sentado na minha cabana, para sentir o sol subindo no espaço. 145 Vejo os homens do mundo, perdidos, calcorreando os caminhos da poeira, sem entender por onde vão, nem como abandonar as rotas sem regresso. Os dias felizes, quantos, no fim de contas? os parentes, os amigos, tudo tão de passagem… Mesmo diante de mil medidas de ouro é melhor ser pobre, sob os pinheiros. 146 O lucro, a fama, o teu coração exausto, cem vezes envolvido pela cobiça. O acender de um pavio, a ilusão de passagem, em breve serás enterrado no desconforto de um túmulo. 147 A cadeia de montanhas, as águas soberbas, a névoa escondendo o horizonte verde. O vento acaricia, humedece o meu chapéu, o orvalho entra no meu casacão de palha. Nos pés, as sandálias gastas do viandante, na mão, um velho bastão de junco. Ao longe, olho ainda esse mundo de poeira e ilusão, o sonho, o que tem a ver comigo?… 148 Recordo os dias da minha juventude, caçando tantas vezes junto a Pingling. Não era do meu gosto vir a ser mandarim, buscar a imortalidade, também não me agradava. Quase voava no meu corcel branco, gritando atrás de lebres, soltando o meu falcão cinzento, ignorava que um dia conheceria o exílio. Agora, os cabelos todos brancos, quem cuidará de mim?… 149 Nuvens, as montanhas entram pelo azul do céu, um caminho afastado, a floresta densa, ninguém de visita. De longe, a lua solitária, iluminada e pura, de perto, o esvoaçar, o chilrear dos pássaros. Velho, sentado, diante de cumes verdejantes, nostálgico e tranquilo, no planalto entre os montes, Os cabelos brancos, o ano passado, hoje, o coração livre, como uma onda correndo para leste. 150 Solitário, sentado diante da falésia, a lua redonda ilumina todo o céu. Dez mil coisas mostram-se ao luar, naturais, sem nenhum disfarce. O espírito claro, a essência do simples, abraço o vazio, atravesso o mistério. Um dedo aponta a lua, lá longe, a lua, no meio do coração. 151 Há quantos anos habito na Montanha Fria, despreocupado, cantando, livre de todas as penas? A cancela sempre aberta para o silêncio, o mistério, doces, as águas do ribeiro, sussurando. As lages da sala, no chão um caldeiro com cinábrio, resinas de pinheiro, incenso, rebentos de cipreste. Tenho fome, uma bolinha desta panaceia, harmonia no coração, encostado às rochas. 152 A falésia fria, na essência, sempre bom, ninguém atravessa estes caminhos. Nuvens brancas ao acaso pelos montes, cumes azuis, guinchos dos macacos, na distância. Não mais parentes e amigos, sigo o curso dos dias, vou envelhecendo. Forma e conteúdo, frio e calor, tudo muda, imutável uma pérola no coração. 153 Encontrei uma menina na casa do leste, ainda não completara dezoito anos. A oeste, todos os homens a queriam p’ra si, combinou-se uma boda, houve um casamento. Assaram-se carneiros, mais de mil convidados morderam a carne, saciaram a gula. Tão felizes, riam de alegria, chegará um dia a colheita das lágrimas. 154 Hoje, sentado diante da falésia, sentado até ao levantar da névoa. Um simples arroio frio de cristal, a dez léguas, ainda os cumes e picos de jade. Imóveis as sombras das nuvens ao nascer o dia, o luar da noite ainda flutua no vazio. No meu corpo nem manchas, nem poeiras, no meu coração nem traço de inquietude. 155 Velho, doente, perto do fim, mais de cem anos, rosto amarelo, cabelos, brancos, ainda adoro a montanha! O corpo coberto de peles, sigo o meu destino, afastado de vez das seduções do mundo. Quando se usa o coração para renome e fama entram no corpo cem diferentes desejos. Esvoaça a vida, extingue-se a candeia, dissipa-se a ilusão, no túmulo, enterrado o corpo, temos o não ter. 156 Habito a montanha, ninguém me conhece. Entre nuvens brancas, o silêncio, sempre o silêncio.