Pensar a vida

As cidades, por maiores que sejam, acabam por se dividir em pequenos bairros, por vezes não maiores que duas ou três ruas, nos quais toda a gente – para o bem e para o mal – se conhece. Isso não acontece na suburbia porque a suburbia não foi, de raiz, pensada para ser assim; não foi, aliás, pensada. A suburbia é um polvilhado difuso de blocos de apartamentos que aparecem onde quer que haja espaço e ligações à cidade que a alimenta. É uma necessidade habitacional criada pelas oportunidades de emprego intensivo e mal pago que a cidade oferece. Essa oferta não inclui, claro está, direito de habitação ou usufruto. A cidade, para aqueles que a frequentam na perspectiva única de formiga obreira, empurra para fora de si à tarde aquilo que, pela manhã, convoca e abraça.

E a vida dos bairros da cidade pode ser mais ou menos a mesma anos a fio. Duas pastelarias razoáveis – uma com o café mais barato do que na outra mas mal servida de bolos –, uma funerária onde amolece amarelada, na montra, uma Nossa Senhora sem protector solar, uma loja de fotografias involuntariamente transformada em museu-galeria do bairro, por onde as pessoas passam, apontando: «olha, que é feito desta?», uma lavandaria onde a mitralhada da rua vai beber café na máquina de venda automática – porque é mais barato – e na qual a turistada vem lavar e secar a roupa, tasquinhas de bêbedos intemporais, tasquinhas de carapauzinhos fritos com arroz de tomate, tasquinhas de bola, minis e tremoços com balcões altos onde a dona, nos dias de mais algazarra, se pendura, furibunda, alçando-se naquela voz de atrair morcegos, de tão aguda: «mas vocês pensam que estão em casa???»

Estes bairros correspondem a ciclos de vida na cidade. E estes ciclos existem desde sempre (ou, pelo menos, desde que há cidades e desde que há bairros). As pessoas nascem e morrem, os negócios aparecem e desaparecem consoante as necessidades das pessoas e os avanços tecnológicos, as fachadas vão levando umas obras a ver se a coisa se segura, o recheio das casas vai mudando. É todo um ecossistema urbano no qual as pessoas modificam e são modificadas por aquilo que os rodeia.

Esse ecossistema, em grande parte de lisboa histórica, estava em claro declínio. Nalguns casos, estava mesmo moribundo. A casualidade de termos sido descobertos como destino turístico bom e barato revitalizou grande parte desses bairros, embora o tenha feito ao modo da erva daninha, reclamando espaço apenas para si e sufocando o que crescia, a custo, a seu redor. Os edifícios cai-não-cai já não caem; pelo contrário, têm bom aspecto. Mas são enclaves de turistas onde os moradores só entram, no máximo, para limpar e fazer camas. Nada do que foi recuperado na cidade o foi pensando nas pessoas que nela habitam. Estas são, no limite, figurantes com interesse zoológico, adereços para esconder o plástico que vai corroendo e substituindo, todos os dias um pouco mais, a vida.

Esta interrupção impensada e involuntária causada pela pandemia devia pôr as boas alminhas que nos governam a pensar no modelo de cidade que propuseram como necessidade pós-troika. Por essa Europa fora não faltam exemplos de sítios que o turismo descobriu e rapidamente consumiu na ânsia de tudo ver e catalogar sem realmente se imiscuir. O teste de fogo são estas autárquicas que se avizinham e o Verão de 2022. Até ver, business as usual.

18 Jun 2021

Cidades, Escher e o demónio

[dropcap]D[/dropcap]esde criança que desenho cidades. O meu pai construía-as em cartolina e iluminava-as com luz eléctrica num sótão de Santarém que nunca conheci. O meu irmão sempre as desenhou geométricas, bastante ensimesmadas e a três dimensões muito antes de se falar em 3D. No meio desta genealogia familiar, as minhas cidades são as mais selvagens em toda a linha: traços desordenados, proporções sem cabimento, perímetros desconsabidos. No entanto, vistas como quem observa arte informalista, reconheço que há nelas um certo jogo de volumes, linhas de força apreciáveis e uma poética que rasga os planos da lógica. No fundo, não são cidades; serão vincos fundados por uma qualquer civilização invisível.

