Zé Eduardo, músico: “[Políticos de Macau] pensam que jazz é entretenimento”

Zé Eduardo, um dos nomes cimeiros do jazz de Macau, voltou ao território recentemente para um workshop e um concerto em colaboração com a Associação Promotora de Jazz de Macau. O HM conversou com o músico que nota uma evolução qualitativa do jazz local, apesar de a profissionalização ainda estar a “décadas” de distância

 

Voltou recentemente de Macau para realizar um workshop e dar um concerto. Como foi este regresso após algum tempo de ausência?

Começo pelo fim. A última vez que fui a Macau foi em 2019, antes da pandemia. Em 2020, tinha planeado ir a Macau, os meus alunos iriam a Taiwan, e iria ainda a Banguecoque fazer um workshop. Foi tudo cancelado, até agora. Quando foram levantadas as restrições, os meus alunos falaram logo comigo e perguntaram se estava interessado em ir a Macau. Fui em Julho, comecei a dar aulas no dia 1, e estive três semanas. Costumava ficar quatro semanas, mas em três anos muitas coisas mudaram. Achei, em primeiro lugar, que Macau está um pouco diferente, tanto economicamente, pois vi muitos pequenos comércios fechados, mas depois explicaram-me que estavam em recuperação. Também me disseram que muitos portugueses foram embora. Realmente notei um impacto bastante grande da pandemia.

Em termos musicais, como encontrou Macau?

Encontrei muito menos alunos. Explicaram-me que isso se devia a vários motivos, um deles ao facto de este ter sido o primeiro Verão em que os residentes de Macau puderam sair de férias. Acredito que tenha sido essa a principal razão. Foi a primeira vez que tive 15 ou 20 alunos, costumava ter sempre, nos oito ou dez anos anteriores, até 50 alunos. Com equipas maiores, e quando o financiamento era do Governo, chegava a ter cerca de 80 a 90 alunos. Nota-se também o facto de eu ter deixado uma escola a funcionar, que é a Associação de Promoção do Jazz de Macau. É um grupo de jovens músicos chineses locais, com um ou dois portugueses. Há dez anos começaram a ter aulas comigo e agora os que foram meus alunos já dão aulas. Notei que os alunos que participaram agora neste workshop são muito melhores do que aqueles que encontrei até aos anos da pandemia. Nestes anos treinaram os alunos de base, os iniciados. Agora há um nível de entrada [na carreira musical] que não é nada mau, e foi isso que me surpreendeu pela positiva.

Fale-me um pouco deste projecto de ensino ligado à associação.

Em 2012 um amigo, ex-aluno do primeiro workshop que fiz no território, em 1996, ainda por intermédio do Clube de Jazz de Macau, [apoiou-me], e consegui [contacto com] vários portugueses, ligados ao clube, que conseguiam arranjar financiamento. Depois tinha alguns alunos chineses e até filipinos, mas esses portugueses depois foram todos embora, à excepção de alguns. José Sales Marques também estava lá e sempre esteve muito ligado ao Clube de Jazz desde os anos 80. Não era músico, não se misturava, mas era da direcção. Um dos portugueses que ficou por lá foi Miguel Campina, arquitecto, meu amigo, que é músico amador, toca bateria, e fez parte desse grupo inicial. A partir daí, fui em 2001 ainda através de portugueses que já nada tinham a ver com o Clube de Jazz. Em 2012, voltei graças a uma senhora chinesa e um ex-aluno que me conhecia desde 1996. Foi nesse ano que conheci a Associação de Promoção de Jazz. Em 2013, continuei a ir lá, mas em 2015 as coisas começaram a correr mal, porque acabou o financiamento [público]. A minha amizade e ligações com a associação eram mais duradouras e a partir de 2016 já fui só a convite da associação [sem financiamento público]. Fui com muito menos dinheiro, porque eles recebem subsídio, mas sem ser aquelas quantias exorbitantes, ao ponto de nunca mais poder ir a Macau com um grupo de professores, passando a ir sozinho. Fui sempre, todos os anos, até à interrupção da covid-19.

Tem havido uma evolução positiva no panorama jazz do território?

Sem dúvida. Em 2019, fui contactado pela Fundação Jorge Álvares sobre o meu interesse na participação na conferência internacional que habitualmente organizam, sobre música e instrumentos chineses, com académicos de todo o mundo. Disse apenas que não percebia nada de música cantonense e que apenas era professor de jazz em Macau. Queriam que explicasse, precisamente, o “milagre” que tinha feito no território. Já nessa altura sabiam o que estava a ser desenvolvido. Muitos jovens foram estudar para fora e já tocam muito bem.

