Tinta-da-China edita em Portugal obra sobre literatura de Macau

A editora portuguesa Tinta-da-China acaba de lançar a obra “Macau – Novas Leituras”, que reúne textos de autores como Fernanda Gil Costa, Jorge Arrimar ou Yao Feng. Ana Paula Laborinho, uma das coordenadoras da obra, fala de um livro que pretende, sobretudo, trazer uma visão mais abrangente sobre aquilo que é a literatura de Macau

 

Chama-se “Macau – Novas Leituras” e é o mais recente livro lançado pela editora portuguesa Tinta da China. Trata-se de uma obra que reúne vários escritos sobre a literatura de Macau e que tem coordenação de Ana Paula Laborinho, Gonçalo Cordeiro, Marta Pacheco Pinto e Ariadne Nunes.

Ao HM, Ana Paula Laborinho, explicou que este livro nasce das várias comemorações realizadas em 2019 por ocasião dos 20 anos da transferência de soberania de Macau. Uma das iniciativas aconteceu na Fundação Oriente (FO) e foi organizada pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, com o nome “Literatura de Macau Pós-1999”. Também um centro de investigação da Universidade de Paris-Nanterre, em parceria com o Instituto Camões, organizou a palestra “Macau em Perspectiva: 1999-2019”.

O livro conta, portanto, com “algumas participações interessantes, de pessoas que passaram por Macau ou que ainda se encontram lá”, dedicando-se não apenas à literatura de e sobre Macau e à questão da língua portuguesa. Autores como Fernanda Dias, Jorge Arrimar, Duarte Drummond Braga, Fernanda Gil Costa ou Yao Feng compôem as páginas deste livro.

Lembrar Estima de Oliveira

Ana Paula Laborinho explica que, com esta obra editada pela Tinta da China, se pretendeu também “fazer uma pequena reflexão de poesia recente” editada sobre Macau. “Temos poetas que ainda têm uma relação estreita com Macau, destacando um que já nos deixou, e que consideramos que merece uma justa homenagem, que é o Alberto Estima de Oliveira que viveu muitos anos em Macau e que tem uma obra quase toda editada lá, de grande interesse e substância.”

É também feita uma análise da presença de Macau no cinema, sem esquecer a literatura sobre Macau em inglês. “Não há dúvida que existe uma literatura de Macau que se faz em várias línguas, o que significa que há uma maior consciência desses cruzamentos que são da própria história de Macau.”

O objectivo, com esta edição, é “apresentar Macau como objecto de estudo, olhado com a distância que estes 20 anos trouxeram, uma distância crítica que é fundamental”. Fazer “uma reflexão sobre o que é a literatura e de que maneira as suas características estão presentes na escrita”, adiantou Ana Paula Laborinho.

A ex-directora do Instituto Português do Oriente e ex-presidente do Instituto Camões destaca ainda o facto de, nos dias de hoje, a literatura de e sobre Macau ser mais ampla. “Cheguei em Macau em 1988 e havia um preconceito em relação à literatura de Macau, porque considerava-se que era apenas escrita por macaenses. E o macaense também tinha uma definição muito restrita, o cruzamento de ocidente e China. Os escritores macaenses não chegavam a uma mão cheia. Ao longo de décadas foi feito um trabalho importante de que escrever Macau é muito mais do que a identificação dos seus autores como tendo ou não nascendo no território.” Nesse sentido, “este livro traz um olhar muito mais abrangente sobre o que é Macau e a sua escrita”, rematou.

4 Fev 2021

Ana Paula Laborinho, directora em Portugal da OEI e ex-presidente do Instituto Camões: “Não fomos a reboque da China”

Com um largo currículo na área da língua portuguesa que passa por Macau, onde deu aulas, fez assessoria política e presidiu ao Instituto Português do Oriente, Ana Paula Laborinho é hoje directora da Organização de Estados Ibero-americanos, que trabalha em prol de uma maior união das línguas portuguesa e espanhola. A ex-presidente do Instituto Camões lamenta não ter feito mais no desenvolvimento da rede externa do organismo e afirma que Portugal é dos países que mais tem uma política para a língua

[dropcap]N[/dropcap]o último colóquio da Universidade Católica Portuguesa falou do projecto académico “Escrever Macau”. Em que consiste esta iniciativa?
Durante a minha estadia em Macau, em 1988 e 1989, iniciou-se um movimento para estudar a literatura de Macau, que tem de começar por interrogar o que é essa literatura. Não é uma questão fácil. Na altura era uma questão debatida com uma visão relativamente restrita, a de pensar que a literatura de Macau era aquela apenas feita por macaenses, os filhos da terra, mas rapidamente se percebeu que teríamos de ter uma visão muito mais alargada. Nesse sentido, sobretudo depois de ter regressado de Macau, em 2002, começamos um projecto na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) onde concluímos que escrever Macau nos alarga o horizonte, porque aqueles que escrevem sobre Macau são de Macau, mas fazem-no em várias línguas.