Chego assim de modo rápido à minha definição preferida: uma cidade é um vinco. Sim, um vinco cavado e escavado num território particularmente desejado onde os humanos decidiram um dia viver. Vincar é uma forma de ênfase que remete para sublinhar, acentuar ou adensar. É isso precisamente que uma cidade faz à paisagem que a rodeia: enruga-a, marca-a, dobra-a, numa palavra – perdoe-se-me a insistência – vinca-a.

Este vinco está sempre em mutação, razão pela qual o citadino sente um inevitável desfasamento entre a cidade da sua infância, a da velhice e a que o sucederá no futuro. “Esta já não é a minha cidade” ou “não chegarei nunca a ver a minha cidade tal como a imaginei” são frases que traduzem a ocupação da urbe pelo seu habitante. Este imaginário existencial de um continuado estaleiro que, ao fim e ao cabo, se confunde com a própria essência da cidade, foi levado ao extremo por Baudelaire. Toda a sua poética reflecte a perda e a perdição da Paris que o viu nascer face aos projectos de Haussmann que, como se sabe, demoliu e redesenhou toda a cidade no terceiro quartel do século XIX. O “spleen” e figuras como o “dandy” ou o “flâneur” – todas elas fruto desta impiedosa metamorfose – fazem parte de uma cidade que Baudelaire nunca, de facto, viria a conhecer.

O habitante do campo não vê projectado no seu exterior este tipo de descaminho, pois a erosão da natureza é muito mais lenta. O “spleen” campestre é cíclico e sazonal, por isso mesmo previsível. De algum modo, o despovoamento sublima a violência da cidade mas não a cura. É-lhe indiferente.

Por outro lado, dentro da cidade, aquilo que é incurável torna-se amiúde em matéria de fascínio. Logo no início do ‘Livro do Desassossego’, Pessoa fala-nos do restaurante localizado numa sobreloja que frequentou durante um certo período da sua vida. Passei por lá há algum tempo e constatei que o edifício fica estrategicamente virado para um dos cruzamentos da baixa. Todo o encadeamento geométrico daquela parcela de Lisboa parece avistar-se das vidraças da sobreloja. E vi-me intuitivamente a concluir que todos os mais de cem heterónimos de Pessoa serão afinal esquinas da baixa de Lisboa, imaginadas como um profuso labirinto pintado ao jeito de Maurits Escher. A visão plural do poeta está de facto ali vincada, acentuada, marcada. Eis como a cidade pode ser uma redoma capaz de encerrar – e ampliar – os limites do humano e das suas visões. O ócio dos personagens de Eça também só tem sentido dentro desta mesma área da cidade. Quando o horizonte de Eça se centra em Leiria, no norte ou no Alentejo, este ‘fastio de dandy acaciano’ esvai-se de imediato. Só a cidade, na verdade, o vinca e lhe concede um milagre que não é, de modo nenhum, apenas literário.

No reverso, a cidade – na sua longa história – também se atreve a excluir. Se lermos a parte final da ‘República’ de Platão, compreendemos que as excitações dos bardos e poetas são um perigo para a cidade perfeita. A um território reduzido, compacto e tão habitado deverá, pois, corresponder tão-só elevação e racionalidade. Se lermos a biografia de Aristóteles, ficamos a saber que, logo após a morte de Alexandre o Magno, teve que fugir de Atenas para a ilha de Eubeia – onde viveria só mais um ano de vida – não fosse perseguido pela caça às bruxas aos macedónios. Se lermos a ‘Cidade de Deus’ de Santo Agostinho e, embora saibamos que se trata de uma poderosa metáfora, não deixa esta obra de ser a apologia de um mundo que desaloja e abjura um outro. Uma cidade vinca e existe para vincar em todo o sentido do verbo, sejamos claros. Todas as muralhas construídas – em pedra ou não – se viraram sempre contra um qualquer demónio.