Considera que houve uma maior profissionalização do jazz.

Muito maior. Não tem comparação. Quando fui a Macau em 2001 lembrava-me Portugal nos anos 70.

Quando o jazz era inexistente, nesse período do pós-25 de Abril.

O jazz em Portugal era quase inexistente, éramos três ou quatro a tocar e os restantes eram todos músicos amadores. Eram arquitectos, tinham outras profissões. Macau, em 1996, ainda era pior, era Portugal antes do 25 de Abril. Portanto, a cena do jazz só começou mesmo a surgir em 2012, é algo muito recente, e tudo começou com a realização dos primeiros workshops irregulares. A regularidade, nestes casos, é muito importante. No início, quando levava muitos instrumentos e professores comigo, era demais para os alunos que tínhamos. O nível deles era muito básico. Depois, como disse, o financiamento do Instituto Cultural terminou e ainda bem, porque passou a haver relações mais pessoais, que é como gosto de trabalhar. Tudo isso resultou no facto de os alunos agora, apesar de menos, terem um melhor nível, porque quando se candidataram ao workshop já tinha sido feita uma selecção, e isso é muito importante. Em Portugal faz-se isso há 40 anos. Já temos o jazz no ensino superior, por exemplo, e Macau ainda precisa de umas décadas para chegar a esse nível. A semente está lançada e vai chegar lá. Só tenho pena de não viver mais 50 anos para ver isso concretizar-se. Muitos jovens vão hoje para fora, para Taiwan por exemplo, que é barato e onde se fala chinês, chegam a Macau e não têm trabalho, têm de dar aulas.

Não existem muitas saídas profissionais.

Não. É como em Portugal, os jovens da chamada média burguesia, com dinheiro para estudar nos Estados Unidos ou Holanda, até constituírem família podem andar a fazer concertos por aí, mas se querem ficar em Portugal e ter uma casa, mulher e filhos, estão tramados, têm de ir para o ensino. Em Macau já estão alguns músicos assim, porque não há nenhuma saída, não há festivais de jazz, por exemplo.

Conhecendo Macau há alguns anos, é uma sociedade cujo sector do turismo continua a não ser muito receptivo, ou acolhedor, em relação ao jazz, por exemplo, para a organização de eventos?

São as tais décadas que ainda terão de passar. Em Portugal, esse processo também foi muito difícil, foram precisos muitos anos. Tive a sorte de não ter morrido e ter vivido isso tudo [a mudança]. Nem sequer foi com o 25 de Abril, foram precisos muitos mais anos. Vim de Barcelona [para Portugal] em 1995, onde fui director de uma escola de música durante dez anos. Fui para o Algarve e fiz tudo o que me veio à cabeça [para promover o jazz], sempre a pedir financiamento público. Fiz uma associação em 2001, e como tenho algum prestígio, deram-nos subsídio.

Qual é a associação?

Associação Grémio das Músicas, da qual ainda sou presidente. Organizava workshops todos os anos e fiz o que sempre quis fazer em Macau, mas que nem sempre consegui, devido a algumas crises e convulsões internas.

É um dos grandes nomes do jazz em Portugal. Quando olha para trás, sente que valeu a pena o percurso feito, como músico e educador?

Não me arrependi de nada. Ao contrário de muita gente, que tem de ir para o ensino porque não tem alternativa, eu gosto de ensinar. Não gosto de coisas e subsídios megalómanos, porque eu sou um formador por vocação, quase como o sacerdócio. Gosto de formar, e gosto acima de tudo quando os alunos estudam. Em Macau vai ser muito difícil, porque está ainda nos anos 70 de Portugal. Voltando à minha experiência no Algarve, fundei dois festivais de jazz, eu sei lá o que fiz. Só ao fim de 20 anos é que a cidade de Faro me deu a medalha de mérito cultural. Faça as contas de quanto falta a Macau. Quando é que Mars Lei [músico e fundador da Associação Promotora de Jazz] vai receber uma medalha de mérito? Ele também é jovem e ainda não fez muito do que eu já tinha feito com a idade dele. Mas, para mim, a forma como as pessoas se “mexem” [para realizar este tipo de actividades] é um pouco incompreensível, porque é uma sociedade um pouco diferente.

