Camilo Pessanha, 150 anos | Sílvia Patrício expõe no edifício do antigo tribunal

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] artista plástica Sílvia Patrício expõe desde sexta-feira, em Macau, um retrato e oito desenhos em tinta-da-china sobre Camilo Pessanha, após ‘mergulhar’ na obra do autor português que descreve como “uma polpa concentrada cheia de qualidade”.

Nascida em França, em 1974, Sílvia Patrício integra o lote de mais de 20 artistas participantes numa exposição de artes plásticas e de fotografia, que vai ser inaugurada esta tarde no antigo tribunal de Macau, no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha.

“Primeiro fiz uma pesquisa. Eu não conhecia assim tão bem a obra dele. Curioso que em Portugal há muita gente que conhece o nome – por aquilo que me apercebi – mas não conhece a obra, porque a obra dele também não é muito grande”, disse à agência Lusa.

“A obra dele é concentrada, é como se fosse uma polpa, não tem quantidade, mas tem qualidade. O que ele escreve é muito bonito”, acrescentou.

Considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, Camilo Pessanha nasceu em Coimbra a 07 de setembro de 1867 e morreu em Macau a 01 de março de 1926, cidade onde viveu desde 1894.

Sílvia Patrício realizou o trabalho sobre Camilo Pessanha depois de ter criado as telas oficiais da canonização dos dois pastorinhos, com os retratos de Jacinta e Francisco Marto, que desde maio figuram na fachada da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima. 

Quadro de Sílvia Patrício

O convite para a exposição sobre Camilo Pessanha em Macau partiu de Carlos Morais José, diretor do jornal Hoje Macau, aquando de uma visita da artista portuguesa ao território este ano.

“O Carlos [Morais José] sabia que eu faço retrato, e achou interessante que fosse um retrato [do Camilo Pessanha]. (…) E eu também achei que fazia sentido, pelo menos passar pelo retrato em primeiro lugar”, explicou.

A pesquisa sobre a vida e obra de Camilo Pessanha levaram Sílvia Patrício ao Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, e ao Museu do Oriente em Lisboa, contactando com objetos pessoais do autor.

Alguns desses objetos surgem no retrato do autor português, no qual Sílvia Patrício quis representar a vida do escritor.

“Apesar de o meu retrato ser um retrato em que tento englobar a essência, a vida das pessoas – no fundo como se fazia noutras épocas em que ainda não existia a fotografia, em que a pessoa queria ser representada no mundo dela, que podia ser fantasia ou realidade – aquilo que eu tento fazer é [representar] a realidade”, afirmou.

No retrato, Camilo Pessanha surge vestido com um fato branco, de olhar distante e mãos apoiadas numa bengala, ao lado de um cão, ambos sentados junto a uma mesa, com um biombo como pano de fundo.

No quadro, a mesa está ornamentada com a imagem de uma águia – em referência à figura feminina que fez parte do universo do autor português, mais conhecida por ”Águia de Prata” – e por um ramo com papoilas e girassóis –, em que uma fotografia a preto e branco da sua “eterna paixão” Ana de Castro Osório aparece retratada no ‘olho’ de um girassol.

“Não se vê imediatamente [no retrato], mas [Ana de Castro Osório] foi muito importante na vida dele, se calhar na forma da desgraça, porque nunca foi correspondido. É trágico”, disse a artista plástica.

“Não acho que ele [Camilo Pessanha] tenha sido propriamente feliz, acho que viveu sempre numa melancolia muito grande, e o facto de também gostar de ópio, se calhar também o debilitou mais. Daí as papoilas [no retrato]”, observou.

Já para abordar a obra de Camilo Pessanha, Sílvia Patrício inspirou-se em poemas como “Crepuscular”, “Vida”; “Paisagens de Inverno”, “Rosas de Inverno”, “Fonógrafo”, “Canção da Partida” e “Caminho”.

“A poesia dele tem muita referência às flores, isso também está presente no retrato. Depois, para os outros trabalhos, em tinta-da-china, recortei pedaços de um livro e fiz os desenhos que tinham a ver com alguns poemas que escolhi”, explicou.

3 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | Porquê celebrar?

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] muito estranho tudo isto. E contra os meus princípios: sempre disse detestar o aproveitamento póstumo dos poetas, dos escritores, dos artistas. Normalmente, são os políticos que o fazem. Eles citam, eles trauteiam, eles aproveitam, na maior parte os versos de gente que lhes voltaria a cara na rua. Milionários ou os seus servos não cessam de citar Camões, que morreu na miséria. Por exemplo, mas os exemplos seriam muitos, demasiados. Então por que razão me encontro no centro de uma celebração de Camilo Pessanha, se tenho uma opinião tão negativa dos que habitualmente cavalgam na obra alheia, por que razão me atrevo assim, despudoradamente, a montar a mesma sela?

Pensei sobejamente sobre isto, até que entendi pôr de lado a minha repugnância egoísta e vaidosa. Afinal, o nome de Camilo Pessanha e a sua obra merecem ou não ser celebrados, lembrados, revificados? É claro que sim. E não será que a celebração deste poeta ultrapassa o campo da literatura, na medida em que a sua figura se espraia por vários universos? Obviamente. Camilo foi também cidadão português, naquela que era no seu tempo a mais distante colónia e aqui desempenhou diversos papéis, tornando-se num dos membros mais respeitados da sociedade de Macau. Isto apesar dos seus hábitos peculiares e da sua figura que, na altura tal como hoje, na pequena chuchumequice local, muitos haviam de considerar demasiado excêntrica.

Camilo era, de certo modo, um maldito. Alguém de quem se diz mal. Alguém que é criticado pelos seus mores privados. E também pela sua intolerância face à estupidez, à cupidez, à maledicência que, infelizmente, ontem e hoje, grassa nesta e noutras terras.

Ontem um guarda de uma empresa privada contratada para guardar o antigo tribunal, onde estou a montar este evento, insultou-me, ameaçou-me de porrada, porque eu não estava de gravata mas de calças de ganga e a trabalhar. Era chinês e foi estimulado por uma rapariga que eu não conhecia de lado nenhum mas que se achou no direito de me dizer que eu não podia estar ali. Fui paciente. Expliquei. Até que tive também de explicar, menos cortês, quando ela foi arrogante, que ela não me conhecia de lado nenhum para me dirigir a palavra. Aí o guarda avançou. Só que… eu podia estar ali. A trabalhar para a cultura de Macau. Às dez da noite. Faz parte das regras. Azar.

Chegou um outro guarda, creio que filipino. De uma cortesia admirável. A partir daí e do momento em que mostrei o meu cartão, a coisa sossegou. O guarda chinês era daqueles que gosta de chutar para baixo e lamber para cima. Afinal podíamos trabalhar até à meia-noite. Claro.

Foi uma cena lamentável e foi pena. Mas é isto. É preciso fingir, armar-se em bom, é preciso representar para se dar ao respeito nesta e noutras terras. Não basta fazer um trabalho honesto e limpo.

Isso ninguém ou poucos reconhecem. E é também por isto que é necessário celebrar homens como Pessanha cuja dignidade não se mede pelo fato mas pelas obras. E isto é fundamental para nós como para todos os habitantes de Macau. E por isso é importante lembrar e celebrar.

1 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | Antønio Falcão apresenta “Kleptokronos” e “Morri”, um livro de crónicas

“Se existir um deus, é o tempo”

Antønio Falcão é Ring Joid, mas podia ser outro qualquer. De regresso a Macau é também Pessanha e os muitos que vão habitando dentro de si. Está no território com a exposição “Kleptokronos”, que é inaugurada hoje e para apresentar o livro “Morri”, amanhã. É um dos artistas que integra as comemorações dos 150 anos de Camilo Pessanha do Edifício do Antigo Tribunal e vem mostrar a sua concepção de tempo

[dropcap]O[/dropcap] que é que vamos ter em “Kleptokronos”?
Quando recebi o convite comecei a pensar no que fazer. Não queria ir buscar imagens que já tinha nem recorrer a paisagens de Macau. Acabei por ter esta ideia, de jogar com o tempo da própria fotografia e tentar, trazer com a técnica, o tempo do Camilo Pessanha. “Kleptokronos” que dizer ladrão do tempo. Uso a técnica da fotografia em que a luz constrói a imagem durante o tempo necessário até ter uma imagem possível. A maioria das fotografias aqui presentes são feitas com várias exposições, e muitas delas, longas.

O próprio processo incorporou o conceito de tempo?
Sim. A exposição longa traz o tempo para trás e, tecnicamente, é um método em que o tempo se demora pela fotografia adentro.

Como é que isto se materializa na exposição?
A minha ideia era pegar neste tempo que se comemora do Camilo Pessanha e juntá-lo ao que também se passa agora, à contemporaneidade. Por exemplo, com a questão dos refugiados. Também se lançam ao mar e muitos acabam por naufragar.

Faz um paralelo com as situações da actualidade?
Sim, tenho uma imagem referente aos fogos que têm passado por Portugal e que se pode relacionar com o poema “Vida” do Pessanha. Fala disso, do lumaréu, de tudo a arder e das flores que deixam de existir. O arder, mais uma vez, também é referente à luz fotográfica que queima. Não foi pegar no poema e fazer uma imagem que se parecesse. Foi outra coisa.

Tem alguns auto-retratos.
Os auto-retratos têm que ver com outro processo. É um reencarnar-me como uma espécie de Camilo Pessanha de agora no sentido do delírio, da fuga, da própria erosão da pessoa que está fora, num sítio que não é dela mas que acaba por lhe pertencer. Isto passa também pela minha experiência por Macau. O que vivi e não vivi aqui. A ideia é tentar ser uma personagem, mais do que alguém que escreve ou que fotografa. É criar este embrulho para que tudo o que estou aqui a apresentar faça um certo sentido para que saia da realidade e traga outros elementos.

Vamos ter uma mistura de Camilo com Ring Joid, uma outra personagem sua?
Um pouco por aí. Mas sem rigor nenhum. O Ring Joid – e não interessa o nome porque foi quase aleatório – é o ideal de mim que não consigo representar na vida real. E por isso mantenho-o vivo artificialmente como complemento de uma vida com limites. Ele sou eu à solta.

Vai também lançar o livro “Morri”. Porquê o título?
Tem tudo que ver com a questão do tempo. Se existir um deus, é o tempo. É a única omnipresença que existe no mundo e da qual todos fazemos parte. “Morri” foi o título que me apareceu. Comecei a escrever, para o Hoje Macau, em 2004, numa altura da minha vida em que quase tinha uma necessidade da escrita para que pudesse continuar a viver ou a ficar perto do chão. Escrevia com outro nome, o de Ring Joid. Acabei por inventar essa personagem. Há sempre duas coisas a viver dentro de mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis. Depois há as histórias ao longo do livro que têm esse carácter da morte. Aliás, o livro acaba com um pequeno texto em que sou eu dentro de um avião a cair, e relato os últimos momentos antes da sua queda. A morte. O livro têm alguns textos actuais também em que, mais uma vez, está presente o tempo. A introdução, em que relato uma situação de quando tinha três anos, representa tudo o que se passa agora. É uma situação biográfica em que tudo o que nós vivemos já vimos acontecer. É como se vivêssemos numa dimensão em que tudo está mais ou menos programado e que já vimos isso mas que não conseguimos perceber e agora, como o tempo se estendeu, tudo se descodificou. “Morri” fala também da história contemporânea de Macau. Os portugueses, as despedidas, as passagens, mas muitas vezes uma história idealizada. Por exemplo, os governadores que eram seres de uma dinastia superior, que passavam por um processo de estudo do oriente, da língua, da filosofia e quando chegavam integravam-se na vida do “outro” e eram admirados por toda a população. Eram textos escritos para um jornal na pressão semanal do fecho. Experiências de temas e de métodos de escrita. Coisas que via, cinema, música, noites. Sempre com o meu outro ser a testar as minhas capacidades, se conseguia realmente escrever alguma coisa. Uma escrita que parte de um trauma que se vai cosendo ao longo dos tempos. Vivemos num mundo isolado dentro deste território e era preciso soltar-me. E na escrita tudo é possível. Tudo existe. Não há freio.

E a fotografia? Qual a sua relação com ela agora?
A fotografia só funciona se de algum modo participar nela. Não pode ser apenas uma composição visual de elementos exteriores. Isso é uma espécie de malabarismo, tem de estar tudo no lugar para que as bolas não te caiam na cabeça. Eu fico à espera que elas caiam. E depois logo se vê.

O que acha das comemorações dos 150 anos do Pessanha e da sua representatividade para Macau?
O Camilo Pessanha é um dos poetas mais válidos da literatura portuguesa e também dos mais esquecidos. Já Fernando Pessoa o admirava mas depois houve este tempo todo em que parece que esteve adormecido. Em Macau, penso que nunca foi devidamente reconhecido e por isso é importante tanto a obra como a sua figura e a sua passagem pelo território. É preciso que resista para que as pessoas possam, algumas continuar a relembrar o homem e outras o puderem conhecer.

Viveu aqui 17 anos e está de regresso. Como está a viver a visita?
Não tenho bem a noção do tempo, quando olho para trás, passaram 17 anos em Macau, passaram seis desde que fui para Portugal. Está tudo compresso na cortina do engenho que capta imagens para dentro do nosso cérebro. Fui embora em 2011 e sempre que volto sinto como se me tivesse ido embora na semana passada. É sempre um sentir-me em casa. É bom e mau mas como estou sempre de partida, e não venho de armas e bagagens para ficar, também não desespero. É a sensação de estar num sítio inóspito.

Macau é inóspito?
Sim. O mundo é inóspito.

1 Set 2017

Pessanha, 150 anos | José Drummond apresenta “O Exorcismo” este domingo

Conhecido artista plástico, José Drummond lança no domingo um livro que reúne poemas escritos à mão no início dos anos 90. Os textos falam de sentimentos mas mostram também o próprio autor na pele de artista

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]entimentos e palavras sobre pintura, ou simplesmente reflexões. O universo privado de José Drummond cabe todo em “O Exorcismo”, o livro de poesia que será lançado este domingo no edifício do antigo tribunal, inserido nas comemorações dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, uma iniciativa do Hoje Macau.

A revelação de Drummond como poeta não passa de uma forma do autor exorcizar – daí o nome – aquilo que lhe ia na mente e na alma no início dos anos 90. Mais de uma década depois, poucas alterações foram feitas e a publicação aconteceu mesmo.

“Este foi um período bastante intenso, em que tinha sempre uma série de cadernos antigos e ia escrevendo duas ou três linhas”, recordou ao HM. “Escrevi reflexões sobre pintura mas também reflexões sobre o que me acontecia na altura, fosse relacionado com amores ou o com o estado do tempo, por exemplo.”

Drummond nunca deixou esses cadernos, e no meio de idas e vindas, a poesia acabou por acompanhá-lo sempre. Alguns poemas chegaram a acompanhar uma exposição que o autor realizou em 1992.

“Alguns cadernos desapareceram, outros permaneceram. Há cerca de um ano e meio, voltei a pegar neles e olhei para eles de uma outra forma. Comecei a encontrar correspondências com o trabalho que continuei a fazer e algumas linhas dos meus trabalhos na área das artes plásticas estão ali expostas.”

Daí a ligar a publicação do livro ao evento dedicado ao Camilo Pessanha foi um passo. Inicialmente havia a ideia de editar as crónicas que o Hoje Macau publicou no suplemento H, mas os poemas fizeram mais sentido na cabeça de José Drummond.

Palavras com sentido

Aquilo que Drummond escreveu à mão há anos atrás, quando escrever no computador estava longe de ser algo comum, ainda faz sentido nos dias de hoje. O artista plástico lembra que até utilizou alguns escritos para a última exposição que fez na Casa Garden, com curadoria de Margarida Saraiva e apoio da Fundação Oriente.

“Tenho algumas expectativas de ver como é que as pessoas vão reagir. Pessoalmente penso que o livro faz sentido também enquanto artista plástico, porque o que lá está escrito é um reflexo de um período no qual as linhas condutoras do meu trabalho como artista se mostram ali”, contou.

O nome do livro surgiu da necessidade de colocar cá fora “demónios privados”, um acto de exorcismo que aconteceu através das palavras.

Depois de ter dado provas como artista plástico, José Drummond não tem grandes expectativas face aquilo que o público vai pensar dele na versão poeta.

“Espero que o público olhe para o livro como ele é. É apenas um livro de poesia, mais nada do que isso.”

Pessanha, a influência

Associar o lançamento de “O Exorcismo” à efeméride dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha é, para José Drummond, uma grande oportunidade. O poeta português faz parte dos seus autores favoritos.

“Para mim o Pessanha foi um génio, e está dentro do grupo de escritores que mais me influenciaram, ou que influenciam. Também lá estão o Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e alguns poetas americanos. Há um lado que me interessa muito no Pessanha que é a forma simbólica e a musicalidade que as palavras têm na sua obra. É uma oportunidade óptima poder participar nestes encontros”, rematou.

31 Ago 2017

O naufrágio em Camilo Pessanha (continuação)

Ângela Carvalho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] esta ideia já fez também referência Barbara Spaggiari em O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, quando aludiu à forma como o autor olhava o mundo:

[analisava] os aspectos fenoménicos da realidade e [sondava] as relações íntimas implícitas nas coisas, tendo sempre a consciência da intervenção racional e emotiva do eu na percepção do mundo. (…) [Para Pessanha] a tarefa da poesia é evocar a realidade, não só reproduzindo-lhe a beleza exterior mas também captando a trama densa de relações que liga cada parte do universo ao todo. (1982: 44)

o podemos contudo dissociar o olhar de Camilo Pessanha sobre a realidade do que isso trouxe de relevante à sua escrita, notando, como Barbara Spaggiari o fez, que “As categorias perceptivas fundem-se e subvertem-se na sinestesia” (ibidem: 49), oferecendo a realidade “os seus fragmentos cortantes para construir correlações e analogias, símbolos e metáforas, em que as coordenadas espaciais se anulam, as referências historico-biográficas se tornam fugazes, contornos, tons e cores adquirem uma fluidez que se transmite ao ritmo do verso” (ibidem:  48-9).

Retomando ainda os vestígios humanos, note-se que estes aparecem como fruto de “naufrágios”, “perdições”, “destroços”, como ruínas de ruínas, do mesmo modo que no poema “Chorai arcadas” surgem os “– : Lemes e mastros…/ E os alabastros/ Dos balaústres!” (vv. 18-20) ou as “Urnas quebradas!/ Blocos de gelo…” (vv. 21-2), não respeitando estas turbações sequer o repouso além-vida. No “So- neto de Gelo” encontra-se ainda um “resto de batel” à deriva no mar. Penso que será útil indagar o que são realmente estas ruínas, uma vez que, ao contrário do que se podia pensar, não representam o fim de nada, não são o momento de anulação da matéria, mas antes a “mineralidade a que a vida, por decomposição (…) regressa” (Lopes, 1970: 131) e a reorganização pela referida ars inveniendi. Sobre este assunto refere Paula Morão que:

se pensarmos na Lei de Lavoisier, segundo a qual na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, perceberemos que se perde um corpo olímpico para que a água ganhe maior densidade ao integrar a matéria em decomposição (2004: 248).

Contrastando com a violência patente em verbos como “partir”, desengastar”, despedaçar”, quebrar”, derruir”, afundir” e arrebatar

  • Ð que dão conta de processos conducentes à ruína –, temos a calmaria o temida na carta anteriormente citada e de novo invocada no poema “Singra o navio. Sob a água clara”: “Na fria transparência luminosa/ Repousam, fundos, sob a água plana.” (vv. 7-8). A ideia de morte está sempre presente, tanto pela acção violenta como pela ausência de acção, o que conduz à constatação enunciada já por Eróstrato:

As inclinações do ânimo fazem e destroem tudo. Se a razão dominasse o mundo nada aconteceria nele. Costuma-se dizer que os nautas têm um receio extremo da calmaria e que desejam vento, embora se exponham ao perigo de uma tempestade. Os movimentos do ânimo são, no caso dos homens, os ventos que são necessários para pôr tudo em movimento, apesar deles por vezes provocarem tempestades e outras intempéries. (cit. in Blumenberg, 1979: 49)

Chegamos assim à ideia de inevitabilidade a que já me referi anteriormente. Uma inevitabilidade qudo mesmo modo que o sujeito poético é espectador de naufrágios – pode vir a servir de espectáculo a outro “eu” ou a si mesmo (cf. “Soneto de Gelo”), utilizando a mesma configuração de Schopenhauer, referida por Hans Blumenberg, “[da] identidade do sujeito humano [que se decifra] perfeitamente nas duas posições, na do náufrago e na do que contempla.(Blumenberg, 1979: 81). Do meu ponto de vista, o sujeito poético da Clepsydra enquadrase bem “no sentimento do sublime” (ibidem: 82) em que “O espectador [se] ultrapassa na reflexão e passa a espectador transcendental(ibid.), sentindo-se ao mesmo tempo indivíduo “abandonado ao acaso [e] sujeito eterno e tranquilo do conhecimento” (ibid.). Neste ponto impõe-se invocar Goethe, que, ultrapassando a metáfora do naufrágio, chega à “metáfora da ausência de vestígios das rotas traçadas no mar” (ibid.: 77), preconizando que:

do mesmo modo como a água, que é afastada à passagem de um barco, conflui novamente atrás dele, também o erro, que foi banido por espíritos superiores para se afirmarem, se impõe muito rápida e naturalmente depois da sua passagem. (…) A fórmula mais curta para esta experiência é que na realidade, o absurdo preenche o mundo (ibid.: 78).