Ser cidade é, pois, uma forma de organismo sobrevivente que se fecha e que, ao mesmo tempo, deseja a sua própria mutação e depuração. Ora é centrípeta, ora é centrífuga. Ora se refugia no umbigo e inspira, ora escapa de si através de linhas de fuga e expira. Cesário disse-o através de metáforas chãs, mas muito lúcidas: “O tecto fundo de oxigénio, d´ar/ Estende-se ao comprido, ao meio das trepadeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,/ Enleva-me a quimera azul de transmigrar”. Porventura é na arte informalista e também nas abstrações líricas de um Kandinsky ou de um Pierre Soulages – ou, ao invés, nos geometrismos patológicos como o do já citado Escher – que a poética da cidade melhor se entenderá. Onde haja uma folha de paisagem vincada com pessoas reunidas a pensar o vento, então haverá cidade. Continuarei, por isso mesmo, a reinventá-las. Até porque é o tipo de poesia que mais me fascina.

18 Nov 2020

Cidades, felicidade, casas e processos participativos

[dropcap]T[/dropcap]alvez a mais elementar sensatez sugerisse que este fosse assunto deixado exclusivamente ao livre arbítrio dos poetas, ou quando muito de alguns filósofos mais versáteis, mas pelos vistos também há economistas e outros analistas de contabilidades várias a dedicar-se ao tema: a felicidade, nem mais, por estes artífices (entre os quais me conto, já agora) brutalmente transformada em objecto de medida, com as suas engenhosas classificações e os seus inevitáveis “rankings” internacionais, superiormente decretados sob os auspícios da ONU (quem mais nos poderia valer nesta tão premente necessidade civilizacional e planetária, aliás?) e validados por cientistas de renome internacional. Meça-se a felicidade, então, assim por atacado, em cada país, para podermos comparar-nos enquanto povos mais ou menos felizes. Desde 2012 que isso é feito pela “Sustainable Development Solutions Network”, das Nações Unidas, e daí resulta o “World Happiness Report”, publicado desde 2012.

Nesta quantificada – mas nem por isso menos subjectiva – contabilidade da felicidade dos povos, ganham sistematicamente, e com apreciável vantagem, os do norte da Europa: na mais recente versão deste gracioso “ranking”, publicada há um mês e com dados referentes a 2018 – Finlândia, Dinamarca, Noruega e Islândia ocupavam os quatro primeiros lugares, ficando a Suécia pelo 7º. Holanda, Suíça, Nova Zelândia, Canadá e Áustria completam o “top-10” desta tabela, posições manifestamente inacessíveis para os povos da Europa do Sul (a França está no 24º lugar e a Espanha no 30º), da América Latina (com excepção da particular Costa Rica, num magnífico 12º lugar, o melhor é o Chile, em 26%) ou da tragicamente infeliz África (a Líbia ocupa a mais destacada posição, no 72º lugar, ainda assim atrás de Portugal, na mui modestamente feliz 66º posição). Tem sido mais ou menos assim desde que o relatório é publicado.

Verdade seja dita, mesmo que esta contabilidade só muito remotamente possa ser vista como uma aferição relevante da felicidade nacional (seja lá isso o que for), não deixa de sintetizar alguma informação interessante sobre a satisfação de cada povo com a vida que leva – assim numa média relativamente grosseira, que dentro de cada país as diferenças são muitas. O índice é construído tendo em conta indicadores socioeconómicos (riqueza, apoios sociais ou esperança de vida) e de confiança nas instituições (liberdade de associação e de voto, percepção sobre corrupção ou sensação de segurança), cujo impacto nas nossas efémeras existências não é certamente negligenciável. A cultura é que não traz felicidade – isso já se sabia – e talvez por isso não precise de ser contabilizada nesta medida da felicidade humana segundo a ONU.