Há falta de sensibilidade, da parte da classe política de Macau, em relação ao jazz?

Claro que sim. Pensam que o jazz é entretenimento, e quando organizam actividades arranjam o jazz mais comercial que existe. O jazz não é para se ouvir em grandes salas, mas em clubes, para trazer coisas boas, artistas que fazem criações como os pintores ou os poetas. Os políticos em Portugal sabem, hoje, que o jazz é cultura e só serve para perder dinheiro. Em Macau, pensam que é entretenimento. Está tudo dito, não preciso afirmar mais nada. Enquanto pensarem assim vão ser necessárias muitas décadas [para mudar a mentalidade].

7 Ago 2023

Jazz | “The Bridge” e “Chak Seng Latin Group” actuam este sábado

A fim de celebrar o Dia Internacional do Jazz, que se assinalou no último domingo, o Clube de Jazz de Macau promove, este sábado, um concerto com dois grupos musicais locais, “The Bridge” e “Chak Seng Latin Group”. O evento acontece no Grand Lisboa Palace a partir das 19h

 

Os eventos musicais promovidos pelo Clube de Jazz de Macau estão de regresso e, desta vez, o concerto serve para celebrar o Dia Internacional do Jazz que se celebrou este domingo. O Clube, que teve o apoio da Sociedade de Jogos de Macau (SJM), leva ao palco do “Grand Pavillion”, no Grand Lisboa Palace, no Cotai, o espectáculo com duas bandas de jazz locais, os “The Bridge” e o colectivo “Chak Seng Latin Group”. O cartaz apresenta não apenas sonoridades de jazz, mas faz também uma fusão com outros estilos musicais.

A banda “The Bridge” já é bem conhecido do público local, pois há cerca de 30 anos que actua em inúmeros locais e salas de espectáculos do território. O grupo é composto por sete músicos, nomeadamente Phil Reavis, Humphrey Cheong, Wilson Chan, Ramon Joaquin, Andrew Cheong, José Chan e Ray Elma.

Por sua vez, o “Chak Seng Latin Group” é liderado pelo pianista de jazz e saxofonista Lam Chak Seng, residente de Macau e formado pelo Conservatório Real de Haia, na Holanda. O músico actua ainda com o guitarrista Chen Hanchong, o vocalista Chen Xiaoman, o saxofonista Zhang Yichen, o trompetista Tong Xiaoshu, o baterista de Guangdong Chen Qing Xiang e ainda o baixista Zhu Nan.

Todos são músicos experientes que já actuaram em diversos festivais de música não apenas na Ásia, mas por todo o mundo. O grupo é conhecido do grande público pelas actuações versáteis que passam por sonoridades diversas que vão além do jazz e que incluem a música latina, pop e raras adaptações do jazz chinês tocado e composto no sudeste do país. No ano passado o grupo recebeu o convite para actuar na competição China Blackpool Latin Dance na província de Guangdong.

Lembrar Herbie Hancock

O concerto tem um custo de 300 patacas e termina por volta das 23h. Esta iniciativa, além do apoio da SJM, teve o suporte do Fundo de Desenvolvimento da Cultura. A edição deste ano do Dia Internacional do Jazz teve como objectivo lembrar o enorme percurso musical de Herbie Hancock, pianista americano nascido em Chicago, com 83 anos.

A efeméride, promovida pela UNESCO, incluiu uma série de concertos realizados em todo o mundo, de Pequim a Washington, com vista a reduzir as diferenças culturais entre povos com recurso ao jazz, para que, através da música, se promova um mundo com um maior diálogo entre os povos. Macau adere, assim, com o concerto de sábado, a esta iniciativa de cariz global.

De frisar que desde 2021 que o Clube de Jazz de Macau não promovia espectáculos no território. A última iniciativa, intitulada “Jazz on the Rocks”, contou com músicos locais e as cantoras Annie e Winnie. Também em 2021 o Dia Internacional do Jazz foi celebrado com os “The Bridge” e “Tomos Griffiths Big Band”.

2 Mai 2023

Maria Monte, sobre EP “Laços”: “Este é um trabalho de grande serenidade e intensidade”

Há muito que a música fazia parte do mundo de Maria Paula Monteiro, mas em prol de uma carreira na área da produção e assessoria cultural foi ficando para trás. Os tempos de pandemia levaram-na, com o nome artístico de Maria Monte, a lançar o EP “Laços”, com produção do músico João Caetano e apoio do Instituto Cultural. Este é um trabalho onde o jazz é protagonista mas, acima de tudo, onde os afectos com Macau estão muito presentes

 

“Laços” será lançado no próximo dia 26 em várias plataformas digitais. Como chegou a este projecto?