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasO Poeta da Montanha Fria – Liu Qiuyin Porquê questionar as gotas de orvalho, o sol nasce, elas transformam-se em névoa. O corpo não é um palácio, mas uma simples estalagem. Por isso tu, hóspede de passagem, liberta-te da paixão, da ignorância, do ódio. O que resta depois? A mágoa, a iluminação, uma gota de orvalho, rigorosamente nada. O homem que um dia se chamou Han Shan, ninguém sabe quem foi. Quando alguém o via, considerava-o um doido, um pobre diabo. Vivia retirado na montanha Tiantai, sete léguas a oeste do distrito de Tangxing, num lugar chamado Han Shan (Montanha Fria), entre rochas e falésias. Daí descia frequentemente para o templo de Guoqing, ao encontro do seu amigo Shi De, encarregado da limpeza da cozinha do mosteiro que lhe guardava restos de comida em malgas feitas com cana de bambu. Han Shan costumava passear-se pelos terraços do templo, gritava de alegria, falava e ria sozinho. Os monges corriam atrás dele, tentavam agarrá-lo, insultavam-no, às vezes queriam bater-lhe. Então Han Shan assumia outra vez um comportamento normal, esfregava as mãos, sorria e partia. Parecia um verdadeiro mendigo. O corpo e o rosto estavam gastos, consumidos pelos anos, no entanto havia coerência nas suas palavras e bastava pensar no discurso de Han Shan para adivinhar ideias profundas. Tudo o que dizia tinha a ver com os segredos do passado, com o subtil princípio das coisas. O seu chapéu era uma casca de bétula, as suas roupas estavam cheias de buracos e usava tamancos de madeira muito gastos. Assim vivia este homem extraordinário, afável, isolado, diluído na natureza, espalhando bom gosto. Nos terraços do mosteiro murmurava palavras surpreendentes como “a transmigração e os três mundos”. Nas aldeias e herdades próximas, Han Shan cantava e brincava com as crianças que pastoreavam os búfalos de água. Quer as coisas lhe corressem bem, quer as coisas lhe corressem mal, mostrava-se sempre satisfeito. Se não estávamos na presença de um sábio, então como reconhecer um sábio?… Há tempos atrás, quando ainda não ouvira falar em Han Shan, fui nomeado para um posto pouco importante na prefeitura de Tanqiu. Na altura da partida apareceram-me umas terríveis enxaquecas. Chamei um curandeiro que me tratou, mas os padecimentos agravaram-se. Atendendo à minha solicitação, veio então um mestre chan 禅 de nome Feng Gan que me disse habitar no templo de Guoqing, na montanha Tiantai. O monge Feng Gan cantava hinos e costumava cavalgar um tigre, o que assustava os outros monges. Quando lhe perguntavam qual era a essência dos ensinamentos de Buda, o mestre respondia: “Seguir o tempo.” Pedi-lhe então que tratasse da minha enfermidade. Feng Gan sorriu e disse: “Os quatro elementos estão no seu corpo, a doença provém da ilusão. Se vos quereis libertar da moléstia é preciso simplesmente água pura.” Trouxeram água e o mestre despejou-a sobre mim. Pouco tempo depois as enxaquecas desapareceram. Feng Gan acrescentou: “A prefeitura de Tanqiu fica junto ao mar, perto das ilhas no meio do oceano, o clima é muito húmido. Ao chegar, cuidai bem de vós.” Perguntei-lhe: “Gostava de saber se existem alguns sábios na região, pessoas que eu possa considerar como meus mestres”. Feng Gan respondeu: “Os sábios são fáceis de encontrar, difíceis de reconhecer. Quando a gente os vê, não os reconhece, quando a gente os reconhece, não os vê. Se quereis mesmo vê-los, não confiai nas aparências. Podereis então olhar para eles. Han Shan é como Manjusri,[1] escondido no templo de Guoqing, por sua vez, Shi De é como Samatabhadra.