Trata-se daquilo a que Pessanha chama “um destino invencível e absurdo.” (cit. in Lencastre, 1984: 110). O absurdo que desencadeia muito do desespero do poeta é a mortalidade da condição humana, como já foi notado por Óscar Lopes no artigo “Pessanha, o Quebrar dos Espelhos”. Na confusão entre as noções de espaço e de tempo podemos sentir uma tentativa de evasão da contingência de finitude da vida humana, juntamente com uma referência implícita à mineralidade, podendo servir de exemplo a distância-tempo e a distância-lonjura da “figura peregrina” do poema “Singra o navio. Sob água clara”. A tentativa de Pessanha de se evadir à contingência da finitude da vida humana passa também pelo ensaio de anulação do tempo “presente”, aspecto já notado por Ester de Lemos em A “Clépsidra” de Camilo Pessanha, onde chamou a atenção para o facto de o sujeito poético da obra não entender o tempo da mesma forma que Bergson o entendeu, como “une succession d’états dont chacun annonce ce qui suit et contient ce qui précède” (cit. in Lemos, 1956: 46).

Também Maria José de Lencastre o apontou em nota à missiva de 30 de Abril de 1894, que o poeta dirigiu a Alberto Osório de Castro, referindo que uma das suas mais evidentes preocupações era a corrente temporal, revelando um grande desejo de abandono ao instante a que Ester de Lemos chamaria de “deslizar contínuo” e a que Pessanha já se tinha referido nestes termos em carta anteriormente citada: “Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino.”.

José Bento observou algo de semelhante no artigo “Outra vez o tema da água na poesia de Camilo Pessanha”: “A ânsia de aniquilamento, que é um dos temas mais insistentes da poesia de Pessanha, poderá ser satisfeita pelo mar” (1984: 16).

Em conclusão, este naufrágio a que fui fazendo menção, o abismar-se, é uma das diversas vias de atingir a morte. Morte esta que em certo momento surge como uma tentativa de evasão de Camilo Pessanha do absurdo da finitude da condição humana através do naufrágio e da ruína como pontos de partida para uma outra existência (cf. “Singra o navio. Sob água clara”). Contudo, no poema “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, como já referi anteriormente, temos uma postura do sujeito poético que não deixa qualquer margem à esperança, desejando unicamente o aniquilamento. O desejo de morte nesse mesmo sentido pode ser complementado pelo contributo de João Camilo, que se referiu à existência e à morte na obra poética de Camilo Pessanha da seguinte forma:

a existência, dado que tudo está destinado a desaparecer, acaba por impor-se definitivamente como uma viagem ou caminho sem sentido porque sem meta definida (…). A partir destas constata ções, o poeta é levado a desejar a morte, que põe fim às ilusões e às desilusões, que elimina todas as tensões, que restabelece um estado de equilíbrio absoluto semelhante àquele que precede a existência (1985: 68).

Não nos podemos contudo esquecer do contexto histórico-tem- poral e literário em que Camilo Pessanha se insere, dado que a sua obra a eles não é alheia, mesmo se o seu “conceito de poesia [está] desvinculado dos ditames da moda do tempo. A poesia é para ele o reflexo de um modo de ser e de viver, antes de ser a aplicação voluntária de teorias literárias ou filosóficas” (Spaggiari, 1982: 40). Todavia, e apesar de as reacções perante o momento de crise sentido no fim do século XIX terem sido diversas, houve uma resposta comum dos intelectuais da época: a fuga. É pois nesse contexto que nos surge a Clepsydra, por um lado como um testemunho da sua época, por outro como um monumento estético autónomo e de grande beleza.

Bibliografia

1 – Activa

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1916, “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”; ed. ut.: ibidem, pp. 72-3. 1921, [Carta a Ana de Castro Osório]; ed. ut.: Cartas a Alberto Osório de

Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório, ed. de Maria José de Lencastre; [Lisboa], Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 83.

s/d, [Carta a Alberto Osório de Castro]; ed. ut.: ibidem, pp. 48-50.

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231

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1979, Schiffruch Mit Zuschauer. Paradigma einer Daseinesmetapher; ed. ut.: Naufrágio com Espectador. Paradigma de uma metáfora da existência, Lisboa, Vega, 1990.

29 Ago 2017

O naufrágio em Camilo Pessanha, Parte I

Revista da Faculdade de Letras Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 221-232

Ângela Carvalho

angela.cf.carvalho@gmail.com

[dropcap style≠’circle’]“[P[/dropcap]ara Schopenhauer] É certo que aquilo que o es- pectador vê é o próprio passado, na medida em que pôde tornar-se espectador e aprender a gostar da «sabedoria» da situação que se alheou da vida. Porém, o que ele vê encontra-se também no futuro à sua frente enquanto inevitabilidade que emerge da vida que é um mar cheio de recifes e remoinhos. Ele evita-os com cuidado e pru dência, embora saiba que é justamente o sucesso de todo o esforço e arte de abrir caminho que o leva ao ponto em que o seu naufrágio é inevitável. Ele sabe que assim, com cada passo, ele aproxima-se do maior, total, inevi- tável e irremediável naufrágio, que navega exactamente em direcção a ele, em direcção à morte. Esta não é só o objectivo final da fadiga, ela é pior que todos os recifes que conseguimos evitar.

Hans Blumenberg, Naufrágio com

Espectador (1979: 84-5)

* Trabalho realizado no âmbito da disciplina “Temas de Literatura Portuguesa”, do Curso de Especialização em Ensino do Português Língua Estrangeira (ano lectivo de 2006/2007), sob a orientação do Prof. Doutor Pedro Eiras.

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Considerando a produção poética de Camilo Pessanha e reflectin do, em particular, sobre a mecânica do naufrágio enquanto evasão, este artigo apresenta um conjunto de hipóteses e, em alguns casos, conclusões sobre o tema. Utilizei como corpus de análise a Clepsydra na edição de António Barahona. Optei por esta edição, uma vez que respeita a de 1920, sobre a qual Camilo Pessanha se expressou do seguinte modo à sua editora Ana de Castro Osório: “não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradissimo, a publicação da esquecida Clep sydra e os cuidados da disposição (que é como eu proprio o faria) e da ortographia.” (1921: 83).

Porque só poderá existir naufrágio onde haja viagem marítima, começo por considerar que a vida é apresentada enquanto viagem no “Soneto de Gelo” (1887: 94-5), desde que aceitemos que, na primeira estrofe, “berço” possa ser entendido como “barco”. Para essa interpre- tação abona o facto de encontrarmos ao longo do poema vocábulos que se relacionam com o tópico do marítimo (“farol”, “batel”, “lenho” e “afundir”). Esta metáfora já tinha sido dada a lume anteriormente, sendo que “na visão de Pascal [, a] metáfora do embarque contém a sugestão de que a vida significa que se está já no mar alto, onde, para além de salvação ou declínio, não há qualquer solução, não há qualquer reserva” (Blumenberg, 1979: 33). À semelhança de Pascal, também para Pessanha não há “salvação”, sendo o naufrágio a única realidade. Para o poeta, o naufrágio tanto pode ser desejado como indesejado, sendo ainda visto como simples inevitabilidade, como tentarei explicitar de seguida.

No poema “Ao meu coração um peso de ferro” (1893: 50-1), a morte por afogamento surge como desejável nos três últimos versos

  • Ð (“E um lenço bordado… Esse hei-de o levar,/ Que é para o molhar na água salgada/ No dia em que enm deixar de chorar…”) , podendo até ser entendida como um projecto suicida. Essa ideia está presente já na primeira estrofe e nos vv. 7-8 da mesma composição poética:

Ao meu coração um peso de ferro Eu hei-de prender na volta do mar. Ao meu coração um peso de ferro…

Lançá-lo ao mar.

(…)

Marujos, erguei o cofre pesado, Lançai-o ao mar.

O desejo de morte equivale a um desejo de anulação, nomeada- mente das “penas do amor” que acompanham o sujeito poético no seu exílio. Embora em nenhum momento do poema seja dito que o enunciador está a vivenciar uma experiência de exílio, podemos adi vinhá-lo com base na circunstância de o sujeito poético realizar uma viagem marítima e levar consigo as “penas do amor”. De acordo com o enunciador, o que distingue o exilado dos outros seres humanos é o facto de para aqueles as “penas do amor” serem nefastas, notando-se em alguns versos de Pessanha um mau presságio quanto às conse- quências que essas penas podem trazer: “Quem vai embarcar, que vai degredado…/ As penas do amor não queira levar…” (vv. 5-6). Nisto apoio a convicção de que o enunciador se encontra discursivamente em contexto de exílio, pois no caso do sujeito de “Ao meu coração um peso de ferro” percebemos que são precisamente essas penas que o conduzem ao desejo de morte – uma morte como evasão, como fuga à dor e à existência.

Esta ideia é corroborada por duas passagens de cartas de Camilo Pessanha. A primeira é endereçada a Alberto Osório de Castro: “Sabe que eu tambem ando por esses mares fóra sempre a escolher o melhor logar da minha sepultura?// No fundo do mar?” (s/d: 48). A outra foi dirigida a Carlos Amaro e escrita a bordo do navio que levou o poeta de regresso a Macau em 1909:

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Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino. Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza (cit. in Lencastre, 1984: 114).

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É o que Barbara Spaggiari já tinha observado, referindo que “Deste modo, nas suas poesias, ora deseja vaguear para sempre no mar sem uma meta, ora anseia, pelo contrário, por um naufrágio” (1982: 35). Nos anteriores períodos epistolares, vemos também reafirmada a ideia de que o sujeito de enunciação se encontra em exílio permanente.

A morte figurada como indesejada está patente no “Soneto de Gelo”, onde o sujeito poético declara abertamente querer um “resto de batel”, um “lenho” que lhe permita não se “afundir”. Estas tábuas de salvação aparecem-nos como metáfora da fé, ausente porque de- sejada, inatingida porque procurada:

Ingénuo sonhador – as crenças d’oiro Não as vás derruir, deixa o destino Levar-te no teu berço de bambino, Porque podes perder esse tesoiro.

Tens na crença um farol. Nem o procuras, Mas bem o vês luzir sobre o infinito!…

E o homem que pensou, – foi um precito, Buscando a luz em vão – sempre às escuras.

(Pessanha, 1887: 94-5, vv. 1-8)

Este poema apresenta uma dicotomia entre a busca activa da fé e a quietude dos que já a possuem. No que diz respeito à primeira, conduzirá à perda de valiosas crenças, no caso de estas já existirem, ou à condenação ao não alcance das mesmas, no caso de estas ainda o existirem. A acção amaldiçoa também o homem que ousou pensar,

“buscando a luz em vão – sempre às escuras”. Este sujeito, que deseja a fé que não tem, está condenado a naufragar, embora faça tudo para o evitar. A quietude dos que já possuem a fé é apresentada como única solução para não “perder esse tesoiro”. O “ingénuo sonhador” deverá unicamente deixar-se levar pelo destino, vida fora, se não quiser perder o farol que luz sobre o infinito. O “ingénuo sonhador” não procura essa luz e é por isso mesmo que a vê luzir.

No poema “Singra o navio. Sob a água clara” (1899: 32-3), o nau- frágio surge como a constatação de um facto, analisado consciente e metodicamente, revelando-se como uma inevitabilidade. O sujeito poético distancia-se desde o início da imagem que observa: “– Impe cável figura peregrina,/ A distância sem fim que nos separa!” (vv. 3-4). Essa “impecável figura peregrinaestá “[funda], sob água plana(v. 8), a uma “distância sem fim que [os] separa”, o que está de acordo com a observação de Ester Lemos, segundo a qual “O olhar de Pessanha não parece abranger a realidade em superfície, considerá-la de cima. O mar, de que tanto se fala na «Clepsidra», raramente é olhado na extensão: mais fácil é perscrutar-se-lhe o fundo.” (1956: 25).

Esta ideia de olhar em profundidade surgenos também no poema “Chorai arcadas” (1900: 60-1), na terceira estrofe: “Se se debruçam,/ Que sorvedouro!…” (vv. 14-5). Chegamos assim a uma outra ideia, a de sorvedouro, de abismo, causa de todo o naufrágio e consequente ruína. Em “Singra o navio. Sob a água clara” esta profundidade de abismo é sondada, reconstruída, comparada. Devemos todavia recordar a advertência final do sujeito poético – “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas” (1916: 72-3) –, como se nesse último poema quisesse extinguir algum vestígio de esperança que pudesse ter deixado em textos anteriores: “Abortos que pendeis as frontes cor de cidra, (…)// Cessai de cogitar, o abysmo não sondeis.// (…) Adormecei. Não sus- pireis. Não respireis.” (vv. 6; 10; 15). É a afirmação taxativa da ânsia de aniquilamento, já enunciada na composição poética com que abre

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Clepsydra e em que se manifesta claramente o desejo de evasão, si- lenciosa, por anulação: “Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!/ No chão sumir-se, como faz um verme…” (1916: 9; vv. 3-4). Também no poema “Ao meu coração um peso de ferro” essa ideia tinha já sido anunciada, ainda que de forma mais atenuada. No fundo, trata-se da- quilo a que Barbara Spaggiari se referiu nestes termos: O passado está

«povoado de saudades», o futuro escorre lentamente «para o oceano do Aniquilamento». Tal condição existencial do homem não pode ser senão imutável” (1982: 45).

A imagem observada, encerrada na profundidade da sepultura marítima, é uma imagem de ruínas da vivência humana (“Seixinhos da mais alva porcelana”) (v. 5), ruínas do mundo natural (“Conchinhas tenuemente cor de rosa”) (v. 6), que – à força da análise consciente do sujeito poético (“E a vista sonda, reconstrui, compara”) (v. 9) – se reve lam uma imagem ilusória: – Ó fúlgida visão, linda mentira!(v.11). O sujeito poético desfaz o seu engano e com ele faz a macabra descoberta de que anal estava perante vestígios humanos. A sua percepção traiuo inicialmente, levandoo a confundir o corde-rosa das unhinhascom o das “conchinhas” e a brancura dos “dentinhoscom a dos “seixinhos”. Mas loia realmente traído a sua percepção ou estamos perante uma ars inveniendi [arte da invenção](Benjamin, 1928: 194) por parte do sujeito poético? Vai também nesse sentido aquilo que Óscar Lopes refere em “Pessanha, o Quebrar dos Espelhos”:

Pessanha sabe, de um saber técnico, operativo, oficinal, de poeta, que a poesia não se limita a exprimir uma realidade pre- viamente definida; pelo contrário, opõe-se às estruturas do senso comum, convidandonos a um salto em direcção a novas estruturas de compreensão e valor. (1970: 130)

(continua)

25 Ago 2017

Efeméride | Nova edição de “Clepsidra” assinala nascimento de Pessanha

Uma nova edição da tradução de “Clepsidra” para chinês, da autoria de Yao Jingming, exposições de pintura e fotografia e conferências no edifício do antigo tribunal vão marcar as comemorações dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, já a partir do dia 31

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s 150 anos do nascimento do poeta português Camilo Pessanha começam a assinalar-se a 31 de Agosto, em Macau, com uma nova edição da obra “Clepsidra”, em forma de missal, anunciou o jornalista Carlos Morais José.

“Achamos que é a edição que o Camilo Pessanha gostaria de ver”, acrescentou ainda o mentor destas iniciativas.

Este lançamento, que vai decorrer no Consulado-Geral de Portugal em Macau, marca o arranque das comemorações dos 150 anos do nascimento do poeta, que viveu entre 1894 e 1926, na cidade onde morreu.

É “uma data que não podia passar sem uma manifestação cultural que trouxesse o poeta, um símbolo da cidade de Macau e uma das figuras mais importantes que aqui viveu, à memória das pessoas”, sublinhou o responsável pela iniciativa e director do jornal Hoje Macau.

Ao longo de uma semana, de 1 a 7 de Setembro, desta feita no edifício do antigo tribunal, Pessanha vai ser lembrado através de um conjunto de exposições de artes plásticas e de fotografia, conferências, inauguração de arte pública e lançamento de vários livros, disse.

No dia 1 de Setembro, “inicia-se oficialmente” a semana dedicada a Camilo Pessanha com a inauguração de duas exposições: uma de artes plásticas, com o título “Pessanha, a última fronteira”, com a participação de vários artistas de Macau com obras “inspiradas no poeta”. A outra exposição, “Cleptocronos”, é de fotografia de António Falcão, que já residiu em Macau e que vive actualmente em Portugal.

No mesmo dia vai ser lançada a versão em chinês da “Clepsidra”, numa tradução de Yao Feng e edição do Instituto Cultural de Macau.

“Vamos ter mais de 20 participantes, 11 de fora e os restantes locais, nesta semana de iniciativas sobre Pessanha”, adiantou Carlos Morais José, sobre o programa que vai decorrer ao longo da semana.

“A maior parte dos participantes são escritores conhecidos em Portugal e em Moçambique, como António Cabrita, que vêm cá falar de Pessanha e das suas obras”, afirmou.

A ideia de associar a comemoração dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha à passagem de mais um aniversário do Hoje Macau surgiu por se tratar de um “bom pretexto” para reunir escritores portugueses que publicam no jornal.

“A personalidade de Camilo Pessanha ultrapassa o seu espectro literário, também há o lado de cidadão. Nesse sentido o panorama cultural de Macau tem mais do que a obrigação de celebrar a figura mais ilustre da comunidade portuguesa de sempre em Macau”, disse ainda Carlos Morais José.

Motivar os mais novos

Um dos objectivos desta iniciativa é “motivar as novas gerações a produzir”, considerou Carlos Morais José, explicando ter decidido avançar com a organização desta semana “por não ter visto nenhum evento preparado pelas autoridades competentes”.

A 7 de Setembro, dia em que Pessanha nasceu, vai realizar-se “uma romagem ao cemitério, seguido de um almoço com a família do poeta” na Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC). A sessão de encerramento das celebrações vai estar a cargo de Luís Sá Cunha, com uma intervenção sobre “Por que é Camilo Pessanha o poeta de Macau”, disse.

Um jantar de gala no antigo hotel Bela Vista, actual residência do cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong, em que a “ementa será idêntica a que comia Pessanha no início do século XX” encerra a semana.

Além das exposições, conferências e recitais de poesia em mandarim, cantonense e português, Carlos Morais José adiantou que vão ser lançados cinco livros: “Abril” de Amélia Vieira, “O exorcismo” de José Drummond, “Returning home dirty with the light” de Rui Cascais, “Karadeniz – Entrevista com um assassino” de Paulo José Miranda e “Morri” de António Falcão.

Colaboração com a TDM

Durante a semana vão também ser inauguradas três esculturas públicas da autoria de Carlos Marreiros, no Leal Senado, no Jardim Marginal e no Albergue SCM (Santa Casa da Misericórdia), acrescentou o director do jornal Hoje Macau.

Carlos Morais José destacou também a colaboração com a Teledifusão de Macau (TDM), na transmissão de poemas em vídeo e áudio.

Em data a anunciar, vai ainda ser inaugurada uma exposição histórica “Macau no tempo de Camilo Pessanha” (1867-1926), sobre o “ambiente físico, intelectual e político” em que viveu o poeta, disse o responsável, sobre o programa que marca os 150 anos do nascimento do poeta português e que contou com o apoio da Casa de Portugal em Macau, da Confraria da Gastronomia Macaense e da Associação para a Instrução dos Macaenses (APIM), entre outros.

Considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, Camilo Pessanha nasceu em Coimbra a 1 de Setembro de 1867 e morreu em Macau a 1 de Março de 1926.

22 Ago 2017

Camilo Pessanha (1867-1926)

António Apolinário Lourenço 

“O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha”

(Fernando Pessoa)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ompletam-se no dia 7 de Setembro cento e cinquenta anos sobre o nascimento, em Coimbra, de um dos mais peculiares e geniais escritores portugueses, Camilo Pessanha. Estudante de Direito, sem particular brilho, concluiu o curso em 1891. Apesar de os seus anos de vida universitária terem coincidido com a difusão, na cidade do Mondego, da corrente estética simbolista, defendida nas publicações rivais Os Insubmissos e Bohemia Nova, a participação do poeta nos círculos literários da cidade foi relativamente marginal. A sua formação artística e a sua iniciação na poesia decorreriam de forma muito mais pessoal e recatada, o que não impediu que tenha construído uma obra que o coloca num lugar cimeiro entre os poetas simbolistas portugueses e faz dele um dos principais mestres da moderna poesia lusitana.

Grande parte da sua vida decorreu em Macau, território colonial para onde partiu em 1894, destinado à docência liceal, mas onde também exerceu outras actividades profissionais, como as de Conservador do Registo Predial, juiz e advogado. Aí viria a falecer em 1926, tendo passado, no entanto, largas temporadas em Portugal, beneficiando dos períodos normais de férias a que tinha direito como funcionário colonial, acrescidos de licenças extraordinárias para tratamento médico. Foi assim que pôde, ininterruptamente, permanecer na então metrópole entre 1905 e 1909.

Mas foi sobretudo na sua última visita a Portugal (1915-1916) que Camilo Pessanha teve consciência de ser objecto de admiração e de culto por parte das novas gerações literárias lusas. A sua permanência em Macau, onde não seria nunca uma figura consensual, sobretudo no que respeita à sua prática como juiz, levou-o a uma aproximação da cultura e da arte chinesas, que se concretizaria na produção de textos ensaísticos, traduções e na colecção de arte que legou ao Estado Português e faz actualmente parte do espólio do Museu Machado de Castro.