Vem isto a propósito de ter tido por estes dias a oportunidade de visitar a Finlândia, o país que lidera este ranking, terra de generalizada felicidade segundo os critérios cientificamente avalizados que a ONU utiliza. Participando numa conferência em que o tema geral era a planificação de cidades contemporâneas, o dito ranking foi várias vezes objecto de conversa – e ocasionalmente de sarcasmo, tendo em conta a generalizada circunspecção nórdica e a relativa escassez de sorrisos, já para não falar em abertas gargalhadas. E se havia algum consenso em relação à impossibilidade de se medir a felicidade com base nestes atributos, também se ia concordando que os ditos indicadores oferecem pistas relevantes em relação à forma como as pessoas se relacionam – de forma mais ou menos satisfatória – com os contextos socioeconómicos e institucionais em que vivem.

Acabei por ter um exemplo clarificador numa visita guiada a uma zona portuária em profunda renovação no sul da cidade de Helsínquia. Um arquitecto da autarquia explicou com detalhe pormenores relativos ao desenho de espaços e edifícios, que incluem, por exemplo, caminhos a ligar blocos residenciais, espaços verdes e escolas que permitem a qualquer criança deslocar-se entre estas áreas sem ter que atravessar ruas com tráfego automóvel. Este desenho corresponde, naturalmente, a uma opção política sobre o que deve ser a cidade, mas há outras, tão ou mais relevantes: por exemplo, das habitações que vão servir cerca de 20.000 novos residentes, apenas 45% são transaccionadas no mercado (as restantes são atribuídas por concurso com rendas sociais ou sorteadas e vendidas a um preço a que não supera os custos de produção). Visitando a zona, não se consegue distinguir os vários tipos de habitação, que parecem bastante semelhantes independentemente do regime de comercialização ou utilização. Uma intervenção desta natureza e dimensão tem também o efeito de reduzir a procura de casas no circuito comercial e, por essa via, contraria a tendência para a subida preços.

Quem nos mostra esta nova parte da cidade é um jovem investigador de doutoramento na Universidade de Helsínquia, também pertencente a uma organização de residentes que participa frequentemente nas discussões sobre planos urbanísticos na cidade. Em resultado dessa participação sistemática, foi convidado – com outras pessoas de perfil semelhante – a servir de “mediador” entre grupos organizados de residentes e a Câmara Municipal nos diversos processos de planeamento urbanístico em curso (entre os quais, o desta zona da cidade). Estas práticas institucionais que envolvem as pessoas nos processos de planeamento das suas cidades são radicalmente diferentes das práticas a que costumamos assistir, por exemplo, em Portugal. Da mesma forma, intervir na questão da habitação disponibilizando milhares de casas fora dos circuitos comerciais promove a defesa das pessoas contra o poder das empresas imobiliárias e financeiras. São opções políticas possíveis. E se calhar até ajudam a que se tenha alguma felicidade, afinal de contas. Pelo menos será mais fácil estar satisfeito com a economia e a democracia.

14 Jun 2019

Mega favelas

[dropcap]E[/dropcap]m tempos históricos não muito distantes falava-se de “êxodo rural” para descrever os movimentos massivos da população que deixava a vida no campo e o trabalho agrícola para se deslocar para as cidades, onde se concentravam as indústrias e se esperava aceder às maravilhas da modernidade. Hoje já não é tanto assim: nem sempre a cidade parece ser suficiente para rasgar os horizontes aparentemente necessários e assiste-se cada vez mais a deslocações massivas das zonas urbanas de pequena e média dimensão em direção às grandes áreas metropolitanas – as “mega-cidades”, estatisticamente definidas quando concentram uma população residente superior a 10 milhões de pessoas (a população de Portugal inteiro, portanto).

Em 1950 havia no mundo só uma destas metrópoles. Era Nova Iorque a grande cidade do planeta, símbolo global da modernidade urbana, portadora de uma promessa de futuro, transformada em poesia pela magia do cinema. Depois viria Tóquio, a cidade da utopia tecnológica que liderava o milagre do desenvolvimento económico do Japão após a II Guerra Mundial. Ainda hoje a capital japonesa é a maior área metropolitana do mundo, com cerca de 35 milhões de pessoas em intensa mobilidade quotidiana graças a um impressionante sistema de transportes públicos: das 50 estações ferroviárias mais movimentadas no mundo, 26 estão em Tóquio (e mais 18 no resto do Japão).