[2] Ambos parecem uns pobres diabos, uns doidos. Chegam e desaparecem, trabalham no templo de Guoqing, cuidam dos fogões, da cozinha.” O mestre acabou de falar, pediu licença para se retirar e partiu. Chegou a altura de ser eu a meter pés ao caminho, rumo ao meu posto em Tanqiu. Não esqueci o assunto e, três dias depois de entrar em funções, dirigi-me a um templo próximo e interroguei respeitosamente um velho monge. O que me respondeu, correspondia exactamente às palavras do mestre Feng Gan. Dei então ordens para que, em todo o distrito de Tangxing, se tentasse encontrar Han Shan e Shi De. O mandarim distrital disse-me: “Quinze léguas a oeste da nossa prefeitura encontra-se uma falésia enorme onde existe uma gruta habitada por um vagabundo que visita frequentemente o templo de Guoqing. Às vezes passa lá a noite. Na cozinha do mosteiro trabalha um monge parecido com ele, de nome Shi De.” Decidi então dirigir-me para Guoqing. Ao chegar perguntei: “Este templo é habitado por um mestre chan chamado Feng Gan. Onde se encontra o seu quarto? Vivem também aqui os monges Han Shan e Shi De, como é que eu os posso encontrar?” Um religioso de nome Tao Jiao respondeu: “O quarto do mestre Feng Gan fica por detrás da biblioteca, mas neste momento ninguém habita lá e de vez em quando ouvimos os rugidos de um tigre. Han Shan e Shi De estão agora na cozinha.” Em seguida, o mestre conduziu-me ao quarto de Feng Gan. Abriu a porta e não havia ninguém, viam-se apenas as pegadas de um tigre. Perguntei aos monges Tao Jiao e Pao De: “Quando o mestre se encontra aqui, o que faz?” Deram-me a seguinte resposta: “Durante o dia, Feng Gan anda por aí, recolhendo e descascando arroz, à noite canta para se distrair.” Dirigi-me depois para a cozinha. Diante do fogão dois indivíduos aqueciam-se e riam às gargalhadas, os rostos iluminados pelo fogo. Saudei-os respeitosamente. Deram um grito, apertaram as mãos e começaram outra vez a rir. Um deles disse: “Ah, o Feng Gan, esse grande coscuvilheiro! Se o senhor não é capaz de reconhecer um Amithaba[3] porque nos veio cumprimentar?” Aproximaram-se outros monges surpreendidos com a estranha situação de um mandarim saudar e conversar com aqueles pobres diabos. Han Shan e Shi De aproveitaram para fugir. Ainda pedi que alguém fosse no seu encalço, mas os dois homens já tinham desaparecido a caminho da Montanha Fria. Perguntei depois aos monges se eles estariam dispostos a alojar as duas criaturas permanentemente no mosteiro. Foram preparados dois quartos para eles e pedi que alguém lhes fosse comunicar o meu desejo de se instalarem de vez no templo de Guoqing. De regresso à prefeitura, dei ordens para que fossem feitas roupas novas para Han Shan e Shi De e que as mesmas lhes fossem entregues, junto com pauzinhos de incenso. Os dois homens não haviam regressado mais ao templo e os meus criados levaram as vestes e o incenso para a Montanha Fria. Quando lá chegaram, Han Shan gritou: “Ladrões, ladrões!” E entrou numa gruta. Antes de desaparecer, pronunciou estas últimas palavras: “Digo-vos, segui os ensinamentos de Buda.” Depois foi impossível acompanhar os seus passos. O rasto de Han Shan tinha desaparecido. Por fim, solicitei ao monge Tao Jiao que tentasse saber algo mais sobre os dois homens e que recolhesse os poemas de Han Shan. O homem da Montanha Fria escrevera pouco mais de trezentos poemas que gravara em lâminas de bambu, na casca das árvores, nas rochas, em muros de aldeias. Shi De escrevera os seus poemas nas paredes do templo. Tudo foi então compilado e organizado em livro. O meu coração procurou o refúgio de Buda. Tive a sorte de encontrar os homens do Tao. *Governador de Taizhou Pilar superior do Império Portador da insígnia do peixe, dom do Imperador, guardado num estojo vermelho (Séc. IX) Tradução e notas de António Graça de Abreu