Pouco interessado nas glórias mundanas e com uma vida familiar sempre instável, encontrou na poesia a forma de exprimir conotativamente, através de uma imagética carregada de símbolos de carácter negativo, as suas emoções e sentimentos profundos, sem ser forçado a comprometer a sua intimidade. Antes mesmo de ter publicado qualquer livro, já o seu nome era apontado como um dos grandes criadores literários portugueses, sendo objecto de intensa veneração, na segunda década do século XX, pelos poetas da geração do Orpheu. É sobejamente conhecida a carta de 1914 em que Mário de Sá-Carneiro pede a Fernando Pessoa que lhe remeta uma cópia de alguns poemas de Camilo Pessanha, que aquele conseguira através de Carlos Amaro; e não é menos famosa a resposta enviada pelo autor de A Confissão de Lúcio, em Abril do mesmo ano, ao inquérito promovido pelo diário República, “O mais belo livro dos últimos trinta anos”, em que o mesmo poeta órfico declara que a melhor obra literária dos últimos trinta anos era um livro não publicado, aquele “que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista”. A descrição que Sá-Carneiro faz da estética de Pessanha aproxima-se extraordinariamente do projeto paúlico da geração do Orpheu: “Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, estilizando-se em ritmo de sortilégio — cadências misteriosas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçagando cetim…”. Efectivamente, nenhum outro poeta português da geração simbolista, conseguiria explorar tão profundamente como Pessanha a capacidade auto-referencial e demiúrgica do discurso poético.

Fernando Pessoa reconheceria, em carta a João Gaspar Simões, datada de 11 de Dezembro de 1931, ter sido influenciado por Camilo Pessanha, uma influência que parece evidente nalguns conjuntos poéticos do ortónimo, como é o caso de Além-Deus e Passos da Cruz, não menosprezando a existência, como o próprio Pessoa sublinhou, de leituras e influências comuns. É sabido que o autor da Ode Marítima pretendia publicar poemas de Pessanha no Orpheu 3, que seriam colocados em lugar de honra. Tendo-se gorado essa possibilidade, por motivos que são sobejamente conhecidos, acabaria por ser Luís de Montalvor, um dos directores do Orpheu 1, a conseguir a cedência de 16 poemas de do autor de “Ao longe os barcos de flores” para inserir no número único da revista decadentista Centauro, de 1916. Depois de concretizada a publicação, em 1920, da primeira edição da Clepsidra nas Edições Lusitânia, de que era proprietária Ana de Castro Osório, a paixão não correspondida do poeta, António Ferro apressar-se-ia a declarar que a sua geração passara a ter um missal e um relógio: o livro de Camilo Pessanha.

Este reconhecimento é corroborado pelo autor de Mensagem, que, num apontamento datado de Novembro de 1934 (cerca de um ano antes da sua própria morte, portanto), registava que apenas três poetas portugueses dos séculos dezanove e vinte mereciam o nome de mestres: Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha: O primeiro ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta. O segundo ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas. O terceiro ensinou a sentir veladamente; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele.

*in Homenagem ao Poeta Camilo Pessanha, Editorial Moura Pinto, 2017

16 Ago 2017

Os primeiros passos

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo Pessanha veio para Macau “na sequência do seu desencontro amoroso com Ana de Castro Osório”, como refere num dos iniciais estudos Daniel Pires. Contudo, já na Fotobiografia do poeta, usando como fonte Francisco de Carvalho e Rego, afirma ser Madalena Canavarro a única paixão que se lhe conhece e como o seu amor não foi correspondido. Com a alma combalida, “uma grave doença nervosa impede-o de se matricular na Faculdade de Direito, neste ano lectivo” de 1888-89. Por uma carta ao primo José Benedito percebe-se como pode esse episódio ter marcado o salto do seu génio de escritor: “nas férias grandes passadas me luziu a ideia de duas séries, uma de prosa outra de verso, que deixavam a perder de vista todos os meus feitos de até então.”

Ao mesmo primo escreve, já em 1893, dizendo encontrar-se extremamente deprimido “com esta tristeza que me vem das pequeninas misérias, das restrições deprimentes da vida, e da minha própria fraqueza, que me condena a um isolamento, em que por mim próprio me vou afundando sem remédio”.

Assim, se o estado de alma de Camilo Pessanha, já de si uma figura amargurada, ao chegar de Portugal com uma mágoa de amores não correspondidos, o espírito daquele início de Verão, sem chuva e de um calor sufocante, ainda mais o atormenta, ampliando-lhe a depressão. Como se não bastasse, apenas com doze dias de Macau, recebe uma carta do pai a dizer que a mãe está a falecer. Camilo entra em desespero e desabafa as suas amarguras em carta ao amigo Alberto Osório de Castro, que deposita na Repartição do Correio, a funcionar desde 12 de Janeiro de 1885 na Praia Grande, no edifício contíguo ao Hotel Hing Kee. Aí conhece o director Ricardo de Sousa que, desde 1869, acolhera na sua casa, situada na Rua do Campo, nº. 1, o serviço dos Correios. Contudo, após a mudança em 1885, passou a contar também com uma estação postal na Ilha da Taipa.

No tempo de Camilo Pessanha, há outras duas caixas postais distribuídas pela cidade: uma no edifício da Junta de Fazenda e a outra na Capitania dos Portos, cem como caixas postais móveis, colocadas a bordo dos vários vapores da carreira Macau-Hong Kong, fazendo-se já o serviço de permuta das malas postais com Hong Kong e directamente com Cantão.

As depressões de Pessanha poderão ter inspirado Ricardo de Sousa, que exercera pequena clínica em Hong Kong, a ser um dos sócios fundadores da Pharmacia Popular, inaugurada a 8 de Dezembro de 1895, na Rua da Praia Grande. Nessa altura, está Camilo Pessanha a deixar o Hotel Hing Kee.

Em Macau não existe luz eléctrica e a noite é iluminada pelas lanternas alimentadas a azeite (azeite de luzes, de várias qualidades e por vezes também usado na comida), ou a petróleo, que começa a ser mais utilizado devido ao preço barato. Está o assunto sobre o monopólio do petróleo na ordem do dia, apesar de este ter sido entregue no dia 1 de Abril de 1894. Ainda não passara quinze dias e já os compradores se queixam dos abusos do arrematante e pedem às autoridades para o obrigar a entrar no caminho da legalidade, pois serve-se de estratagemas muito ousados para aumentar os seus lucros, sem olhar a meios. Um dos expedientes conhecidos é o de trazerem para Macau latas de petróleo sangradas em Hong Kong, que continham menos quantidade de produto do que as anteriormente vendidas ao público.

Tomada de posse

Quatro dias depois da chegada a Macau de Camilo Pessanha, por Portaria do Governo provincial de 14 de Abril de 1894, é nomeado Reitor do Liceu o sr. dr. José Gomes da Silva, Chefe do Serviço de Saúde desta província e professor da 6.ª cadeira (Física, Química e História Natural) do mesmo liceu que, além de médico, é um homem cultíssimo. Fica também determinado que lhe seja entregue o edifício do extinto Convento de Santo Agostinho para aí ser instalado esse estabelecimento de ensino secundário e é marcada para 16 de Abril a tomada de posse dos professores e funcionários do Liceu.

No dia seguinte, Domingo, realiza-se no Seminário Diocesano um sarau literário e musical em homenagem ao Reverendo D. António Joaquim de Madeiros (desde 1884 Bispo Diocesano de Macau, que engloba Timor, fora Reitor do Seminário de S. José e virá a falecer em Timor em 7-1-1897) tendo estado presente nessa festa o Governador Horta e Costa, com sua esposa, o subalterno Governador de Timor, José Celestino da Silva, com esposa e filhas, os vereadores da Câmara, os Juízes de Direito, o Procurador dos Negócios Sínicos e Delegado da Comarca, Coronel António J. Garcia, bem como os professores do Liceu Nacional, os do Seminário e da Escola Central, Administrador Pacheco, Major Costa Campos e outras pessoas.

Seis dias após chegar a Macau, a 16 de Abril, vê-se Camilo Pessanha a sair do hotel: figura franzina e esguia, aprumada e trajando a rigor para a cerimónia de tomada de posse, (com tamanho calor levaria colete e casaca?), rosto resguardado pelo chapéu e na mão (traria já a bengala?). Caminha pela Rua da Praia Grande até ao Palácio do Governo, projecto do arquitecto macaense José Agostinho Tomás de Aquino, construído em 1849 pelo Barão do Cercal e, desde o Governador Tomás de Sousa Rosa (1883-1886), sede do Governo de Macau.

Conhecido por Palácio da Praia Grande, com o Governador Januário Correia de Almeida (1872-74) foi acrescentado um corpo central saliente à residência oficial dos governadores, que mais tarde veio a ser o Palácio das Repartições – Economia, Fazenda, Tribunal e Administração Civil e hoje representado pelo edifício do antigo Tribunal, em frente à estátua de Jorge Álvares – que aí apareceram, já toda esta história há muito acabara.

Nesse dia o Governador Horta e Costa dá posse aos professores e funcionários do Liceu, excepto a João Pereira Vasco, um dos quatro professores do Liceu que vieram de Portugal e o único que não chegara ainda a Macau. O Dr. Gomes da Silva substitui, no Conselho Inspector de Instrução Pública, o Director da Escola Central, o Sr. Patrício José da Luz, cargo que passa a pertencer ao Reitor do Liceu. Ali se encontram, talvez pela primeira vez, o poeta Camilo Pessanha e o prosador Wenceslau de Moraes.

Dois dias depois, o Echo Macaense, junto das notícias oficiais do acto, refere: “Mandou-se entregar ao Leal Senado da Câmara de Macau os edifícios, mobílias e mais pertences das escolas da instrução primária do sexo feminino e dos chineses”.

O período lectivo vai já muito adiantado e, por isso, as aulas só irão começar em Setembro: “todavia os professores não estão em ociosidade, porque foram incumbidos de elaborar o regulamento, indispensável para se determinarem os diversos detalhes quanto ao ensino e as atribuições dos empregados”, como refere O Independente de 21 de Abril de 1894. Camilo Pessanha ficou de elaborar o regulamento do Liceu, que virá a ser aprovado a 14 de Agosto.

Em carta de 28 de Maio, confidencia ao pai que nos primeiros três anos não deverá ter nenhuns alunos. A sua adaptação consolida-se: “Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente. A vida, por aqui, é cheia de impressões novas cada dia, ou eu me finjo que é, em um delírio artificial de grandezas, que me serviu de coragem para partir, e ainda me vai servindo para não esmorecer de todo”, segundo a transcrição de Daniel Pires que observa:  “Especial ênfase deve ser dado à sua empatia pela civilização chinesa, em sincronia com outros escritores europeus do século XIX, que mistificaram o Oriente” e, ainda não decorrera um mês de estadia, já Camilo Pessanha tem um professor chinês para lhe ensinar a falar e escrever a língua usada pela maioria da população de Macau, que andará pelas 76 mil pessoas, sendo 3500 portugueses. Durante as trovoadas de Maio, os advogados da cidade mostram não ver com bons olhos Camilo Pessanha exercer aqui advocacia.

A Colina de Sto. Agostinho

No início, quando hospedado no Hotel Hing Kee, o percurso para o Liceu é curto, mas íngreme, até ao cimo da Colina de S. Agostinho, o pólo cultural de Macau. Camilo sai do hotel e, pela Rua da Praia Grande, segue até à Calçada de Sto. Agostinho que, numa árdua subida em linha recta, o leva após cruzar a Rua Central a chegar à Rampa de Sto. Agostinho. De um lado vislumbra o Teatro D. Pedro V, em frente encontra-se o Liceu. Outro possível trajecto seria caminhar até à esquina do edifício do Hing Kee, entrar logo na Calçada do Governador (actual P. Luís Fróis, S.J.) e subindo o morro, chegar a um cruzamento de quatro ruas. Em frente, descer pela Rua do Gonçalo leva ao Largo do Senado. Para Norte, pelo morro alonga-se a Rua da Sé, ao nível da natural muralha qual osso do dragão, a dar para o Largo da Sé, onde a Catedral e o Paço Episcopal têm por trás o jardim a prolongar-se, descaindo para a Rua Formosa e Pátio das Flores. A Rua da Sé acaba onde começa a Rua Central, no cruzamento com a Calçada do Governador e Rua do Gonçalo (hoje Beco, pois a rua ficará mutilada com a abertura de Almeida Ribeiro) e daí, início da subida, a Rua Central termina na Igreja de S. Lourenço, construída entre 1558 e 1560 e conhecida pelos chineses por Fong Son Ton.

Então a principal artéria de comércio da cidade, a Rua Central, que os chineses designam por Lông Sông Cheng Cái (Rua Central do Cume do Dragão), serve de divisória: para Leste a zona rica europeia, a Baía da Praia Grande onde também já alguns chineses moram e, virada para Oeste, uma vasta área no Porto Interior aterrada, onde se concentra o Bazar chinês. As Zonas Baixas, como no livro A Diocese de Macau, compilação de D. Domingos Lam refere, “a Baía da Praia do Manduco (Há Van), ou Baía Baixa onde se encontravam as pontes-cais para os pescadores, a Praça de Ponte e Horta (Si Ta Hau, i.e., a Entrada da Alfândega) e a parte central da Rua do Visconde Paço de Arcos, onde ficavam as pontes-cais para os vapores que ligavam Macau a Hong-Kong, Guangzhou (Cantão) e outros portos no Rio das Pérolas”.

Nesse percurso, ainda sem horário para chegar ao Liceu, a atenção de Pessanha distraí-se no exotismo e diversidade, encontrada igualmente por Adolfo Loureiro em 1883 quando escrevia: “Entrei em muitas boticas, como ali se chamam as lojas e casas de comércio, para fazer aquisição de diversos objectos, papel, fatos brancos de linho ou de seda…”. O interesse de Pessanha pela arte chinesa poderá ter surgido nessas lojas de parses, muçulmanos, cristãos e chineses, com um comércio de produtos a captar-lhe a atenção, pois até então, muitos deles nunca os vira. Assim, com ligeiras mudanças às impressões de Adolfo Loureiro sobre o burgo macaense, onze anos depois, Camilo Pessanha encontra ainda os chineses a trabalhar ao domingo e “nus da cintura para cima, se entregavam com ardor aos trabalhos da sua profissão, tomando de vez em quando a sua taça de chá. Pelas ruas encontrava-se muita gente, mas quase tudo chineses, que se parecem todos e vestem quase da mesma forma. Os europeus eram em pequeno número e trajando quase todos uniformes militares. O nosso militarismo manifestava-se ali pela farda, pelas fortalezas, pelas sentinelas, e pelos toques de corneta. Parecia uma verdadeira praça de guerra!”, como refere Adolfo Loureiro.

Em frente à Calçada de Santo Agostinho, numa volta de 180º começa a Rampa de Santo Agostinho com degraus, que virá a ser a Calçada do Teatro e logo de frente, o antigo convento dos frades agostinianos a preparar-se, numa solução provisória, para albergar o Liceu. Chega Pessanha ao topo da colina, onde se encontra o Largo de Santo Agostinho, dividido entre as paróquias de S. Lourenço e da Sé. Ao lado do edifício do antigo Convento, a Igreja de Nossa Senhora da Graça, ambos ali edificados em 1591, tendo sido a igreja reconstruída em 1875, de onde vem a estrutura actual.

No largo, Pessanha pode apreciar o Teatro D. Pedro V, cujo risco do projecto e a direcção da obra iniciada a 1859 é de Pedro Germano Marques, sendo a fachada, projectada pelo Barão do Cercal e edificada entre os anos 1873 e 1879. O Conde de Arnoso, nas Jornadas pelo Mundo, referiu-se ao Teatro D. Pedro V, indicando que em 1887 era uma pequena mas elegante sala de espectáculos, onde os europeus tinham instalado o Clube União. Havia ainda um prédio, pertença desde 1872 de Francisco Manuel da Cunha e cujo registo o dava no Campo de Santo Agostinho, conhecido por Horta Superior, situado a Leste do Teatro, que Luís Gonzaga Gomes questionará se não seria a actual entrada do Clube. O Clube União, fundado para organizar festas no teatro, teve os estatutos elaborados pelo seu presidente, Pedro Nolasco da Silva, aprovados por portaria de 13 de Abril de 1887.

Mais tarde, sem dinheiro para festas, a direcção do Clube União pretendeu hipotecar o edifício do Teatro, mas os sócios fundadores tal não permitiram, o que os levou a criar uma nova Associação, a dos Proprietários do Teatro D. Pedro V, enquanto os outros membros formaram a Associação do Clube União. Pessanha terá comentado ainda no salão do Hing Kee a subdivisão do Club União em duas Associações distintas, pois esta só é aprovada em 1896. Já em 1902, durante uma festa dançante, um tenente porta-se indignamente e, ao ofender a Sra. Canavarro, levanta um tal problema que se fecha o União e surge o Clube Macau.

Na vertente do Mato Mofino, encontra-se o Seminário de S. José, fundado em 1728 pelos Jesuítas, com a função de preparar missionários para a China e então a albergar também o secundário da Escola Comercial; a casa de Sir Robert Ho Tung a ser (em 1894) construída (actual Biblioteca) e a antiga casa da missão espanhola, nessa altura Procuradoria da Missão Dominicana Espanhola e hoje a Casa Ricci, onde se encontra a Caritas.

Após as aulas, Camilo Pessanha tem três vias para se aventurar pela cidade. Voltar à Rampa de Santo Agostinho e pela Rua Central seguindo para Sul passar à Colina do Bom Jesus e ir até à Penha ou, descendo pela Calçada de Sto. Agostinho, desmbocar na Praia Grande, junto ao Palácio do Governo. Se, à saída do Liceu virar para a direita, encontra a Rua dos Cules, por onde entra no Bazar chinês. Já pela Rua do Tronco Velho, (nome ligado à prisão existente até 1754 numa casa ao lado do Convento de St. Agostinho), logo à entrada apresenta-se um edifício que, mais tarde reconstruído, albergará a Escola Comercial, actual sede do Banco Delta Ásia. Descendo-a, entronca com a Rua da Alfândega, entra na Rua da Cadeia, (que em 1937 receberá o nome de Rua Dr. Soares), para chegar ao centro municipal da cidade, o Largo do Senado.

4 Ago 2017

Lusitanistas | Associação regressa à Europa depois de congresso na RAEM

O primeiro congresso da Associação Internacional de Lusitanistas na Ásia chegou ao fim e o balanço não podia ter sido melhor. Quem passou por cá leva a ideia de que a língua portuguesa interessa à China. E foi feita ciência no território

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] próximo congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, em 2020, vai realizar-se em Roma, foi anunciado em Macau, na sessão de encerramento da 12.ª reunião, considerada um êxito pela organização.

O interesse pelo português está a crescer fora dos países de língua portuguesa e “na Ásia foi espectacular”, disse Roberto Vecchi, da Universidade de Bolonha (Itália), que foi reconduzido no cargo de presidente da AIL por mais três anos (2018-2020). O responsável considerou que a “atenção dada” aos trabalhos da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL) “tem um potencial muito grande”.

Esta “impressão alimenta o optimismo (…). Vai ser interessante ver como se concretiza esse potencial nos próximos anos”, sublinhou, no final do primeiro congresso da AIL na Ásia.

Em Macau estiveram cerca de 140 associados de 80 universidades, mas o espaço de referência da AIL abrange cerca de nove centenas de pessoas. “Considerar 900 estudiosos de língua e culturas que se expressam em português significa uma rede académica realmente global”, afirmou Vecchi, acrescentando que a AIL se está a transformar, ao passar de uma “associação de estudiosos” para uma “plataforma que promove os estudos” com dimensão internacional.

A função da associação, “que é lateral”, é estimular e contribuir para a disseminação da língua e das culturas que falam português e para isso há vários projectos em curso, como a renovação da revista da AIL, Veredas, e a aposta numa plataforma para editar os trabalhos dos associados.

A brilhar

Um dos projectos mais conhecidos da AIL é a Plataforma 9 – Portal cultural do mundo da língua portuguesa, que regista 1,2 milhões de visualizações.

“A Plataforma 9 teve uma explosão fantástica, mas é uma parte de um todo. É preciso equilibrar o sistema e fazer com que todas as acções cresçam de forma orgânica”, disse.

Responsável pela organização do congresso em Macau, o director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau (IPM) considerou o balanço “francamente positivo” do ponto de vista científico. “Produziu-se ciência e foi feito em Macau”, afirmou Carlos Ascenso André.

“Macau tem um claro papel a desempenhar, do ponto de vista geográfico, da herança e da identidade, tem meios e vontade política para o fazer”, sublinhou.

Antes do encerramento dos trabalhos, Ettore Finazzi-Agrò, da universidade “La Sapienza” de Roma, apresentou a única candidatura à realização do próximo congresso da AIL.

IPM lança revista científica em português

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau (IPM) vai lançar, no final do próximo ano, a revista “Orientes do Português”, uma publicação científica para responder às necessidades dos docentes de língua portuguesa no interior da China.

O director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM, Carlos Ascenso André, afirmou que a nova revista “é uma prenda para os professores de português que ensinam no interior do China” feita em Macau.

“Estes docentes têm consciência de que querem progredir na carreira académica e para isso é preciso fazer currículo, e o currículo que mais conta é o das publicações”, disse na sessão de encerramento do 12.º congresso da Associação Internacional de Lusitanistas.

Estes professores “são muito jovens, não há tantas revistas como isso acessíveis e não há, no Oriente, revistas em português”, sublinhou Carlos Ascenso André.

“A prenda foi para os professores de português que ensinam na China. Criar uma revista em Macau disponível para eles publicarem é uma prenda que lhes estamos a dar”, disse.

A partir de Setembro, poderá ter início o pedido de contribuições para a revista, que terá inicialmente uma periodicidade anual. “Vou criar um conselho científico de pares anónimos para fazerem a arbitragem científica”, de 20 ou 30 pessoas, de “muita qualificação e de todo o mundo”, explicou.

