As Garras do absurdo

Buzzati, Dino, O Deserto dos Tártaros, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2008

Descritores: Literatura Italiana, Romance, Absurdo, 254 páginas, ISBN: 9789896230999

Cota: 821.131.1-31 Buz

 

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ino Buzzati Traverso nasceu em San Pellegrino di Belluno16 de outubro de 1906 e faleceu em Milão no dia  28 de janeiro de 1972. Todas as biografias sobre Buzzati exacerbam a obra O Deserto dos Tártaros, mas eu penso que, sem o mínimo menosprezo por esta obra genial, não pode descurar-se a excelência do autor nas narrativas curtas. Dino Buzzati é um contista com um estilo inconfundível, através da exploração de uma visão fantástica e absurda do real. Podia, se quisesse, lembrar inúmeros contos de Buzzati absolutamente exemplares dentro do género, pois os fixei para sempre e atrever-me-ia a recomendar a compilação designada por Z como uma das melhores colecções de contos que alguma vez pude ler. Em 1924 ele entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de Milão, onde seu pai já ensinara. Quando já estava para terminar o curso de direito, aos 22 anos, tornou-se jornalista do jornal milanês Corriere della Sera, onde permaneceria até à morte. É comum dizer que a profissão de jornalista teve forte influência sobre os seus escritos, onde conseguia combinar de modo exemplar o fantástico com o realismo e rigor da prosa jornalística. Foi logo após a guerra, em 1940, que publicou a sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros, através da qual alcançou fama mundial.

Entre muitas leituras possíveis este romance é também sobre o sentido da vida e o apelo do timós (timoz) que muitas vezes são interdependentes, enfim a velha luta pelo reconhecimento, contra a banalidade e o vazio. Dar um sentido à vida já pressupõe esse tonus espiritual. Parece que Giovanni Drago está decidido a conferir um sentido, e um sentido elevado, grandioso, à sua vida, embora ao princípio até nem pareça estar muito determinado. Dino Buzzati não trata a personagem como se esta fosse correlata de um ser obstinado, decidido e plenamente convencido de si mesmo. Portanto, quando se encaminha para a Fortaleza Bastiani, o tenente Drago não parece ir à procura de glória e sobretudo animado por um espírito belicista exemplar. Pelo contrário, está corroído por dúvidas e até mais voltado para a ideia de regressar à cidade o mais depressa possível. Depois sim, Drago deixa-se enredar, ainda que não seja muito claro no seu espírito aquilo que o enreda e vai prendendo à Fortaleza Bastiani. A mim parece-me que o texto é mais sobre o absurdo, com as suas garras próprias. As garras do absurdo não são como tenazes sólidas que prendem ou agarram, são mais como a trama das teias de aranha e um pouco gelatinosas às quais os objectos ou os seres se vão colando e deixando prender, impotentes para se desenvencilhar, contudo a força aqui não terá nunca um papel importante, mas antes a astúcia e a determinação do carácter. Giovanni Drago é um pouco abúlico, não sabe muito bem o que quer e isto para resistir às armadilhas viscosas da vida é quase sempre fatal. A partir de certa altura Drago resigna-se a esperar aquilo que não desejava no início mas que agora se torna a única justificação. Ele espera porque já não tem coragem para romper com o visco do hábito e do quotidiano, quiçá contra a acédia que se insinua na banalidade existencial em que a sua vida se vai transformando. Só então o evento que se espera aparece como salvífico. Este pormenor faz toda a diferença, até no plano ideológico, a meu ver. Buzzati não é um belicista.

Quando afinal o que parecia puramente absurdo está em vias de acontecer de facto, isto é, a chegada dos tártaros, “Drogo já velho e doente é dispensado pelo novo comandante do forte. E no seu regresso à cidade, morre numa pousada, só e abandonado”. Abandonado de tudo, é bom que se diga.

O romance O Deserto dos Tártaros deixa-se ler muito bem, interpretativa e criticamente, a partir das análises denotativas e conotativas dos semantemas do título e tanto num plano semiológico como hermenêutico. Em boa verdade os termos ‘Deserto’ e ‘Tártaro’, são riquíssimos ao ponto de obviamente pensarmos que Dino Buzzati os escolheu intencionalmente, e nem me atrevo a dizer, terá escolhido; pois o carácter dubitativo do futuro do presente composto, neste caso, me pareceria um desrespeito.

O deserto pelo seu carácter de descampado e ermo, onde o ser se sente naturalmente solitário e onde portanto sente mais do que em qualquer outro lugar a solidão, a solidão purgativa e reconstituinte, mas também expiadora, torna o cenário propício mas ambivalente, pois o deserto também pode ser apenas estéril e vazio, onde portanto a escassez obriga o ser a povoar artificialmente, não raras vezes com o pensamento. Se por um lado a extensão indiferenciada dos desertos estimula a evasão ou a procura do sentido, por outro lado pode também anular o ser numa indiferenciação ontológica homóloga.

Para além disso o semantema “Tártaro” tem uma dimensão étnico-cultural complexa e não linear. Os tártaros não são os mongóis, mas aparecem intimamente associados na história aos mongóis através do neto de Gengis Khan, aquando da invasão da Europa, e essa conotação possui um carácter de grande relação com violência e crueldade. Veja-se por exemplo, o Andrey Rublev de Tarkovsky. Finalmente o Tártaro é também na mitologia greco-latina, e é esta a dimensão que mais me interessa, sinónimo de Inferno.

O Tártaro é a personificação do mundo inferior; pior ainda do que o Hades, pois se este é o lugar reservado aos humanos, aquele é reservado aos deuses inferiores como cronos, ou essas figuras ambíguas que foram os titãs, mas que se sabe que desempenham na mitologia o clímax da ubris e portanto da máxima heresia, comum a todos os que aspiram a ser heróis, isto é aparentados aos deuses.

Há no nosso herói a partir de certa altura o esboço de uma ambição incontrolável, que se aparenta à ubris, mas e essa é a modernidade marcante do romance, uma ubris que se apresenta como falência da vontade e não como manifestação de hipervoluntarismo e se há uma cegueira irracional por um ideal excessivo de grandeza ele apresenta-se com os sinais da indolência, da preguiça e da acédia. Não é nunca titânica.

Há associações que fazemos inexplicavelmente, à partida sem grandes justificações, aparentemente, mas que surgem ao espírito de uma forma obsessiva e persistente. É o caso da minha convicção de que existem múltiplas afinidades entre duas obras de dois autores, em princípio pouco conciliáveis. Apesar disso eu teimo em vislumbrar uma familiaridade para mim evidente, de tal ordem que meti na cabeça procurar a razão de ser desta convicção. Estou a pensar no Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati e no Pedro Páramo de Juan Rulfo. O facto de serem dois dos meus textos literários de eleição, dois dos romances que eu levaria para uma ilha deserta sem hesitar, isso nem de perto nem de longe explica a minha opinião e sobretudo de modo nenhum fundamenta a possibilidade de uma tese comparativa. Mas haverá razões para que eu pense assim, pois se não houvesse por que haveria eu de ter metido na cabeça a ideia de que são não apenas dois romances aproximáveis e portanto comparáveis, mas muito mais do que isso, homólogos, embora de modo inverso, nos pressupostos e nos objectivos e até nos processos narrativos e sobretudo na tessitura ontológica de base. Só para deixar já algo que se veja. São ambos romances sobre o absurdo, sobre o sem sentido existencial, sobre o tempo e a sua vacuidade e sobre o malogro dos ideais, sejam eles quais forem. Além disso ambos os romances são ainda sobre os limites fluidos, móveis e voláteis das fonteiras entre o céu, a terra e o inferno.

Tenho para mim que no romance de Rulfo, Juan Preciado, desde o momento em que entra nas imediações fronteiriças da cidade de Comala onde a mãe o enviou, entra verdadeiramente num outro mundo, num outro reino, num reino inferior semelhante ao Tártaro. Designá-lo de resto por este nome, por Hades ou por Inferno é de somenos importância para o caso.

E acho que chega, para já, como programa de leitura e sondagem.

Mas em boa verdade eu nem precisaria de dar as explicações que estou a dar para justificar o acto de comparação literária. Como diz e muito bem, Helena Buescu: “Não é possível ler senão comparativamente (ou seja, relacionalmente) (…) não há de facto como não-comparar. Toda a leitura é activação, partilha e “cooperação interpretativa” […], o que significa que o sentido reside, justamente, nesse acto de cooperação, intercâmbio e interacção. Desta perspectiva, todo o sentido é comparativo e não há sentido que o não seja” (Helena Carvalhão Buescu, Grande Angular. Comparatismo e Práticas de Comparação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 14. a p. 23). A minha comparação espontânea destas duas obras legitima-se por si mesma.

Antes de entrar propriamente na análise motivada das obras, para descobrir e poder mostrar as suas afinidades, interessa ter em mente sobretudo um dado que, para mim, é desde logo nuclear e que é o seguinte: A obra de Juan Rulfo é assinalada assim como o autor no conjunto da sua obra como um dos autores seminais do chamado Realismo Mágico, senão mesmo o seu fundador, embora isto já me pareça muito discutível. É claro que as referências de Gabriel Garcia Marquez ao Pedro Páramo e a Juan Rulfo autorizam esta insinuação, mas o mesmo autor se refere também a Alejo Carpentier em termos que o colocam na linha dos fundadores desta corrente lieterária assim como na grande genealogia das sua dívidas capitais. Repare-se que o texto aparece em 1955 e se é verdade que se antecipa de muitos anos aos Cem Anos de Solidão que é de 1967, não se antecipa de modo nenhum a obras, seminais elas também, como é o caso dos Passos Perdidos do referido Alejo Carpentier que é de 1953, Paradiso de José Lezama Lima que é de 1966, mas que terá sido escrito muito antes, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato que é de 1961, embora O Túnel, do mesmo autor, seja de 1948, O Bestiário de Júlio Cortázar que é de 1951 e o Todos os Fuegos el Fuego que é de 1966. Enfim, há a não esquecer que antes de todos Jorge Luís Borges publicou as suas Ficções em 1944 e o Aleph em 1949, sendo que o primeiro conto das Ficções é de 1941. E poderíamos continuar. Mas será que em todos os casos estamos a falar da mesma tipologia literária? E o Realismo Maravilhoso será o mesmo que Realismo Mágico? Penso que não. Penso que não há nada nos Passos Perdidos de Alejo Carpentier que se possa comparar ao Pedro Páramo de Juan Rulfo. Se o paradigma por excelência do carácter fantástico e mágico da literatura sul americana do século XX são os Cem Anos de Solidão, então o verdadeiro precursor é Juan Rulfo através desse Pedro Páramo.

Por outro lado tudo o que eu li e plenamente concordo é que Dino Buzzati se pode e deve considerar também um autor, no caso europeu, precursor do realismo mágico. E convém não esquecer que O Deserto dos Tártaros é de 1940, enquanto o Pedro Páramo é de 1955. O romance de Buzzati é contemporàneo das Ficcões de Jorge Luís Borges. Portanto neste plano já temos algum pano para começar a talhar as mangas. Acho eu. Porém e antes de avançar devo deixar já bem claro que não considero que o realismo de Rulfo e o realismo de Buzzati são de tipo diferente, o que significa que pretendo dizer que não defenderia a tese de que o realismo mágico europeu seja precursor do realismo mágico sul americano, assim sem mais nem menos. Mas deixemos isso, … Apurem-se apenas algumas linhas de similitude nestes dois romances.

Vamos começar pelo Tártaro, ou seja, pelo Inferno. No caso de Rulfo, como já anunciei, as dúvidas são praticamente nenhumas. Quando Juan Preciado putativo filho de Pedro Páramo vai a pedido da mãe procurar o pai que nunca conheceu, dirige-se para a cidade de Comala onde é suposto que se encontre o pai. Abundio que se cruza com Juan Preciado nas imediações de Comala e que ao despedir-se lhe sussurra, como se isso não tivesse importância nenhuma, que também é filho de Pedro Páramo, descreve nestes termos Comala, depois de Juan lhe ter dito que estava muito calor: “ — Sim, e isto não é nada — respondeu-me — Vai senti-lo ainda mais quando chegarmos a Comala. Aquilo está sobre as brasas da Terra, na própria boca do inferno”.

Ora no Deserto dos Tártaros em vez de uma viagem ao Inferno a estadia na Fortaleza de Bastiani, que à partida representa uma promessa e uma espera pela justificação e até pela glória, acaba por representar uma expiação e talvez que a pior das expiações pois não é vivida enquanto expiação mas enquanto esperança e só com o tempo o tempo mostra a sua face expiatória. Mas esta expiação representa um Inferno, mais subtil do que os Tártaros das tradições antigas ou o Inferno religioso do cristianismo por exemplo, o Inferno aqui reside no ludíbrio da espera, de que à espera de Godot é seguramente o grande paradigma, na literatura moderna (No sentido da Modernidade. Porém À Espera de Godot é de 1952 e a espera é de ludíbrio mas também de outras conotações, quiçá até religiosas, entre outras). O Inferno reside no facto de que tudo aquilo em que a vida se baseia, o tempo se encarrega de esvaziar até à última gota. Giovanni Drogo vive a agonia da espera absurda de qualquer coisa da qual ele tem contudo desde cedo a consciência de que não passa de um logro, contudo não foge, não desiste, persiste nessa espera insensata por coisa nenhuma e isso é que é o Inferno da sua vida. Ele espera o confronto adiado com os tártaros ali na fronteira do seu mundo com o desconhecido, assinalado pelo enigma do deserto, mas os tártaros não virão e o Inferno que, eles e a guerra que trariam consigo, poderia representar nunca chegará a acontecer, porque justamente ele vive já a experiência do Inferno, este mais indolor e insidioso. Este Inferno é o sem sentido da vida, é o absurdo da existência, é a insensatez que o tempo contém em si. Há entre a viagem de Juan Preciado ao inferno da memória através da mãe e também da digressão omnisciente do pai, naquilo a que Octávio Paz chamou uma peregrinação da alma em dor, e a estância inconsciente no Inferno por parte de Giovanni Drago uma espécie de homologia recíproca de dois infernos que se complementam o inferno que nos espera porque já nos habita ou vice versa, que nos habita como condição da existência porque ele é o nosso único destino.

Passemos agora ao tempo. Em Dino Buzzati temos um tempo que passa, está a passar e sente-se passar com algum desespero, o desespero de que o tempo traga o que teria prometido, mas tarda em cumprir, e não cumpre. Há um momento, mas não se sabe bem quando, até porque não é um instantâneo, é também ele um tempo que passa, que flui e que esclarece devagar, há um tempo dizia, em que se sabe que o tempo não trará o que esperávamos e que transformará a nossa espera numa odisseia insensata, numa espera absurda, infundada, ilógica. Entra-se então num tempo envenenado pela traição, sem inimigo identificável, pois o inimigo é o próprio tempo, agora vivido como simulacro. Mas Giovanni Drago não é traído senão por si mesmo. A sua espera é o logro que ele próprio urdiu e logrou. É claro que não o faz deliberadamente ou com uma consciência daquilo que o tempo esconde, pois isso é da ordem do insondável. Porém é sempre depois que sabemos que era insondável o que queríamos saber. Ninguém tem a consciência do tempo que passa. Quando Giovanni Drago resolveu instalar-se no lugar inapreensível do tempo que passa, nessas areias movediças, traçou o seu próprio destino.

Em Rulfo o desdobramento do tempo em dois tempos liga o passado ao futuro e é através dessa colagem que o tempo mostra a sua redundância. O romance narra-se na primeira pessoa, na pessoa de Juan Preciado e na terceira. Na terceira sob a forma do narrador omnisciente que é Pedro Páramo. É na junção, na esquina em que os dois tempos se encontram que o tempo se desmorona e mostra o seu interior, vazio.

Em ambos os casos há uma demanda à partida frustrada. Juan Preciado não encontrará o pai e não poderá realizar a promessa que fez a sua mãe à beira da morte desta. Para isso vai ao inferno de Comala, em vão. Só encontrará mortos e cinzas de um passado que nem sequer é seu. Giovanni Drago não encontrará o inimigo que aguarda que chegue através do deserto. O inferno não precisa de chegar até ele pois ele já o encontrou e já o habita. Quando morre, já tinha morrido. A solidão e desilusão em que morre presentifica agora a si, nesse momento implacável e sempre verdadeiro, o inferno em que há muito habitava mas em ausência, sob a forma de uma mentira inconsciente.

A vida não passa de um jogo e de uma brincadeira. De mau gosto.

