O dia da grande dança

[dropcap]J[/dropcap]á se passou muito tempo e isso nota-se. Sobretudo à noite, quando algumas pessoas vagueiam pelas ruas meio perdidas, perscrutando numa incredulidade que se renova a cada olhar a porta teimosamente fechada do bar onde, noite fora, diluíam às feridas no álcool até da dor restar apenas uma vaga memória a que regressariam somente no dia seguinte. Estranho paradoxo destes estranhos tempos: o álcool nas mãos impede a propagação do vírus; no bucho, fomenta-a.

Também eu sinto falta da amizade desordeira e de regá-la até a algazarra ganhar um sentido a que apenas os iniciados têm acesso. A normalidade, ou o que quer que isto seja, voltou manca de onde quer que tenha estado. Embora tenhamos regressado ao dia-a-dia e às suas coisas, falta-lhes densidade e, sobretudo, diversidade. Esta normalidade é como entrar a medo na casa recém-assaltada e reparar que está tudo mais ou menos no sítio menos o que era essencial para dispersar temporariamente as tragédias que se vão acumulando.

Na rua organizam-se como se pode pequenos convívios. Os minimercados indianos, obrigados a fechar às oito da noite, mantêm a porta encostada depois da hora e pela frincha vão passando garrafas de cerveja que as pessoas recebem num murmúrio agradecido. Há uma certa clandestinidade em quase tudo: nas pessoas que se juntam em número maior do que o permitido ou o aconselhado para jantar em casa de alguém, naqueles procuram um restaurante que lhes venda umas médias porque o indiano da rua já foi ou tem medo de ser multado por estar aberto depois da hora a que estava obrigado a encerrar. Beber depois das oito da noite tornou-se um acto discretamente revolucionário.

Dançar é ainda mais difícil. As discotecas serão provavelmente os últimos sítios a abrir. Nota-se um pouco por todo o lado a ressaca dessa pouca catarse a que nos habituámos. Eu vejo a dança a insinuar-se no quotidiano das pessoas e nos seus gestos mais simples. Vejo-a na forma como as mãos se movimentam a entregar dinheiro e a receber troco; vejo-a na maneira como as pessoas abanam quase imperceptivelmente a cabeça ao som dos ritmos do trânsito na paragem do autocarro; vejo-a quando as pessoas, depois de meia dúzia de cervejas, fecham os olhos e batem compassadamente com a ponta do pé no chão, atentos à música que só eles ouvem. Há pessoas para quem a dança é uma coisa estranha que acontece nos outros. E há pessoas que precisam de dançar até deixar no chão da pista o rebanho de demónios variáveis que carregam diariamente às costas. Eu preciso dançar.

A nossa contemporaneidade, muito salubre e bem-comportada, propõe que possamos viver mais tempo e com melhor qualidade se evitarmos o excesso. Há toda uma ética da preservação ideal do indivíduo, da sua mente e do seu corpo, mediante a qual se desvaloriza quem preferiu os shots de tequila nocturnos aos batidos de açaí ao pequeno-almoço. O fumador é absolutamente desprezado. Para alguns, nem deveria merecer cuidados médicos quando na roleta do cancro lhe calhar garganta, boca ou pulmão. Eu bebo, e fumo, e danço. Provavelmente a minha passagem por aqui será mais breve do que a do meu compatriota vegano que mete no bucho seis horas de ginásio por semana. Dançar é o meu ginásio. O meu templo. Não sei quando acabará esta semi-vida a que estamos obrigados. Mas sei como se celebrará esse dia. A dançar.

10 Jul 2020