“Queremos que esta publicação ganhe reconhecimento por parte da comunidade científica e queremos que seja indexada”, disse o responsável, sublinhando que para uma revista ser indexada “tem de ter qualidade assegurada”.

Carlos Ascenso André afirmou que um dos objectivos é ver a nova publicação do IPM ser indexada na China. A publicação vai ter divulgação mundial, através de uma edição digital e em papel.

Pessanha em Novembro

Carlos André anunciou também a realização de uma conferência sobre o Camilo Pessanha, em Novembro, com três convidados vindos de Portugal. Está já “garantida a presença de José Carlos Seabra Pereira, o maior especialista na área do simbolismo, movimento a que pertence o poeta”, disse.

A resposta “muito positiva e imediata” de todas as pessoas que ensinam literatura portuguesa nas instituições de ensino superior de Macau significa que a conferência será feita “com tudo o que de melhor há em Macau e que pode falar sobre Camilo Pessanha”, destacou. Camilo Pessanha viveu parte da sua vida em Macau, onde morreu em 1926.

31 Jul 2017

A dor que deveras sente

De la musique avant toute chose
In Orphão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]averá uma frase de Borges que nos remete para o devaneio de na poesia se encontrarem contidas a música e a pintura, pois a sucessão de palavras – para além das ideias – conteria ritmos, melodias e imagens. Deixando, por ora, de lado a vertente contemplativa e considerando unicamente a música, não será difícil atribuir o carácter encantatório do fluir poético à existência de uma musicalidade no poema, seja ela derivada da sonoridade das palavras ou do modo como se entrelaçam, para depois se sucederem as imagens e os conceitos.

Existe na poesia um efeito vibratório, musical, onde reside, se não o seu principal pólo de interesse, pelo menos a fonte de parte considerável do seu fascínio. “Os estímulos visuais”, refere Ester de Lemos, “não escapam tão facilmente à vigilância da razão, não são tão facilmente encarados em si mesmos como os estímulos auditivos, sobretudo os musicais.” (Lemos, 1956, p. 30) Se a música escapa à vigilância da razão, ela será o meio excelente para arrebatar, para suster essa poesia que “eleva cada indivíduo através de uma ligação específica com o todo restante.” (Novalis, 2009, 121).

Este carácter sintético da poesia, em grande parte ancorado nessa musicalidade, não deverá ser entendido como referido à dialéctica, que entende um momento de negação, mas a um mero gesto de apropriação criacionista, capaz de proporcionar polaridades outras e sistemas de leitura, o que equivale a dizer reinventar universos e abrir uma miríade de possibilidades à expressão da vida.

A síntese, na dialéctica, exprime, afinal, o culminar do processo de aculturação; no criacionismo, a função da negação, fundamental na construção da identidade, só estará presente na expressão poética como condição de sinceridade do media, como se pretendesse operar uma regressão a um estado anterior onde a graça da criança (das três metamorfoses de Nietzsche/Zaratrusta) lhe permite apoderar-se do mundo num golpe. Não se tratará, contudo, de uma regressão propriamente dita mas de uma reaquisiçãoa saudade é do futuro.

Se, para Rousseau, a primeira linguagem era poética tal seria no sentido em que uma palavra dessa primitiva língua encerraria muito mais sentidos que o seu significado literal (ou que este não existiria e muitos significados estariam contidas numa palavra só) e os homens de antanho falariam basicamente por metáforas, abarcando assim mais do mundo do que eles próprios poderiam compreender, sendo a Língua o repositório de um saber que os próprios indivíduos que a falavam apenas entenderiam parcialmente.

A poesia inscreve-se numa ânsia de apropriação do mundo e dos seus sentidos ocultos, num claro sentir filosófico em que, para além da vibração musical (mas também em ela), o poema expressa uma visão, eventualmente, o esboço ou o castelo final de uma qualquer metafísica.

É com o primeiro Romantismo que poeta e poesia exacerbam esta ânsia, assumindo o conceito poético que elevará o “homem acima de si mesmo”. Trata-se, no dizer de Novalis, de uma poesia “transcendental”, que é “mesclada de filosofia e poesia”, e que prefigura a dissolução dos sistemas filosóficos, na medida em que “se o filósofo ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos. As suas palavras não são signos universais — são sons — palavras mágicas, que movem belos grupos em torno de si”. Novalis remataria: “Quando mais poético, mais verdadeiro”.

Parece então que com o Iluminismo, o poeta visa ultrapassar o mero papel mediador do xamã para aspirar a ser ele mesmo – através dessa transcendentalidade que lhe proporciona o pensamento filosófico e mesmo a ciência – uma fonte de permanente problematização, expressão radical da vida mas também das volutas do espírito, sem abdicar também do modo – mágico – como eventualmente recuperará alguns restos dessa linguagem primordial, onde se rebatiam os mistérios do mundo e das coisas.

Pessanha e as “nobres especulações do espírito”

Sem deter o exclusivo ou sequer a preponderância, poesia e filosofia particularmente se entrelaçam no espaço da Língua Portuguesa, por razões que talvez passem pelo defeito da segunda e o excesso da primeira. Após o milagre grego, raramente o Sul produziu um assertivo pensamento lógico, mas as preocupações metafísicas, lidas através dos penetrantes filtros da experiência do mundo e de particulares sensibilidades, cedo se imiscuíram em temáticas versejadas. Já em Camões, para não irmos mais atrás, ao vate, ao cantor épico, se sobrepunha o homem dilacerado pela dúvida, onde o recurso à mitologia soa – além da epocalidade renascentista – ao desespero de constatar uma diversidade percorrida, revivida, recebida e, por tanto, a intuição de um mundo desencantado.

Na segunda metade do século XIX, a presença cimeira de Antero de Quental – o que “ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta” (Fernando Pessoa) –, com certeza deu um tom definitivamente filosófico à expressão da poesia lusófona e talvez poético à filosofia pensada em Português. As crises, civilizacional na Europa e muito específica em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico, eram demasiado profundas e dolorosas para que os poetas se limitassem aos devaneios dos salões, às rimas de ocasião, enfim às actividades dos que Pessanha define como “essa legião de poeta mínimos, cuja pobre musa toda a sua fecundidade esgota na concepção de cem páginas de lirismo”.

Como explica Gustavo Rubim, Camilo Pessanha critica a poesia como “uma expressão directa dos sentimentos, das sensações ou da experiência vivida do poeta e opõe-lhe uma concepção mais abstracta que inscreve o discurso poético no campo das ‘especulações do espírito’”. Ora para sustentar a filosofia no discurso poético, para lhe garantir o carácter especulativo, implica, como diz o autor de Experiência da Alucinação, “uma certa dimensão impessoal” (Rubim, 1993, 142). Ou seja, o que Fernando Pessoa já exprimia, quando escreveu este revelador apontamento:

(…) A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX a XX, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. (…) O terceiro ensinou a sentir veladamente*; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele. Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha.

O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.”

Este “trazer nas mãos os sonhos do coração” implicará um duplo distanciamento: uma consciência primeira que, se bem que sob o filtro da sensibilidade, exige a exterioridade; e uma exterioridade que permite a reflexão distanciada. O poeta adquire esse distanciamento em relação a si mesmo (ao lirismo óbvio) e a possibilidade de contemplar (teorizar) o que detém agora nas mãos, operando uma espécie de processo alquímico de destilação, decantação e, finalmente, sedimentação – de sensações, sentimentos e ideias – nas palavras finais do poema. Isso é de tal modo presente em Pessanha que, mesmo quando produzia “os seus poemas por uma premente necessidade espiritual”, fazia-o “numa atitude eminentemente intelectual (…) vivendo e revivendo o sentir dos momentos de concepção poética.” (Dias Miguel, 1956, 185)

É então a poesia o canto desses sonhos do coração? O que são eles? Parece-nos que Pessoa se refere, quase falando numa linguagem gémea da de Pessanha, a um processo poético. Curiosamente (e tal não deverá passar de uma coincidência), no pensamento tradicional chinês, seja ele confucionista ou daoísta, o coração (xin) é a entidade onde residem as emoções, os desejos, os sentimentos, o pensamento e a moral, ou seja, ali se entrelaça toda a fenomenologia da existência interna dos seres humanos. Se entendermos coração neste sentido, teremos então o indivíduo e todos as seus rizomas culturais nas mãos.

Mas Pessanha, por outro lado, entregava-se “ao trabalho do aperfeiçoamento da expressão, preocupado até à angústia com o sortilégio e a magia verbal, condensando e polindo de tal modo, que muitas vezes obscurecia quase totalmente o sentido biográfico e directo que tinham essas poesias”, nas palavras de António Dias Miguel. (Dias Miguel, op.cit.) Assim se revelam a existência de uma matriz filosófica e uma a exigência de distanciamento biográfico, a par com a demanda extrema da musicalidade.

Seguindo estas referências, parece inegável que a reflexão filosófica ocupa um lugar fundamental na poesia de Camilo Pessanha. Ainda que nem sempre explícita, a sua concepção do mundo constituiu, talvez de forma dolorosa, uma das principais episteme onde a sua poesia lançou raízes e a partir da qual se desenvolveu.

A pergunta e o gelo

Já em 1887, no poema Soneto de Gelo, o poeta explicitava algumas das preocupações derivadas do seu dispositivo ontológico:

(…)
“Eu mesmo quero a fé, e não a tenho,
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença”

Ou seja: a ausência da fé, uma existência num mundo sem Deus e, consequentemente, a morte como fronteira de dissolução do indivíduo. O poeta quisera uma pequena prova, ainda que só “um lenho”, de “um resto de batel” (a barca, baraka — animal fantástico, montada de Abraão e Maomé, que na mitologia islâmica opera a comunicação entre dois mundos), algo onde se suster, que o não deixe “afundir na treva imensa” de um universo vazio de sentidos divinos ou de quaisquer outras satisfatórias respostas.

É precisamente essa “treva imensa”, o segredo insondável, que provoca no poeta o início de uma profunda dor metafísica, quase revolta contra a divindade pelo seu silêncio/inexistência e sua consequente falta de fé. Se foi Deus “quem arrebatou a minha crença” é porque o estado de descrença é anterior ao próprio advento do raciocínio científico-filosófico ou da intromissão da cultura. É certo que a falta de fé surgirá também como decorrente do próprio ZeitGeist, da posição do poeta num dado momento civilizacional. É a religião na qual foi educado, as relações familiares, a escola frequentada, o valor atribuído ao conhecimento científico, a sociedade emergente, enfim, o conjunto global de valores e procedimentos que constituem uma Cultura num determinado momento da História, que tornavam problemática a existência de Deus. Mas Pessanha parece afirmar que sente a sua descrença, de algum modo, anterior, constitutiva e fatal, porque lhe foi arrebatada por Deus, o que não deixa de exalar uma paradoxal ironia.

A extinção da crença resultará como anteriormente resultava a sua afirmação: sem que o sujeito nela tenha uma real intervenção. Pessanha assume neste poema o seu ateísmo como condição (dolorosa) e não como decisão consciente. Até porque o novo universo, dessacralizado, não lhe fornece respostas. Simplesmente, efemeramente o admite, na sua fria indiferença, sem proporcionar qualquer consolo às angústias fundacionais dos humanos.

O poeta refere esse mal-estar matricial no poema Estátua:

Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, — frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado:
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.  

O cansaço de procurar de respostas no olhar – acto que remete para a contemplação, a teoria –, dá lugar à ousadia do beijo – acto amoroso, a poesia. No primeiro caso, a contemplação esbarra e quebra-se “como a onda na crista de um rochedo”. No segundo, produz-se um esfriamento do que era “ardente, alucinado”. Ou seja, nem a razão consegue penetrar o insondável; nem um extremo desejo e uma vitalidade transbordante obtêm outro resultado que não seja a sua própria dissolução. Em ambos os casos, sobrevém uma existência assombrada pelo silêncio.

Emana, de facto, deste poema uma sensação de horror perante um universo feito estátua, em cuja indiferença nem Razão nem Vida penetram. Estátua porque, se bem que gelado e silencioso, de olhar sem cor como as estátuas gregas, ainda assim, tal como a escultura clássica, o universo não deixa de exibir uma certa ordem e exalar uma profunda beleza. Tal acentua o sofrimento do poeta perante a impossibilidade de – não de o conhecer – mas de beber esse segredo. Não serão os conhecimentos científicos, racionais, que trariam satisfação a Camilo Pessanha, pois estes nem de perto pretendem responder às questões que o habitam. Mas, mesmo face às suas ousadias, de pesadelo, nada acontece a não ser o esfriamento perante a gravitas de um “túmulo fechado” ou de um “pélago quieto”.

Pessanha habita um universo novo, que a ciência descreve através das teorias quânticas, do princípio da incerteza, da transformação sucessiva de matéria em energia e de energia em matéria, em que a própria matéria não é mais que uma vibração ou ondulação, obediente a ritmos misteriosos, desconhecidos mas dessacralizados.

Não será também o uno conceito de Vontade, de Schopenauer — como tem sido repetidamente afirmado por uma ligação rápida ao dito pessimismo do alemão —, que aqui estará em jogo. Não existe uma Vontade (conceito eivado de metafísica), mas um palimpsesto de forças, de energias, de vibrações, num universo em que as formas se limitam uma existência efémera como no poema “Imagens que passais pela retina dos meus olhos / Porque não vos fixais?”, em que tudo é transitório e de sentidos vagos. Os “olhos pagãos” somente vêem os “sucessivos desertos”. E nem a sua presença deixará qualquer rasto: “Fica sequer, sombra de minhas mãos”.

No lugar de Deus não existirá nada, sequer faz sentido o panteísmo de Espinosa. A ideia de um ser divino, antropomórfico ou disseminado, dará lugar a esse resfolgar contínuo de todas as coisas, essa dimensão pulsante que permite supor a existência de um ritmo primordial, incessante, inesgotável, sem face nem propósito, sem leis morais, mera energia e mera matéria, em permanente metamorfose, como o poeta sussurra ainda no seu leito de morte, à laia de despedida: “Tudo podridão… tudo matéria…” E podridão, o leitor do Octave Mirbeau de “O Jardim dos Suplícios”, novela passada em Cantão no século XIX, que Pessanha certamente era, sabe que significa metamorfose.

Num plano mais pessoal, é a ausência de uma consciência divina que torna fútil a crença num destino, dando ao indivíduo a sensação solitária de à toa marear na vida, tornando-a também a ela fútil e levando à invocação da morte como acto estético último, no sentido borgesiano da iminência de uma revelação que não se produzirá.

Enfim, levantou ferro.
Com os lenços adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras más do meu desterro
Ondas azuis do oceano, submergi-o. 
Que eu, desde a partida,
Não sei onde vou.
Roteiro da vida
Quem é que o traçou?
(…)

A sensação de inutilidade da vida (“Foi um dia de inúteis agonias”… “Floriram por engano as rosas bravas…”) percorre a obra de Pessanha. A vivência num mundo desencantado, sublinhada pela decadência do país, estriba-se numa ontologia melancólica, onde a aura materialista acaba por ser, em confronto com a sensibilidade do poeta, fonte de uma inextirpável dor.

Camilo Pessanha será um daqueles primeiros homens a ter nascido no mundo de um Deus morto (Nietzsche), mas onde a estrutura religiosa se encontra profundamente imiscuída na Cultura e mantém a sua influência noutros domínios que não o filosófico. Por exemplo, nesta linha, Michel Onfray, no seu Tratado de Ateologia, classifica de ateísmo cristão o pensamento dos homens oitocentistas que não acreditam na existência de Deus, mas cuja moral se rege pelos valores do cristianismo.

No caso de Pessanha – também porque a sua poesia mergulha “as suas raízes no húmus natal” – existirá, não uma moral cristã, mas uma estética primeva que não dispensa uma concepção divina, um plano do mundo. É, sobretudo, em termos estéticos, imagéticos até, com todas as suas consequências, que esses arquétipos assombram Pessanha. Ele recorre aos mitemas da sua cultura, claramente perturbantes, para exprimir o seu desvanecimento no mundo contemporâneo e também na sua própria sensibilidade. Tal procedimento é recorrente quando o poeta se refere, por exemplo, a figuras femininas, segregando imagens como “Magra figura de vitral…”, “Madalena, cabelos de rastos…”, de nítida influência religiosa ou, num registo mais rural, mas igualmente irreal: a alma de sua mãe, pela neve, a mendigar à porta dos casais.

Repare-se ainda no poema Transfiguração:

Mulher forte, remiu-me a tua prece:
Penitente, pagão, bem lusitano
Ergo os braços ao céu quando anoitece.
Judas divaga, em espiras de pecado
Eis-me o Verbo de Deus, sacramentado
No rebuço dum capote alentejano
.

A mulher (origem, cultura) fica como repositório da crença, que eventualmente, à la Pascal, o redimirá. Mas ele é Judas (traidor, em pecado) e mesmo quando poeta, expressão divina, “sacramentado”, acaba rebaixado à banal, prosaica, desencantada condição de existência “no rebuço dum capote alentejano”.

Fusão ou barbárie

Uma das consequências principais de um universo dessacralizado é o surgimento da morte como espaço de dissolução do indivíduo. Deus existiu moribundo na poesia do século XIX, até encontrar a sua mais desesperada e última expressão no satanismo, que precedeu o nosso poeta. Tais caminhos mostraram ser becos sem saída, meras expressões contingentes de um problema que cavava mais profundo que uma inversão, na qual, afinal, se declarava um amor supremo edipianizado.

E não seria por aí que Camilo caminharia. Como refere Rubim, a partir da crítica do poeta ao livro Flores de Coral, de Alberto Osório de Castro, nele a vida surge como “uma consequência lógica” da morte, a vida significa a morte, uma não é a negação da outra. “De que havia pois de lamentar-se, ou contra o que havia, pois, de insurgir-se, se a morte é, em relação à vida, não só o termo fatal, mas também a consequência lógica?”

Contudo, Pessanha não deixa de considerar a morte como algo de fatal, a par com uma consequência lógica. Daqui se entende a concepção da vida — apenas porque no humano existe à partida o conhecimento antecipado do fim —como fatalidade, embora esteja ausente o destino. O que parece aconchegar tal concepção da morte como dissolução do indivíduo, em que esta não passa de uma “consequência lógica da vida”, parece ser um desejo último de fusão com o Cosmos, finalmente de participação total, expurgadas que serão a consciência e a dor.

Recortes vivos das areias,
Tomai o meu corpo e abride-lhe as veias…
O meu sangue entornai-o,
Difundi-o sob o rútilo sol (…).
Só o meu crânio, fique,
Rolando, insepulto no areal,
Ao abandono do simoun
Que o sol e o sal o purifique
.

A morte será uma porta para a integração total no universo, integração que não será a de uma alma una mas da matéria que se transforma, de um corpo que se desfaz: “Róseas unhinhas que a maré partira… / Dentinhos que o vaivém desgastara… / Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…” é o que sobra de uma vida e da “fúlgida visão, linda mentira!”. Poderá ser correcto afirmar que a biografia infantil do poeta, as suas desilusões amorosas e mesmo a sua frágil saúde terão sido razões importante para conferir à dor um lugar de relevância nos seus poemas. Mas creio que, aquém e além das referências biográficas, fará sentido outorgar a esta dor metafísica – consequência da consciência da inexistência de Deus, do indivíduo após a morte e do Destino – um papel central na obra do poeta de Clepsidra.

A dor que deveras sente

De tal modo a questão da dor é central na poesia de Camilo Pessanha que o poeta a transforma em energia necessária, como se ela fosse o único instrumento que permitiria uma visão mais profunda do universo e, de um modo quase perverso, justificasse a existência humana: uma espécie de Sofro, logo existo, na medida em que seria um garante de Ser.

Tenho sonhos cruéis: n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!…

Porque a dor, esta falta de harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu de agora,

Sem ela o coração é quase nada:
— Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Sem a dor, o coração, os tais sonhos, “é quase nada”. São as lágrimas que justificam a madrugada e sem elas o sol não seria sol, nele se extinguiria o que ele próprio proporciona. A importância atribuída à falta de harmonia remete para a frase de Rimbaud: “Finalmente, acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito”. No caso do poeta português, essa desordem é fruto da dor, mas é também fonte de iluminação, de uma percepção outra do mundo, como se fora um método poético de absorção mais intensa das coisas. Este poema é de 1888. Mais tarde, o poeta acabaria por rever esta posição como adiante demonstraremos.

Ora a questão da dor fora colocada no debate filosófico, entre outros, por Soren Kierkegaard e por Nietzsche que, na sua Genealogia da Moral, a refere como a grande criadora de memória. O filósofo alemão evoca os grandes espectáculos públicos da dor: as matanças, as carnificinas, as execuções públicas e a tortura, a que a Humanidade tem paulatinamente assistido e cuja função, afirma, é precisamente a criação de uma memória; a dor como uma terrível mnemotécnica, que passa mesmo, em certas sociedades, por rituais extremos e pela inscrição dos corpos.

Num plano individual, a dor também proporciona a memória e demarca os limites de acção dos indivíduos, mas a sua persistência, nomeadamente de uma dor metafísica, impele o sujeito para a reflexão filosófica e – pretenderão alguns – estende o campo de percepção a outras realidades. Tal fará, em Pessanha, que a dor seja invocada: “Saudades desta dor que em vão procuro / Do peito afugentar bem rudemente”. Repare-se no paradoxo: sente-se a falta (heurística) de uma dor que se pretende eliminar, porque ela é “a luz desgrenhada que alumia as almas” e o “céu d’agora”. Ou seja, a dor é ainda o que permite, no caos que desencadeia, um determinado conhecimento de si próprio e a intuição do universo.