20 Out 2016

De Saramago a Steiner, uma mudança de paradigma

Saramago, José, O Homem Duplicado, Caminho, Lisboa, 2002.
Descritores: Identidade, Solidão, Representações sociais, Literatura, ISBN: 972-21-1507-3, 318 Páginas.
Cota: 821.134.3-31 Sar

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]osé Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975); dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005) e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Tertuliano Máximo Afonso é professor de História. Ao visionar um filme banal chamado “Quem porfia mata caça”, que um colega de matemática lhe recomendara, descobre que um dos actores é um sósia seu. Aliás, parece mais do que um sósia, parece ele mesmo, por várias razões. Um sósia, qualquer pessoa pode ter, mas a existência de uma outra pessoa que afinal parece que somos nós é mais perturbador. O argumento do livro é a sua demanda e depois o confronto com o actor que é o seu duplicado.
Afinal o professor de história Tertuliano Máximo Afonso o que descobre, num certo dia, é que é um homem duplicado, que ele é duas pessoas. Os desdobramentos dessa história são imprevisíveis. Mas, neste romance de José Saramago, o que está em jogo é a perda de identidade numa sociedade que cultiva a individualidade e, paradoxalmente, estabelece padrões estreitos de conduta e de aparência.
Os romances da fase final da carreira literária de José Saramago retratam uma época de transformações e de perdas. Em Ensaio sobre a cegueira, os personagens perdem a vista, sinal de um tempo em que todos parecem estar cegos. Em A caverna, os artesãos perdem o emprego, como consequência da hipertrofia das chamadas grandes superfícies. Em O homem duplicado, José Saramago explora a perda da identidade num mundo globalizado.
Tenho sérias e fundadas razões para considerar simplista esta perspectiva de que a globalização desfavorece em mau sentido a ideia de identidade, além de que não tenho pela ideia de identidade uma opinião tão favorável como parece ser a de Saramago neste romance temático, ideológico e ensaístico. Mas irei voltar ao assunto, mais à frente.
Em resumo:
Esta novela propõe uma reflexão sobre o estatuto do indivíduo, no quadro da sua auto representação social e num enquadramento muito comum nas sociedades modernas de solidão e isolamento. Sabe-se como a presença do outro é determinante para a realização do indivíduo, e eu diria a todos os níveis, psicológicos, sociais, culturais e económicos até. Sem a presença do outro a vida pode tornar-se um inferno.

A vida privada ou pessoal sem a alteridade e a vida pública ou social, que inclui a presença do outro, não faz sentido.
E é aqui que uma perspectiva crítica das críticas da globalização faz todo o sentido. Parece que a globalização representa um perigo que atenta contra as idiossincrasias locais, regionais e nacionais portadores todas elas de uma ideia específica e distintiva de cultura. Ora isto é muito bom quando por outro lado verificamos que “Por todos os lados, triunfam o regionalismo, o localismo, o nacionalismo… é o retorno dos vilarejos”(Steiner).
No Processo Civilizacional de Norbert Elias no capítulo dedicado à Sociogénese dos Conceitos de Cultura (Kültur) e Civilização (Civilisation), ficou para mim claro que a excessiva promoção da cultura pode resultar num reforço da Identidade mas também num fechamento, numa clausura na figura do Mesmo que se traduz invariavelmente por isolamente e desconfiança relativamente ao Outro. A globalização possui pelo menos essa potencialidade positiva: a de romper os insulamentos isolacionistas que são quase sempre fonte de discórdia, medo, tensão e, não raro, conflito e afrontamento.

Eu conheço uma frase de Saramago, que ele usava reiteradamente como alternativa à célebre locução salazarista do “orgulhosamente sós”. Devem recordar-se dela. Ora a locução de José Saramago rezava assim: “orgulhosamente nós”. Tive um dia a ousadia de, sem ofensa, lhe ter dito em público que não havia uma diferença significativa entre as duas proposições quer no plano dos seus significados ideológicos e até filosóficos quer no plano mais aberto de uma pragmática da comunicação. Atrevo-me até a considerar a frase de Saramago mais reaccionária que a frase de Salazar, conquanto seguramente não fosse essa a sua inteção, bem pelo contrário. Também me parece que a consideração do escritor é mais nacionalista e redutora e promove uma identidade mais hostil às figuras do cosmopolitismo e da alteridade. A primeira pessoa do plural que subentende o respectivo possessivo serve muito melhor o dispositivo de enraizamento, pré-figurado nas célebres expressões, curiosamente femininas, ‘da nossa terra’, ‘da nossa língua’, ‘da nossa raça’. “Nossa” ou “minha”, para o caso tanto faz; mas o “nossa” é até mais vinculativo no plano nacionalista, pois contém os elementos corporativos e holistas mais à flor da pele. Ora, a segunda pessoa do plural embora aparentemente pareça menos egolátrica, não só não o é menos como até o é mais, arregimentando de facto um conjunto de Eus, porém reduzidos na sua valência eventualmente subversiva e já a montante domesticados pela figura consensual e estática do rebanho/comunidade. Falta-lhe na génese etimológica e generativa a mobilidade e a diáspora que subentende o ego livre e (an) árquico.

Finalmente o tema da perda da identidade, implicitamente criticado, é por curiosidade um dos conceitos motores de uma filosofia tão ‘generosa’ como é a filosofia de Emanuel Lévinas, que chega a propor a alienação de si nessa atitude de vénia diante da transcendência que o Outro representa. Mas no limite não se trata de uma perda da identidade entendida segundo os modelos da ontologia levinasiana, mas simplesmente a submissão a uma hierarquia em que o rosto do Outro, enquanto epifania da transcendência, se me impõe como mandamento e submissão. A submissão consiste na deposição de um poder e não numa desindividuação ou na literal perda da subjectividade. Este ser que se demite dos seus poderes é simplesmente um ser mais nobre alimentado desde a raiz por uma Sagesse de l’Amour, para usar a expressão de Alain Finkielkraut, que rompe com a tirania claustrofóbica do il y a para ser plenamente Ser, já que recupera uma parte não despicienda da ontologia socrática de que o Ser só é Ser na condição de Ser para o Bem, plasmada no caso da ontologia levinasiana na asserção de que o bem só é o Bem se for para o Outro. Porque é o Outro e não o Mesmo que é a condição de possibilidade da minha humanidade. Por isso o Outro não é castigo, mas “Chance”.
Para mim, portanto, toda a ênfase colocada por Saramago na crítica da Globalização como fonte recente para as crises da identidade me parecem erradas e até pouco consentâneas com o que devia ser o internacionalismo das suas convicções políticas. Nesse sentido deve agradecer-se à globalização, contudo não a esta, refém do capital financeiro internacionalizado com as suas taras já sobejamente conhecidas, centradas numa idolatria pré-crítica e pré-moderna dos mercados; mas à globalização que aproxima povos e culturas em torno de valores de civilização comuns. É a ideia de Comum, tão cara a Agamben ou a Vattimo, ou a Negri, que regressa, agora com a globalização centrada numa ideia de Comunidade Global.

Porém o romance O Homem Duplicado não se esgota nesta problemática e a sua leitura justifica-se plenamente à luz de outras grelhas de descodificação, algumas bem modernas e pertinentes, como seja o tema da solidão. Mas vou-vos confessar que também neste domínio a posição de Saramago me interessa menos que por exemplo a posição de Georg Steiner com quem no plano ideológico me identifico muito mais. Ele disse numa entrevista isto:
“os jovens já não têm tempo… De ter tempo. Nunca a aceleração quase mecânica das rotinas vitais tem sido tão forte como hoje. E é preciso ter tempo para buscar tempo. E outra coisa: não há que ter medo do silêncio. O medo das crianças ao silêncio me dá medo. Apenas o silêncio nos ensina a encontrar o essencial em nós”.

Se trocarmos o silêncio pela solidão. e neste caso são intermutáveis, percebemos a mudança de paradigma da geração dele para as gerações dos nossos dias. Todo o processo de desdobramento intersubjectivo, todo o processo do achamento do ser passa por esta iniciação ao silêncio ou à solidão. O culto da solidão contém também a possibilidade de guardar, de não partilhar levianamente, de manter silêncio e Steiner di-lo lapidarmente: “Para mim, a dignidade humana consiste em ter segredos”. Por vezes o grande diálogo, a grande partilha, a confissão profunda, a cumplicidade, reside nesse desdobramento em que, como salientou Agamben, dialogamos com o nosso Genius. Hoje em dia as pessoas fogem da solidão a sete pés ou então vão a correr deitar-se na cadeira do psicanalista. O pudor, a reserva, a opacidade deixou de ter valor, e assim nos vamo convertendo numa sociedade de streap teasers mentais sem vergonha e sem escrúpulos.

6 Out 2016

Como o génio se derrama

Brun, Jean, O Epicurismo, Edições 70, Lisboa, 1987
Descritores: 132 p.:22 cm, Tradução de Rui Pacheco
Cota: A-4-2-88

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]alvez que pela primeira vez nas minhas fichas de leitura se imponham duas notas biobliográficas embora sumárias, uma para Jean Brun, grande autor francês da Filosofia Antiga e Epicuro, um dos mais geniais autores da Antiguidade, a quem desgraçadamente aconteceu a desdita de ter desaparecido a maior parte da sua obra que já chegou a se avaliada em perto de 300 volumes. E mesmo assim o seu nome, a sua obra e a sua influência pertencem à genealogia maior da História do Pensamento, o que não pode deixar de fazer pensar.
Comecemos por Jean Brun, que nasceu em 1919 e faleceu em 1994, tendo sido professor na Universidade de Dijon entre 1961 e 1986. Dedicou toda a sua vida ao estudo da filosofia antiga e cristã incluindo nesta última as grandes obras de Pascal e Kierkgaard.
Para além dos seus estudos sobre autores e épocas idas, ele dedicou-se também à crítica de uma tendência excessivamente lúdica e hedonista da Modernidade usando para o efeito o pessimismo pascaliano e a sua rejeição estrutural do “Divertissement” por oposição ao “Sérieux”. A obra designou-a por Le Retour de Dionysos. Quanto a Pascal, disse ele: “la postérité n’a pas pu le lui pardonner et s’est débarrassé de lui en en faisant un savant qui aurait malheureusement sombré dans un puritanisme maladif”. Mas o tema deste livro é o epicurismo e sendo assim passo, sem delongas, a Epicuro que terá vivido entre 341 a.C., ano em que nasceu em Samos e 271 ou 270 a.C., ano em que terá falecido em Atenas. É provavelmente o maior vulto da chamada filosofia helenística, portanto pós-socrática e tardia, correspondente à epoca de decadência do Império de Alexandre e da própria ideia e figura da Cidade-Estado. Em Samos foi discípulo do académico Pânfilo, mas a verdade é que não simpatizava muito com a filosofia Socrático-platónica. Foi muito mais sensível ao ensino de Nausífanes de Téos, discípulo de Demócrito de Abdera. Epicuro teria entrado em contacto com a teoria atomista — da qual reformulou alguns pontos. Em 306 a.C. Epicuro fundou a sua própria escola filosófica, chamada O Jardim, onde passou a residir com alguns amigos, na periferia da cidade de Atenas. Aí leccionou até à morte, cercado de amigos e discípulos e tendo a sua vida sido marcada pelo ascetismo, serenidade e doçura.
Para mim é um prazer falar e escrever sobre Epicuro, pela questão de que o facto pode alimentar o justiceiro que há em mim. Se há autor injustiçado na História da Filosofia, esse autor é Epicuro. Em larga medida essa injustiça, que roça a caricatura e a pura imoralidade deve-se ao ambiente moral do designado medioplatonismo, onde na desonesta diatribe se evidenciou Plutarco, publicista e divulgador de largos recursos, mas completamente falhado relativamente ao sábio de Samos. É a Plutarco que parece ter-se ficado a dever a expressão “Os porcos epicuristas”, a partir de uma análise moral que falha de alto a baixo.
Muitas vezes a culpa recai em Marcus Tullius Cícero, o célebre jurisconsulto romano. Ora aí está outra injustiça, esta menor, em cima da injustiça substantiva e relevante. Eu li, senão de fio a pavio, pois seria mais do que presunção minha, pura estultícia, tal a dimensão enciclopédica da obra do Cônsul originário da Gens Túlia, obra onde posso desde já evidenciar, as Tusculanae Quaestiones (Discussões Tusculanas), o De Finibus Bonorum et Malorum (Sobre a Finalidade do Bem e do Mal ou Sobre a Finalidade Moral), o De Natura Deorum (Sobre a Natureza dos Deuses), o Laelius de Amicitia (Lélio sobre a Amizade), e finalmente o De Officiis (Sobre os Deveres). Enumerei estas obras, estes tratados, de facto, pois que as compulsei avidamente numa certa época da minha vida de intenso e, perdoe-se-me a imodéstia, profícuo trabalho intelectual. Mas Cícero tem uma dimensão mítica a que não são alheios dois eventos: primeiro, o facto de que o seu tratado De Officiis ter sido o segundo livro a ser impresso na Europa depois da Bíblia de Gutenberg e, para mim, sobretudo o facto de que Santo Agostinho ter confessado dever-lhe a sua conversão ao Cristianismo a partir da leitura do tratado Hortênsio, sobre filosofia, e que entretanto se perdeu. Em página nenhuma a posição de Cícero sobre Epicuro possui a gravidade de muitas páginas de Plutarco e mesmo de muitos autores da Patrística e da Patrologia Latina.
Mas vamos regresar ao enorme Epicuro, que nos deixou a partir de uma obra escassíssima, pois quase tudo se perdeu, um ensinamento imorredoiro e de uma seriedade intelectual inultrapassável e talvez, no mínimo tanto, uma influência na cultura ocidental só ao alcance dos maiores como Pitágoras, Heráclito, Parménides, Platão, Aristóteles, Séneca, Plotino e Santo Agostinho; e só me refiro aos antigos. Há quem o considere, com a reduzida obra que se salvou, e assim chegou até nós (Carta a Heródoto, Carta a Pítocles, Carta a Meneceu e Máximas Vaticanas).
Aborrece-me um pouco, ter de elencar alguns autores que foram, influenciados decisivamente por ele, pois o excesso de citações, como diz e bem Julio Rámon Ribeyro é próprio de incivilizados. Em minha defesa direi que isto que eu fiz agora é que é citar pois antes limitei-me a referir e é isso que irei fazer a seguir, apenas porque a ignorância hoje em dia é tanta que se o não fizermos, muitas pessoas não chegam squer a fazer ideia daquilo que estamos a pretender. Farão ideia os meus contemporâneos, mesmo universitários e cultos da influência continuada de Epicuro na filosofia ocidental e na cultura em geral? Provavelmente a maioria saberá a influência de Epicuro sobre Gassendi, uma vez que este autor o refere explicitamente na sua obra como é o caso dos Syntagma philosophie Epicuri, cum refutationibus dogmatum quae contra fidem christianam ab eo asserta sunt (Resumo da filosofia de Epicuro, com refutação dos dogmas que fundados nisso são dirigidos contra a fé dos cristãos) e Animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, qui est de vita, moribus placitisque Epicuri (Refutações ao livro décimo de Diógenes Laércio sobre a vida, costumes e preceitos de Epicuro); Mas, ou Gassendi não leu Plutarco ou o anima algum preconceito contra a obra de Diógenes Laércio, pois eu não vi nela uma animadversão assim muito chocante.
Mas a presença de Epicuro aparece em grande força no Medioplatonismo, na Ética Pseudopitagórica, sobretudo em Metopo e Archita, no acervo ecléctico das filosofias da Renascença, mas também em Montaigne, Montesquieu e Rousseau, e com mais força ainda em Hobbes e Locke. Claro que ele aparece ao lado dos estóicos, ou dos académicos ou dos peripatéticos em todos estes lugares e autores que são na sua essência compaginações eclécticas. Porém, para máximo escândalo, ainda aparece no pensamento da igreja onde foi tão denegrido e, se querem saber, até no nosso Joaquim Agostinho de Macedo, que lhe faz um elogio sem reservas nas Cartas filosóficas a Attico, Lisboa: Impressão Régia e em O homem ou os limites da razão: Tentativa filosófica, Lisboa: Impressão Régia, ambas de 1815.
Vamos agora ao sumo. É verdade que Epicuro fala do prazer (hedone), até porque sabia do que falava, já que sofria de gota desde tenra idade e conhecia portanto a incongruência, a brutalidade irracional da dor. Em circunstância nenhuma da sua obra promove o prazer como por exemplo isso é feito na Escola Cirenaica de Aristipo de Cirene. Assim o seu “hedonismo”, e designá-lo mesmo com as aspas é já uma ligeireza e um abuso, não é nunca cinético e muito menos dinâmico. Toda a pragmática do prazer se desenvolve segundo uma lógica da evitação e portanto através de uma atitude negativista. Epicuro sabe que há três tipos de disfunções dolorosas e perturbadoras, a dor física, a dor que resulta do medo da morte e a dor que resulta do medo dos deuses. A sua resposta consiste apenas em aponia e ataraxia. Direi portanto, porque se impõe, que o prazer em Epicuro é catastemático. Ora katastema quer dizer condição, constituição. Sendo assim, o prazer para Epicuro não é um prazer adquirido, mas estático, essencialmente constitutivo, conatural, como se não fosse mais do que a natural e equilibrada saúde física e moral do indivíduo. No fundo, a perspectiva hedonista de Epicuro, tão reprovada pelos seus adversários, não seria mais do que a afirmação da mais ilustrativa norma da paideia grega: alma sã em corpo são. Note-se o que sobre isso disse um dos mais avisados dos seus estudiosos:
“katastematic pleasure differs from Kinetic pleasure in being continuous rather than intermittent. (…) also differs from kinetic pleasure in not having an object. A prominent Epicurean example of a katastematic pleasure is ataraxia, unperturbedness or tranquility, which is a pleasure without an object (…) Another prominent example of a katastematic pleasure in Epicurean literature is aponia, literally the absence of toil and hardship (ponos)” (Peter Preuss, 1994).
Portanto, o prazer em Epicuro é sempre definido pela negativa sob a forma de uma privação: o prazer existe quando o corpo não sofre e a alma não está perturbada.
Não cabe aqui desenvolver os argumentos carreados por Epicuro mas caberá enfatizar o modo de vida proposto por Epicuro para que melhor se possam combater as vicissitudes perturbadoras do mal. Chama-se Lathe Biosas o modo de vida que o sábio de Samos propunha. Lathe Biosas, isto é vida simples, discreta e afastada do bulício das multidões e da ambição, do fragor da luta pela afirmação, enfim numa palavra longe da Ubris. Como também os deuses, segundo Epicuro, depois de terem criado os mundos se afastaram para os espaços intergalácticos onde passaram a viver em total ociosidade e ataraxia, quer dizer imperturbabilidade, costuma considerar-se e bem a filosofia moral de Epicuro uma Imitatio Dei. É no mínimo chocante que a um filósofo como Epicuro alguns autores por pura má fé e sobretudo pelo materialismo gnoseológico epicurista, devido à influência fiel de Leucipo e de Demócrito, tenham produzido as atoardas que produziram, essas sim de verdadeiro mau gosto e miserável valor moral. Epicuro foi para os seus discípulos do Jardim um verdadeiro Deus além de uma asceta de eleição, aquele que dizia que para se ser feliz bastaria viver longe do excesso e reduzir a sua dieta alimentar a pão e a água; aquele afinal que colocava na phronesis, virtude cardeal da cultura grega clássica, a solução para todas as dificuldades existenciais.
Jean Brun faz justiça à grandeza de Epicuro e a sua obra constitui uma boa introdução ao filósofo do Jardim, mas atrevo-me aqui a dizer que a melhor introdução que li ao pensamento de Epicuro seja de Peter Preuss, Epicurean ethics: Katastematic hedonism, Nova Iorque: Edwin Mellen Press, 1994.
Uma nota final à glória de Epicuro e que é também muito esquecida ou simplesmente ignorada do grande público é que, e provavelmente não teria sido por acidente, os maiores poetas da antiguidade ou foram epicuristas ou tiveram epicuristas por mestres. Síron ou Siro, discípulo de Epicuro, foi mestre do grande poeta Virgílio. Lucrécio foi ele mesmo assumidamente epicurista e divulgador, na sua obra, da obra do mestre. Em o De Rerum Natura, dirige-se assim ao grande sábio: “Tu, ornamento do povo grego; primeiro a projectares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas por querer imitar-te com amor e veneração” (De rer. nat. 111,1). Horácio é epicurista em toda a dimensão da sua obra, tanto quanto Lucrécio mas de forma mais subtil e teve igualmente por mestre um discípulo de Epicuro chamado Lúcio Orbílio Pupillo. Também Tibulo cultivou um estilo ligado aos mesmos valores existenciais de Virgílio e sobretudo de Horácio, ao qual não era estranho o culto da vida simples e retirada ligada às virtudes camponesas e rústicas da tradição romana e além disso frequentou o mesmo círculo de intelectuais e artistas do Círculo de Mecenas, onde pontificava Horácio, Virgílio, Ovídio e Propércio. Este último, contudo seria o menos epicurista dos poetas do século de Augusto.
Enfim, para a glória de Epicuro, estes poetas seriam mais que suficientes e entre todos se me permitem o grande Horácio. Deixo-vos com duas elegias dedicadas a esse imortal poeta latino, para que possais ver a sua grandeza e ver até onde o génio de Epicuro se derramou:
Até hoje não senti com nenhum poeta aquele mesmo êxtase artístico que desde a primeira leitura me proporcionou a ode horaciana. O que, aqui se alcançou é algo que, em certos idiomas, nem sequer se pode “desejar” . Esse mosaico de palavras, onde cada uma delas, como sonoridade, como posição, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o conjunto, esse „minimum‟ em extensão e em número de sinais, esse “maximum‟, conseguido desse modo, em energia dos signos – tudo isso é bem romano e, se se me quiser crer, “aristocrático par excellence‟. (Nietzsche)