Não é assim em todas as “mega-cidades”, evidentemente: muitas delas estão longe de ter as infraestruturas adequadas para tamanhas concentrações populacionais. O permanente congestionamento do tráfego – com a consequentes poluição e o inevitável desperdício sistemático de energia – é frequentemente um desses sinais da desproporção entre a atratividade do lugar, as multidões que por lá circulam e a sua capacidade para alojar em condições adequadas quem chega e fica.

Na realidade, das 33 “mega-cidades” hoje existentes, 26 estão em países classificados como “em desenvolvimento”. As cidades de países ricos (Tokyo e Osaka no Japão, Seul na Coreia do Sul, Nova Iorque e Los Angeles nos Estados Unidos e as europeias Londres e Paris) são excepções numa geografia em que a Ásia é largamente maioritária: 6 “mega-cidades” na China (Pequim, Xangai, Shenzen, Guangzou, Tianjin e Wuhan), 4 na Índia (Mumbai, Deli, Bangalore e Calcutá) e ainda Manila (Filipinas), Jacarta (Indonésia), Dhaka (Bangladesh), Bangkok (Tailândia), Ho Chi Minh (Vietname), Carachi (Paquistão), Teerão (Irão) e também Istambul (na Turquia, graciosamente repartida entre os continentes asiático e europeu). Moscovo (Rússia) está na Europa que não tem estatuto de “desenvolvida”, enquanto Lagos (Nigéria) e Cairo (Egito) são as “mega-cidades” africanas, e Lima (Perú), Cidade do México, Buenos Aires (Argentina) e as brasileiras Rio de Janeiro e São Paulo representam a América Latina neste restrito grupo de super-metrópoles.

Estas transformações nas sociedades contemporâneas são lentas e poucas mudanças se esperam nestas dinâmicas para os próximos anos, segundo as projecções de um estudo apresentado pela Euromonitor Internacional. O impressionante dinamismo económico e demográfico destas super-metrópoles – pelo menos em comparação com o resto do mundo – garante que vão manter a sua importância até 2030, pelo menos, apesar do envelhecimento populacional que se manifesta em várias cidades asiáticas (sobretudo nas do Japão, mas também em Seul, Pequim e Xangai). A confirmarem-se as previsões, Tóquio e Osaca serão as duas únicas “super-cidades” a perder população até 2030, altura em que Jacarta passará a ser a metrópole mais populosa do mundo.

A manterem-se as tendências actuais, 6 novas “mega-cidades” ultrapassarão o limiar dos 10 milhões de habitantes até 2030, continuando o mundo mais desenvolvido a ser uma exceção nestas super-concentrações de população: Chicago (Estados Unidos) será a único caso de uma cidade rica, enquanto os países “em desenvolvimento” contribuirão com mais cinco – Bogotá (Colômbia), Chennai (Índia), Bagdad (Iraque) e duas novas representantes de África, o continente mais tardiamente urbanizado (Dar es Salaam, na Tanzânia, e Luanda, em Angola). Manifestamente, esta é uma escala pouco interessante para os países mais ricos do planeta.

Na realidade, se há nestas “mega-cidades” um dinamismo económico que se traduz, em geral, num acelerado crescimento – e é sobretudo isso que atrai milhões de pessoas – dificilmente esse processo permite desenvolver rapidamente as infraestruturas para as acolher. Não é só o problema dos transportes, naturalmente. É também o da habitação, em zonas urbanas que o capitalismo contemporâneo transforma em produtos transacionáveis e onde os condomínios de luxo (frequentemente vedados e inacessíveis) das áreas centrais coexistem com vastas extensões de bairros precários e informais na periferia. Não é só na Cidade do México, em Bangkok ou no Cairo: a pobreza e a miséria também se estendem pelos subúrbios de Paris ou Nova Iorque. Além de uma população altamente urbanizada, a vida neste planeta no século XXI também se faz com muitos milhões de pessoas nas favelas suburbanas contemporâneas.