Veja-se o exemplo do poema Branco e Vermelho, no qual a dor se transmuta em luz, em lúcida febre e proporciona a visão, a contemplação do mundo. E é toda uma humanidade agrilhoada que o poeta nos descreve, atravessando um mundo deserto, futilmente explorada e temente de um castigo, seres viventes nos charcos do medo, que só a morte liberta do sofrimento.

A dor induz o poeta a um estado de luminosidade/alucinação que lhe proporciona a visão da humanidade que desfila, açoitada ao ritmo dos seus versos. E que humanidade é essa? Um grande painel de sofrimento, de desconforto metafísico e também produto do crime cometido desde o alvorecer da História: a exploração do homem pelo homem.

Claro que neste poema existem outros cambiantes, outros caminhos interpretativos, nomeadamente (uma vez mais) para quem se quiser referir a conhecimentos esotéricos e à importância do maniqueísmo (a oposição luz/trevas) no pensamento templário e maçónico, sabida que é a filiação de Pessanha à maçonaria. Contudo, cremos que esta filiação, longe de ser religiosa, passava precisamente pela recusa da Igreja e por uma tendência de fraternidade social. É sabido em Macau que a loja a que Pessanha pertencia não tinha um carácter teísta, bem pelo contrário. Dela fizeram parte conhecidos ateus e republicanos.

Alma lânguida e inerme

À medida que em Macau Pessanha vai adensando os seus contactos com o pensamento chinês, podemos vislumbrar nos seus poemas alguns pontos de contacto com a tradição oriental, nomeadamente eventuais influências daoistas. De facto, a concepção de um mundo heraclitiano, em permanente movimento, não andará muito longe da ontologia proposta pelo pensamento daoista, mas será sobretudo o retorno à pureza original, que todo o pensamento clássico chinês prescreve, que encontra nos daoistas um método que nos surge como próximo de certos versos do nosso poeta.

Para o sábio daoista, deve o homem retirar-se do mundo, afastar-se para o ventre da terra onde, no silêncio, num processo de metamorfoses, comparável ao de uma crisálida, se transformará no Feto Imortal. O daoista alimentar-se-á na sua gruta, sugando as estalactites, como se fossem os seios da Terra.

Pessanha abre precisamente a Clepsidra como o famoso poema Inscrição:

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…

Ou mais à frente no mesmo volume:

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!
— Sorrindo interiormente,
Co’as
pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. —
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
(…)

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

Ora não se trata aqui da morte mas de atingir um estado outro de consciência, em que a fusão com a Terra, que um psicanalista poderia atribuir a um desejo de fusão com a mãe, seria o passo principal para conseguir um determinado tipo de repouso, que eliminaria a dor.

Gaston Bachelard, curiosamente no mesmo livro em que refere Lúcio Pinheiro dos Santos, um filósofo amigo do poeta de Macau, entende

“o repouso como um dos elementos do devir”, que se inscreve no “cerne do ser, que devemos mesmo senti-lo no fundo mesmo do nosso ser, ao nível da realidade temporal sobre a qual se apoiam a nossa consciência e a nossa pessoa. (…) Que cada um, à sua maneira, se liberte das excitações de circunstância que o põem fora de si. (…) o ser libertar-se-á de um impulso vital que o afasta para longe dos objectivos individuais, que se desgasta em actuações imitadas. (…) A consciência pura aparecer-nos-á como uma potência de espera e vigia, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.” (Bachelard, 2006, V-VI).

Estamos então perante uma espécie de quietismo como panaceia para a dor, fonte de iluminação e, no sentido referido por Gustavo Rubim, de alucinação, na medida em que a percepção do mundo se altera, se refina, se torna rítmica através da escuta aproximada do pulsar do pensamento e da própria matéria. Também nessa crisálida emerge, finalmente, um fio de voz, plena de consciência e de musicalidade, que dará origem ao poema. Não se trata, portanto, de um desejo de morte mas de obter um lugar excelso de compreensão do mundo que passa, como no daoismo, pela participação no todo, quase mineralização, onde a impessoalidade não significa necessariamente despersonalização mas, pelo contrário, a formação de um ser outro, como a borboleta Aurelia dos neo-platónicos de Alexandria, símbolo de uma nova sabedoria.

Podemos concluir que o ateísmo de Camilo Pessanha não o conduziu a um beco sem saída, como o poema Estátua parecia anunciar. Pelo contrário, permitiu-lhe navegar por territórios desconhecidos, não se fechar na sua própria cultura e dotar a sua poesia de uma universalidade e de uma atemporalidade inegáveis.

Quando nos subtraímos a essa ideia onde tudo cabe e que tudo explica, ficamos sós perante o Cosmos mas é precisamente nesse momento que se revela a tragédia e a beleza da condição humana, desse animal cujo dever é olhar o universo de frente, sem improváveis mediações, assumindo-se como filho das estrelas e do mar, assombrado pela ideia de infinito e orgulhoso por ser uma pequena chama no vasto incêndio do universo.


BIBLIOGRAFIA CITADA
Bachelard, Gaston. La dialectique de la durée. PUF: Paris, 2006
Dias Miguel, António; Camilo Pessanha – Elementos para o estudo da sua biografia e a da sua obra. Edição de Álvaro Pinto (“Ocidente”): Lisboa, 1956.
Lemos, Ester de. A “Clépsidra” de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Tavares Martins: 1956
Novalis. Fragmentos, diálogos monólogos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2009.
Rubim, Gustavo. Experiência da Alucinação – Camilo Pessanha e a Questão da Poesia. Editorial Caminho: Lisboa, 1993.

17 Jul 2017

Camilo Pessanha desembarca em Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calendário marcava 10 de Abril de 1894 quando, por volta das cinco da tarde, encostava ao cais do Porto Interior o vapor Heungshan vindo de Hong Kong.

Pouco tempo medeia entre a chegada do novo Governador da Província de Macau e Timor, o Capitão de engenharia José Maria de Sousa Horta e Costa (1858-1927), e do professor do Liceu: apenas duas semanas. Mas se era a primeira vez que Camilo Pessanha vinha a Macau, já o engenheiro Horta e Costa conhecia bem o território, pois fora empossado a 2 de Novembro de 1885 Director das Obras Públicas de Macau, posto que ocupara até 2 de Novembro de 1888. Assim, quando em 24 de Março de 1894 pela primeira vez “assume o cargo de governador, Horta e Costa sabia muito bem quais os interesses locais e os jogos de poder, o orçamento de que dispunha e as ligações político-administrativas que teria de manter com o Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, sem esquecer a frente diplomática como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto de Sua Majestade o Imperador da China e Rei de Sião”, segundo refere António Aresta.

Acompanhado pela sua esposa Adelaide Silvano, o Governador, nomeado por decreto de 23 de Dezembro de 1893, partira de Lisboa a 18 de Fevereiro e chegara a Macau entre 22 a 24 (referindo o jornal Echo Macaense, talvez por engano, o dia 27) de Março, sendo transportado pela canhoeira Bengo, que o fora esperar no dia 21 a Hong Kong. Desembarcara no Cais do Governador, fronteiriço ao Palácio das Repartições Públicas, na Baía da Praia Grande, que muito jeito teria dado a Camilo Pessanha, pois o hotel onde iria ficar hospedado era logo ali ao lado. No entanto, o professor, como todas as comuns pessoas, fôra desembarcado no Porto Interior.

A peste em Guangdong

Tivesse Camilo Pessanha chegado em Maio e teria de passar pela inspecção sanitária, feita ainda no próprio barco pois, tal como Cantão, Hong Kong padecia já no pesadelo da peste bubónica, apesar de Macau se ter mantido livre de tal calamidade. O primeiro caso aparecera na última semana de Março num distrito pobre de Cantão, perto da porta Sul e nos primeiros dias de Maio manifestava-se já em Hong Kong. Por isso, todos os passageiros que vinham da então colónia britânica e da província de Guangdong eram inspeccionados na fronteira por um dos dois médicos navais, o dr. Novais ou dr. Homem de Carvalho, ali em serviço diário durante seis horas ininterruptas para fazerem a despistagem da terrível epidemia.

Quem gostava de aparecer para vistoriar as passageiras estrangeiras era Ho-Lin-vong e Hip-Lui-sen que, a 22 de Junho de 1894 “entraram no vapor Heungshan juntamente com o sr. Chefe de Saúde, mostrando a sua autoridade na vigilância da inspecção dos passageiros, serviço de que se acha encarregado o sr. dr. Gomes da Silva. Este estado de coisas não pode continuar. É um desprestígio à autoridade que desempenha este trabalho e um motivo para os preponderantes alegarem serviços que não prestam nem podem prestar. Que vão inspeccionar os flower-boat do rio”, como refere no dia seguinte o jornal O Independente.

De salientar continuarem em vigor em Setembro, as medidas preventivas contra a peste. Ainda em Junho, os chineses de Macau realizavam procissões com as suas divindades, percorrendo as ruas com andores para a cidade se conservar livre da terrível peste. Fôra para debelar um surto de varíola e de cólera, provenientes de Hong Kong que, em 1888, entrara na cidade a divindade Na Tcha. A estátua desse deus criança, um menino travesso dotado de poderes sobrenaturais, passeara pelas ruas de Macau e os residentes, por ele protegidos, dedicaram-lhe dois templos.

Chegadas

Ao desembarcarem no Porto Interior, no cais ponte feita em madeira, logo os passageiros eram apanhados pela frenética actividade e rebuliço do bazar chinês. De lembrar que ainda não existia a Avenida Almeida Ribeiro.

“O comércio dos chineses é principalmente na rua do porto interior e no Bazar; na rua do porto interior faz-se a carga e descarga das inúmeras lorchas e outros barcos que demandam o porto, principalmente do peixe salgado, e no Bazar é onde os chineses tem os seus principais estabelecimentos de comércio, as casas públicas, onde eles tratam os seus negócios, as casas de jogo e colaus [restaurantes] que frequentam diariamente”, segundo refere o director das Obras Públicas, o eng. Augusto Abreu Nunes, também ele recém-chegado a Macau, a 14 de Dezembro de 1893, e ainda nomeado pelo Governador da Província Custódio Miguel de Borja, em 12 de Janeiro de 1894 para o cargo de Inspector de Incêndios.

Depois do eng. Abreu Nunes, chegara a 22 de Janeiro, com a esposa e um filho, o dr. Álvaro Maria Fornelos, que vinha ocupar o cargo de Procurador dos Negócios Sínicos, interlocutor com o governo chinês. Em Fevereiro desse ano, o Administrador do Concelho das Ilhas da Taipa e Coloane e Comandante da Fortaleza da Taipa, o sr. Tenente João de Sousa Carneiro Canavarro era promovido a Capitão graduado.

Os cules, trabalhadores chineses assalariados, em Macau desempenhavam o papel de serviçais ou de criados por conta própria que, desde 1858, estavam integrados numa companhia e organizados corporativamente.

Mal o vapor proveniente de Hong Kong encostava ao cais de madeira, os inúmeros cules, trajados com cabaias gastas e imundas, acocorados na companhia de um cachimbo de bambu esfumando pequenas porções de tabaco durante a espera, num salto levantavam-se e precipitavam-se pelo barco dentro para descarregarem as bagagens dos passageiros. Fora, outros cules junto aos seus alugados, velhos e sujos riquexós, esperavam na praça o cliente, na esperança de conseguir a maquia suficiente para passar o resto do dia a trabalhar em lucro, refeição e jogo.

Descendo do barco, com o corpo ainda a ondular, os assarapantados passageiros eram logo envolvidos pelos cules que, na tentativa de encontrar quem transportar, alimentavam o reboliço e a algazarra no Porto Interior.

Os riquexós

O cule coloca os varais no chão para permitir a Camilo Pessanha sentar-se na cadeira do riquexó e, após este instalado, levanta-os, preparando-se para partir. Provavelmente a bagagem era transportada noutro riquexó, por outro cule, já que nesse tempo em Macau ainda não havia automóveis. Existia a zorra, um carro baixo, com quatro rodas pequenas e grossas, para transportar objectos pesados. Em vias de desaparecer estavam as cadeirinhas, sem rodas, pois, para além do preço ser mais caro, eram mais vagarosas e desconfortáveis.

Os riquexós, na linguagem oficial eram denominados jerinxá, ou jinrickshas, o nome japonês de onde a ideia deste tipo de transporte deve ter aparecido. No Japão, eram esses “carrinhos de duas rodas e varais ligeiros, puxados em corrida vertiginosa por homens designados por koruma”, como refere Ladislau Batalha.

Em Macau, os riquexós surgiram na primeira metade de 1883 e desde então começaram a substituir as cadeirinhas, pois traziam a vantagem pela economia de tempo e dinheiro. Eram puxados por cules e se até 1894 havia vinte e tantos proprietários para os cerca de 280 carros, nesse ano foram eles preteridos, tendo o Senado entregue a um monopólio, que tomou conta desse negócio.

Passa um cule aguadeiro a vender água aos recém-chegados, mas Camilo não se atreve a provar, guardando para mais tarde, quando deixasse a estadia do hotel, beber a água da bica do Lilau (designação então da Fonte do Nilau, ou do Lilau).

A água que a cidade consumia era preferencialmente de três fontes ou, com pior qualidade, a dos poços. À chegada de Camilo Pessanha, em 1894, os poços seriam à volta de 600 particulares, dentro dos muros das habitações, e aproximadamente 140 públicos, ou comuns a muitos moradores, não sendo então ainda obrigatório os poços encontrarem-se com as bocas rodeadas de uma grade de ferro e terminar superiormente em chapa de pequena largura de modo a não servir para alguém aí se sente, ou se ponha de pé, quando tirar água, o que só vai ser legislado pelo Código de Posturas de 1896. Proveniente das fontes do Lilau, da Inveja e da Flora, a água era recolhida e transportada por cules aguadeiros, reunidos desde 30 de Outubro de 1858 numa Companhia, que a entregavam a cada um dos bairros, cobrando dinheiro pelo frete do seu transporte. Já sobre a qualidade da água potável, Macau não vai conseguir resolver esse problema durante a vida de Camilo Pessanha.

Em cima do riquexó e ajustado o preço, que andaria pela dezena de avos até ao Hotel Hing Kee, no outro lado da cidade, num relance terá avistado as águas do Rio Oeste.

Camilo Pessanha não sabia estar na ordem do dia o assunto dos jinrickshas, pois o Leal Senado preparava-se (concurso realizado a 26 de Junho de 1894) para licitar a entrega desse negócio a um monopólio. Os até então proprietários dos carros tinham visto em Janeiro as taxas a pagar ao Leal Senado aumentadas para $23,50 por ano, assim como aparecera publicado no Boletim Oficial a faculdade conferida ao Leal Senado de determinar as dimensões de cada carro.

Queixava-se o repórter do jornal O Independente, de 13 de Janeiro de 1894, “o esquecimento dos ilustres edis de ao mesmo tempo fixarem o máximo do preço do aluguer que os proprietários dos carros têm direito a exigir aos condutores, a fim de que estes não ficassem à mercê da exploração daqueles. Esquecia-se essa postura de publicar a relação das calçadas íngremes que não sejam conduzidas por dois homens. Assim quem ia pagar o aumento da taxa eram os utentes”.

De referir ter sido o aparecimento do projecto do Liceu, ao convidar a câmara a participar com um subsídio, deliberando o Senado dar 5000 patacas, que levou o seu Presidente, o sr. Comendador Basto, a dizer numa das sessões ter chegado a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre o monopólio dos jinrickshas. Assim, quando Pessanha aqui chegou, estava essa entrega a ser preparada, sendo à partida conhecido quem ia ficar com o negócio.

O difícil primeiro contacto com os estrangeiros recém-chegados, pela falta de palavras para se fazer entender e captar o cliente, o cule no levantar a voz espera conseguir, pelos poucos sons reconhecidos, dar os nomes dos hotéis desejados. Fácil quando se tratava de passageiros ocidentais pois eram então apenas dois, o Boa Vista e o Hing Kee.

Os hotéis para estrangeiros

O Hotel Boa Vista era propriedade desde Março de 1891 do inglês William Edward Clarke, capitão do vapor Heungshan. Fora inaugurado a 1 de Julho, após ser ampliada a casa da família Remédios, construída por volta de 1870 e onde esta continuava a residir, servindo também como local de hospedagem para muito do pessoal das companhias estrangeiras que operavam em Macau. Este hotel, situado no Chunambeiro, na Rua do Tanque do Mainato (hoje Rua do Comendador Kou Hó Neng), encontrava-se num morro protegido desde 1622 pelo então já desmantelado (desde 1892) Baluarte de Bom Parto, mas ainda sem ter sido parcialmente destruído, como veio a acontecer em 1910. O baluarte fora construído sobre as ruínas do cemitério dos Agostinhos, onde teriam os missionários espanhóis desta Ordem Religiosa edificado o seu mosteiro em 1586.

Sobre a Praia do Bispo, o Hotel Boa Vista foi gerido até 1894 pela família Remédios, sendo a clientela maioritariamente britânica e era o único (segundo a propaganda) com um estatuto de verdadeiro hotel na cidade. Mas, devido ao progressivo e cada vez mais rápido assoreamento do Porto Interior, após a mudança do vapor Heungshan pelo Kiu Kiang, de menor calado e péssimo serviço a bordo, o capitão inglês William Edward Clarke deixou de poder estar presente no seu hotel e durante as travessias publicitar o Boa Vista, sobretudo aos compatriotas que de Hong Kong vinham passar o fim-de-semana.

Já o hotel concorrente, o Hing Kee, hospedava os portugueses à chegada a Macau mas, após se familiarizarem com a cidade, mudavam-se para as suas próprias casas. No entanto, sabia-se ficar a estadia no hotel mais em conta do que alugar uma casa e nem mesmo nas “repúblicas”, casas alugadas por várias pessoas, os custos eram menores.

Ao escutar “Hing Kee”, essa familiar sonoridade eleva-se sobre o ruído, sobre a barafunda que em frente ao cais do vapor, por momentos se dissolve para de novo se voltar a ouvir. Na postura, os cules captam os clientes e procuram proporcionar-lhes a tranquilidade de alguém ter compreendido os seus desejos. A comunicação é sustentada pela empatia e o esforço de compreender e articular os nomes em português dos lugares normalmente requeridos pelos passageiros a transportar. Camilo Pessanha entrava em Macau e, num ápice, dava por si a rolar.

14 Jul 2017

As celebrações – No início era a Clepsydra

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omemora-se, neste ano de 2017, os 150 anos da morte de Camilo Pessanha. A efeméride quase passa despercebida no mundo de língua portuguesa, de Portugal a Macau, uma discrição que talvez agradasse ao poeta, cuja vida de exílio o afastou dos meios literários do seu tempo.

Não deixou por isso – nem pela dimensão reduzida da sua obra – de influenciar as letras portuguesas, à medida da originalidade e brilho de uma escrita que, nas palavras de António Ferro, produziu «um missal» de uma geração. Pessanha escolheu uma vida de exílio, sobretudo de distanciamento progressivo e irremediável, no longínquo porto de Macau, nesse tempo colónia portuguesa, na costa sul da China.

Se com alguma facilidade podemos pensar que a vida de Camilo Pessanha se caracterizou pela estranheza — e para isso basta ter em consideração o seu progressivo distanciamento geográfico e quotidiano das suas raízes portuguesas — é o espanto que nos assalta quando temos em consideração o estabelecimento da sua obra poética. Raramente, na história da Literatura, sobretudo do século XX, deparamos com tamanha dificuldade em ter como assente e definitiva a versão final de uma obra literária. No caso do poeta da Clepsidra, são inúmeras as dúvidas, as versões, os poemas continuamente reescritos a cada autógrafo ou no momento seguinte à sua publicação.

Quando, num determinado instante, se julga ter finalmente acesso em definitivo a um corpus poético, eis que do acaso ou do estudo, da investigação ou de um acontecimento singular, surgem novas dificuldades ou, simplesmente, outras descobertas, que tudo voltam a pôr em causa e fazem repensar, se não o conjunto da obra, pelo menos o estabelecimento definitivo de um texto que insiste em se querer em processo.

Descortinar que versão de seus poemas o poeta abraçaria é percorrer um labirinto – de autógrafos, publicações em jornais e revistas, edições póstumas, rasuras, cartas, anotações – cujo fio salvívico parece estar nas mãos de uma Ariadne amiga de folguedos cruéis.

Um episódio é bem revelador deste imbróglio em que a obra de Pessanha se tornou. Trata-se do famoso Caderno Poético, onde o poeta colava poemas saídos na imprensa escrita, que de seguida transformava, introduzindo variantes formais e de conteúdo, ou no qual escrevia directamente versões novas de poemas. Este pequeno caderno de capa negra terá sido confiado pelo próprio, antes da sua morte, a Laura Castel Branco que, após o desaparecimento do poeta em 1926, compreendendo o valor do que tinha em mãos, o entregou à guarda segura da Biblioteca de Macau. Em vão. Durante quatro décadas o precioso documento esteve desaparecido, ou por não haver ninguém que soubesse da sua existência ou por se ter perdido entre os volumes daquele depósito de livros.

Foi preciso que, em 1967, durante a Revolução Cultural chinesa, cujos ardores também incendiaram as ruas de Macau, os Guardas Vermelhos invadissem a biblioteca dos “colonialistas” e atirassem uma série de móveis para a rua, pela janela de um primeiro andar. Uma secretária velha caíu com estrépito sobre o lajedo e logo se espatifou. De uma das gavetas rebentadas, saltou um caderno negro e oleoso que o director da Biblioteca, Luís Gonzaga Gomes, se apressou a recolher, ciente da importância daquele achado.

Examinado o documento, logo se tornou patente que nele existiam novas versões de poemas que se julgavam definitivos, nas edições até então trazidas a lume da sua obra.