Quero versos que sejam como jóias
Para que durem no porvir extenso
E os não macule a morte
Que em cada cousa a espreita,
Versos onde se esquece o duro e triste
Lapso curto dos dias e se volve
À antiga liberdade
Que talvez nunca houvemos.
Aqui, nestas amigas sombras postas
Longe, onde menos nos conhece a história
Lembro os que urdem, cuidados,
Seus descuidados versos.
E mais que a todos te lembrando, escrevo
Sob o vedado sol, e, te lembrando,
Bebo, imortal Horácio
Supérfluo, à tua glória…
(Ricardo Reis)

29 Set 2016

Exorcismo e simbolismo

Amaro, Ana Maria, 1984, O brinco do leão, Direcção dos Serviços de Turismo de Macau, Macau.
Descritores: Ciências sociais, Etnologia, Cultura, Macau, 204 p.:il.:23 cm.
Cota: 39(512.318) Ama

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]rinco do Leão não é mais do que a conhecida Dança do Leão. Ana Maria Amaro explora a valência da palavra Brinco que quer dizer diversão ou espectáculo jocoso. Ana Maria Amaro prefere assim a designação macaense para traduzir a expressão chinesa mou si, que quer dizer à letra, leão dançando ou dança do leão, em linguagem falada, pois em linguagem escrita a expressão é seng si e quer dizer leão acordado. É que, para que haja dança do leão, é preciso proceder antes ao cerimonial de acordar o leão, que consiste em pincelar de vermelho, com cinábrio pastoso, os olhos e a língua do pretenso animal.
Contam-se muitas histórias acerca das origens da dança do leão. O livro faz a narrativa, não sei se exaustiva, mas demorada, o suficiente de todas as tradições e separa com nitidez as tradições do Norte da China das tradições do Sul.
“No período da Dinastia Qing, a ópera chinesa e a Dança do Leão andavam de mãos dadas. Foram as companhias de ópera que navegavam nos lendários Barcos Vermelhos, quais ciganos do Delta do Rio das Pérolas, que deram a conhecer as modernas coreografias da Dança do Leão. Eram os actores que faziam desta uma arte do palco em Macau, Hong Kong e na região do Delta, mais tarde adaptada pelas escolas de kung fu”. Em Macau, só se enraizou nos costumes a partir dos anos 40 do século XX. E em Macau, de facto, a tradição está mais ligada à prática das artes marciais do que propriamente à ópera chinesa.
A dança que chegou a ser proibida em Hong Kong por via das suas ligações ao mundo do crime organizado, manteve sempre em Macau um carácter nobre e não belicoso. Além disso a Dança do Leão era muito apreciada pelas autoridades portuguesas que convidavam os grupos de acrobatas para participarem em cerimónias oficiais. Havia em Macau muitas colectividades desportivas onde se praticava ginástica e lutas chinesas, mas só a Associação dos Lanes de Peixe, a Lei Lau e a Lo Leong apareciam regularmente. E de todas elas foi a de Lo Leong que mais se destacou através do tempo. Depois de um período em que deixou de existir, a partir da segunda metade dos anos 60 reapareceu com novas coreografias inovadoras e arrojadas.
Um dos aspectos preliminares à dança é a cerimónia do acordar do leão. “Junto ao altar da trindade taoista protectora dos dançarinos do leão, na sede da associação, na Areia Preta, o mestre acende paus de incenso. Numa bandeja, um velho rizoma de gengibre, um símbolo de poder, é almofada de um novo pincel de caligrafia chinesa. Aí está o vermelho puro do cinábrio (chu sa, em cantonês, ou zhusha, em mandarim) que vai dar vida ao leão”. Só depois o leão é engravatado com uma fita de cetim, o que significa que o leão volta a ter a cabeça ligada ao corpo, pois como se sabe por causa de maus comportamentos o Deus degolou-o, mas a deusa da misericórdia Hum Iam (Kun Iam ?) ou Guan Yin em mandarim resolve perdoar-lhe e restabelece a ligação da cabeça ao corpo atando-lhe uma fita vermelha à cabeça. Esta cerimónia é acompanhada pelos toques de cinábrio, sendo que o primeiro deve ser na testa do leão: “É na testa que Pun lhe dá o primeiro toque de cinábrio, sob a forma de um tridente, bem no centro do espelho que tão bem caracteriza os leões do sul, afugentando os espíritos que ali vêem o seu reflexo”. Da testa passa-se aos olhos, para as orelhas, para o nariz e ainda para a língua. Em cada toque há um significado, assim o toque nos olhos traz de novo ao leão a clareza, e através do toque no nariz afastam-se do leão os maus espíritos e aproximam-se dele o bem e a justiça, etc. Em todo este ritual pode ver-se que o leão desperta e começa a piscar os olhos, a mexer as orelhas e assim por diante. Está agora preparado para a dança.
Deste modo recebe o novo espírito para trazer sorte e fortuna a quem o convida para dançar depois de salpicado com o orvalho das folhas, que acompanham o gengibre e o cinábrio no tabuleiro. Pun avisa que se o leão nunca tiver passado pelo ritual junto ao altar, o azar bate à porta daquele para quem dançar.
Uma das lendas mais revisitadas a propósito da Dança do Leão aplica-se sobretudo ao sul e terá sido esta que passou para Macau. Sabe-se que só o leão do sul possui uma cabeça peculiar com grandes olhos, um espelho na testa e um chifre no centro da cabeça. E pensa-se que esses adereços lhe terão sido atribuídos pela deusa Kun Iam no processo que já salientámos. Mas outra lenda associa o leão do sul a uma criatura que aterrorizava as populações. Essa criatura era designada por nien ou nian, o que em chinês se assemelha muito à palavra ano. E será por isso que a Dança do Leão faz parte obrigatoriamente das celebrações do ano novo chinês. A história interessa-me muito porque nela se procede a uma transmutação da lenda, do realismo animista para a pura representação simbólica. E é essa transformação que lhe confere uma dimensão culta e civilizada. O nien tinha já conhecido os poderes reais do leão, tendo fugido dessa vez espavorido. Voltou contudo para se vingar e as populações ficaram alarmadas pois não podiam contar com a providencial ajuda do leão que andava muito ocupado nessa época, ao que parece, a guardar as portas do palácio imperial. Uma vez que não podiam contar com o leão real para combater o grande inimigo, as pessoas engendraram um avatar do leão, agora sob uma forma mistificada e apenas simbolicamente representada. Ao reproduzirem a imagem do leão através de panos e bambus e ao lograrem também imitar os movimentos do leão através de uma dança plena de saltos e contorções conseguiram ludibriar o inimigo que de novo fugiu espavorido. E é esta forma representada e apenas simbolizada que para mim torna a Dança do Leão naquilo que ela é, um verdadeiro exorcismo de todos os perigos e uma encenação cultural e simbólica da luta do bem contra o mal. E só quando o simbolismo se substitui à crueza do mito, um povo e uma comunidade atingem a maioridade intelectual e a plena dignidade de uma civilização.

22 Set 2016

Um Cântico Agónico e a Nostalgia do Tempo que Passa (continuação)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde o princípio se percebe que Lampedusa não é socialmente neutro e que portanto a sua tipologia social — e não nos podemos esquecer que o romance é tipológico — se insere na linha da captação dos chamados ideal tipos weberianos embora o sociólogo de eleição para o autor seja Vilfredo Pareto, com a sua Teoria dos Resíduos e da Circulação das Elites. Em qualquer dos casos o romance é histórico no plano factual, no plano do cenário escolhido e no plano do enquadramento epocal, mas profundamente sociológico na medida em que aparece centrado sobretudo nas transformações sociais que se dão nessa época da história. Claro que o romance poderia continuar a ser considerado apenas histórico na medida em que foi escrito nos anos sessenta do século XX e portanto algumas décadas já depois da eclosão da Escola do Annalles que se manifestou muito sensível às durações, às conjunturas e estruturas mas ainda mais às oscilações de conjuntura por um lado e sobretudo às grandes mutações estruturais (A Escola dos Annalles é muito sociológica). Essas épocas de grande mudança são de uma enorme riqueza, pois os arquétipos na sua oscilação fazem oscilar tudo à sua volta. As transformações sociais e económicas entrelaçam-se com transformações culturais e de mentalidade e até com profundas revoluções no gosto e com as actividades estéticas. Lampedusa foi de uma enorme coragem ao escolher a época que escolheu, ao escolher o tema que escolheu, no enquadramento histórico em que o fez, ao escolher as personagens que escolheu, portanto na decisão que teve de elaborar um romance genuinamente tipológico. Claro que não é caso único na História da Literatura, e bastaria, sendo parcimonioso nos exemplos, referir apenas no mesmo século o Homem Sem Qualidades de Musil ou Os Sonâmbulos de Broch, ou mudando de século, O Vermelho e o Preto de Stendhal, e até As Ilusões Perdidas de Balzac. Embora o paradigma por excelência e o clássico dos clássicos do género, seja o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes.

No plano do conteúdo factual em sentido estrito o romance narra uma parte da vida de uma família aristocrática e em larga medida feudal, onde contudo se evidencia a personalidade fascinante de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. Na pena de Lampedusa, Fabrízio representa uma espécie de anti-herói ou de anti-clímax, na medida em que assiste de forma indolente à decadência do modelo social que protagoniza e da estrutura política que a suporta, a Monarquia Absoluta, embora anémica, dos Bourbons. O cenário é a Sicília, região italiana imobilizada no tempo e tão idiosincrática que todos ou quase todos, seja qual for a classe social, a pensam inviolável nos seus pressupostos socio-culturais. Uma espécie de inércia atávica que não é indissociável do clima e da história, mantém ou parece manter inalteráveis os quadros de referência mental, embora saibamos, historicamente falando, que o tempo esse grande escultor vai modulando lentamente outras realidades. Contudo Tancredi, sobrinho órfão do Príncipe Salinas, o Tiozão, é de facto certeiro e premonitório quando diz ao tio a frase mais célebre do livro: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude“. A frase fica melhor invertida e foi talvez nessa forma mais incisiva que se imortalizou: “É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”, quer dizer, que tudo fique na mesma. Com o tempo o primeiro tudo acabou por dar lugar ao mais moderado e sensato, “… que alguma coisa mude …”. E assim o apotegma gnómico acabou por cristalizar na forma: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. O tempo histórico é o abrasador período do Risorgimento e da Unificação Italiana tardia sob a liderança de um condottieri de nome Garibaldi, mas sob a égide da Republicana Jovem Italia de Mazzini e Cavour. Porém, no ambiente já de si abrasador mas indolente da Sicília nada parece mudar o que permite ao Leopardo continuar a mover-se com elegância entre os chacais.

A personalidade olímpica de Fabrizio Corbera, a sua oposição de fundo à mudança, o seu conservadorismo aristocrático constitui o elemento chave do romance para o mal e para o bem. Passo a explicar-me melhor. Compreende-se que um aristocrata de meados do século XIX, membro de uma elite já completamente obsoleta e anacrónica se oponha a qualquer transformação que seria e representaria sempre o princípio do fim. Esta atitude contém um elemento de galhardia e grandeza, mas também de insensatez. Mais avisado e astucioso é o seu sobrinho, Tancredi Falconeri, que de resto não tem património próprio e vive a expensas da magnanimidade do tiozão, o Grande Predador solitário, o Leopardo. Daí que seja de Tancredi e não de Fabrízio a célebre frase citada que também, só por si, imortaliza o livro.

No plano da estrutura narrativa a opção pelo narrador omnisciente com um pé fora e outro pé dentro dos factos e da época permite um realismo e uma verosimilhança muito ambivalente e nesse plano muito sedutora. E é esse estratagema que permite conferir ao mesmo tempo realismo e romantismo às personagens. No plano estilístico a obra de Giuseppe Tomaso di Lampedusa tem um poder descritivo arrebatador usando de uma forma inédita, penso eu, uma forma de intertextualidade entre os elementos físicos do décor e os elementos simbólicos, associados, para reconstituir a materialidade tridimensional da natureza da realidade e dos elementos artísticos decorativos e tudo isto através de um jogo tão sedutor que se torna por vezes abstracto e irrepresentável. Nesse domínio o autor logra uma obra quase inultrapassável no plano do esteticismo decadentista, aqui e ali com alguns desnecessários excessos barrocos. O início do romance em que o autor usa os murais dos seus salões como signos que pontuam o ritmo da descrição e do discurso é para mim sinceramente digno de figurar numa antologia de primeiros capítulos de todos os romances que conheço. Permitam-me um parágrafo só para estimular o desejo:
“«Nunc et in Nora mortis nostrae. Amen.»