17 Mai 2019

Economia | Hong Kong, Singapura e Paris são as três cidades mais caras do mundo

Pela primeira vez, o primeiro lugar no ranking das cidades mais caras do mundo é partilhado por três metrópoles. Hong Kong e Paris juntam-se a Singapura como os locais com custo de vida mais elevado, seguidos por Zurique, Genebra e Osaka. No fundo da lista Worldwide Cost of Living 2019 estão três cidades indianas, Bangalore, Chennai, Nova Deli, Karachi no Paquistão e Caracas

[dropcap]P[/dropcap]ela quinta vez consecutiva, Singapura foi considerada a cidade mais cara do mundo, de acordo com o Worldwide Cost of Living 2019 da Intelligence Unit da revista The Economist. No relatório referente ao ano passado, publicado ontem, Singapura tem outras duas cidades para partilhar o primeiro lugar: Hong Kong e Paris. A região vizinha subiu três posições, em comparação com 2017, enquanto a capital francesa chegou ao topo da lista, depois de ter ocupado o segundo lugar no ano passado.

É a primeira vez, em trinta anos de publicação do Worldwide Cost of Living, que o posto da cidade mais cara do mundo é partilhado a três no estudo que compara mais de 400 preços individuais de cerca de 160 produtos e serviços entre 133 cidades de 93 países. Os itens avaliados distribuem-se entre alimentação, bebidas, vestuário, produtos para a casa, escolas privadas, empregadas domésticas e custos com produtos recreativos.

O estudo, feito duas vezes por ano, tem como objectivo ajudar empresas a calcular subsídios e apoios que tenham em conta o custo de vida e a construir compensações para expatriados e profissionais que viajam frequentemente em trabalho.

Este ano o ranking do Worldwide Cost of Living sofreu várias flutuações, algo que se espelha no top 10, onde apenas Singapura manteve o posto em relação ao ano anterior. Nos primeiros dez lugares, a Ásia e os países europeus de fora da zona Euro, à excepção de Paris, ocupam os lugares cimeiros. As únicas outras excepções à regra geográfica foram Nova Iorque, que subiu seis posições para o sétimo posto, e Los Angeles, que ficou em décimo lugar depois ascender quatro posições.

Em quarto e quinto lugar surgem duas cidades suíças. Zurique ocupa o primeiro lugar depois do pódio, depois de descer duas posições, seguido de Genebra, que subiu uma posição para o quinto lugar, empatado com Osaka, no Japão. No sétimo lugar, juntam-se a Nova Iorque as capitais da Coreia do Sul e da Dinamarca, Seul e Copenhaga. A fechar o top 10, a par de Los Angeles, surge Telavive.

Câmbio dos câmbios

De acordo com o Worldwide Cost of Living, 2018 foi um ano com muitas movimentações transversais em toda a lista, com as cidades norte-americanas a ficarem mais caras, enquanto que metrópoles na Argentina, Brasil, Turquia e Venezuela caíram a pique em termos de custo de vida.

Em termos gerais e de forma transversal às todas as regiões geográficas e países, o estudo revela um elevado grau de convergência em 2018 entre os locais mais caros. Como apontado acima, as economias com moedas que mais valorizaram, como os Estados Unidos, subiram significativamente na lista, denotando a valorização do dólar verificada no ano passado. Estas movimentações são particularmente contrastantes se tivermos em conta que há cinco anos atrás Nova Iorque e Los Angeles estavam empatadas na 39.ª posição.

A valorização do dólar é também um factor que contribuiu para a subida de Hong Kong no ranking do The Economist, uma vez que a moeda da região vizinha está anexada à norte-americana.

A subida da capital israelita, que ocupava o 28.º lugar há cinco anos, também se ficou a dever à apreciação cambial, acompanhada do aumento do preço de alguns produtos, onde se destaca o valor dos seguros e da manutenção automóvel, factores que levaram à subida dos custos dos transportes.