No entanto, os compiladores preferiram, nalguns casos, ignorar esta descoberta e continuar a apresentar da obra do poeta versões que ele próprio desdenhara ou emendara. Aliás, muitas são as fantasias que se produziram em torno da própria produção da poesia em Camilo Pessanha. Uma das mais correntes – e mais falsas – indicia que  o poeta não recorreria à escrita e que somente utilizaria a memória para compor e guardar os poemas. Sem pretender entrar aqui em polémica, basta ter consideração os inúmeros autógrafos e, principalmente, o cuidado quase fanático com que hoje constatamos que revia e tornava reecrever alguns dos poemas, para nos assegurarmosde que o seu método de trabalho era lento e exigente, o que implicou necessariamente o recurso ao papel.

Ao lermos a crítica efectuada a um volume de versos de António Fogaça, publicada ainda nos seus tempos de estudante em Coimbra, verificamos que Pessanha salvaguarda ferozes critérios de exigência, certamente os mesmos que o levaram a reter a publicação dos seus versos em livro até uma idade tardia, talvez para não incorrer nos defeitos que ainda jovem apontava ao seu condiscípulo. Daí que sejamos levados a considerar que devemos tomar como versões definitivas as que mais tardias foram realizadas pelo poeta, frutos de um labor permanente  sobre um texto que não cessava de se reconstruir e aperfeiçoar.

Quando, em princípios deste século, fizemos um levantamento dos livros existentes na Biblioteca Central de Macau, que tinham pertencido ao poeta, deparámos com um exemplar da revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, o famoso número único da publicação, onde surgem, entre outros, poemas de  Pessanha e de Fernando Pessoa. Este era o exemplar que lhe fora enviado de Lisboa e que deve ter chegado a Macau no próprio ano da sua publicação, ou seja, em 1916. Ao folhear as suas páginas, foi com emoção que demos com as anotações e rasuras feitas nos poemas pela mão do poeta, modificações estas que são, afinal, as últimas versões conhecidas, feitas por ele próprio e sem intervenção de estranhos.

Quanto mais não fosse, esta descoberta justificaria uma nova edição, que foi realizada. Nela apresentámos estas novas versões de alguns dos poemas, as que por ora consideramos definitivas – deixando sempre espaço a que outros acontecimentos produzam novidades –, para além de preferirmos sempre as variantes autógrafas ou provenientes de emendas e rasuras às que foram sendo publicadas na imprensa. Assim, tomamos igualmente o Caderno Poético como referência de credibilidade superior às versões sujeitas à mão, quantas vezes apressada ou pesada, do editor.

Atendendo ao intrincado deste processo e ao regular aparecimento de novos documentos, não acreditamos apresentar a versão definitiva, mas vamos proporcionar a todos quantos lhe amam esta obra, nestes 150 anos da sua morte, uma versão comemorativa da Clepsydra, em forma de missal — finalmente, como prescrevia António Ferro.

E tendo sido este o lugar por ele escolhido para viver e morrer, faz um sentido quase irónico mas reconfortante ser agora, neste território há dezassete anos sob soberania chinesa, prestada por Macau uma homenagem ao que foi, indubitavelmente, o seu maior poeta.

Com a publicação de uma edição renovada da Clepsydra, daremos então início em finais de Julho às celebrações dos 150 anos, que se estenderão até ao fim do ano e adiante, mas cujo ponto alto será por volta do dia do seu nascimento, 7 de Setembro. Contamos que a população de Macau participe connosco nesta homenagem a um dos nossos melhores.

13 Jul 2017

Arte Chinesa – O dom magnífico de Camilo Pessanha

Alberto Osório de Castro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]implesmente par droit d´aînesse entre os amigos e admiradores de Camilo de Almeida Pessanha, quis o grande amigo do Poeta, o brilhante jornalista Dr. Carlos Amaro, que algumas palavras minhas acompanhassem estas fotografias da arte chinesa que a Ilustração publica, e representam a magnífica colecção de cem peças características da arte milenária do Celeste Império oferecidas por Camilo ao Museu das Janelas Verdes.

Como essas fotografias avivam em mim a esta hora de Inverno português, entristecida de lufadas e névoa, a relembrança dos resplandecentes dias abafados de espera de tufão, vividos em companhia de Camilo, em Agosto de 1911, na linda e melancólica, risonha e estranha terra de Macau, à maravilha católica e china, china sobre tudo, já agora, cheia de repiques finos à missa, de discretos biocos de confessadas, de silenciosos deslizes de milhares de Celestes, atravancando as ruas cada dia mais, invadindo as praças e rossios, coalhando as airosas lorchas do porto, gente atarefada e calada, reservada e de nós distante, aparentemente impassível, mas em cuja massa se sente a força profunda da maré que avança, e vai avassalar o velho empório europeu de veniaga nas Costas da China.

Pobre e linda Macau dos séculos xvi e xvii, como és ainda curiosamente portuguesa à moda desses séculos, sob a taciturna invasão china que te envolve e todavia te dá ainda um aspecto de vida!

E contudo, ó arcaica Macau, desde que Fernão Mendes Pinto andou de aventura no Império do Meio, assistindo aos primeiros avanços da potência tártara, que de memoráveis coisas se não deram nessa China imensa que só na aparência é milenariamente imóvel: abalada para o sul dos exércitos tártaros da Manchúria, queda da dinastia chinesa dos Ming, sangrento, como nenhum outro, triunfo da dinastia Manchu dos Ta-Tsing, dois séculos de terrível agitação das associações secretas chinesas contra o vencedor tártaro, indo, poucos meses após a minha passagem em Macau, até à abdicação do último imperador Ta-Tsing e à proclamação duma república à europeia ou americana, como compasso de espera da passagem da sombra de um novo Dragão imperial….

Tanta coisa a dizer sobre a China e a sua arte! Mas o espaço é limitado nesta revista, naturalmente. O que é e o que vale a colecção que Camilo Pessanha acaba de oferecer a Portugal, e está representada nestas três fotografias da Ilustração do Século, mandadas ao Dr. Carlos Amaro pelo bravo oficial da Armada, [ Sr.] José Carlos da Maia, hoje o governador de Macau? Críticos de arte competentes o dirão ao público. Assinalo apenas na formosíssima colecção que vai entrar no Museu das Janelas Verdes, as pinturas de Sou-Loc-Pang, o Ho-Ku-Sai chinês, que um poderoso mandarim artista disputaria a punhados de prata de lei; reconheço esbeltíssimos vasos de obra de cloisonné, de champ-levé e de nielagem; preciosas cerâmicas dos Ming; craquelés da vetusta dinastia dos Song, que teve no seu império tão grandes artistas; estatuetas de porcelana, e bronzes litúrgicos duma patina acentuada pelos séculos; charões e madeiras marchetadas; esculturas de marfim, unicórnio, âmbar e pau de águila; pedras duras e cristal de rocha talhados com a lenta paciência do sonho, ao molde de todas as formas quiméricas, das frutas e das corolas mais raras dos vergéis de Aladim.

É todo o prestígio e a fantasmagoria da cisma forte do ópio no cérebro dum Quincey, de Gautier, e do pobre Gérard de Nerval. Camilo acaba de dar à política terra portuguesa, que quase não cura já senão de politicar, o mais elevado exemplo de grande poeta e de grande patriota. Em plena Lisboa politicante, Camilo Pessanha vai-nos pôr, em um museu público, de novo em contacto, pela magia da arte (quand nous parlons aujourd’hui de la «Magie de L’art», nous ne savons pas combien nous avons raison, diz Salomão Reinach), com as velhas civilizações requintadamente artísticas da China e do Japão, que um momento nos deslumbraram no século xvi, nesse século em que a nossa Pátria era ainda uma coisa viva e orgânica, vivendo por todas as suas células e os seus tecidos mais delicados.

Da maravilhosa colecção de Camilo, feita com tanto amor, e à custa talvez do melhor dos seus momentos de funcionário e de lucidíssimo advogado, cem dos mais característicos exemplares são por ele oferecidos ao Museu das Janelas Verdes.

Que ao menos os artistas de Portugal, pintores, arquitectos, escultores, músicos e poetas, artífices dos metais preciosos e das finas pedrarias, das palavras e dos ritmos da Língua, actores, bordadores, lavrantes, e decoradores, criadores geniais ou simples diletantes, todos os que põem na arte a mais pura nobreza da sua inteligência e do seu sangue, os que só pela virtude mágica misteriosamente evocadora da arte esperam ainda manter viva e sensível a velha encantadora alma de Portugal, que ao menos esses, entre a turba agitada, recebam com discreto e comovido louvor o sortilégio que nos chega do Sol levante doirado, o dom magnífico do Poeta, o dom feito em vida, porque postumamente Camilo se fará relembrado pela adaptação ou adopção mais bela que possa imaginar do florido lirismo da China.

Dia a dia Camilo decifra e traslada do Chinês tudo o que, de mais singular, afinado e humano criou para enlevo de milhões de almas tão diversas das nossas o génio poético da imensa China matizada de jamais vistas peónias. A China através da alma estranhamente sensitiva de Camilo! Canta docemente uma das suas líricas de «Poeta Maldito» cismando na esteira fina da fumaria:

 

O meu coração desce,

Um balão apagado…

 

Melhor fora que ardesse

Nas trevas incendiado.

 

Há-de arder, estou certo, há-de arder o seu pobre coração de grande poeta para todo sempre exilado, e no mais belo, imaginoso, florido e espiritual incêndio de poesia sensitiva que Portugal jamais viu: num pomar de cerejeiras em flor a arder, ferido pelo fogo de todas as centelhas, da tempestade que nos arrebata, da noite trovejante que sobre nós se cerra…

11 Jul 2017

Camilo Pessanha e a Luz

(Apresentação do livro de Maria Antónia Jardim, “CamiloPessanha um Educador Épico-Ético”)

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]inhas senhoras e meus senhores,

Cabe-me a grata e honrosa tarefa de apresentar este livro de Maria Antónia Jardim sobre o poeta Camilo Pessanha. Faça-o com redobrado prazer pelo momento histórico em que nos encontramos — seis meses depois da transferência de soberania de Macau para a Républica Popular da China — pois o seu lançamento e a nossa própria presença constitui uma prova da permanência de valores portugueses nesta terra, realçados e magnificamente sublinhados pelo facto de nos reunirmos à volta da obra de um poeta. Mais do que vocação, mais do que horizonte e distância, a poesia apresenta-se ao exilado, afinal, como destino.

Muito se falou em Macau de Camilo Pessanha, mas pouco se fez pela memória do homem e da obra. Basta pensar que a sua estátua foi erigida, à pressa e quase envergonhadamente, somente em 1999. Que não foi criado um pequeno instituto de estudos camilianos, talvez ladeado de um pequeno museu. E tudo isto faria sentido porque Camilo Pessanha é, sem dúvida, consideremos o português ou outra língua qualquer, o mais importante poeta que alguma vez viveu em Macau, sendo um magnífico símbolo desta cidade.

É também por tudo isto que saudamos o aparecimento desta obra, cujo alcance — para além do seu mérito próprio — reside igualmente no facto de demonstrar que muito há ainda a fazer e a pensar sobre o poeta da Clepsidra e a sua obra. Distante em vida e em morte dos círculos literários da metrópole, Camilo Pessanha não teve a atenção de um Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro, embora estes o tenham considerado seu Mestre.

Em 1914, Sá-Carneiro respondia à seguinte questão do jornal Républica Qual a melhor obra de arte dos últimos trinta anos? que, e passo a citar:

“À minha vibração emocional, a melhor obra de Arte escrita nos últimos trinta nos é um livro que não está publicado — seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista. Ouvindo pela primeira vez os seus versos, fustigou-me sem dúvida uma das impressões maiores, mais intensas a Ouro e gloriosas de Alma da minha Ânsia de Artista. Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçando setim”.

Esta extraordinária admiração que a poesia de Pessanha desperta nos expoentes literários da sua própria época é bem garante do interesse e alcance, quer formal quer temático, da sua produção poética e, portanto, acolhemos com alegria a presença deste novo estudo de Maria Antónia Jardim, escrito sob o signo da luz, essa mesma que Sócrates acreditava na possibilidade de entrever na demanda de si-próprio e cujo “Conhece-te a ti mesmo” não está por acaso na epígrafe deste livro.

Escreveu o próprio Camilo Pessanha que a poesia é, antes de mais, étnica, no sentido em que — e cito — “a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico”. Camilo refere, portanto, que a poesia encontra a sua seiva, a sua força de poesis (em grego, criação), nesse solo original, solo que deve ser entendido como cultura.

Ora é precisamente o solo cultural, simbólico e também de ideais políticos, em que assenta a poesia de Camilo Pessanha que este livro procura lavrar, na busca de elementos arcaicos, fundamentais — se quiserem, arquetipais — cuja lenta maturação através da História encontram ressonâncias na obra do poeta.

Maria Antónia Jardim leva-nos numa viagem intemporal ao encontro de Platão, um dos fundadores da gnose Ocidental, ele próprio tão influenciado por um certo Oriente; mas também de Confúcio e do budismo cuja influência em Pessanha é igualmente detectada.

Chegamos pois ao ponto em que poderemos esboçar as teses centrais deste livro, a saber: a influência de Platão em Pessanha; a intensificação, ou, se quisermos, o potencionamento do germe platónico pelo saber oriental; e como estas raízes gregas do solo Pessanha o aproximam do confucionismo e do conceito de “Li”.

Como é óbvio não é aqui o espaço de desenvolvimento destas ideias, nem de descrição total das teses da autora, até porque se o fizesse estragaria o efeito de surpresa que este livro provoca, para além do prazer estético que a leitura das suas páginas proporciona. Ao levar-nos num trajecto em que o tempo, tal como em qualquer viagem, se suspende, Maria Antónia Jardim descreve uma constelação de labirintos do pensamento, cujo fio de Ariadne é o próprio Camilo Pessanha. É à luz da sua obra, como a candeia do filósofo, que a autora percorre os meandros da filosofia ocidental, sem perder de vista esse saber do Oriente cujo conhecimento nos aproxima de uma perspectiva global da Sabedoria humana, na medida em que são mais os nódulos, os encontros, com o Ocidente, do que o caminhar em vias paralelas.

É por isso que vale a pena, definitivamente, ler este livro, mesmo que nalguns pontos se possa discordar do que nele se encontra expresso. É que a profundidade da abordagem remete cada um dos leitores para um exercício de pensamento também ele inevitavelmente profundo, constituindo um bálsamo para quem no mundo de hoje quase inevitavelmente respira um ar demasiado poluído de banalidades. Esta obra enriquece o universo camiliano, também na medida em que se afasta da análise literária pura, das escolas e dos ismos, para entrar no campo mais claro dos conceitos.

Camilo Pessanha foi, como se sabe, um poeta exilado, um desses que “vagueiam e se definham por longínquas regiões” , regiões estas que, da geografia ou do espírito, são o palco onde é traçada, a letras de ouro e sangue, a memória mais duradoura e profunda — para alguns, divina — do povo a que pertencem. Muitos de nós percorrem o mesmo território de exílio, espaço excelente de saudade e contemplação do lugar de origem mas, sobretudo, de lenta metamorfose cujo devir se profetiza, ainda hoje, envolto nesse mesmo luminoso manto de neblina.

Muito Obrigado.

11 Jul 2017

A viagem de Camilo Pessanha até Macau

Camilo Pessanha chegou pela primeira vez
a Macau no dia 10 de Abril de 1894

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo de Almeida Pessanha, em Coimbra onde nascera, formou-se em Direito em 1892 e após um breve período de advocacia em Óbidos, seguiu para Macau nomeado, por Boletim Oficial de 10 de Fevereiro de 1894, professor do Liceu dessa cidade no Extremo Oriente. Fora um dos 39 professores a concurso, aberto a 19 de Agosto de 1893 pela Secretaria do Ministério da Marinha e Ultramar, para leccionar no Liceu Nacional de Macau ainda por inaugurar pois fôra fundado a 27 de Julho desse ano.

No Echo Macaense de 29 de Agosto de 1893, com o título Echos da Metrópole, refere-se terem as Cortes encerrado a 15 de Julho e depois disso mandado proceder ao concurso para provimento dos lugares de professores do Liceu de Macau. O sr. Silva Bastos, secretário particular do Ministro das Obras Públicas concorreria à cadeira de História, sendo possível vir a ser nomeado secretário do mesmo liceu. Mas esta era uma notícia prematura, escreve o jornal, porquanto a escolha do ocupante desse posto dependia do corpo docente e tinha de ser aprovada pelo Governo de Lisboa, ainda sobre proposta do respectivo Governador de Macau. Desabafa o redactor:

“Oxalá que na escolha dos professores não predominem os empenhos, recaindo a nomeação em indivíduos que não possuem outros merecimentos senão o de serem afilhados deste ou daquele trunfo político.”

José Horta e Costa, então deputado por Macau, advogara a criação do liceu nessa cidade e José Azevedo foi informado que se Pessanha não tivesse participado numa reunião do Partido Progressista (na altura encontrava-se no poder o Partido Regenerador, mas tal não era grave já que os dois partidos tinham um pacto e governavam Portugal alternadamente sobre orientação de Inglaterra) a sua nomeação estava garantida, como conta Daniel Pires.

Ainda assim conseguiu, a 18 de Dezembro, ser um dos quatro escolhidos. Com 26 anos, Camilo Pessanha parte então de Portugal, contratado como Professor do Liceu Nacional de Macau, estabelecimento de ensino que ia abrir as portas para colmatar o espaço vazio das Humanidades, num tempo em que a educação escolar apenas se destinava a preparar os jovens para o mundo do trabalho na área comercial.

Outra notícia do Echo Macaense, de 29 de Agosto de 1893, refere o que se diz em Lisboa acerca do provimento do Governo de Macau, mas as informações não são concordantes pois constara há tempos que ia ser nomeado para Governador o sr. Ferreira de Almeida. No entanto, uma outra versão garantia que “este sr. vai ser nomeado para Macau, mas para dali ser transferido para Cabo Verde e ocupando o seu primeiro lugar o sr. Horta e Costa”.

Este último pertencia nessa altura a uma comissão que estudava as causas da depreciação da moeda de prata na Índia e em Macau. Formularam-se quesitos respeitantes a Macau e Timor para se adoptar como unidade monetária a pataca, subsidiária em prata e cobre, sendo daí calculados os vencimentos dos funcionários públicos. Já quanto à Índia, “não se tomou resolução, aguardando-se o parecer de Inglaterra com respeito aos efeitos da crise da prata nas suas colónias ultramarinas”.

A viagem, a bordo do navio espanhol Santo Domingo, iniciara-se a 19 de Fevereiro de 1894. Depois de cinco dias em Barcelona, o navio levou apenas mais dois até atracar em Port-Said, no Egipto. Cruzando os 162 km do Canal do Suez (inaugurado a 17 de Novembro de 1869), desembocava agora no Mar Vermelho onde, nos umbrais do Oceano Índico, aportou em Adém (na Arábia Feliz, actual Iémen, então na dependência do Comissariado da Província Britânica da Índia). Depois atravessou o Mar Arábico até Colombo, no Sri Lanka, onde permaneceu apenas por duas horas.

O vapor espanhol seguiu então pelo Estreito de Malaca até Singapura e daí para Manila. Camilo Pessanha chegou a Macau no dia 10 de Abril de 1894, mas será pela viagem feita em Janeiro desse ano pelo novo Procurador dos Negócios Sínicos, Álvaro Maria Fornelos, que conseguimos desfazer a dúvida sobre o percurso dos barcos desde Manila até Macau: iam primeiro a Hong Kong e, noutra embarcação, seguia-se até ao porto de Macau, que sofria de um adiantado estado de assoreamento.

Com apenas cinquenta anos, Hong Kong era já o principal porto dos vapores provenientes da Europa.

Viagem de Hong Kong para Macau

Camilo Pessanha, às duas da tarde de 10 de Abril de 1894, embarcara muito provavelmente no vapor Heungshan para Macau. Este barco da Hong Kong, Canton & Macau Steamer Co. Ltd., capitaneado pelo inglês William Edward Clarke, já por várias vezes ficara encalhado no Porto Interior devido ao assoreamento e por isso nos jornais da época era publicada pelo secretário da Companhia, T. Arnord, a tabela das horas de partida de Hong Kong para Macau nos meses de Maio a Agosto do referido vapor.

Para se perceber o insólito e excepcional procedimento que a companhia Hong Kong & Macau Steam Boat tinha com os habitantes de Macau, o jornal político e noticioso O Independente, cujo redactor principal era José da Silva, apelava a 25 de Julho de 1891 que esta reconsiderasse a sua atitude:

“Já não é pouco a elevada tarifa de passagem entre Macau e Hong Kong, uma distância de 38 milhas, por 3 patacas, se a compararmos com o mesmo preço para a passagem entre Hong Kong e Cantão, que é mais do que o duplo da distância. (…) Note-se que entre Macau e Hong Kong o principal elemento servido pela companhia é português, enquanto no outro trajecto não o é. Este tratamento diferencial é já por si só injustíssimo e repugnante. A companhia é inglesa. Como regra, paga aos seus empregados portugueses menos do que aos empregados ingleses. Se quisermos fazer sobressair esta grande diferença, basta lembrar que pagava ao seu secretário português, Costa, umas 300 patacas por mês, enquanto ao seu sucessor, o inglês Arnhold, que não vale mais do que valia o Sr. Costa, paga 700 patacas mensalmente. Assim a poderosa companhia quando paga a um português, paga menos, quando recebe de um português, exige mais, com a circunstância agravante de que ela sabe muito bem, até pelos jornais da colónia, onde tem a sua sede, que se fartam de o dizer que os portugueses estão pobres. É talvez por isso que os explora, porque, em geral, é à custa dos desgraçados e infelizes que os avarentos argentários se opulentam. Sobre esta injustíssima exploração lembrou-se ainda de proibir aos seus empregados o encargo de pequenas encomendas, como é uso fazer-se em todos os navios mercantes que traficam na China, para cobrar, ela, em seu proveito, uns 10 avos por cada pequeno pacote. Ainda neste caso foi só em Macau e portanto, e especialmente, no elemento português que a companhia quis acertar, o que é sobre maneira revoltante. (Não esquecer que os mais antigos aliados de Portugal, os ingleses em 11 de Janeiro de 1890 tinham-lhe feito um Ultimatum, o que provocara um protesto nacional pelo roubo das terras africanas entre Angola e Moçambique.) Não pedimos aos directores portugueses, que há na companhia, que exerçam a sua influência a fim de que se acabe com este procedimento injusto e até vexatório, porque bem sabemos que, em se tratando dos seus compatriotas, são aqueles senhores directores lusitanos os primeiros a atacá-los e amesquinhá-los…”

Macau à vista

Pessanha mergulha nas primeiras imagens de Macau: são de montes e são de praias que, num iniciático momento, se misturam, pois ainda desconhece os nomes do que avista do barco ao contornar a península.