Terminara a oração quotidiana do rosário. Durante meia hora, a voz pacata do Príncipe tinha evocado os Mistérios Dolorosos; durante meia hora, misturaram-se outras vozes tecendo um murmúrio ondulante em que se destacavam as florinhas de ouro de palavras invulgares: amor, virgindade, morte; e, enquanto durava aquele murmúrio, o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas irisadas na seda da tapeçaria tinham o ar de intimidados; a própria Madalena, no meio das duas janelas, mais parecia uma penitente em vez de uma bela louraça, distraída sabe-se lá com que devaneios, como se via sempre. Agora, tendo-se calado a voz, tudo reentrava na ordem, ou na desordem, habitual. Pela porta por onde tinham saído os criados, entrou abanando o rabo o alão Bendicò, magoado com a sua exclusão. As mulheres levantavam-se lentamente, e o oscilante refluir das suas saias a pouco a pouco ia deixando descobertas as nudezes mitológicas que se desenhavam no fundo leitoso da tijoleira. Só restou coberta uma Andrómeda a quem a batina do padre Pirrone, retardado pelas suas orações suplementares, impediu a visão do argênteo Perseu que sobrevoando as vagas acorria em seu auxílio apressado pelo antegozo do beijo. No fresco do tecto despertaram as divindades. As alas de Tritões e de Dríades, que dos montes e dos mares, por entre nuvens cor de framboesa e ciclame, se precipitavam sobre uma transfigurada «Concha de Ouro» para enaltecer a glória da Casa de Salina, pareceram de repente colmadas de tanta exultação, que se descuravam as mais simples das regras da perspectiva; e os deuses maiores, os Príncipes dos Deuses, Júpiter fulgurante, Marte carrancudo, Vénus lânguida, que haviam antecedido a turba dos menores, sustinham de bom grado o brasão azul-celeste com o Leopardo. Eles sabiam que, agora e durante vinte e três horas e meia, retomariam a posse da villa. Nas paredes, os macacos recomeçaram a fazer gaifonas às catatuas. Por baixo daquele Olimpo palermitano, também os mortais da Casa de Salina desceram à pressa das esferas místicas(…)”.

Acima deixei passar impune a questão dos chacais, é chegada a hora de voltar ao tema. É Giuseppe Tommasi di Lampedusa, ele próprio um aristocrata, quem assim designa a classe ascendente, a burguesia, através de alguns dos seus membros, mais fáceis de caricaturar, como é o caso de Dom Calogero, pai da bela e sensual Angelica. Angelica que se virá a tornar a esposa de amor e conveniência do azougado, sedutor e pragmático Tancredi.
Ora, esqueçamos lá agora por um bocado a figura altaneira e imponente do Príncipe de Salinas e o carácter rapace e agiota de Dom Calogero e centremo-nos momentaneamente no processo histórico real, tal como o conhecemos através de muitas narrativas quer no plano dos documentos da época quer no plano das reconstituições globais, analíticas, sintéticas e racionalmente compreensivas. Quem eram afinal os chacais!? Quem levou a exploração sobre o mundo camponês até ao patamar da mais torpe ignomínia. Quem é que abusou de forma tão imoral dos mais desprotegidos, destruindo-os nas suas capacidades vitais e atentando de modo infame contra a dignidade de seres humanos reduzidos a coisas sem préstimo e sem quaisquer direitos, ultrapassando até o limiar da racionalidade pois o excesso de exploração e de humilhação foi tão grave que amenizando os camponeses feriu de morte a fonte das suas próprias rendas. Isso foi algo que Marx teorizou muito bem: a sobrexploração torna-se contraproducente e irracional. Mas foi o que aconteceu um pouco por toda a Europa ao longo do Antigo Regime. Portanto quem foram os verdadeiros chacais senão essa aristocracia terratenente que asfixiou a própria fonte dos seus rendimentos levando o seu parasitismo até ao limiar da destruição do hospedeiro que o alimentava. E é por isso que o aristocrata Lampedusa ao construir como paradigma do fim de uma época uma figura tão romanticamente concebida de algum modo falha o scopo da perfeição. Não se pode falhar tanto a realidade e a verdade histórica. De algum modo, é uma questão de decência. Claro que existiram os Príncipes de Salinas e claro que existiram também os Calogeros, mas como no romance só aparecem estes, eles tornam-se paradigmáticos dos grupos sociais que representam e é nesse sentido que o romance no plano tipológico fica empobrecido e algo maniqueísta. E em termos históricos, pode-se dizer que falseia a realidade. E é injusto! O mundo não era assim. O mundo de Antigo Regime era bem diferente e as relações entre os terratenentes feudais cobradores de rendas eram muito mais cruéis, desumanas e rapaces também à sua maneira e finalmente as relações entre os camponeses miseravelmente sobrexplorados e os seus senhores não eram nada idílicas como o romance faz subentender. Com todo o respeito pelos Príncipes de Salinas, que os havia, pululavam indivíduos pérfidos e prepotentes que exploravam de uma forma vergonhosa e ignóbil os camponeses e que os tratavam pior do que tratavam os animais. Lembrem-se dos mecanismos de tortura que esses senhores possuíam e utilizavam nos seus cárceres privados no exercício de uma justiça privada também. Lembrem-se de filmes como O Amante da Rainha onde um camponês é encontrado morto num instrumento de tortura e de morte, designado por O Cavalo, ou como no Rob Roy, os aristocratas ingleses abusam das mulheres de uma aldeia praticamente nas barbas dos maridos e do filhos. Lembrem-se do direito de pernada do qual há provas em França até 1789 e que na nossa querida Sicília terra de Leopardo, chegou até meados do século XIX. Será que dá para fazer uma pequena ideia para os camponeses sicilianos em pleno século XIX, a humilhação de terem de oferecer as filhas e futuras mulheres ao senhor feudal. Afinal quem eram os chacais? Claro que alguns autores têm vindo a procurar reduzir o alcance deste abuso monstruoso numa Europa já tão humanizada e civilizada e eu próprio admito que não fosse uma prática corrente, mas que há fundamentos factuais ao nível das fontes textuais, lá isso há. Mesmo que não fosse, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, uma prática generalizada… seria sempre, como foi, infame.
Volto no entanto a um ponto importante e faço-o para que estes últimos parágrafos não possam ser mal entendidos, O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa é uma obra prima e um dos meus livros preferidos. Pois que, com o senão de ser uma abordagem parcial, conta magistralmente o lado decadente de uma aristocracia moribunda a estrebuchar, no caso com dignidade, contra os ventos inexoráveis da História. Há sempre algum lirismo e alguma melancolia em todas as épocas que se confrontam com os seus demorados processos de agonia. Vem por vezes ao de cima a par do desespero um profundo sentimento da beleza que pode haver na fragilidade humana e também na sua grandeza caída. O Príncipe de Salinas irá prevalecer sempre, e Tommasi di Lampedusa é o responsável, como o que de melhor podem produzir as aristocracias e como um exemplo de como podem cair os gigantes.
E por aqui me fico!

8 Set 2016

Um cântico agónico e a nostalgia do tempo que passa

Lampedusa, Giuseppe Tomasi di, O Leopardo, Editorial Presença Lisboa,1995.
Descritores: Literatura italiana, Aristocracia, Decadência, Unificação de Itália, Garibaldi, Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo 210 p.:23 cm, ISBN: 972-23-1876-4,
Cota: 821.131.1-31  Lam

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ode-se gostar de um texto, no caso concreto, um texto de ficção por muitos motivos. Eu, em particular, valorizo todas as possibilidades lúdicas ou intelectuais de uma narrativa, a saber a arquitectura, o estilo, a capacidade efabulatória do narrador ou dos narradores, a composição dos personagens, o poder narrativo dos diálogos, a capacidade que um autor pode ter para organizar a intriga e os desenvolvimentos temáticos da história através do dinamismo próprio das múltiplas relações dialógicas dos personagens e finalmente, last but not least os ingredientes formais e puramente estéticos concentrados na palavra e na frase. Não há romances aos quais possamos conceder o estatuto de excelência em todos estes domínios simultaneamente. Há contudo romances que se aproximam deste estatuto e que digamos assim podem ser classificados com distinção em mais de 75 por cento dos itens considerados. Quando isso acontece estamos na presença de uma obra prima e portanto de uma obra de génio. O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa conta-se entre o reduzido número de obras que alcançaram esse estatuto. Como se costuma dizer em gíria, falha apenas o pleno por um pequeníssimo pormenor. Mas acontece que por vezes o que parece apenas um pormenor, revela-se, com o tempo e através de um aprofundamento cada vez mais complexo um pormaior, se me faço entender.
Momentaneamente, mudando de assunto, deixando a questão do pormenor lá mais para o fim, vou escrever sobre este romance como se ainda estivesse no final do século passado, quando depois de o ter lido pela primeira vez, exultava de entusiasmo e me faltavam os adjectivos encomiosos, laudatórios e apologéticos para descrever o que pensava dele.
Para que melhor me compreendam devo dizer que romances assim não são o privilégio de nenhuma tradição em especial, de nenhuma época, de nenhuma literatura nacional particular e também não de nenhum estilo ou mesmo dimensão. Se é verdade que para exemplificar o que disse relativamente à dimensão me apetece imediatamente citar o Guerra e Paz ou a Ana Karenina, de Tolstoi, por motivos óbvios, a verdade é que não é menos justa a referência a um romance moderno de dimensão média como a Conversa na Catedral de Mário Vargas Llosa ou ainda a referência a um texto de dimensão muito reduzida e de uma modernidade fulgurante como é o Pedro Páramo de Juan Rulfo, fundador em larga medida do Realismo Mágico sul americano e na mesma medida precursor de obras primas como os Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato, Todos os Fogos o Fogo de Cortázar, O Paraíso de Lezama Lima, e francamente muitos outros, que se os citasse a todos seria fastidioso. O que pretendo portanto é que não há e nunca haverá uma forma para as obras primas e que não será nunca por aí que lá mais à frente procederei a uma pequena revisão deste Leopardo, que porém e aviso não será minimamente suficiente para o retirar da minha galeria das obras literárias da minha vida.
Voltando aos grandes paradigmas literários, para mim as figuras patriarcais da tradição que referi, a do realismo mágico, serão sempre Jorge Luís Borges e Rulfo, a que já me referi, contudo, Borges eu coloco-o à margem não porque não tenha tido influência, mas porque a sua obra tal como a de Fernando Pessoa constitui toda uma galáxia literária. Mais do que autores eles são, isto é foram, oficiantes litúrgicos do fenómeno literário e criadores de uma mitologia complexa e são, nesse sentido, inclassificáveis. De dimensão maior ou menor, estes autores e estas obras possuem todos os ingredientes que referi acima e em alguns casos nem precisaram de ser essencialmente romancistas.
E agora para que melhor me percebam ainda, atrevo-me a citar alguns grandes romances que não possuem todos os atributos de excelência a que me referi, percebendo-se bem porquê, para quem os leu, claro: Desde logo o Ulisses de James Joyce a que manifestamente falta virtuosismo poético. De uma maneira geral, as grandes obras do chamado fluxo de consciência às quais falta o fulgor dialógico de muitos romances, salvo talvez O Som e a Fúria, embora possam sobrar outros atributos: a capacidade descritiva, os verdadeiros frescos vivos dos lugares e das situações tanto as presentes como as rememoradas, como é o caso, em particular, das novelas de Virgínia Woolf, mas sobretudo a novela Mrs Dalloway ou a novela Até ao Farol. As gigantescas sinfonias que constituem A Morte de Virgílio e Um Homem Sem Qualidades de, respectivamente, Herman Brock e Robert Musil, são exemplos de fantásticos monumentos literários que porém não atingem o patamar da excelência em todos os itens considerados, embora se excedam noutros, em compensação. A Morte de Virgílio é pobre em estruturas dialógicas, O Homem sem Qualidades não se transcende no poder de efabulação. Ambos se concretizam sobretudo na composição social, mental e intelectual de uma época, o que não é pouco, mas não possuem o charme ficcional e efabulatório das obras primas do género e o melhor exemplo será talvez A Montanha Mágica de Thomas Mann.
Se, então, a perfeição não existe, e trata-se de uma opinião subjectiva e muito pessoal, um exercício intelectual interessante, simétrico do discurso elegíaco e laudatório, seria para cada obra verificar não os motivos da sua grandeza e da genialidade do autor, mas os defeitos que impedem que atinja a perfeição absoluta. Vou por isso deter-me agora um pouco nos eventuais defeitos de O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, se é que os tem e eu penso que de facto tem. Devo proceder a uma declaração prévia: a minha formação no domínio da História, sendo este romance histórico em larga medida, assim como as minhas convicções ideológicas no plano sociológico em estreita conexão com a natureza e dinâmica dessas transformações sociais, acrescentada à minha concepção do conceito de época história com as suas variáveis complexas; torna-me particularmente sensível a alguns aspectos idiossincráticos na caracterização das personagens a que o autor não consegue fugir e eu também não. São escrúpulos e preconceitos que se aceitam no autor, mas por maioria de razão já não na análise crítica que naturalmente possui uma distanciação maior e uma perspectiva mais global.
Devo deixar já muito claro que as minhas análises se situam hoje muito longe da vulgata marxista da Luta de Classes e que procuro combinar alguns elementos de ordem marxiana, mínima, com a predominância das perspectivas braudelianas e em particular de um historiador que me marcou muito no plano teórico e que foi Paul Veyne, mas atrevo-me a não deixar de lado o grande teórico dos Testamentos e das Ordens como foi o católico, nem marxista, nem fiel aos Annalles, Roland Mousnier, por exemplo, que eu ainda hoje levo muito a sério. Tudo isto, entre muitos outros, como é natural.
(continua)

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]iuseppe Tomasi di Lampedusa, aristocrata siciliano, veio ao mundo a 23 de Dezembro de 1896 em Palermo, e partiu deste mundo no dia 23 de Julho de 1957. A última cidade onde foi visto foi em Roma, na cidade eterna. Entre as suas obras conta-se o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento. Em boa verdade à parte isso escreveu pequenos ensaios e uma recolha de textos em prosa, sem grande significado. Esta é verdadeiramente a sua obra. Autor de um só livro, apetece dizer, com propriedade. Deste célebre romance ficou a não menos célebre expressão, infinitamente citada e glosada: Algo deve mudar para que tudo continue na mesma, sugerida pelo príncipe de Falconeri, Tancredi, seu sobrinho. Impõem-se duas informações. Em primeiro lugar a ideia de que o leopardo fez parte da fauna selvagem de Itália e foi progressivamente dizimado, até à sua completa extinção, o que faz do título da obra uma parábola da decadência da classe social de que faz parte o protagonista, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. A monarquia e os aristocratas eram partes de uma raça em extinção. A outra informação prende-se com a adaptação da obra ao cinema levada a cabo por Luchino Visconti, com a designação homónima de O Leopardo, e que projectou ainda mais o romance, talvez para um patamar, que apesar da excelência do texto, o romance não mereça.
Em 1959, foi-lhe atribuído o Prémio Strega e, em 1963, como já disse, o romance foi imortalizado no cinema por Luchino Visconti, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale nos principais papéis. Giuseppe Tomasi di Lampedusa, duque de Palma e príncipe de Lampedusa, dedicou-se à escrita apenas nos últimos anos da sua vida, no tranquilo isolamento da sua propriedade, sem contacto com o meio literário. O Leopardo, a sua obra-prima, foi o único romance que escreveu. Inicialmente recusado por duas grandes casas editoriais italianas, viria a ser publicado um ano e meio após a morte de Lampedusa, tendo um sucesso imediato junto do público e da crítica, que o considerou uma das maiores obras literárias do século XX. Traduzido em todas as línguas, O Leopardo é já um clássico incontornável da literatura.