Há muito que acompanho o músico João Caetano e eu própria sempre tive esta componente forte que é a parte artística. Vi um miúdo a crescer também com essa componente da música. [A música] sempre me interessou mas era difícil porque eu tinha uma carreira, e acabei por migrar este esforço para os outros. Isso aconteceu com o João [Caetano], ajudei-o na gestão da carreira. Ele em Londres é um músico muito reputado. A determinada altura estávamos a trabalhar e ele propôs-me voltar a fazer algo na música, e eu disse “porque não?”, sobretudo nesta fase de confinamento. Começamos o ano passado a trabalhar nas letras e nas músicas e houve uma arquitectura fabulosa entre três lugares, Macau, Reino Unido e Portugal. Nasceu este “Laços”, porque no fundo são laços de itinerância, de afecto, que nos comprometem a todos os que são itinerantes, que é o meu caso e o do João. Há um compromisso de afectos muitos firmes às cidades por onde passamos e onde registamos toda a nossa carga artística.

Este projecto é apenas um EP. Pretende avançar para um álbum, ou fazer espectáculos?

O projecto terá continuidade, queremos completar o registo para um espectáculo. O João foi buscar os melhores músicos de jazz com que trabalha, que são excepcionais e que têm uma carreira internacional. Trabalhou com um deles na área dos arranjos musicais. A gravação da voz foi feita em Portugal e aqui a parte digital fez uma grande diferença para que este projecto pudesse avançar. Tudo ficou na onda que queríamos, que era a do jazz cadenciado, que pudesse dar-nos a entender uma espécie de uma viagem, em que acabamos todos nós por estar de uma forma ou de outra.

No que diz respeito às letras, são apenas da sua autoria?

As letras sou eu que as faço. São quatro temas, e o último, “Concha”, tem o refrão inspirado num livro de poesia da minha mãe, que é poetisa e já tem uma série de livros lançados. “Macau” é minha, incluindo a música, e “Primavera” e “Concha” são dois temas que, na parte da música, são feitos com o João.

Porquê a escolha de “Primavera” para single de lançamento?

Esta é uma canção de esperança em tempos de pandemia. Na primeira quarentena que fomos obrigados a respeitar em Portugal tínhamos uns poucos minutos de liberdade, e no meu caso esses minutos eram passados a correr entre as seis e as sete da manhã, quando não havia vivalma perto do mar. Há essa ideia de esperança, de que o coração não pode morrer, não se pode estreitar nestes tempos de dor. Há um grito de esperança. No fundo a música é um grito de esperança que temos de ter no meio desta solidão, nem que seja ao correremos num paredão e voar como voam as gaivotas. Esses momentos, que podem ser meros segundos, já são os necessários para podermos ultrapassar tudo aquilo que será o nosso dia. E é a esses pequenos momentos a que temos de nos agarrar.

Este trabalho pretende também dar esperança a quem o ouve.

Através deste single, deste primeiro tema. É um tema de esperança, mas existe um outro, de grande afectividade [sentida] por todas as pessoas que viveram em Macau, sem excepção. Há uma afectividade que temos para com Macau e é quase uma relação apaixonada que não morre. Essa música é de facto uma canção apaixonada pela cidade, que se transmuta como um ser vivo. E aí estão patentes os laços de que falamos. Em “Concha” também há um pouco disso, é muito jazz, é um tema onde me recordo dos momentos que passava no Clube de Jazz de Macau. Tem todos aqueles sabores desse ambiente de amigos. Na década de 90 tínhamos estes cantos junto ao rio. Era ali que se reuniam os amigos e onde passávamos [bons momentos] e há ali qualquer coisa dessa atmosfera.

Como descreve este EP?

Este é um trabalho de grande serenidade e intensidade ao mesmo tempo, e é muito revelador de muitos estados. Há aqui de facto um calor que é a minha relação de afectos que espelha o meu núcleo de forças que ainda está em Macau. Há também um colete de forças das pessoas que já estão aqui em Lisboa, mas este é um trabalho também de itinerâncias. Houve uma série de pessoas que se juntaram para fazer este projecto e é uma coisa de vários locais, como África onde cresci e vivi durante muito tempo.

9 Fev 2021