Mais tarde saberia o nome daqueles lugares e assim, apresentando a primeira visão, apareceu-lhe, ao passar pela Enseada das Portas do Cerco, a Praia da Areia Preta, então usada para piqueniques pela nata da sociedade macaense. Uma escondida e pequena ilha demarcava-se, enquanto o barco seguia a Sul e se postava o forte edificado, em 19 de Fevereiro de 1852, na Colina de D. Maria II, sobranceiro à Praia de Cacilhas.

Vagueando o olhar e terminada a praia, situada na base do Ramal dos Mouros, dava agora pelo Monte da Guia e, sempre a trepar, até à parte mais alta do cume, dentro da Fortaleza depara com a plataforma onde um provisório farol de madeira aproveita o antigo aparelho de iluminação, enquanto espera ser um dia reconstruído e retomar a sua traça original.

Em baixo, sob a Praia da Guia, a Chácara do Leitão, onde por vezes Pessanha, na companhia do proprietário, Francisco Filipe Leitão, haveria de espairecer. Levantando os olhos, no alto da Colina de S. Januário, observa o Hospital Militar Conde de S. Januário, inquilino recente a ocupar o lugar do Baluarte de S. Jerónimo, construído por volta de 1622 pela muralha proveniente da Fortaleza do Monte e que nesse local fazia uma mudança da trajectória para Sul. Então já demolido, restava parte da muralha a descer até à Fortaleza de São Francisco (a ocupar o lugar do convento franciscano demolido em 1864), ao nível do mar.

À sua frente e sobre as águas, a Bateria 1.º de Dezembro, construída em 1872 e remodelada em 1888. Continuando a estibordo, apresenta-se-lhe a belíssima baía, enfeitada de um elegante casario. Alguém aponta em direcção a um fortim, chamado de S. Pedro, erguido na altura em que se construíram as muralhas da cidade e demolido, tal como a Bateria 1.º de Dezembro, por razões urbanísticas, em 1934, sempre presentes no quotidiano das cinco estadias em Macau de Camilo Pessanha.

À direita do Fortim de S. Pedro está o hotel onde se irá hospedar e, recuando um pouco, a moradia que muito mais tarde virá a ser a sua alugada residência e onde viverá até à morte. Após a passagem da Baía da Praia Grande, que termina na Fortaleza de Nossa Senhora de Bom Parto, aparece a enseada com a Praia do Tanque dos Mainatos, seguindo-se por entre penedos a Baía do Bispo, e contornando a parte Sul da península navegava o vapor bem próximo da Fortaleza da Barra. No entanto, outras fontes referem que a seguir à Baía da Praia Grande havia outras duas, a do Bom Pastor, que da curva de Bom Parto chega à ponta da Santa Sancha e na Praia do Bispo, onde os ingleses do Hotel Bela Vista nadavam, por isso reconhecida também pela formosíssima Praia da Boa Vista.

Na ponta Sul da península, a Fortaleza da Barra ou de São Tiago, e à entrada da Barra do porto interior o antiquíssimo Templo de A-Má, divindade protectora dos mareantes. Por fim, antes do vapor atracar numa das três ponte-cais de madeira, surge a Praia do Tanque do Maniato. Sobe agora o barco pelo Porto Interior, um canal do Rio Oeste entre a Ilha da Lapa e a península de Macau, “por entre uma infinidade de grandes lorchas e de pequenos tankás, entre os quais se via um único vapor, o da carreira de Cantão” – observação de Adolfo Loureiro, seguramente não muito diferente da presenciada por Pessanha, que assim chega, aparentemente, são e salvo a Macau.

Os companheiros de viagem

Entre os perto de quatrocentos passageiros que com Camilo Pessanha viajaram no vapor Heungshan, provenientes do reino, vinham para trabalhar na colónia os senhores António Augusto de Almeida Arez, como delegado do Procurador da Coroa e Fazenda desta Comarca, e Hermano de Castro, farmacêutico, e sua Senhora. Dos nove professores de Liceu nomeados para esta província, chegavam os srs. dr. Horácio Afonso da Silva Poiares, para a 1.ª cadeira, de Língua e Literatura Portuguesa, dr. Camilo de Almeida Pessanha para a 8.ª cadeira, Filosofia Elementar, e o engenheiro civil Mateus António de Lima, para a 2.ª cadeira, Língua Francesa. Este último, pouco tempo depois seria também nomeado Condutor das Obras Públicas, após a exoneração do condutor de segunda classe, o Tenente António Mendes da Silva. Já o quarto professor do Liceu para leccionar a 7.ª cadeira, Geografia e História, João Pereira Vasco, só chegou a Macau a 12 de Maio de 1894, tomando posse dois dias depois.

Os restantes cinco professores encontravam-se em Macau pois, pelo Artigo 7.º, “Os lugares de professores das 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª e 9.ª cadeiras serão providos em indivíduos, funcionários do Estado em Macau, de reconhecida aptidão para as disciplinas que hajam de professar, sendo preferidos os que tiverem já prática do magistério das mesmas disciplinas”.

Viajava também com os três professores do Liceu o Cónego Francisco Pedro Gonçalves, ex-reitor do Seminário de S. José, mas este, oito dias depois, a 18 de Abril seguiu para Singapura no cargo de Superior das Missões.

Após três horas de navegação, encosta o vapor no cais ponte da carreira de Hong Kong. Haveria alguém à espera de Camilo Pessanha e dos outros dois professores? É provável que sim, mas desconhecendo esse facto, pois que ninguém a isso se refere, terão sido tratados do modo como ocorreria ao comum passageiro.

7 Jul 2017

Plataforma online de museus ibero-americanos inclui 144 portugueses

O Museu Machado de Castro, que inclui a colecção de arte chinesa doada por Camilo Pessanha, é um dos museus presentes nesta nova plataforma

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Registo de Museus Ibero-americanos (RMI), plataforma online que reunirá mais de nove mil museus de Portugal, Espanha e América Latina, incluindo 144 da Rede Portuguesa de Museus, vai ser lançado na quarta-feira, em Madrid. O subdiretor-geral do Património Cultural David Santos revelou que a criação desta plataforma internacional é um dos projectos mais importantes do Ibermuseus, proposto há uma década, no I Encontro Ibero-Americano de Museus, em Salvador da Baía, no Brasil.

“É um projecto extremamente importante no sector dos museus porque dá acesso a informação ao público em geral sobre mais de nove mil museus e possui uma parte, mais restrita, para uso de investigadores e profissionais desta área”, explicou o responsável.

O projecto RMI vai ser lançado oficialmente hoje, quarta-feira, às 19h, hora de Macau, no Museu da América, em Madrid, com o objectivo de “seguir o caminho da cooperação e do diálogo, com vista ao fortalecimento de políticas públicas para o desenvolvimento do sector, considerando os museus como verdadeiras ferramentas de transformação social”.

Este projecto internacional do Ibermuseus – que reúne 22 países, incluindo Portugal – contou com a colaboração da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), representada no Observatório Ibero-Americano de Museus, onde foi incluída informação de todos os museus da Rede Portuguesa de Museus.

De acordo com David Santos, o portal foi criado com diversos filtros que dão acesso aos países e respectivos museus por tipologias, fornecendo informação variada das suas características, história e colecções. “Esta plataforma também vai ser fundamental para os museus contactarem entre si e estabelecerem parcerias, fortalecendo a colaboração internacional e a criação de projectos”, sublinhou.

David Santos recordou que, ao longo destes dez anos, o Ibermuseus desenvolveu vários projectos mas “o mais importante é, de facto, o RMI, pela sua dimensão, informação disponível e possibilidades de cooperação que facilita”.

A plataforma “possibilitará a investigação e o conhecimento da diversidade de instituições que formam este panorama diverso e fundamental para a preservação da memória”, acrescentou o subdirector-geral do património.

Toda a informação sobre o projecto estará acessível no site do Registo de Museus Ibero-Americano. A par do lançamento oficial do RMI em Madrid, o momento vai ser celebrado no Brasil, no Peru e no México.

28 Jun 2017

USJ | Carlos Morais José fala sobre Camilo Pessanha

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a Universidade de São José, fala-se hoje ao final da tarde sobre Camilo Pessanha. A sessão é da responsabilidade do jornalista e editor Carlos Morais José, e é aberta a todos os que queiram conhecer melhor a obra do poeta português, natural de Coimbra, que morreu em Macau em 1926.

“A curta obra de Pessanha rescende, na esteira de Antero, a uma intensa reflexão filosófica, na qual se imiscui a sabedoria oriental, não como elemento exótico mas desempenhando, a par com o ópio, o papel de entorpecente, de leve bálsamo, ainda assim capaz de mitigar uma dor incurável”, escreve-se na apresentação da sessão, intitulada “Camilo Pessanha: Um resto de batel”.

É ao início da carreira poética de Pessanha, ao “Soneto de Gelo”, que se vai buscar o mote para a aula aberta de hoje. “Um resto de batel (…) para não afundar na treva imensa” espelha a dor metafísica de Camilo Pessanha, observa Carlos Morais José, “ao dar por si num universo sem Deus e entregue a uma vida não glorificada por um Destino”.

Carlos Morais José vive em Macau desde 1990. É director do jornal Hoje Macau e fundou duas editoras: a COD e a Livros do Meio, que publica obras sobre a China. É ainda autor de vários livros, de crónicas a poesia, passando também pela ficção. No ano passado, publicou o seu primeiro romance, “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”.

A sessão “Camilo Pessanha: Um resto de batel” começa às 19h, na Biblioteca 2 da Universidade de São José.

8 Mai 2017

Poesia | Associação Amigos do Livro em Macau assinala Dia Mundial

Depois de alguns anos de pausa, na Fundação Rui Cunha volta-se a comemorar o Dia Mundial da Poesia. O regresso é feito com a ajuda da voz dos mais jovens e pela articulação de vários meios de expressão artística
Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 – Macau, 1926)

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a um verso de Camilo Pessanha, um verso “muito significativo” – “Eu vi a luz em um país perdido” –, que Fernando Sales Lopes foi buscar a ideia que lança o evento marcado para o final da tarde de hoje. Quando forem 18h30, a Fundação Rui Cunha recebe uma sessão em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, num retorno da efeméride ao espaço.

Nos últimos anos, a data tem coincidido com o Rota das Letras, razão que levou Sales Lopes a não avançar com qualquer tipo de iniciativa. Este ano, o festival literário já terminou, não há sobreposição de eventos, pelo que o historiador e poeta decidiu juntar de novo um grupo de pessoas para lembrar a importância do dia e, sobretudo, da poesia que se faz nas várias línguas de Macau.

O acontecimento de hoje vai além de um conjunto de poemas ditos. A organização – a Associação Amigos do Livro em Macau – decidiu conjugar esforços com várias entidades e o resultado é uma sessão que conjuga diferentes formas de expressão artística. Vai haver música a acompanhar poemas, fotografias para ver hoje (e também durante o resto da semana), e um documentário em permanente exibição.

“O programa do evento divide-se em duas partes fundamentais”, aponta Fernando Sales Lopes. “Uma delas é a evocação de Camilo Pessanha. A Associação Amigos do Livro encerra as comemorações dos 150 anos do seu nascimento com esta sessão”, explica. Esta primeira parte começa com uma leitura de poemas de autores locais que se inspiraram, de algum modo, no poeta português que morreu em Macau a 1 de Março de 1926.

Depois, vão ser ditos poemas de Camilo Pessanha. “São poemas ditos por gente mais crescida, mas também por adolescentes, pessoas de várias idades. Alguns serão musicados, o que, espero, dará um ar interessante à sessão.” O evento conta com a presença de alunos da Escola Portuguesa de Macau, que se associam à iniciativa.

Ainda a propósito do grande nome do simbolismo em língua portuguesa, destaque para uma pequena exposição biobibliográfica e para o documentário de Francisco Manso “Camilo Pessanha, um poeta ao longe”, ambos para ver na Galeria da Fundação Rui Cunha.

Da aproximação

Para a segunda parte do evento, ganha importância outra colaboração: vai ser feita uma leitura de obras de poetas de Macau a partir de imagens fotográficas, criadas sob a sua inspiração, pela ArtFusion. Estas fotografias integram a exposição “Nas Lentes da Poesia”, que poderá ser vista até ao dia 29. “É uma leitura fotográfica poética. Também vai haver intervenção musical”, antecipa Sales Lopes. “E artes performativas.”

Para a construção da sessão, o responsável teve essencialmente em conta “o bilinguismo e a intervenção dos jovens”. Porque vão ser ditos poemas em português e em chinês, vai haver tradução escrita para ambas as línguas, com a distribuição de um libreto.

“Há muitos poetas em Macau”, nota Fernando Sales Lopes. A poesia é uma forma de escrita particularmente comum entre os autores portugueses, mas entre os chineses também. “Claro que há aqui um problema que é o desconhecimento mútuo. Esta sessão também se insere nisso. Também é objectivo desta associação mostrar que é necessário e tentar que haja apoios para formar gente em tradução literária, para que se saiba o que os autores chineses estão a escrever e eles saibam o que estão os autores de língua portuguesa a fazer”, conclui.

21 Mar 2017

Obra de Vhils no jardim do Consulado homenageia Camilo Pessanha

“Visível, Invisível” encheu os jardins do Consulado-Geral de Portugal em Macau, na passada sexta-feira. A obra é um retrato que celebra a vida e obra do poeta Camilo Pessanha

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi com um atraso de quase uma hora que começou a cerimónia de inauguração do primeiro trabalho na RAEM de Alexandre Farto, mais conhecido como Vhils, circunstância que não retirou emotividade ao evento que aconteceu nos jardins do Consulado-Geral de Portugal em Macau.

FOTO: Carmo Correia/LUSA

A obra é um mural com um retrato que homenageia o poeta Camilo Pessanha, no ano do 90º aniversário da sua morte. A efeméride coincide com os 15 anos da fundação da Casa de Portugal em Macau (CPM). De acordo com Amélia António, presidente da CPM, este momento foi “o culminar de um sonho acalentado durante muitos meses”. Amélia António salientou que o mural do artista de rua “é um marco no trabalho e divulgação dos artistas e da cultura portuguesa”, e que ganha particular relevo local por retratar uma figura literária profundamente relacionada com o território.

A mesma felicidade foi partilhada pelo cônsul-geral, que mostrou satisfação por concretizar “o sonho de ter a primeira obra de Vhils na RAEM”, a quem tratou como um “amigo do peito”. Numa altura de intenso investimento chinês em território português, Vítor Sereno destacou a característica lusa de “construir verdadeiras pontes de afecto” com outros povos, em particular através da cultura.

No final do discurso, o diplomata reforçou esse ponto de união que a arte consegue alcançar. “Através do génio de Vhils, e da imortalidade de Pessanha, estamos a celebrar Portugal a 10 mil quilómetros de distância, e a estreitar laços entre os amigos da RAEM e da República Popular da China.” Foram as palavras proferidas antes de retirar o véu e relevar o mural de Vhils a todos os que assistiram à cerimónia.

FOTO: Carmo Correia/LUSA

Dar que falar

O nome da peça, “Visível, Invisível”, de acordo com o artista, estabelece a ligação da obra com o ideário local, “torna a história, que muitas vezes está invisível, visível, sem julgamentos”. A ideia é através da exposição artística gerar discussão em torno da pessoa retratada e da sua obra, avançou Vhils à agência Lusa.

Depois de um intenso trabalho de pesquisa, Alexandre Farto resolveu fazer o retrato de Camilo Pessanha devido à obra e relevância que o poeta tem para a história de Macau. As palavras do poeta, que quis ser enterrado em Macau, eternizam a sua obra e vida que, agora, terá na inspiração de Vhils um reforço. O pano caiu, e o público aplaudiu o mural, que nas palavras de Vítor Sereno, “aqui está para ser usufruído por toda a população de Macau”.

12 Dez 2016

Os crimes montanhosos e outros vales

15/11/2016

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]espedirmo-nos dos ofícios também faz parte da vida.

Todos temos um talento escondido, que os outros detectam primeiro. O meu era fazer diálogos, diziam os professores na Escola de Cinema. Ao fim do segundo ano recrutaram-me para lhes fazer os diálogos dos seus filhos. Assim me tornei guionista, ofício de que vivi durante anos.

Um dia, já de “reputação firmada”, telefona-me o António Escudeiro. Queria fazer um filme sobre o Camilo Pessanha, em Macau. Num formato “docudrama”. Afinámos ideias, objectivos, calendários. Pairava no ar a promessa de também eu me deslocar a Macau. Em 15 dias li o que tinha a ler e pouco depois entreguei o primeiro draft, de 50 páginas. Uma memória descritiva, com a narração de todas as cenas previstas para o filme mas sem o tratamento final nem diálogos.

Ambicionava atingir uma precisão de relojoeiro nos diálogos, devido à linguagem preciosa do poeta, à sua relação com os locais e com essa língua que o cercava como um imenso mar ignoto, e sobretudo queria escrever belas cenas dele com as mulheres. Um “docudrama”, uma mistura de documentário e ficção, permitia a reinvenção da intimidade do poeta.

Contra a entrega do draft, ele pagou-me o que era devido. Seguia-se a segunda fase, combinámos conversar depois dele o ter lido. E então o Escudeiro desapareceu. Soube dele um ano depois, ultimava já a edição do material que tinha trazido de Macau.

Nunca vi o filme, não o quis ver. Vi o Camilo Pessanha e Macau por um canudo.

Por isso aconselho todos os jovens guionistas a tomarem esse ofício como hobby ou biscate, quando se põe excessivo empenho nos projectos vem a “autoria colectiva”, própria ao cinema, desenganar-nos e traz dissabores.

Já me aconteceu inclusive, no caso de Um Rio, de Carlos Oliveira, que co-escrevi com o escritor Luís Carlos Patraquim (adaptando um romance de Mia Couto), que o filme (por problemas de produção) parecesse ter sido feito “contra” o guião.

No romance, os erros só a mim pertencem. Sucessos ou insucessos só ao meu trabalho devo a provação dos labirintos.

17/11/2016

Há duas semanas, o matutino O País noticiava que a Autoridade Tributária já não podia taxar certos impostos, os impressos necessários não estão disponíveis para quem faz a sua declaração anual dos impostos. Motivo: os fornecedores deixaram de fornecê-los, por dívida continuada do Estado.

Já nem as suas próprias receitas directas o Estado moçambicano consegue assegurar. Eis um processo em que um Estado perpetua contra si mesmo, como vi escrito num semanário local, “crimes montanhosos”.

Entretanto a minha filha mais nova, com nove anos, resolveu ir “ajudar” a mãe, numa feira do livro. Toda a gente achou graça ao parlapié da gaiata e contribuiu para que as vendas nesse dia aumentassem. E o Notícias, matutino oficioso, fez uma reportagem e entrevistou a mais nova “livreira” da feira. Foi a minha empregada quem trouxe o recorte, “orgulhosa da menina”. Toda a gente gostou, menos ela. “É a tua primeira entrevista, tás toda bonita na fotografia, qual é o problema?”. E explicou ela: “não gostei que tivessem colocado a minha fotografia, porque assim vão me identificar na rua e podem raptar-me…”. Fiquei interdito, percebi que por muito que queira não a consigo proteger do clima geral.

À beira da explosão social, com a guerra civil a prolongar-se, a inflacção a disparar em flecha (quase cem por cento num ano), o colapso financeiro, a fome a apertar em muitas regiões e o medo inscrito na pele das crianças (brancas, sobretudo “monhés”- os indianos -, alvo da actual “indústria de raptos”), a Pérola do Índico, um país com imensa água e oitenta por cento da terra arável mas que nem consegue produzir os tomates e alfaces para a salada (vêm da África do Sul), atravessa um momento deprimente.

19/11/2016

A pronúncia do Shangana e do Ronga, línguas do sul de Moçambique, lembra-me uma goma de arroz com acentos guturais fortes.

Uma vez adormeci a ver filmes do Kurosawa e nessa madrugada apanhei um “chapa” (um transporte semi-colectivo com dezasseis lugares) para a fronteira, a 90 km. Pelo caminho, ouvindo as falas locais, espantei-me pelas parecenças fonéticas com o japonês que ouvira horas antes. Pensei ser uma fantasia minha e não liguei mais ao assunto.