1 Set 2016

Segredos da existência

Roy, Arundhati, O Deus das peguenas coisas, ASA, Porto, 1999
Descritores: Literatura, Índia, 301 p., ISBN: 9724119378 Cota: 821.21-31 Roy

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]elo e comovente, “O Deus das Pequenas Coisas” é a história de três gerações de uma família de Kerala, Índia. Os gémeos Estha e Rahel, a sua mãe, avó, tio, prima e Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. Mas, numa noite de Junho, os fantasmas regressam à casa da História.
A história começa no estado de Kerala, no Sul da Índia, onde coabitam grandes fés: cristianismo, hinduísmo, islamismo e marxismo. Ali, em 1969, na estrada para Cochim, um Plymouth azul fica retido no meio de uma manifestação de trabalhadores. No carro estão os gémeos Rahel e Estha, então com sete anos – e assim começa a sua história. Os dois crescem entre caldeirões de geleia de banana e pilhas de grãos de pimenta, na fábrica da avó cega. Armados com a inocência invencível das crianças, tentam inventar uma infância à sombra da ruína que é a sua família; a mãe, a solitária e adorável Ammu, o delicioso tio Chacho, a inimiga Baby Kochamma e o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um entomologista imperial. Rahel e Estha descobrem que As Coisas Podem mudar num só dia, que as vidas podem ter o seu rumo alterado e assumir novas, e feias, formas. Descobrem que elas podem até deixar de ser para sempre.
Aqui vai um cheirinho delicioso de O Deus das Pequenas Coisas:
“Rahel chega a Ayemenem numa tarde chuvosa de Junho – as monções começaram. Maio já vai longe e o cheiro dos frutos maduros também. A vegetação parece subir enroscada nas paredes quando Rahel entra em casa, uma casa vazia com «a varanda da frente deserta». «O Plymouth azul-celeste com barbatanas cromadas ainda estava parado lá fora e Baby Kochamma ainda estava viva lá dentro».
Rahel regressa a casa, vinda da América, para uma viagem pelo passado, as memórias que marcaram para sempre a família que a amou e a desprezou. Para lembrar a mãe, Ammu, que amava de noite o homem que os filhos amavam de dia – Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. E para reencontrar Estha, o irmão gémeo – «gémeos biovulares; ‘dizigóticos’, chamavam-lhes os médicos» –, que se refugiou numa pesada mudez desde que «tudo» aconteceu”.
Assim começa O Deus das Pequenas Coisas, …
Mas quem é esse Deus das Pequenas Coisas? “O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre numa posição de domínio e de controle. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos”, explica Roy.
Em resumo, O Deus das Pequenas Coisas é portanto a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. A história dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo Padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer. O Deus das Pequenas Coisas é uma apaixonante saga familiar que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e García Márquez, e lhe valeu o Booker Prize.
Eu lembro-me da época em que eu próprio descobri a metafísica avassaladora das pequenas coisas e a paixão que passou a acompanhar-me nessa vertigem de nomear e descrever a realidade anódina e anónima, esse mundo que exige a nossa vocação para se tornar real, para existir enfim. Em boa verdade esse é o segredo da literatura no sentido genérico de poiesis. Novalis dizia que quanto mais poético, mais verdadeiro. E é este mundo das pequenas coisas, das coisas aparentemente sem importância que é o mais poético e até o mais autenticamente nosso. Ter acesso a esse mundo, aos segredos minúsculos da realidade é ter acesso aos segredos da existência, aos mistérios do mundo. Toda a grande poesia contemporânea, que é agora sempre uma poética da média rés, explora as criações demiúrgicas dos deuses das pequenas coisas. Arundhati Roy teve esse mérito, o de mostrar, sem equívocos, uma tendência generalizada da arte contemporânea, em particular das artes efabulatórias onde o dizer mais se confunde com o nomear, no sentido literal do verbo que será sempre como dar vida e evidenciar um mundo esquecido, apagado por detrás dos acontecimentos mais espectaculares embora muitas vezes redundantes no seu fulgor.
Vale a pena trazer aqui e agora a panóplia das coisas às quais muitas vezes pouco ligamos distraídos que estamos com as “grandes coisas”, digo-o ironicamente pois a minha vida enriqueceu-se com essas coisas como o cheiro dos frutos ou a memória de como chovia naquele certo dia em que muitas mais coisas aconteceram, grandes e pequenas, mas o que ficou foi a intensidade da chuva, a luz que ao chover se dissipava. As pequenas coisas são também as que por se dizerem impediram que outras se dissessem e ao adquirirem uma eleição votaram outras ao silêncio. Aqui para nós, as pequenas coisas acabam por ser as coisas que a argúcia e a imaginação promoveram e nesse sentido deram vida e é justamente por isso que um escritor é sempre um demiurgo, mas também um iconoclasta e um ser apocalíptico.

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]icenciada em arquitectura, Roy Arhundati nasceu em Kerala, na Índia, em 1961. Cedo se dedicou à escrita de guiões para cinema. O Deus das Pequenas Coisas, que foi publicado em 1997, é o seu primeiro romance e por enquanto o único e com ele a autora recebeu o Booker Prize do mesmo ano. “Este prémio é sobre o meu passado. Não sei se escreverei outro livro. Estou à espera que o barulho na minha cabeça pare”, disse, em várias entrevistas. Apesar de não ter, ainda, escrito e publicado mais romances ou novelas é abundante a sua actividade intelectual como o demonstra a sequência de obras que refiro a seguir:
The End of Imagination. Kottayam: D.C. Books, 1998. ISBN 81-7130-867-8; The Cost of Living. Flamingo, 1999. ISBN 0-375-75614-0. Contém os ensaios “The Greater Common Good” e “The End of Imagination”;
The Greater Common Good. Bombay: India Book Distributor, 1999;
The Algebra of Infinite Justice. Flamingo, 2002;
Collection of essays: “The End of Imagination”;
“The Greater Common Good”; Bombay, 1999;
“The Algebra of Infinite Justice,” Flamingo, 2002. Collection of essays: “The End of Imagination,” “The Greater Common Good,”,  “Power Politics”, “The Ladies Have Feelings, So…,” “The Algebra of Infinite Justice,” “War is Peace,” “Democracy,” “War Talk” e “Come September.”
“Power Politics”, Cambridge: South End Press, 2002;
“Power Politics. Cambridge: South End Press, 2002. 
Foreword to Noam Chomsky, For Reasons of State. 2003. 
An Ordinary Person’s Guide To Empire. Consortium, 2004. 
Public Power in the Age of Empire Seven Stories Press, 2004. 
The Checkbook and the Cruise Missile: Conversations with Arundhati Roy. Entrevista por David Barsamian. Cambridge: South End Press, 2004. 
Introduction to 13 December, a Reader: The Strange Case of the Attack on the Indian Parliament. New Delhi, New York: Penguin, 2006. 
The Shape of the Beast: Conversations with Arundhati Roy. New Delhi: Penguin, Viking, 2008. 
Listening to Grasshoppers: Field Notes on Democracy. New Delhi: Penguin, Hamish Hamilton, 2009. https://pt.wikipedia.org/wiki/Especial:Fontes_de_livros/9780670083794
Segredos da existência

30 Jun 2016

Romance interminável

Zweig, Stefan, Caleidoscópio, Livraria Civilização, Porto, s/d
Descritores: Ficção, Literatura Austríaca, Tradução de Alice Ogando, 177 p.:19 cm
Cota:  A  LIT/Z960c.2

  

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vi o Grande Hotel Budapeste, mesmo não tendo ficado a morrer de amores pelo filme, houve qualquer coisa de vago que me intrigou no sentido de um fascínio inconclusivo.
Acontece – me muito agora, e só pode ser da idade, que confundo por vezes de uma forma que não deixa de ser atraente, memórias pessoais, com pedaços de sonhos, alguns visitam-me com regularidade, o que é obsidiante mas estranho também, e além disso trechos de romances que li e que não li, assim como planos-sequência de filmes que vi e que não vi também. Já disse, que só pode ser da idade, acho que isto, deste modo, não me acontecia quando era mais jovem, pelo menos assim. Quando vi, portanto, o filme de Wes Anderson, senti que o universo de Stefan Zweig estava todo ali. Eu não li tudo deste autor, nem pouco mais ou menos, a sua obra é vastíssima, dispersa por muitos géneros, mas se ficarmos apenas pelo género romanesco, e romanesco é uma palavra-conceito que assenta como uma luva a Zweig, tal como a Sandor Marai, por exemplo, e vocês sabem em que é que eu estou a pensar, ainda assim a obra do escritor judeu austríaco é vasta quanto baste. Mesmo não tendo lido tudo, o que li é o suficiente para ter tido esta espécie de sinestesia. Mas Zweig é muito cinematográfico e esse poderia ser um interessante tema de reflexão, o porquê dessa relação entre Stefan Zweig e a tela. Talvez seja justamente o seu lado romanesco e uma paixão, que é muito de época, pelos cenários interiores.
O conto Carta de uma Desconhecida inserido na colectânea Caleidoscópio de contos foi levado ao cinema pelo menos quatro vezes e uma delas por Max Ophuls, com Joan Fontaine no papel principal de Lisa, que é um daqueles filmes lendários que João Bénard da Costa terá considerado um dos filmes da sua vida, mas que pelo menos considerou o mais magoado papel de Joan Fontaine.
Eu sei que não devia, mas caramba a minha admiração, tão grande, por Bénard da Costa, autoriza-me a não acabar esta ficha de leitura e deixar que o acesso ao livro seja feito a partir do filme e no caso através da pluma do mestre:
“Lisa é uma rapariga da classe média que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre, Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o génio. Nunca lhe fala, poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo. Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o ‘filho do pecado’.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto, que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O desfecho é imaginável. Ah! Uma dica para o sucesso cinematográfico de Stefan Zweig, quer dizer, dos seus contos e novelas: ora, antes de tudo o mais as intrigas e os enredos, que são simultaneamente exteriores e interiores, ou seja, psicológicas. Essa fusão do mundo com a intimidade mais profunda e tantas vezes insondável do Eu é seguramente uma das chaves do sucesso. Não é seguramente acidental o facto de que Zweig e Freud alimentaram durante uma boa parte das suas vidas, uma sólida amizade baseada numa indesmentível admiração recíproca. Freud chegou a salientar a dimensão psicanalítica das novelas do grande escritor austríaco, hoje em dia um pouco esquecido, ele que chegou a ser, nos anos trinta do século passado, o mais traduzido escritor à escala mundial.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]tefan Zweig (1881-1942) faz parte da nata da intelectualidade judia vienense. Amigo de Richard Strauss, de Freud e de Artur Schnitzler, foi escritor, romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Deixa a Áustria em 1934 com a chegada do nazismo e refugia-se primeiro em Londres e depois no Brasil, onde se suicida, a 23 de Fevereiro de 1942, deprimido com a expansão da barbárie nazi pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Stefan Zweig foi, a partir da década de 1920 e até à sua morte, um dos escritores mais famosos e mais vendidos do mundo. Stefan Zweig estudou Filosofia na Universidade de Viena onde se viria a doutorar apresentando uma Dissertação sobre Taine.  Apesar da sua fidelidade ao judaísmo a verdade é que a religião nunca desempenhou um papel central na sua formação. Manteve-se sempre próximo e apaixonado pela grande cultura europeia e fiel à língua alemã, apesar do nazismo e do consequente exílio americano. A sua admiração pelas literaturas francesa e inglesa levou-o a traduzir para alemão Keats, Morris, Yeats, Verlaine e Baudelaire. Além disso privou de perto com grandes intelectuais franceses e naturalmente austríacos do seu tempo. Fizeram parte do seu círculo, Rimbaud, Romain Rolland, Rainer Maria Rilke, Thomas Mann e Sigmund Freud, com o qual se correspondeu entre 1908 e 1939. Durante o período áureo e feliz de Salzburgo, entre 1915 e 1930 escreveu as biografias de Dostoievski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi e Stendhal e escreveu alguns bons romances como Amok de 1922, Angústia de 1925 e Confusão de Sentimentos de 1927, baseados na psicanálise. Zweig foi um consequente pacifista desde a sua maturidade e defensor da unificação europeia. Em 1934 Stefan Zweig já no seu segundo casamento abandona o seu país e parte para Inglaterra onde se torna cidadão britânico e depois em 1940 segue para os Estados Unidos e finalmente para o Brasil onde se viria a suicidar. A partir de uma determinada época a diáspora de Zweig tem os contornos de uma fuga à Barbárie.

23 Jun 2016

Uma profecia serial

Faria, Almeida, Rumor Branco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2012.
Descritores: Romance, solidão, iniciação, Poesia, ISBN: 9789723716481, 160 páginas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lmeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra.

Começo por citar Pedro Mexia, pois parece-me que ele encontrou o registo certo: “Mais «romance novo» do que nouveau roman, Rumor Branco é uma representação do mundo português de 1962 enquanto náusea”. 
Mas Almeida Faria consegue provar que pode haver náusea e poesia ao mesmo tempo, portanto é de uma poética da náusea que se trata. Contudo a náusea é apenas a atmosfera em que acontece aquilo que de mais importante acontece; pois para além disso Almeida Faria tinha já percebido aos dezanove anos que um homem é sempre “o primeiro homem. Porque o seu mundo é a reinvenção do mundo, a sua voz uma voz original”. Isto é o que dele disse Vergílio Ferreira, no prefácio da 1ª edição, mas isso é o que o romance diz de múltiplas formas embora fragmentadas.
O recurso ao fragmento edifica a história a dois tempos. Há um tempo que é o dos materiais concretos que se sobrepõem assim como a sobreposição de tijolos edifica uma parede e há um outro tempo que é o tempo dos interstícios, dos espaços em branco que eram antes da narrativa povoados pelo silêncio e dos quais agora no tempo da execução da voz fazem ouvir o seu rumor.
No processo complexo de dar voz a um mundo, o autor assiste com espanto ao nascimento da sua própria voz. Para mim o que é genial nesta obra inaugural de Almeida Faria é o facto de ela simular exemplarmente o nascimento do mundo e do demiurgo dentro dele. Para Almeida Faria o mundo nasce quando nasce o demiurgo, são ambos demiurgos recíprocos. Não existe uma separação entre criador e obra e nenhum pré-existe ao outro, criação e criador são a mesma coisa embora desdobrada ontologicamente. Não nos interessa se é assim que as coisas se passam ou se como pretendia Bocanegra o homem não é mais do que um copista e jamais um demiurgo.

É assim que a oração começa: “uma voz existe intersticial. Há trevas à tua volta e tu não és.” E continua, mas os primeiros versos serão ainda durante algum tempo proféticos mas hesitantes, por vezes a visão parece claudicar e todo o trajecto até ao fim do primeiro fragmento é o caminho de um homem que começa dobrado e se vai levantando até que já completamente levantado vai dizendo, como um desafio “vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar”. Exactamente dez vezes.
A publicação de Rumor Branco fez correr muita tinta, em larga medida por causa do prefácio de Vergílio Ferreira, atendendo ao facto de este autor ter desertado pela mesma época, enfim uns anos antes, das fileiras do neorrealismo, inaugurando de algum modo a ficção de matriz existencialista em Portugal, com o romance Aparição. A polémica desencadeou-se a partir da publicação do romance de Almeida Faria, através de Alexandre Pinheiro Torres e do próprio Vergílio Ferreira, tendo-se depois alargado a outros vultos intelectuais contemporâneos. Lida hoje, a polémica dá conta de muitos equívocos, mas do ponto de vista documental e histórico mostra a realidade intelectual do tempo. Em boa verdade a maior parte das grandes discussões intelectuais e literárias em Portugal durante o período de vigência do Estado Novo tiveram o neorrealismo como pano de fundo, o que se compreende porque o neorrealismo foi a ideologia literária oficial do marxismo em Portugal e em particular do Partido Comunista Português e portanto ele era um reflexo da relevância deste partido na resistência ao regime. O neorrealismo nunca se pôde libertar da sua circunstância histórica, sobretudo em Portugal.

O romance de Almeida Faria é que não tem culpa nenhuma, até porque relido hoje em dia à luz de outras ferramentas teóricas e de outras utensilagens mentais, verifica-se que não se adequava nada às reivindicações ideológicas da época e por isso muito mais certeiro se afigura o que dele diz Pedro Mexia quando enfatiza a sua vocação serial: “a fragmentação, a pontuação escassa, a sintaxe ousada, uma partitura dissonante e ofegante de provérbios, palavras de ordem, neologismos, clichés. Uma música pós-musical, como a de Stockhausen a que o título alude”. Estou inteiramente de acordo quanto à atonalidade constitutiva do romance e ao seu carácter pós musical, ao seu ritmo assimétrico e claudicante, mas sempre luminoso e poético.
Li pela primeira vez este texto de Almeida Faria quando tinha vinte anos e se há uma obra de um autor português que me assombrou foi esta. Mais tarde voltei a ter o mesmo sentimento apenas uma vez, foi com o Silêncio de Teolinda Gersão. Estou a referir-me a obras de ficção portuguesas e de autores ainda não consagrados à época em que os li. Existem entre elas algumas similitudes. São ambas narrativas intensamente poéticas e soturnas, verdadeiras litanias espectrais da solidão. Rumor Branco é da ordem do “Nocturno” e o Silêncio é apesar de tudo mais solar, mas ambas esburacam o ser até ao lugar em que já não se ouve a sua voz, apenas silêncio e rumor.

2 Jun 2016

As pessoas e as coisas

Saramago, José, Objecto Quase, Caminho, Lisboa, 1997
Descritores: Contos, Insólito, Maravilhoso, Reificação, Alienação, ISBN: 978-973-21-0524-8.

José Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.[

As Pessoas e as Coisas

Este conjunto de contos intitulado Objecto Quase, publicado em 1978, resulta de uma abordagem simbólica à realidade decadente e em crise da sociedade capitalista. A opção pelos objectos e pelas coisas denota uma perspectiva sarcástica, desde logo, acerca dos mitos heróicos, das sociedades burguesas: as mercadorias. A corruptibilidade homóloga das pessoas e das coisas arruína os alicerces do mito capitalista. Neste livro, as pessoas confundem-se com as coisas e as coisas possuem um halo que as humaniza e dignifica. O que acontece no mundo acontece nas pessoas e nas coisas, como se houvesse uma mão invisível a conduzir os factos. O Anobium, esse coleóptero que se insinuou na cadeira para se alimentar, acabaria por fragilizá-la a um ponto tal que provocaria o seu desabamento, o seu desmoronamento, ou a sua simples ruína, tal como acontece nas pessoas, que também caem e desabam e se desmoronam, … Há em tudo isto uma solidariedade compósita que não é alheia ao ‘processo sem sujeito’ que a história é em última instância. Para lá disso existirá mesmo uma vontade cega, da ordem quase dos instintos, que as coisas partilham com as pessoas. Não se anda muito longe também do conceito de alienação marxista, do tempo dos Manuscritos Económicos e Filosóficos, obra que sempre fez as delícias de todos os marxistas. Saramago leva muito longe aqui esse conceito de reificação, em várias destas narrativas curtas, mas em particular no Embargo, onde perdemos a noção de quem é a pessoa e quem é o objecto, ou seja, a coisa, mas também na Cadeira, providencial herói à falta de melhor.[
Em A cadeira, alusivamente o assento do ditador, o que deveria representar o seu lugar, a consistência de um apoio, representa afinal a traição, a falência do conforto. Paradigmático objecto que na sua falência conduz à falência do regime e abre um caminho misterioso para a história. Nestes contos, o mundo, na sua consistência ontológica, funde objectos e pessoas, irmanando o destino de ambos, eu diria, inexoravelmente. O trágico está sempre anunciado e previsto intelectual e moralmente. É só preciso ver e perceber.
[

“A cadeira ainda não caiu. Condenada, é como um homem extenuado por enquanto aquém do grau supremo da exaustão: consegue aguentar seu próprio peso. Vendo-a de longe, não parece que o Anobium a transformou, ele, cow-boy e mineiro, ele no Arizona e em Jales, numa rede labiríntica de galerias, de se perder nela o siso”.