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasImpermanência É ela a grande dama do chá «Anicca», um conceito a que se juntam dois outros e que nos fala de mutação, essa constante do universo na melhor acepção budista que assenta na fluidez e no vínculo temporal que mantemos com as coisas e a consciência; ela pode ser até a porta giratória para as várias situações que ao serem interrompidas, se esgotam, morrendo, ou voltam mais tarde de outra maneira, não havendo o caminho linear que produza ditame último. Talvez tudo deixe de existir quando não fizer sentido, que o sentido do universo será essa forma de ” bailya d´amor” associado ao fluxo do tempo que passa. Este maravilhoso princípio aplica-se a tudo, e não será de mais lembrar « o banhar nas mesmas águas» que manteve para sempre jovens os filósofos gregos, onde mais tarde dogmas vários foram abrindo fissuras para essa capacidade de se conseguir estar vivo por sucessivos fenómenos que transpõem o fim de considerados limites: aqui a morte entra no conceito, não como términus, mas ainda como processo constante de dádiva permanente, e é bem por esta perspectiva que o fluxo das coisas deve ser constante, que o mesmo universo de movimento vasto deverá ser um só e único Poema num verso que aqui se integra condensado. UNI(VERSO). Os dramas agarram-nos como âncoras, e quando reparamos, sabemos que interrompemos o ciclo fluvial das marés e questionamos os pescadores sobre o canto de amor das baleias, que eles pensam ser sereias, sentindo-se atraídos para o mar profundo pela melodia cuja princípio fluído desconhecemos em nós. Esta imponderabilidade é mãe de lendas e narrativas, encanto que não devemos incapacitar pela sorte artificial dos bens terrenos agarrados a férreas estratégias de fixação. Que a terra dura, se refaz, e se transmuta tão insistentemente como qualquer outro elemento prendendo aos mastros os Ulisses, e embarcando-os em todas as «Naus a Haver», que em nós, nunca repousa a dúvida nem permanece o estanque sentido da certeza; não há certeza, ainda assim habitamos em tudo. De repente, a vida não quer que a nossa própria vida caminhe pela rota traçada, e traçamos mais caminhos cujo futuro desconhecemos – que o futuro se esconde enquanto o olhar de ontem permanece imóvel- e ao não controlarmos coisa nenhuma deixamos todo o espaço de uma fonte, vazia, para requerer a sua habitação, mudando-nos na via da composição como uma outra qualquer estrela. Nunca saberemos quem vamos encontrar, ou melhor, integrar, que o encontro, marca já o desencontro, mas na integração não existe mais a chacina da ruptura. A Desfiguração, esse gigante imanente a toda a nossa produção da ideia moderna, não entra aqui. Não se está alinhado aleatoriamente compondo um sucessivo historial de coisas na vertente do ego, não morando portanto nesta inqualificável unidade que se diria inefável a todo o sábio budista, que para tal leveza teve de ter toda a disciplina de uma vida, mas onde podemos recorrer a algumas semelhanças mesmo na mudança de rumo que vemos flutuar entre as duas injuções. – Mutável, não é mutante, diferente, pode acabar por ser igual, mas unido, é um algoritmo que transcende a base de dados até do espectro virtual. – É belíssima a capacidade oriental de saber contemplar o cálice vazio! Mas, vazio de quê? Esta pergunta separa-nos para sempre, que velozmente as nossas sociedades perdem também a sua dinâmica de “cálice cheio”. E cheio de quê? [Quem estava antes virá depois, quem estava longe estará presente, quem acreditou será traído, quem venceu será derrotado] por instantes tudo parecerá a antítese dos construtores de verdades, mas quem trilhou o caminho do meio estará ausente das consequências finais. No centro não há princípio nem fim, o Cabo das Tormentas engloba as escusas que fizemos a um tal encaminhamento, crendo-nos o centro de uma centralidade indevida manchada por exaustivas imprudências de contemplação. Entre «Encontrado» e «Encoberto» prolonga-se na vida o silêncio escuro da paz, que a luz faz desaparecer a escrita terrena que cega os seres que não sabem da leitura para além de seu limitado alfabeto. Que nesta impermanência, toda a luz sobeja. Ela que nos queimou os manuscritos não resguardados e nos fez soletrar a treva sem a disciplina para o nada da imponderável manifestação. Digo, esquecimento. «…. Quem consegue desligar-se do mundo E sentar-se comigo no meio das nuvens brancas? Han Shan