A tendência das movimentações na lista do Worldwide Cost of Living tiveram como factores predominantes a inflação e flutuações cambiais, mas também instabilidade política e tumultos sociais. Como tal, não é surpreendente verificar que Caracas, capital venezuelana, é considerada a cidade mais barata do mundo. Seguindo a astronómica inflação de quase 1 milhão por cento do ano passado, e com o nascimento de uma nova moeda lançada pelo Governo de Maduro, a instabilidade na Venezuela faz parte do quotidiano. De acordo com o relatório do The Economist, a nova moeda tem sofrido muitas variações desde que foi criada e a economia foi desmonetizada. Estes fenómenos levaram a casos insólitos para uma economia moderna, com o regresso da troca directa, com consumidores a usar artigos de roupa, peças de automóvel e joalharia para comprar artigos de primeira necessidade e mercearias.

 

A estrada à frente

Com o crescimento económico global a desacelerar até 2020, os resultados obtidos em 2018 também se ficaram a dever à guerra comercial entre a China e os Estados Unidos e a externalidades que se espera prolongarem-se ao longo do ano corrente. No entanto, a continuação do dólar em alta não se deve manter muito tempo, de acordo com a aferição feita pelo The Economist. Desde Dezembro que a moeda norte-americana tem vindo em ligeira descida, sendo expectável uma depreciação mais acentuada face ao euro e ao yen a partir do fim deste ano face à expectativa da desaceleração da economia norte-americana. Outro factor a ter conta são os cinco anos consecutivos de declínio do preço do petróleo, que bateu no fundo em 2016. “O preço do petróleo vai continuar a ter um peso forte nas economias que dependem das receitas do mercado petrolífero. Isto pode significar austeridade, mecanismos de controlo económico e inflação baixa, deprimindo o sentimento de confiança do consumidor e o crescimento”, lê-se no relatório que acompanha a lista.

Em simultâneo, o The Economist prevê o agravamento de choques económicos este ano motivado por vários factores políticos. Neste aspecto, é destacado o já verificado declínio acentuado do custo de vida no Reino Unido, que a Intelligence Unit atribui ao referendo do Brexit e à depreciação da libra. Para 2019, é previsível que estas tribulações políticas se traduzam no aumento dos preços em cadeias de distribuição, à medida que se vai tornar mais complicada importar bens. A consequência será o aumento dos custos dos bens. Estes efeitos inflacionários podem ser acentuados com a recuperação cambial da libra.

Guerra comercial

Existem ainda outras incógnitas, num panorama que privilegia a estabilidade. O The Economist destaca neste aspecto o efeito Trump, nomeadamente devido à forma como a Casa Branca tem escrutinado acordos comerciais e relações internacionais, algo que pode levar à subida de preços em importação e exportação.

Outro dos elementos a ter em consideração é a postura da China, nomeadamente as medidas adoptadas para combater os elevados níveis de endividamento privado, algo que pode aprofundar a desaceleração económica e à baixa do consumo ao longo dos próximos dois anos. Circunstância que pode ter consequências globais, resultando na continuação da estagnação do renminbi com efeito no custo de vida em cidades chinesas.

Aqui entra também em jogo a guerra comercial entre Pequim e Washington, que já mostrou sinais de estar a abrandar a economia global, algo que terá tendência para se agravar.

Instabilidade e conflitos armados vão continuar a alimentar inflação localizada a curto-prazo, com o respectivo impacto no custo de vida de algumas cidades. Por outro lado, com as economias emergentes vão continuar a contribuir para a maioria dos crescimentos de salários de consumo e é de esperar que os centros urbanos destes países se tornem mais caros. No entanto, como é destacado pelo Worldwide Cost of Living 2019, o custo deste tipo de convergência é uma tendência que se revela a longo-prazo, enquanto a capacidade para absorver choques económicos e flutuações cambiais pode ter um efeito muito rápido em tornar uma cidade mais cara ou mais barata muito rapidamente.

20 Mar 2019