Claro que o conto pode ler-se também na perspectiva de que a cadeira é metonimicamente o próprio ditador. Então, segundo esta possibilidade, a ditadura foi derrotada por um simples escaravelho, não da batata, como a lógica, mas antes da madeira, o que provoca o tombo e a subsequente ruína do regime, trazendo um benefício para as pessoas. Assim se urde a história das pessoas (as palavras) e das coisas.
No Embargo, o automóvel adquire uma consciência radical da crise petrolífera e age à sua maneira, dotado de uma vontade própria. O caos só se instala nas narrativas quando o binómio pessoa / coisa se altera. Ora, simbolicamente, é o capitalismo que procede estruturalmente a essa mutação. Num mundo em que as pessoas perdem a autonomia é natural que os objectos possam adquiri-la. Porque é que um dos fenómenos há-de ser considerado mais extravagante que o outro. Preso dentro do carro, o homem sente que a sua dignidade se perde, sem autonomia o homem transforma-se num escravo, num fantoche na maior parte dos casos. O ser que não conduz a sua vida, acaba por ser conduzido.

“ (…) de madrugada, por duas vezes, encostou o carro à berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altura de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixá-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir”.

Pode também explorar-se o tema do conto Embargo, à luz, mais ténue, de uma dependência dos homens relativamente aos objectos, tema esse que será sobretudo desenvolvido no romance a Caverna. Seria porém empobrecedor, tal como pobre é a Caverna. A ambivalência dos textos de Objecto Quase remete antes para uma aliança em vias de se perder. Se de um lado temos o enquadramento capitalista da produção de mercadorias e a sua fase agónica, no capitalismo tardio das sociedades pós industriais, temos por outro lado uma possibilidade de leitura que embora não completamente divorciado desta remete mais para uma análise da Coisa segundo o enquadramento heideggeriano de uma metafísica dos objectos. É a meio caminho entre o conceito de alienação marxista e o conceito de metafísica da subjectividade, cara a Heidegger, que se situam estes contos, pois a lógica própria da ficção favorece esta eventual deriva na ortodoxia do autor. Se José Saramago tivesse usado a mesma ambiguidade e a mesma ambivalência na Caverna teria evitado aquilo em que esta obra se tornou, um panfleto vulgar sobre a sociedade de consumo.
O melhor conto desta colecção, lida segundo o modo que explanei sumariamente é o texto designado Coisas. Deve deixar-se incólume à curiosidade do leitor. Deixo apenas aqui esboçado o modo como simbolicamente termina: “Agora é preciso reconquistar tudo. E uma mulher disse: Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas”.

24 Mar 2016

O ovo da serpente: secularização e progresso

Broch, Hermann, Os Sonâmbulos, Edições 70, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura, Austríaca, Romance, Império Austro-Húngaro, Primeira Guerra Mundial, Valores, Crise, Fascismo, trad. de António Ferreira Marques, 167, [1] p. 2 v.:23 cm
Cota: C-4-4-259,260

Hermann Broch, de origem judaica, nasceu a 1 de Novembro de 1886 em Viena, à época capital do Império Austro-Húngaro. O consagrado escritor veio a falecer nos Estados Unidos da América em New Haven no estado de Connecticut no dia 30 de Maio de 1951. Teve como a maior parte dos judeus daquele tempo uma vida atribulada, tendo sido preso pelos alemães logo após a anexação da Áustria à Alemanha em 1938. Conseguiu contudo ser libertado, através da intervenção da comunidade intelectual, em particular de James Joyce, e depois acabou por emigrar primeiro para o Reino Unido e finalmente para a América. Durante anos dedicou-se a uma vida de aventura e boémia durante a qual se casou e separou várias vezes. Casou primeiro com Franziska von Rothermann e mais tarde com Milena Jesenská. Por causa de Eva Von Allesch, jornalista, ex-modelo nu e designada a Rainha do Café Central, Broch rompeu o casamento com Jesenská, que, ao que parece começou uma relação com o escritor Franz Kafka. Antes do seu primeiro casamento tinha-se convertido ao catolicismo. Pôs termo a esta fase da sua vida vendendo os seus bens e dedicando-se completamente aos estudos e à literatura. Estudou Matemática, Psicologia e filosofia na Universidade de Viena entre 1926 e 1930 e conviveu com insignes escritores, como Rainer Maria Rilke, Elias Canetti e Robert Musil. Da sua obra destaca-se justamente A Morte de Virgílio considerada a sua obra prima, mas também Os Sonâmbulos e Os Inocentes no domínio da ficção. No domínio do ensaio merece menção honrosa, o Geist Und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne, que reúne seis ensaios do autor. Em língua portuguesa apareceu com o título Espírito e Espírito de Época— Ensaios sobre a Cultura da Modernidade, onde se discute, em particular, a questão do kitsch na modernidade.

O romance Os Sonâmbulos consta de três volumes, a saber, Pasenow ou o Romantismo: 1888; Esch ou a Anarquia: 1903; e Huguenau ou a Objectividade: 1918.
O primeiro volume mergulha arqueologicamente no século XIX. Tudo leva a crer que foi aí que a crise começou. Terá sido aí que um certo mal estar civilizacional começou a fazer o seu caminho. E nesse primeiro volume o que interessa ressalvar é a brutal ascensão das massas, o Ovo da Serpente, associada à inevitabilidade da defesa dos valores da Modernidade, ou seja, progresso, felicidade para o maior número, ascensão social, democracia e direitos. Alguns intelectuais terão pensado levianamente que era possível promover tudo isto, que representava uma rotura imensa com a tradição e que ao mesmo tempo o sistema axiológico se mantivesse incólume e, ainda, que no fundo fosse possível adequar a nova ordem ao espartilho da ordem antiga, hierarquizada, disciplinada, diferenciada, portanto holista numa palavra, quando deveria ser óbvio que a revolução individualista e de massas exigia uma ordem nova, com valores de outra natureza, desde logo porque o equilíbrio e harmonia orgânica seriam abalados desde os seus alicerces e pressupostos e a primeira fase da fragmentação alucinante iria produzir como não podia deixar de ser e veio a acontecer, intranquilidade, desespero, insegurança e sobretudo vazio político mas também axiológico. Foi esse vazio que as modalidades endurecidas da modernidade exploraram sob várias formas, que aqui não vêm agora ao caso.
Esch simbolizará premonitoriamente o esforço de organização do caos e nesse sentido o esforço de reconfiguração dos valores desmoronados. Tenho para mim que Esch, quer dizer Broch, não assumiu tanto quanto devia uma crítica ao tempo ultrapassado e portanto persiste sempre neste tipo de exercícios uma vontade de regeneração pelo regresso que embaraça em vez de desembaraçar e portanto a superação inclui o removido mas não à maneira hegeliana enquanto aufbhung dialéctica mas enquanto nostalgia.
Como não há uma proposta de superação radical assente numa crítica e condenação das sociedades de antigo regime constitutivamente iníquas e moralmente decadentes abre-se a porta à reificação ideológica dos modelos que a história removeu, a formas de tirania agora sem a caução que a metafísica lhes conferia. O fascismo e o comunismo mais não são do que o holismo antigo imposto de forma autoritária.
O terceiro volume consagra o arrivista sem valores, niilista, ou seja o arauto de uma expansão vitalista de uma ideia de poder e de domínio. Trata-se do individualismo mal interpretado, levado às suas últimas consequências. Mas Broch nunca compreendeu o individualismo senão na sua versão deletéria de independência e egoísmo, na sua versão leibnitziana de mónadas sem portas nem janelas, de gerador portanto de fragmentação e caos e jamais na sua perspectiva emancipadora da autonomia assente na ética kantiana. Nunca se perceberam muito bem, ou não se quiseram perceber, os motivos pelos quais Kant foi tão coerentemente anti eudemonista e as razões pelas quais a sua deontologia ética e moral promove o imperativo categórico, à margem da mínima suspeita de sentido do interesse egoísta, ao mesmo tempo que remete todo esse universo para um avatar do individualismo na sua versão hedonista e utilitarista.
Herman Broch não percebeu ou percebeu, mas ao desafio complexo da Modernidade, com as suas inevitáveis crises de crescimento, prefere o retorno a um mundo mais estável, mais disciplinado, como se de resto isso fosse ainda possível. Coerentemente ao menos foi buscar as causas da sua ideia de decadência onde elas de facto, sejamos justos, se começaram a manifestar, ou seja naquela época da história em que o edifício da secularização, da autonomia, da liberdade e portanto do humanismo se começou a construir, quer dizer no Renascimento. Ele é corajoso no diagnóstico, ainda que esteja completamente errado:

A origem da crise está n’ “Aquela época criminosa e rebelde que é chamada de Renascimento, aquela época que cindiu a estrutura de valores cristã em uma metade católica e outra metade protestante, aquela época em que, com o desmoronamento do órganon medieval, principiou o processo de dissolução dos valores que duraria quinhentos anos e no qual se deitou a semente da modernidade, (…)”

Notável a clareza do equívoco. E mais lucidamente ainda Broch não deixa de salientar que não obstante não se pode nem deve imputar a responsabilidade a nenhuma das partes do complexo sistema, seja o individualismo, seja o protestantismo, seja a revolução humanista e científica, seja lá o que for. A culpa para Broch reside, usando uma ideia de episteme à maneira de Foucault, no puzzle conceptual moderno, no modo como as mesmas categorias se organizaram de modo diverso e para ele calamitoso.
Eu penso modestamente que sei, mas penso que Herman Broch não sabia, provavelmente não o poderia saber: que a transformação nuclear que fez desmoronar o órganon medieval e no plano social esse organon é holista e corporativo, não foi o Renascimento, nem a Reforma, foi a revolução epistémica desencadeada no interior da própria Idade Média e protagonizada por Dun Scoto e Guilherme de Occam. É a posição do nominalismo na Questão dos Universais que promove a dissolução da harmonia social medieval. Provavelmente até o Renascimento é já um epifenómeno e uma consequência da revolução nominalista. Mas, e não pretendendo adequar-me excessivamente à cartilha ideológica marxista da teoria do reflexo entre o domínio económico-social da infraestrutura e o tecto da superestrutura, quem se atreverá a não reconhecer o papel determinante, na corrosão do holismo corporativo medieval, das transformações económicas e sociais que começam na baixa Idade Média com as sucessivas revoluções económicas, em torno das actividades agrícolas, artesanais, comerciais e demográficas que culminarão na revolução urbana que aos poucos vai modificar a configuração social da Europa e onde acabarão por se evidenciar dinamismos revolucionários deletérios relativamente à ordem tradicional e propiciadores de uma reconfiguração social de tipo novo e inédito, de algum modo. Afinal o individualismo emergente que o nominalismo consagra no plano intelectual possui os contornos de uma transformação sistemática dos modos de vida, das relações sociais e de poder, às quais não foi estranha a revolução das comunas ou dos concelhos. Para quê tapar o sol com a peneira da ignorância, quando qualquer estudo sistemático e integrador das múltiplas dimensões do processo histórico aponta para modificações estruturais e, parece-me, irreversíveis. A modernidade não foi uma opção, a Modernidade era o nosso destino.

18 Mar 2016

A Comédia Trágica de Paixões e Virtudes

Balzac, Honoré de, Eugenia Grandet, Livraria Chardon, Porto, [s.d.].
Descritores: Literatura Francesa, Romance, A Comédia Humana, Realismo literário e burguês, tradução por Joao Grave, 246 p.:16 cm.
Cota: A  PED/B158e.2 

Honoré de Balzac nasceu em Tours no dia 20 de Maio de 1799  e faleceu em Paris, no dia 18 de Agosto de 1850. Foi educado durante sete anos no colégio oratoriano de Vendôme, onde imperava um modelo de educação muito rigoroso e severo. Nesse colégio acumulou experiências que ajudaram a fabricar o grande escritor em que se tornou. Desde logo a sua paixão literária, pois enviado inúmeras vezes para uma espécie de solitária, aproveitava para ler tudo o que podia. Mas acumulou também lições desagradáveis, a começar pelo sentimento de degredo e exclusão e a culminar no desprezo dos seus colegas. O balanço dessa fase é de inadaptação e indisciplina e quiçá de revolta íntima. Depois de um novo período de grande infelicidade, agora em Paris, em que chegou a tentar o suicídio, entrou na Sorbonne onde teve a sorte de ter sido aluno de Guizot e Victor Cousin. É mais ou menos assente que é na sua obra que se dá ruptura com o Romantismo e é por isso considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, porém ficou célebre pelas sua profundas análises psicológicas timbradas de finas perspectivas históricas tanto sociais quanto económicas e finalmente políticas. Foi, nesse plano o verdadeiro cronista dos costumes da sua época. Estou a pensar no período histórico posterior à queda de Napoleão Bonaparte em 1815, época em que se assiste em França ao desenvolvimento da economia capitalista e ao florescimento da burguesia e às suas primeiras dissensões e clivagens. Foi provavelmente o mais prolífico escritor de todas as literaturas e de todos os tempos. A sua Comédia Humana consiste, pelo que se apurou, em 95 textos literários, romances, novelas e contos. Alguns tornaram-se clássicos da história da literatura universal e de leitura obrigatória, como são os casos de, por ordem de minha preferência: As Ilusões Perdidas de1839, Eugénia Grandet de 1883, que analisamos aqui, o Père Goriot de 1834 e a Mulher de Trinta Anos de 1832.

Lamentavelmente a Biblioteca Central de Macau não tem o livro de Honoré de Balzac, As Ilusões Perdidas, do ciclo a Comédia Humana, e digo lamentavelmente pois era sobre essa obra que eu mais gostaria de escrever. Terei assim que providenciar no sentido de que esse magnífico romance venha a enriquecer o espólio da Biblioteca o mais depressa possível para depois poder escrever sobre ele. Não podendo escrever sobre a obra prima referida decidi-me a escrever sobre o romance Eugenia Grandet que é seguramente a par do Père Goriot, do Coronel Chabert, da Mulher de Trinta Anos e de Esplendores e Misérias das Cortesãs uma óptima alternativa.
Passemos agora finalmente à Eugenia Grandet, essa jovem provinciana que aos vinte e três anos conhece de forma fulminante o fogo da paixão. Quando aparece assim, a paixão é sem recurso e de uma violência tal que pode consumir uma vida ou simplesmente redimi-la. Sendo filha de família abastada, enriquecida no negócio vinhateiro, à jovem estava destinado um dos muitos pretendentes da região de Saumour, nas margens do Loire, pois a sua fortuna e a sua beleza lhe davam o direito de poder escolher pelo nabal abaixo, tal era a fartura. Não obstante tudo se complicou com a chegada de um primo de ascendência aristocrática, de nome Charles Grandet, filho de um homem carregado de dívidas. A paixão pelo jovem —- distinto e educado pelos padrões urbanos da capital, que logo a seduziram, ela que era provinciana e imatura —- foi, como disse, fulminante, mas rápida e esclarecida também foi a oposição de seu pai, homem avisado e avaro por natureza. O romance é também sobre a avareza extrema deste ex tanoeiro enriquecido através do casamento. Tudo isto acontece no período da Restauração, época favorável às mais variadas formas de arrivismo. Eugénia, pelo contrário, é dotada de enorme candura e bondade e terminará a sua existência promovendo a caridade e a beneficência.
É preciso dar um passo atrás e deixar por agora a questão do enredo e dos temas que daí relevam para nos fixarmos no plano ideológico do romance. Aproveito para dizer que essa estratégia passa em mim por um acrescentado respeito pelo potencial leitor, o que significa não abusar da sinopse. Uma sinopse deve ser o mais parcimoniosa possível e portanto ser capaz de estimular a leitura de um livro sem roubar o posterior prazer que no caso de um romance será sempre indissociável das vicissitudes da história. É por isso que em todas as minhas recensões eu evito ser demasiado exaustivo em relação ao enredo.
Considera-se que na obra de Balzac, o romance que funciona como precursor do Realismo e desse modo como elemento nuclear da trama da transição do Romantismo para o Realismo, mas ainda no contexto epocal e eu diria sentimental do Romantismo, é justamente este Eugenia Grandet e sendo assim ele é um romance muito emblemático, tanto na obra de Balzac, como mais especificamente na História da Literatura. Nesta perspectiva a heroína do romance é uma personagem inaugural. Sabe-se que Balzac traz para os seus romances todos os grupos sociais, embora se tenha tornado exímio a caracterizar o modo de vida burguês, que é a classe que se começa a tornar dominante no seu tempo. Ora, tratar o tempo presente e trazer para os romances as contradições do seu tempo, assim como os sentimentos, as virtudes e os valores, é uma das características maiores do realismo literário. Além disso triunfa também o gosto e até a obsessão, pelo descritivismo de tudo o que habita o romance sob a forma de décor e cenário, ou seja de tudo aquilo que compõe a riqueza variada da realidade. Tudo isso se irá consumar em Flaubert mas já está anunciado em Balzac ou Dickens, por exemplo.