Agora, releio um livrinho precioso do grande actor japonês Yoshi Oida que trabalhou décadas com o encenador Peter Brook. Ele conta como foram à Nigéria, para uma digressão de seis meses nas zonas rurais. Chegavam às aldeias, estendiam o tapete e representavam Shakespeare e foram especialmente bem acolhidos. Porém, inesperada foi a descoberta pessoal que ele fez. Ele estava radiante por vir a África e pensava que ia estar diante da alteridade absoluta, de uma cultura sem pontos de contacto com a sua, e descobriu que afinal toda a gramática facial e a linguagem não-verbal dos camponeses da Nigéria era absolutamente idêntica às dos camponeses do Japão.

Somos todos mais parecidos do que supúnhamos e fará mais sentido do que admitiríamos à partida que as locução e as fonética das línguas, nesta metade oriental do planeta, comunguem de afinidades subterrâneas.

21/11/2016

Flanava distraído pela ruas de Maputo, a apreciar os jacarandás. Um tipo novo começa-me a sorrir a dez metros de distância e ao passar por mim atira: “Pai, ando à procura do George Michael, fast love!”. Fiquei atarantado, ele atirara o barro à parede, a tentar, mas nunca um jovem prostituto se me dirigiu tão directo, e só cinquenta metros depois me veio a resposta-do-fim-da-escada: “Desculpa lá, já não tenho idade para seres o meu first love!”

24 Nov 2016

Assembleia da República respeita vontade da família de Pessanha

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto da Assembleia da República (AR), encarregue de dar um parecer sobre o pedido de transladação dos restos mortais de Camilo Pessanha para o Panteão Nacional, está a tentar contactar a bisneta do autor de Clepsidra, depois de notícias divulgadas pela comunicação social a dar conta da recusa da ideia. Em declarações à Rádio Macau, a presidente da comissão, Edite Estrela, assegura que vai ser respeitada a vontade da família.
“Vieram a público informações que a família se opunha e esse é o primeiro passo que tem de ser dado, que é esclarecer junto da família, porque se ela se opuser penso que não há condições para se prosseguir com esta diligência”, afirmou Edite Estrela, acrescentando que já foram dados passos nesse sentido.
Ana Jorge, recorde-se, frisou em Maio que a possibilidade de ver os restos mortais do bisavô Camilo Pessanha serem transladados para Lisboa estava fora de questão.
Edite Estrela adiantou à rádio que os fundamentos para o pedido de transladação, da qual fazem parte seis subscritores, assentam na justificação de se assinalar os 150 anos do nascimento do autor de Clepsidra, que são celebrados a 7 de Setembro do próximo ano. “Apesar de ter escolhido viver e morrer em Macau a verdade é que manteve sempre laços com Portugal (…) a intenção é boa porque é uma forma de o homenagear, de o recordar.”

6 Jun 2016

Camilo Pessanha | Trasladação de corpo não agrada a família e vozes de Macau

A hipótese está em discussão em Portugal: trasladar o corpo de Camilo Pessanha para o Panteão Nacional. A família afasta de imediato a hipótese e há quem sugira que a aposta deve ser na promoção do seu trabalho. Os restos mortais devem ficar onde estão

[dropcap style=’circle’]“[/dropcap]Eu sou da cultura oriental, para mim ninguém mexe. É não.” É esta a reacção imediata de Ana Jorge, bisneta do poeta Camilo de Pessanha, quando questionada sobre a possível trasladação do corpo do bisavô para o Panteão Nacional, em Lisboa. Quem discute o assunto é a Comissão Parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto que, esta semana, decidiu adiar o seu parecer final, até conhecer melhor os motivos do pedido.
A presidente da Comissão, a socialista Edite Estrela, afirmou que Camilo Pessanha foi “um grande poeta, nomeadamente do simbolismo” e “justifica-se” a trasladação para o Panteão Nacional, mas alertou para a necessidade de se encontrar uma estimativa dos custos, antes do parecer ser entregue à conferência de líderes parlamentares. Já Gabriela Canavilhas, deputada socialista, defendeu que o túmulo do poeta em Macau “é um marco da presença e da memória portuguesas”, acrescentando que “é algo de tangível”. “Não me parece, absolutamente, imprescindível”, rematou.
Por cá a família é clara: é um processo que não deve acontecer. “É a minha mãe que tem que dar a palavra, mas conhecendo o seu pensamento não acredito que ela concorde”, explicava ao HM Vítor Jorge, filho de Ana Jorge e tetraneto do poeta. De facto, a mãe não podia estar mais decidida. “Não concordo. Já não concordei em mexerem na campa dele, também não concordo que o tirem daqui”, frisou.

Um português no Oriente

A comissão parlamentar quer ouvir agora o Instituto Cultural (IC) de Macau e a Academia de Ciência de Lisboa, mas até ontem o organismo de Macau “não recebeu nenhuma informação relevante”, como disse ao HM.
Durante a sessão da comissão, Gabriela Canavilhas explicou que em alternativa o Governo de Portugal devia apostar no “aumento da visibilidade [do poeta], mantendo o túmulo nas diferentes rotas e tornar o poeta mais conhecido em Macau”.
Ideia que agrada a quem por este lado está. Para Amélia António, presidente da Casa de Portugal, essa devia ser a aposta: divulgar e promover a obra do poeta, seja cá ou lá.
Viver e morrer em Macau foi uma escolha de vida de Camilo Pessanha e, por isso, deve ser respeitada. “Por um lado é uma homenagem, mas por outro, Camilo Pessanha adoptou Macau, adoptou a China, fez aqui a sua vida, foi uma escolha sua. Fico muito dividida em relação a essa ideia, embora perceba que isso constituiria indiscutivelmente uma homenagem nacional”, argumentou.
Ideia também partilhada por Carlos Ascenso André, director do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau (IPM), que não duvida que o “poeta quereria ficar em Macau”.
“Camilo Pessanha quis ser um português no Oriente. Quis juntar em si essa dupla realidade, que é uma realidade cultural de Macau. Ele é verdadeiramente um símbolo dessa convergência de culturas, porque ele é simultaneamente um oriental e um português”, argumentou o director, frisando que o “respeito pela memória de Camilo Pessanha recomenda que os restos mortais estejam em Macau”.

[quote_boc_left]“Não concordo. Já não concordei em mexerem na campa dele, também não concordo que o tirem daqui” – Ana Jorge, bisneta do poeta[/quote_box_left]

Recordar é viver

Yao Jingming, professor associado do Departamento de Português da Universidade de Macau (UM) que traduziu vários poetas, incluindo Pessanha, é outra voz contra a possibilidade de trasladação. “Acho que não é justificável levar o corpo dele para Portugal”, apontou o também poeta. Camilo Pessanha “pertence a esta terra”.
A concordar com a ideia está a directora Departamento de Português da Universidade de São José, Maria Antónia Espadinha, apesar de admitir perceber o pedido de trasladação. “Não tenho nada contra que o poeta vá para o Panteão, mas o que me parece é que viveu tanto tempo aqui, devia estar aqui”, explicou.
Em termos simples, para Maria Antónia Espadinha nem sequer “é importante onde o corpo está”, mas sim onde é lembrado. “Compreendia se a família quisesse, mas não é o caso, portanto deixe-se estar onde está”, explicou. A obra, essa, claramente devia ser “mais conhecida” e isso é a única coisa que interessa.
“Devemos sim lembrá-lo, a obra e a pessoa”, defende. Apesar das suas excentricidades, diz, há uma tendência actual para conhecer quem foi este poeta. “O que vale é a obra e a pessoa que fez a obra. Onde estão os restos mortais, não interessa”, reforçou, acrescentando que o pensamento português “é bonito”, mas não faz sentido neste caso.

Cair no exagero

Carlos Ascenso André levanta ainda outra questão, relativa à escolha das personalidades para o Panteão Nacional. “Sou uma daquelas pessoas que entendem que o Panteão Nacional não pode ser, agora, demasiado banalizado. Apesar de todo o respeito que tenho por Camilo Pessanha, no conjunto de todos os poetas portugueses, este poeta não será dos primeiros a justificar ir para o Panteão”, argumentou.
Esta decisão teria de ser “muito discutida”, caso contrário Portugal começa a correr o risco de “toda a gente ir parar ao Panteão Nacional”. “Têm de ser grandes símbolos de portugalidade”, apontou, dando como exemplo Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. “Quantos grandes escritores há, de Língua Portuguesa, que não vão para o Panteão Nacional? Acho que o próprio Camilo Pessanha não o quereria. Acho que Camilo queria ficar ligado para sempre a Macau”, rematou.

Trasladação pedida por poetas. AR decide à frente da família

A proposta para a trasladação recolhe a assinatura de seis homens das letras. António Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, o administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, Guilherme de Oliveira Martins, e os escritores António Mega Ferreira, Fernando Cabral Martins, Fernando Luís Sampaio e Gastão Cruz são os nomes que fazem o pedido.
“Se não estou em erro essa proposta foi avançada pelo António Mega Ferreira”, começa por explicar ao HM o poeta Gastão Cruz. “Foi pensado que faria mais sentido [Camilo Pessanha] estar aqui, condignamente sepultado do que aí [em Macau], no cemitério, um bocado desligado da cultura portuguesa e da literatura”, explica.

[quote_box_right]“Camilo Pessanha quis ser um português no Oriente. Quis juntar em si essa dupla realidade, que é uma realidade cultural de Macau. Ele é verdadeiramente um símbolo dessa convergência de culturas” – Carlos Ascenso André, director do Centro de Língua Portuguesa do IPM[/quote_box_right]

Apesar de apoiar o processo, Gastão Cruz admite que o tema é “sempre” discutível. “Haverá sempre argumentos para o manter aí, dada a ligação dele a Macau, mas por outro lado também faz sentido estar em Portugal, como grande figura que era”, continua.
Ainda assim, a família tem sempre uma palavra a dizer, mesmo sendo uma família de grau afastado. O poeta acredita que até seria possível discutir o assunto com a bisneta e tetranetos de Pessanha, mas a família seria sempre a última a decidir.
O mesmo acontece com a Assembleia da República (AR). Fonte do parlamento indicou ao HM que em última instância é “sempre a AR que decide”, mas que em “tempo algum existiu um caso em que a decisão da AR fosse contra a da família”. “Este seria o primeiro caso”, rematou.
O Ministério da Cultura indicou ainda ao HM, através do gabinete de comunicação, que deu um parecer positivo à proposta, sendo que agora tudo depende da comissão parlamentar que a avalia. Este ano assinalou-se o 90º aniversário da morte do autor. Durante o mês de Março, Camilo Pessanha, que viveu em Macau 32 anos, foi recordado através de várias iniciativas, algumas organizadas pelo Festival Literário Rota das Letras, que dedicou parte do evento ao poeta.

19 Mai 2016

Gil Mac, músico, designer e performer, apresenta “Oráculo”

Está em Macau para o Rota das Letras e traz consigo um projecto inovador e único, que o vai levar numa viagem irrepetível e muito pessoal. Gil Mac apresenta “Oráculo” de sexta-feira a domingo no antigo tribunal, mas não sem antes revelar o seu lado de músico, artista e investigador da vida de Camilo Pessanha – uma “obsessão” que nasceu aqui

[dropcap]D[/dropcap]esigner, músico, encenador, performer… Por onde é que começamos exactamente, qual o pontapé de saída de Gil Mac no mundo das Artes?
Sempre no mundo da música e como designer gráfico. Desde pequeno que comecei com bandas e, depois, fui estudar Design Gráfico. Mas mantive sempre essa relação entre música e design. Fui fazendo isso tudo até que entrei no CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra] há uns dez anos e intensifiquei muito a performance e é nisso que tenho trabalhado, na área de teatro. Sou um artista que trabalha nessas três áreas e vou mudando e faço-o em projectos individuais ou para a minha associação, para a qual trabalho muito, a DEMO. E para outras companhias.

A sua orientação, especialmente ao nível do projecto musical Lucifer’s Ensemble, é um pouco ligada ao oculto, ao misticismo. Porquê esse interesse?
Sim, sim. Não sei, nasceu ao mesmo tempo que estava no CITAC e estávamos a fazer um espectáculo chamado ‘Divodignos’, que era uma sociedade secreta em Coimbra e, essa investigação, fez com que tentássemos perceber os mistérios – porque aquilo passava-se no princípio do Séc. XIX – e, a partir daí comecei a desenvolver mais conhecimento e a estar ligado com o oculto, com esta curiosidade.

Isso atrai o público?
Acho que há muita gente ligada [ao oculto] e que tem essa curiosidade, outros têm algum receio. Como, para mim, esse esoterismo não é algo astérico, mas sim vontade do conhecimento. De certa forma, a procura do desconhecido, de alguma coisa que não é palpável. Esse mergulho é interessante, especialmente numa fase criativa. Mas, adicionalmente é a procura do conhecimento e, de alguma forma, o estar vivo e partilhar momentos com pessoas. Mas, por outro lado, as pessoas têm algum receio dessa experiência, da relação com algo não palpável, relacionam com o burlão, com o folclore de magia negra, algo que cria um afastamento. Mas não tenho tido muito esse problema. Acho que o público vem, de alguma forma, preparado.

Aqui vai apresentar o “Oráculo”, uma “performance interactiva”, com Tarot e com Camilo Pessanha. O que é o “Oráculo”?
Primeiro, é uma espécie de obsessão que nasceu quando vim a Macau para um projecto chamado CODE, que ia fazer em Hong Kong e a Babel (organização) propôs que fizesse cá. Há muito pouco tempo que percebi que tinha, realmente, esta ligação ao oculto. Mas começou por uma obsessão com Camilo Pessanha, quando voltei a Macau em 2014. Comecei a investigar e vi Camilo Pessanha ligado a Macau. Na Fundação Oriente fiz um curso de Xilogravura da China e, em Lisboa, fiquei nos ‘calabouços’ a estudar Pessanha e a China. Como sou designer gráfico, e estou muito mais ligado à imagem, fiz uma compilação da minha investigação em postais para apresentar numa primeira actividade onde ia fazer num projecto chamado INSCRIÇÃO, que foi no Porto, sobre o universo de Camilo Pessanha. Nos postais mostrava a vida [do poeta]. A viagem era interessante, ainda que longa, mas ao fazê-lo percebi que poderia criar um conteúdo aleatório – duas ou três imagens poderiam relacionar-se com as várias histórias dentro desta história. Comecei a fazer investigação sobre o Tarot e converti os grandes arcanos [22 cartas maiores no Tarot], são os grandes arquétipos, como se fossem os trunfos, que contam a história do Louco. Basicamente é a história dele, que tem o seu próprio caminho. Isto é como se fosse a viagem de Pessanha, que, em representação aqui será o Louco, o primeiro. Depois temos o universo dele, ligado a cada uma dessas cartas.

Nessa viagem vamos ter Fernando Pessoa, Orpheu…
Vamos passar pelos Poetas Malditos, a geração de Orpheu, Baudelaire, que será o Mago…

Esta sessão será para uma a duas pessoas. Porquê?
Sim, porque tem a ver com a relação do Tarot e de proximidade. Essas duas pessoas terão de ser próximas, íntimas e ter, de alguma forma, alguma relação porque o Tarot é eficaz quando se responde a uma pergunta – uma vontade, uma inquietação, um desejo. Depois passaremos para a fase de o que Camilo Pessanha teria para dizer à pessoa (risos). image

Nos diversos projectos de que faz parte, como o DEMO, há uma interligação de diversas artes – desde a encenação à música, ao grafismo. No meio artístico é necessário existir essa interligação?
A multidisciplinaridade, para nós, é um ‘statement’. No DEMO, as siglas são “Dispositivo”, “Experimental”, “Multidisciplinar” e “Orgânico”. Por causa disso mesmo, uma tentativa de direcção artística onde se criam objectos artísticos e onde o grupo é multidisciplinar, de várias áreas.

No Lucifer’s Ensemble vocês têm também esse cruzamento, os vossos concertos são também uma performance.
Lucifer’s Ensemble é também uma tentativa de multidisciplinaridade. Criar não uma peça de teatro musical, mas sim fazer um concerto performático. Já tínhamos trabalho partindo da influência da música com o projecto PRESENÇA. Com este, o formato é mais aproximado de um concerto, mas com grande performatividade.

É mais fácil que as pessoas entendam o que se está a passar em palco com essa performance além da música?
Lucifer’s Ensemble trabalha numa tentativa de transcendência, em nada há interactividade. O público é voyeurista. Há uma divisão completa entre um espaço e outro, as pessoas estão a ver uma cerimónia, estão em comunhão nessa cerimónia, mas há, de alguma forma, uma separação porque estamos a tentar trabalhar sobre essa relação de transcendência. Há esse ritual iniciático que desenvolvemos a partir de uma nova interpretação, uma nova forma de trabalhar essa performatividade a partir do ritual. E depois tens os vários momentos, as várias músicas, onde se podem ir vendo as transformações. Mas há sempre o cuidado de adaptação ao espaço onde vamos fazer o concerto e aos ambientes. Tem sido um trabalho muito interessante. Não ensaiamos como uma banda normal, criamos em blocos de residência, que vão fazer com que haja composição e se trabalhe nesse espaço [do concerto], onde temos sempre um artista convidado. Trabalhamos sempre com um artista [novo] para nova música e trabalhamos no espaço para [nos adaptarmos a ele]. E vamos iniciar agora o primeiro Clube do Oculto, que é uma tentativa de arranjar projectos convidados para essa cerimónia, para esse espectáculo, onde ocupamos sempre um espaço diferente. Não tem regularidade nenhuma, é espontâneo.

Um dos pontos que defende é ter a arte como intervenção urbana. De que forma?
Venho da música e essa será sempre uma alternativa e a [minha] arte também está muito ligada à ‘street art’. Logo no princípio da DEMO, num projecto que fizemos em Varsóvia e se chamava Russian Roulette, tínhamos essa intervenção – um telemóvel com uma aplicação que tinha um ‘revólver’ e uma única ‘bala’ e se jogava com uma webcam em directo na net. Durante seis semanas havia seis performances diferentes e, ao sexto dia, tínhamos uma performance ligada a temas da sociedade e ao tema de ‘um estranho num lugar estranho’ – houve um dos dias que um colega nossa [o artista] recebeu ‘a bala’ e o tema seria os média. A pergunta que tínhamos de responder era como é que um cidadão tem voz no espaço público, como consegue atingir os média. Fizemos isto cá no Fringe, em 2014, onde andávamos na rua a perguntar às pessoas o que tinham para dizer sobre [diversos temas], em espaço público. Mas também trabalhamos muito numa relação de propaganda, que tem a ver com posters de grande dimensão. É conseguir fazer algo que está na franja da ilegalidade e da ‘street art’, onde, de alguma forma, não estamos a ferir o património, mas comunicamos no espaço público.

Estiveram no Fringe cá em 2014. Sentiram participação do público nesse projecto? O público chinês é tido como um público tímido, que não expressa o que sente sobre o que vê. Sentiram isso?
Sim, são públicos difíceis de atingir. É difícil de explicar, acho que há essa inibição no princípio, e claro que há a questão da língua que deixa as pessoas mais nervosas, mas depois há esta tentativa de as pessoas continuarem a falar e cria-se mais proximidade e há, parece-me, vontade de que se exprimam. Não consigo responder a essa pergunta porque é quase uma relação sociológica e com as artes e a própria cidade.

Não consegue avaliar o ambiente cultural de Macau?
[Comparado] com onde venho, com a Europa, parece-me escasso. Mas não sei, acho que Macau é fascinante pela fusão de culturas e eu teria, pela minha natureza, tentado forçar mais os limites e a relação dessa mescla. Por acaso, no projecto que fizemos [no Fringe] foi muito fixe, porque fizemos workshops no Armazém do Boi e encontrámos uma população jovem chinesa politicamente envolvida e isso deu-me uma esperança muito grande. Ao mesmo tempo estava a acontecer o Occupy [em Hong Kong] e isso era muito próximo ao trabalho que estávamos a fazer cá, da relação com o espaço público. Mas é difícil responder a essa pergunta, é uma realidade diferente e complexa. Mas fascinante.

Há mais projectos na calha aqui para Macau? Dizia que gostava de trazer cá o Lucifer’s Ensemble.
Com certeza, queremos que o Lucifer’s Ensemble vá a todo o lado. Agora, neste momento estou envolvido com o projecto INSCRIÇÃO, com esta obsessão de Camilo Pessanha, que fez com que ele chegasse ao Orpheu. Trabalhamos muito já sobre o Futurismo e vamos continuar, até chegamos ao Portugal Futurista e criámos um espectáculo chamado Hidra e Orpheu, que era o que era para vir cá. Mas não tivemos apoios, não conseguimos as viagens e o Festival [Rota das Letras] também não conseguia suportar as viagens desse grupo [Hidra]. Mas estamos com muita vontade, e o Festival também, de o trazer para o ano. É muito interessante, seriam dois grupos sempre em movimento, com várias performances, aqui [no tribunal] ou na rua. Vamos conversar para planear. Em relação ao Lucifer’s, gostaria muito, mas como está ligado mais à arte sonora e à tecnologia estou a pensar propor ao This is my City. Gosto muito do Armazém do Boi também, acho incrível. Vontade de estar aqui tenho.

Camilo Pessanha é, como já disse, uma obsessão. Já visitou a campa aqui? E sente essa presença de Pessanha em Macau?
Já visitei e, simbolicamente, desta vez, viajei para cá no dia da morte dele (risos). Quando me perguntam o que procuro em Camilo Pessanha costumo responder, de forma intuitiva, o fantasma. Sinto-o, por vezes, nas ruas escuras da parte velha chinesa, que é o local que me agrada mais em Macau. É difícil porque quando estudamos [a vida dele] começamos a imaginar uma época e é muito difícil abstrairmo-nos do Macau onde vivemos agora. Conseguimos ter alguns enquadramentos onde imaginamos a vivência dele, mas é uma relação com a história, uma imagem a preto e branco (risos). Há algum saudosismo que não é de um Macau como este de agora.

11 Mar 2016