É preciso perceber que a entrada pormenorizada e exaustiva da realidade se conjuga com as crenças positivistas e evolucionistas da época plasmadas nas obras quer de Augusto Comte quer de Darwin. O homem é um produto do seu meio. A relação complexa dos seres com o seu meio determina formas de adaptação dinâmicas e não nos esqueçamos que é neste contexto também que a historicidade faz a sua entrada fulgurante na cultura, na filosofia e nas mentalidades, embora à época ainda muito influenciada pelo historicismo romântico de um Thierry ou de um Guizot, que como sabemos foi mestre de Balzac na Sorbonne. Daqui decorreu também sob a influência do objectivismo positivista uma inusitada paixão pela análise objectiva da realidade social onde os seres humanos são entrevistos à luz dos seus complexos sistemas de adaptação e confronto um pouco como os demais seres vivos.

Não andaremos longe de um certo organicismo social para cuja caracterização rigorosa importa não deixar escapar nada. Daí que tal como para os sentimentos, instrumentais no processo adaptativo, o que interessa é a sua análise preferencialmente objectiva e sobredeterminada pelas condições ambientais, assim também para a caracterização externa da personagem interessa valorizar o que a liga ao seu enquadramento social e histórico-epocal. E portanto tudo é trazido para a narrativa: os locais, os lugares, os interiores das casas, o vestuário, os adornos, etc.
Enfim, estou a referir-me às questões de Tempo e Lugar, variáveis por excelência da estética realista. Para além disso, nos romances de Balzac, as personagens não representam estereótipos sublimados mas antes pessoas comuns, tais como o médico, o gráfico, o jornalista, o comerciante, o funcionário, o banqueiro, o libertino, o poeta, a cortesã, o advogado e sendo assim o que justamente os caracteriza é o seu modo de vida, a sua actividade social e os valores que daí decorrem. A arte do Realismo literário, torna-se naturalmente muito sociológica e historicizante como reflexo da contaminação naturalista das ciências sociais.

Pode-se dizer que Balzac trouxe para a vida social burguesa e popular os temas reservados anteriormente às classes aristocráticas. Num certo sentido ele democratizou o drama e a tragédia. A expressão Comédia Humana é extremamente feliz. Anteriormente o trágico e o próprio drama estavam reservados às elites. Ao povo restava apenas a desacreditada comédia. Designar por Comédia Humana o que no fim de contas é o drama e o trágico, foi um golpe de génio, pois o termo ‘comédia’ aparece ironicamente e quase como expressão de uma crítica implícita mas através da cópula com o elemento ‘humana’ procede-se a um alargamento de campo revolucionário e ao mesmo tempo a uma desconstrução do significado do semantema ‘Comédia’ que de uma forma subtil passa a representar toda a dimensão da vida humana na sua natureza polimórfica e polissémica avessa à compartimentação. A concepção é burguesa e moderna. A obra de Balzac aparece no seu escopo mais fundamental com uma vocação universalista. Longo foi o caminho percorrido desde que a plebe grega dos hoplitas do Demos exigiu ter também acesso ao paraíso. E eu diria que neste plano simbólico culmina com esta democratização da tragédia levada a cabo pela cultura contemporânea. A igualdade reina agora finalmente na terra e no céu, e eu acrescentaria: e também no inferno.

17 Mar 2016

Sobriedade e nobreza

Bessa Luis, Agustina, A Sibila, Guimarães Editores, Lisboa, 1954
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Ruralismo, 285 p.:19 cm.
Cota: C-7-4-84 (IPOR)

Agustina Bessa-Luís, nasceu em Vila Meã no concelho de Amarante a 15 de Outubro de 1922. Estudou no Porto e em Coimbra e fixar-se-ia definitivamente no Porto no ano de 1950. Agustina Bessa-Luís estreou-se como romancista em 1948, ao publicar a novela Mundo Fechado, mas só com a publicação do romance A Sibila em 1954 é que se afirmou, ainda jovem no panorama da literatura portuguesa. A Sibila representa também a inauguração e afirmação do seu estilo, memorialístico, histórico e realisticamente fragmentado e lacunar. Desempenhou algumas funções sociais e política relacionadas com a literatura e a cultura das quais destaco  a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II (Lisboa) e a participação como membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Vários dos seus filmes foram adaptados ao Cinema, entre os quais evidencio pela sua importância e sucesso: Francisca (Fanny Owen), 1981 e Vale Abraão. Do conjunto impressionante das suas obras refiro A Sibila (romance) de 1954, O Susto (romance) de 1958, A Brusca (contos) de 1971, Fanny Owen (romance histórico) de 1979, Um Bicho da Terra (romance histórico, biografia de Uriel da Costa) de 1984, Prazer e Glória (romance) de 1988, Vale Abraão (romance) de 1991, O Princípio da Incerteza: I — Jóia de Família (romance) de 2001, O Princípio da Incerteza: II — A Alma dos Ricos (romance) de 2002, O Princípio da Incerteza: III — Os Espaços em Branco (romance) de 2003 e A ronda da noite (romance) de 2006.

O romance a Sibila inaugura ao mesmo tempo um percurso literário, um estilo e um tipo de literatura de ficção entre nós. O romance decorre no ambiente rural do norte de Portugal em finais do século dezanove e tem por décor uma propriedade e uma família. A propriedade é uma quinta há mais de dois séculos aforada à Coroa e a família é uma das muitas famílias de lavradores de Entre Douro e Minho, “uma espécie de aristocracia ab imo” como ironiza a autora através da fala de Bernardo Sanches. Provavelmente o cenário não andará longe das imediações de Amarante. Quem conhece o norte de Portugal sabe que o Entre Douro e Minho interior confina com O Minho e com Trás-os-Montes, quer dizer confina geograficamente mas também no plano da cultura e das tradições e sobretudo no plano dos modos de vida, até porque Trás-os-Montes e o Minho só se distinguem com nitidez se tomarmos como referência concelhos distantes, pois os concelhos limítrofes das duas Províncias apresentam mais sinais de semelhança do que de contraste.
Mas regressemos ao diálogo que ocorre entre Germa (Germana) e o seu primo Bernardo, embora o que importa aqui é o facto de que o diálogo ao transformar-se em monólogo, uma vez que Germa passa a ignorar a presença do primo, serve para convocar pela primeira vez o nome de Quina, ou seja da Sibila, a personagem em torno da qual iremos assistir ao levantamento da Vessada, depois que durante a sua infância e sob os auspícios de seu pai Francisco Teixeira assistimos ao seu desmoronamento, tanto físico, como económico, como sobretudo moral.
A narradora da história é Germa, filha de Abel, um dos irmãos de Quina e que com verosimilhança se aparenta, pela biografia, a Agustina Bessa Luís. Este romance é, muito provavelmente, o mais autobiográfico da autora.
Quina foi uma adolescente buliçosa e iletrada, que desde sempre se ligou à quinta através do trabalho. Enjeitada pela mãe, Maria, procurava no trabalho do campo e no esforço constante uma compensação. Contrastava com os seus irmãos que conquanto muito mimados o que pretendiam era abandonar o meio rural, o que significava na prática romper com a casa e com a tradição familiar.
Na trama profética do romance são determinantes dois episódios: o fogo que arrasta a Vessada para a sua ruína e a doença de Quina que quase a vitima. O primeiro assinala o fim de um ciclo marcado por uma decadência que se anunciava já há muito, ao mesmo tempo que assinala também, e anuncia, mas apenas como possibilidade, um ciclo de regeneração. O segundo, o episódio da doença, articula-se com o primeiro pois desde há algum tempo sentimos que a obreira da regeneração só pode ser Quina. Se ela morresse a Vessada estaria inapelavelmente condenada, na medida em que não se vislumbra em mais ninguém a capacidade regeneradora necessária. Mas Quina não só não morre como se assiste, no quadro da sua recuperação, à revelação de qualidades, sibilinas de facto, com as quais Quina levará por diante o enorme trabalho de superação que irá transfigurar um destino que se julgava traçado. No âmbito de todas os dotes de Quina a autora fará evidência dos que irão conferir à personagem uma capacidade de domínio e poder sobre os demais e sobre as dificuldades.
Para mim, o aspecto estilístico mais interessante do romance prende-se com o facto de que nos encontramos sempre longe, quer de um panegírico, quer de uma diatribe condenatória. Percebe-se que a narradora possui uma língua viperina, mas nunca é gratuitamente que exercita as suas críticas truculentas e sobretudo fulminantes, porque inesperadas. Algumas personagens são melhores que outras mas são todas aceitáveis e condenáveis ao mesmo tempo.
Por outro lado, Agustina Bessa Luís consegue integrar elementos económicos e sociais sem contudo pretender submetê-los a uma análise sociológica comprometida, sem fazer demasiados juízos de valor ideológicos ou políticos; como se a autora se limitasse através de um memorialismo histórico e etnográfico a dar a conhecer a realidade e as suas contradições, numa perspectiva sobretudo documental sem denúncias ou críticas enformadas por qualquer tipo de moralismo ou pretensiosismo científico. Eu saliento o elemento etnográfico, pois o culto do detalhe e o descritivismo dispersivo fazem sobretudo apelo dos sentidos e não de uma faculdade analítica. Ora a análise ideológica e política à maneira do neorrealismo por exemplo é sempre moralista e muitas vezes mesmo retórica e lamecha. Nesse sentido a Sibila é um texto de grande sobriedade e nobreza, sem excessos retóricos ou eflúvios sentimentais.
É verdade que através de uma longa analepse Germana traz o passado ao presente, mas não me parece que seja para o condenar nem para o elogiar; parece-me que é essencialmente para que a realidade de um tempo seja mostrada, ainda que as formas de rememoração contenham sempre quer se queira quer não alguma nostalgia agarrada a elas. Contudo não se sente nunca mágoa pelo que se perdeu, nem também satisfação. Há grandeza e miséria em todas as épocas e as personagens no interior de uma época histórica elas próprias nunca simbolizam unilateralmente e de modo maniqueísta o bem umas e o mal, outras. Quina ou seja a Sibila, não foge à regra.

11 Fev 2016

Raymond Aron: Um clássico contemporâneo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s Etapas do Pensamento Sociológico é um verdadeiro clássico da Sociologia contemporânea. Constituído por sete estudos sobre os fundadores da Sociologia – Montesquieu, Comte, Marx e Tocqueville – e sobre a geração da viragem do século XX, Durkheim, Pareto e Weber, procura investigar as origens da Sociologia moderna através da elaboração de uma galeria de retratos intelectuais. «Estes retratos são de sociólogos ou de filósofos? Não o discutirei», explica o autor: «Digamos que se trata de uma Filosofia social de um tipo relativamente novo, de um modo de pensar sociológico, caracterizado pela intenção de ciência e pelo visar do social, modo de pensar que desabrocha neste último terço do século XX. O homo sociologicus está em vias de substituir o homo oeconomicus. (…) Os sociólogos reclamam-se de métodos empíricos, praticam inquéritos por meio de sondagens, empregam um sistema conceptual que lhes é próprio, interrogam a realidade social de um certo ângulo, têm uma óptica específica. Este modo de pensar alimenta-se de uma tradição cujas origens esta galeria de retratos procura descobrir».
Na impossibilidade de dar um resumo do pensamento de Raymon Aron sobre tantos autores incluídos nesta obra volumosa, destaco o que aqui se considera sobre um dos mais relevantes sociólogos contemporâneos, Max Weber.

As grandes linhas compreensivas do pensamento de Max Weber, por Raymond Aron
A citação (epígrafe) de entrada é desde logo muito compreensiva do sentimento de crítica da modernidade do autor:

“A racionalização da actividade social não tem como consequência, de modo nenhum, uma universalização do conhecimento relativamente às condições a às relações desta actividade e conduz pelo contrário, muitas vezes ao efeito oposto. O selvagem (primitivo) conhece infinitamente mais e melhor, na maior parte dos casos, as condições económicas e sociais da sua própria existência, que o civilizado”. [Weber, Ensaios sobre a Teoria da Ciência, página 397 (A Sociologia Compreensiva), em Aron 1967 : 497].

Passo a referir-me aos Ensaios Sobre a Teoria da Ciência ( Gesammelte Aufsatze zur Wissensschaftlehre).
Em Teoria da Ciência Weber distingue quatro tipos de acções:
A acção racional relativamente a um fim (zweckrational);
A acção racional relativamente a um valor (wertrational);
A acção afectiva ou emotiva;
e
A acção tradicional.
Evidenciam-se os radicais, Zweck que quer dizer finalidade, propósito e Wert que significa valor. Ora um dos problemas do nosso tempo resulta do facto de que praticamente todas as acções estão subordinadas a uma lógica Zweckrational. A racionalização deixa pouca margem de manobra para acções de outro tipo. A organização zweckrational criou um problema que é de tipo existencial, e que consiste em delimitar o sector da sociedade em que subsiste e deve subsistir uma acção de um outro tipo (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 501).
Para Weber a pesquisa científica é ao mesmo tempo zwertrational e wertrational, na medida em que a acção é racional relativamente ao seu fim ou objectivo, mas sendo esse o objectivo, a verdade também é racional relativamente a um valor, o valor da verdade.
Ora, pelo exposto, pode concluir-se que a ciência é assim um dos aspectos da racionalização característica das sociedades ocidentais modernas. As ciências históricas e as ciências sociológicas representam antes de mais um elevado esforço de racionalização, quer dizer de compreensão racionalizada do funcionamento e do devir das sociedades. E isto é uma preocupação genuinamente ocidental.
Para Weber, e esse é um traço da sua modernidade, a ciência será sempre uma actividade inacabada, assim como o conhecimento que resulta dessa actividade. Inacabamento e objectividade são os dois traços por excelência da ciência ocidental. E caracterizam também o processo de racionalização.
A ciência antiga visava os princípios das coisas e do Ser. Nesse sentido ela podia conceber-se como acabada ou visar esse objectivo. A ciência moderna ignora as proposições relativas ao sentido último das coisas. Ela está sempre em devir e sempre incompleta e inacabada. O reconhecimento desta condição precária do conhecimento é homóloga da descoberta da finitude do ser e da incompletude e precariedade ontológica e existencial. É, parece-me, uma atitude intelectual mais lúcida, mais conforme à realidade da natureza das coisas.
Muito importante é ter em conta que nas ciências (humanas) sociais (históricas, culturais ou outras) o conhecimento depende ainda das questões que se podem colocar à realidade. Ora o progresso implica uma mutação constante e permanente dessa mesma realidade, logo a possibilidade de que novas questões possam ser colocadas e assim até ao infinito. O autor explora o carácter aberto do conhecimento, mas também a sua progressiva relativazação.
Quais as grandes características (distintivas) das ciências (ditas) sociais (históricas e sociológicas)?
São três: São compreensivas (Verstehen = Compreensão); são históricas e são conduzidas (ao mesmo tempo que incidem sobre) à cultura.
O facto de os comportamentos humanos apresentarem uma inteligibilidade intrínseca (intrínseca mas não imediata), devido ao facto de os seres humanos serem dotados de consciência (e razão, diria eu), não legitima a crença ingénua numa compreensão imediata. O facto de os comportamentos sociais comportarem uma textura inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de captar não desobriga o investigador social de todo o trabalho de investigação e estudo. Esta compreensão não é intuitiva mas elaborada. É sempre uma reconstrução. Quer dizer, o sentido subjectivo é sempre captável mas ao mesmo tempo equívoco.
Weber deve muito a Karl Jaspers, o conhecido filósofo do existencialismo alemão, à sua psicopatologia, a ideia de compreensão. Jaspers considera que há uma clara diferença entre explicação e compreensão. De resto tal como Dilthey. Há um momento em que a inteligibilidade desaparece por exemplo dos fenómenos patológicos. Aí deve entrar a explicação.

Importante: “Desse facto, o facto de que somos capazes de compreender, resulta que podemos ter consciencia dos fenómenos singulares (particulares) sem necessariamente termos de recorrer às proposições gerais (universais), (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 505). 
Há uma relação entre a inteligibilidade intrínseca dos fenómenos humanos e a orientação histórica destas ciências sociais (baseadas nos comportamentos humanos).
As considerações de Weber sobre a historicidade e sobre a dimensão sociológica está errada como a escola dos Annales muito bem veio a demonstrar. Mas é importante reflectir sobre este tipo de erros. (Aron 1967: 506)

“As ciências que incidem sobre a realidade humana são enfim ciências da cultura (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 506), se entendermos por cultura, não apenas a arte ou a literatura, mas também as leis, as instituições, os regimes políticos, as experiências religiosas, as teorias científicas. Portanto a ciência weberiana significa o esforço para compreender e explicar os valores aos quais os homens aderiram assim como as obras que foram por eles edificadas”.

Ora as obras humanas são criadoras de valores ou são definidas, elas mesmas, através da referência a valores. Como é que pode haver uma ciência objectiva, isto é não falseada por juízos de valor (es), quando as obras sobre as quais a ciência incide, estão elas próprias carregadas de valor(es)? Se as obras são criadoras de valores, elas são assim criadoras de algo que as inviabiliza como possibilidade de que sobre elas possa incidir a elaboração de juízos de facto universalmente válidos.
Ciências da cultura é assim uma contradição nos termos. Não pode haver ciência onde reina justamente a falta de universalidade… objectividade onde reina a subjectividade, etc. Os juízos de valor falseiam. Uma coisa é a relação aos valores (Wertbeziehung) que é constitutiva das ciências sociais e o juízo de valor (Wertuteil) que é antinómico do juízo científico, uma vez que é sempre pessoal e subjectivo.

Raymond Aron

nasceu em 1905 em Paris oriundo de uma família judia e burguesa da Lorena. Foi normalien, o que é um título de nobreza intelectual em França. Na École Normal Supériur de Paris, conviveu com Sartre, Marrou, Nizan, Canguillem, entre muitos outros espíritos brilhantes. Colaborou com Braudel na Escola de Altos Estudos e realizou cursos no Colégio de França. No domínio da política foi próximo de Malraux e De Gaulle. Faleceu em Paris em 1983. Além das Etapas do Pensamento Sociológico, Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto, Weberm eu destacaria O Ópio dos Intelectuais de 1955 – Livro dedicado ao Marxismo e as 18 Lições Sobre a Sociedade Industrial de 1964.

3 Dez 2015

Elogio da Modernidade

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta obra de Jean Luc-Ferry e Alain Renaut é muito importante, uma vez que, embora centrada na análise política da obra de Heidegger, constitui também o princípio de uma crítica aos críticos da Modernidade.
A ruptura permanente e constante com a tradição após o advento da modernidade abriu feridas profundas no plano mental, social e político. Qualquer crítica radical e destrutiva da modernidade implicaria também uma crítica dos valores democráticos. Este é de todos os critérios, o critério. Convém não esquecer que a Modernidade tal como a conhecemos é indissociável, dos direitos humanos, das sociedades abertas e da democracia simplesmente; além de que é também indissociável da ideia de progresso e da ideia de felicidade secularizada. O que não é de somenos.
É contudo, um facto que o fim da tradição e os progressos do individualismo nos fizeram perder a possibilidade de nos referirmos a certezas estabelecidas. Isso originou um certo desconforto. Mas, em minha opinião, não temos como fugir a esse desafio. Mais grave, penso, é o carácter incompleto e por vezes titubeante da revolução que desencadeámos. O processo de secularização tem muitos inimigos. O humanismo também.
O essencial do humanismo, para os inimigos do humanismo, consiste na atribuição ao homem de uma essência e de uma natureza. Ora nada mais falso. O que caracteriza o humanismo moderno é justamente o facto de considerar que o homem é um nada do ponto de vista da sua eventual natureza ou essência. O homem moderno tem como essência o facto de não ter natureza, o facto de não ter essência.
Sabe-se que para lá de Heidegger ou Nietzsche, tidos como os alicerces da Pós-Modernidade, com quem os autores deste livro pretendem ajustar contas é com Foucault e com Derrida, entre outros.
Já Rousseau dizia que “o homem aparece como sendo o único ser para o qual nem a história nem a natureza podem constituir códigos”

Importantíssimo:

Se há uma propriedade própria do homem, uma autenticidade (eigentlichkeit), só pode consistir nesta capacidade (chame-se-lhe transcendência ou liberdade, vai dar no mesmo), de se subtrair a toda as amarras de uma essência. Se o existencialismo é um humanismo, então é verdade que o humanismo é sempre um existencialismo, através do qual a existência do homem (ek-sistence=transcendance, a capacidade de se separar dos códigos) está sempre além de qualquer redução a uma essência.
O homem visa o universal justamente enquanto nada, uma vez que não se deixa confundir jamais integralmente com nenhuma identidade particular. Ser capaz, ter o poder de se subtrair a todo e qualquer particularismo é nisso que consiste a possibilidade de visar a universalidade. É porque é nada que pode visar o universal. E é por isso que a inter subjectividade é determinante para a questão do humanismo.
A crítica heideggeriana da metafísica (a sua leitura) consiste nisto: A metafísica é o apagamento das diferenças e de toda a alteridade, em proveito de um projecto fantástico de domínio total, exercido sobre o mundo tornado perfeitamente transparente e manipulável para o sujeito. E esta metafísica da subjectividade é a modernidade em si mesmo. Heidegger procura mostrar, à saciedade, que do nascimento da subjectividade ao universo da técnica, a consequência é inevitável. O problema, e não é um problema menor, é que condenar essa realidade assim radicalmente implica a pura rejeição da subjectividade, e o problema é que sem ela não haveria democracia, uma vez que a democracia mobiliza as energias de maitrise e de vontade que Heidegger tanto condena.
É preferível condenar o homem ao estatuto de não poder ser o senhor e o autor da totalidade das suas acções e ideias. A verdade é que destruindo o sujeito se destrói a autonomia que construiu a vida social e política moderna, quer dizer democrática. Para mim o conceito de autonomia, no sentido kantiano do termo, e no sentido das filosofias contratualistas, é absolutamente vital. Sem subjectividade não há autonomia nem Crítica, e sem estas não há democracia e nem mesmo responsabilidade ética.
Para Heidegger, técnica é igual a metafísica acabada. Mas a metafísica da subjectividade é desde Descartes uma antropologia ou seja um pensamento do homem como fundamento. Do ponto de vista prático o étant (ente) é dado como objecto para a vontade e radica na transformação kantiana do eu penso em eu quero. Tudo vai desembocar na autonomia da vontade kantiana.
Mas para Heidegger o homem da modernidade não é mais do que o funcionário da técnica = Seigneur de l’étant (Senhor do mundo das coisas). Nesta perspectiva a metafísica moderna consiste em conceber o real como obedecendo aos princípios constitutivos do espírito humano, o que culmina na afirmação hegeliana da identidade do racional com o real ou à transferência ontológica leibniziana do princípio de razão para o próprio real, o que culmina na expressão de que nihil est sine ratione.

Modernos e anti modernos

O trágico da modernidade é inerente à própria dinâmica do individualismo democrático. E o individualismo democrático (eu diria já do sujeito) consiste na luta (eventualmente colectiva) dos indivíduos contra as hierarquias em nome da igualdade, e contra as tradições (heteronomia), em nome da liberdade (autonomia).
Um dos rostos que resultam da crítica da modernidade aponta claramente para um retorno ao universo pré moderno da tradição. Depois de terem identificado a democracia, como subjectivização do mundo, ao universo da técnica que inevitavelmente resulta da própria subjectivização, é lógico que encontrem uma escapatória através da nostalgia pelas sociedades hierarquizadas segundo as normas da tradição. Sociedades holistas não democráticas, estamentais e enraizadas.
O marxismo e o heidegerianismo fizeram um percurso comum centrado na crítica e na denúncia dos efeitos dominadores da razão instrumental. Na linha de Max Weber e Marx, Adorno e sobretudo Horkheimer empreendem uma verdadeira desconstrução desse mundo administrado (verwaltete welt), caracterizado essencialmente pela cultura de massa, à qual conduz inevitavelmente o império da razão técnica. Vamos de Max Weber e Heidegger até ao marxismo e à filosofia da Escola de Frankfurt com toda a naturalidade.
Para todos estes autores, o mundo administrado não é mais do que o tornar-se mundo da metafísica da subjectividade, cujo ponto culminante é atingido com a Lógica de Hegel. Simplesmente na filosofia crítica de Frankfurt é em nome de um futuro pensado como razão objectiva e não em termos nostálgicos de um recuo para o passado que a crítica se exerce. Aliás na filosofia crítica a cultura de massa é descrita como alienação e não como maitrise, em termos de pseudo racionalidade e não enquanto racionalismo totalmente realizado (A metafísica acabada). Mas com o tempo Horkheimer foi descobrindo a natureza intrinsecamente dominadora da racionalidade, o que leva também a uma desconstrução da modernidade. Enfim seja pela via da tradição ou da utopia o que se critica é a modernidade. E para Heidegger tudo é humanismo: A Aufklarung e o romantismo, o individualismo e o colectivismo, o capitalismo e o fascismo, o nazismo, o estalinismo e a democracia.

Os humanismos
Três grandes tradições
— A tematização da Aufklarung pela filosofia crítica de Rousseau, Kant e Fichte
— A desconstrução romântica da Aufklarung, cujos prolongamentos vão ainda até Hegel.
— A fenomenologia.

A crítica romântica do humanismo das Luzes

Sob muitos pontos de vista a crítica romântica da Aufklarung antecipa-se relativamente à desconstrução heideggeriana da metafísica da subjectividade. No fim de contas o que é denunciado, na ideologia das Luzes pelos românticos, é justamente a pretensão da subjectividade (do sujeito, do eu), entendida como consciência e vontade de reconstruir o mundo, fazendo tábua rasa da tradição (O seu artificialismo prometaico e radical, portanto). Uma das oposições maiores da filosofia das luzes é entre o direito natural (jusracionalista no caso das Luzes) e o direito positivo. [Entre o dever-ser e o ser, entre o sollen e o sein]. Estes direitos opõem-se tal como a transcendência à imanência. O universal ao particular. O direito das luzes pretende a universalidade face a um direito positivo e histórico que é sempre um direito particular.
Para se perceber bem a evolução que se dá das Luzes para o Romantismo é necessário perceber muito bem o conceito nuclear de Vida (vitalismo); e para isso é necessário percorrer antes o trajecto que vai desde a Crítica da faculdade de julgar de Kant até aos primeiros trabalhos sobre a natureza (Naturphilosophie) de Schelling.
Os românticos (Savigny) promovem uma ontologia vitalista.
— Para os românticos o indivíduo é a comunidade nacional.
— A rejeição do individualismo (do indivíduo, do sujeito, da liberdade enfim) e da transparência das normas, vão de par com o nacionalismo vitalista, daí que a crítica romântica tanto se adeqúe à crítica do pensamento contra revolucionário (De Maistre, De Bonald, etc.)
O romantismo ao rejeitar o humanismo abstracto (centrado numa artificialidade absoluta) oferece do homem uma imagem em que o identifica à comunidade nacional da qual ele não é mais do que membro, uma realidade secundária.
Ora é o contrário que é promovido pelas Luzes: A ideia essencial de Rousseau e de Kant segundo a qual o homem se caracteriza pelo contrário pela sua capacidade de transcender toda e qualquer definição particular, de ser capaz de se separar de todas as determinações históricas, biológicas, nacionais, para entrar em comunicação com outros homens, isso é que constitui o humanismo abstracto que é denunciado pelos contra revolucionários (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988: 162).

Crítica fenomenológica e crítica criticista do romantismo

Se por um lado a posição de Heidegger coincide com a crítica do humanismo abstracto a verdade é que o próprio romantismo aos olhos do filósofo alemão não é mais do que um momento da metafísica moderna. Heidegger percebeu bem através da fenomenologia de Husserl a crítica do psicologismo assim como de todo o vitalismo historicista.
A lição de Husserl é límpida: Se a psicologia, a história ou a vida são concebidas como códigos que determinam totalmente os comportamentos humanos, a distinção entre humanidade e animalidade, quer dizer entre humanidade e coisidade desaparece.
Volto a Insistir: É a partir da capacidade de se destacar das suas determinações (ou seja a partir da sua liberdade para usar a linguagem de Kant, ou da sua transcendência para seguir Husserl, ou ainda a partir da sua existência segundo Sartre ou finalmente da sua ek-sistência na expressão de Heidegger), dentro do nada entendido como a possibilidade de não ser definido através de um código em geral, que reside propriamente a humanitas do homem, o seu Eingentlichkeit.
É o que Heidegger desenvolve na sua Carta sobre o humanismo: O que o homem é ou na linguagem tradicional da metafísica ocidental, a sua essência, repousa na sua ek-sistência, ou seja a faculdade que o homem tem como ente particular, de se separar do mundo dos entes, de transcender esse mundo, para colocar a questão do pensamento, ou seja a questão do Ser.
O Da-sein é literalmente o aí do Ser, a abertura ao Ser, pelo que não são colados (agarrados) ao ente na procura maquinal e imperiosa (tirania do ciclo vegetativo, chamava-lhe Arendt) da satisfação das necessidades vitais.
O contrário disto é o estado decaído da reificação como nos regimes totalitários, anulada que está a possibilidade da acção, o ser aparece como simples jogo da natureza na versão da raça ou da história ou ainda na versão da classe (paradigma sociológico. O poder de codificação social, a socialização, adultera a relação do homem com a liberdade de agir que, contudo lhe é constitutiva).
Depois segue-se a bela digressão sobre a noção sartriana de que a existência precede a essência. Sendo essa a marca própria do homem. Contudo a narrativa criacionista introduz de novo a essência antes da existência. Deus é então o grande artesão e o homem a sua mais genial criação, mas ainda assim um objecto uma vez que a sua essência está de avanço determinada e nessa altura a existência é algo que se vem inscrever num molde já definido ainda que muito complexo, ou mesmo se.
A inautenticidade é o esquecimento da sua própria transcendência, esta negação da liberdade que consiste em fazer como se fosse um ser (uma essência), como se a natureza ou a história pudessem tornar-se os nossos códigos.
É Kant que traduz melhor e de modo coerente a visão da história que sustém este novo humanismo, segundo o qual o ideal de uma comunicação universal não é um modelo imposto, mas a consequência rigorosa da definição do homem como nada: “É ao arrancar-se à particularidade das identidades nacionais que o homem pode entrar em comunicação com outras culturas e atingir assim a universalidade”, (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988:170)

Fenomenologia e criticismo: O ponto de clivagem.
A crítica, a valorização e a desvalorização é já especificamente uma ideia moderna, na medida em que ela requer a instauração do sujeito como instância de avaliação.

5 Nov 2015

A oscilação das conjunturas

Cortesão, Jaime, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração, Lisboa, Seara Nova, 1940

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om este autor e com este livro e finalmente com este texto sinóptico e analítico dou início a um conjunto de fichas de leitura subordinadas à ampla temática da cultura portuguesa entendida de uma forma ela mesma muito ampla, pois nela caberão textos de vária proveniência das ciências sociais com predominância da história da civilização. Começo assim com um autor que no quadro das discussões em torno da originalidade e autonomia de Portugal concebeu justamente uma tese complexa e com contornos eclécticos, carreando para a sua teoria materiais de vária ordem disciplinar e temática. Mas hoje não é esse o livro de Jaime Cortesão que trago aqui. Ele virá na altura própria. Hoje aborda-se um dos episódios mais dramáticos da vida nacional, o momento da perda e sobretudo recuperação da independência nacional.
Nesta obra A Geografia e a Economia da Restauração Jaime Cortesão desenvolve uma das mais interessantes interpretações construídas em torno da perda da independência de Portugal em 1580 e da sua recuperação em 1640.
Jaime Cortesão estabelece uma interdependência entre a história política e a história económica e social, e para esse efeito associa o período da História de Portugal do Antigo Regime, onde se integra a União Dinástica, aos ciclos coloniais da economia nacional sabendo que os ciclos económicos tiveram repercussões nos fenómenos de configuração e reconfiguração social.
Quando a questão da independência se coloca em 1580, a sociedade portuguesa está exaurida e a classe média que tão importante tinha sido em 1383-1385 durante a revolução, quase tinha desaparecido, como resultado da proeminência do comércio das especiarias no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Índico. Este comércio, concentrado em Lisboa e na Casa da Índia tinha provocado a anemia dos portos de menor escala, assim como do comércio que os dinamizava. O resultado teve consequências graves pois faltava na sociedade portuguesa uma burguesia patriótica capaz de se opor às pretensões castelhanas.
Depois em 1640 tudo se tinha alterado, uma vez que o comércio do tabaco e do açúcar com o Brasil no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Atlântico, pela sua natureza, tinha permitido a reanimação da classe média assim como das cidades (portos de pesca) de escala intermédia. Esta classe média patriótica começa a ameaçar o equilíbrio da União dinástica do qual foram expressão as Alterações de Évora em 1637, o Manuelinho de Évora, mas também as profecias do Bandarra, que agitava as consciências a Norte. As classes nobiliárquicas pressentindo o perigo de uma nova revolução à imagem e semelhança de 1383, resolveram agir patrioticamente. É esta pelo menos a interpretação de Jaime Cortesão, neste notável livro em que ele articula economia, sociedade e destino político.

20 Ago 2015