Ou seja, não há apenas um caminho.
Temos aqui uma visão mais alargada. Fizeram-se algumas reuniões académicas e publicamos, em 2010, um livro intitulado “Macau na Escrita, Escritas de Macau”. Há um interesse muito grande (sobre a literatura de Macau) que se tem estendido para fora de Portugal. Vou agora a Paris, à Universidade de Nanterre, participar num encontro em que “Escrever Macau” é um tema central. O projecto “Escrever Macau” deveria ser mais divulgado em Macau, mas muitas vezes estes projectos não têm os recursos suficientes para fazer essa promoção. Mas há muito trabalho que tem vindo a ser feito, com jovens investigadores que se têm debruçado sobre estas áreas. Vamos prosseguir nesta senda de definir o que é esta escrita de Macau, as suas várias fases, concluindo que hoje em dia nessa escrita convergem várias línguas, autores de várias proveniências, mas que continuam a ter Macau como objecto de escrita.

Houve uma maior mudança depois de 1999 no campo da produção literária?
O que me parece é que depois da transferência de soberania de Macau podemos ter uma outra visão do que é escrever Macau, porque até aí havia muito essa ideia (restrita) do que era a literatura macaense e da figura do macaense. Mas depois da transferência de soberania constata-se que essa figura é hoje muito mais alargada. O que é um macaense? É todo aquele que nasceu em Macau e escolheu Macau para viver e para morrer. O mais importante é essa identidade múltipla. Hoje temos de entender Macau de uma forma múltipla, muito transversal e é essa a sua riqueza. Tudo isso faz parte de um cadilho criativo que nós vemos que tem expressão na literatura, mas também noutros domínios. É essa criatividade que se gera por esse confronto de pessoas, por este diálogo entre culturas. Isso é Macau. E por isso escrever Macau é também tudo isso.

ANA PAULA LABORINHO

Surpreende-a que haja mais autores nascidos em Portugal a escrever sobre Macau?
Não temos ainda um levantamento de todos aqueles que escrevem sobre Macau noutras línguas, nomeadamente em chinês. Tanto quanto sei, começam a aparecer jovens escritores, temos o Yao Jingming, um grande poeta que escreve em português e em chinês e que integra grupos de escritores de Macau e tem uma visão que é bastante mais lata do que aquela que nós temos, e o que é muito interessante. Aliás, pensou-se em fazer uma colecção de autores que escrevem sobre Macau nas várias línguas, e também havia autores de língua chinesa, pois algumas questões sobre identidade são muito semelhantes. Os autores de língua portuguesa ou chinesa interrogam-se sobre isso, porque há muitas vezes ali uma identidade volátil. Essa volátil identidade, mas que é também uma escolha e uma vontade, está muito presente na literatura, quer se escreva numa língua, ou outra ou até em inglês.

É directora da Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) em Portugal. Falou ainda de um estudo focado numa união entre o português e o espanhol. O que está a ser feito nesse sentido?
O interesse de Portugal nesta organização, que tem a sua representação no país há menos de dois anos, tem a ver com três grandes eixos. Um é estreitar os laços de participação, partilha de experiências e projectos conjuntos com os países ibero-americanos. Mas tem também uma outra, que é relevante, que é o podermos trabalhar com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A OEI foi a primeira organização internacional a ser aceite como observadora da CPLP e fazemos esse trabalho de ligação entre os países ibero-americanos e a CPLP. Depois, a terceira linha de trabalho tem a ver com a língua portuguesa, apesar da OEI sempre ter sido essencialmente uma organização de língua espanhola. O seu secretário-geral, Mariano Jabonero, propôs o primeiro programa ibero-americano para a difusão da língua portuguesa. A verdade é que neste momento estamos a trabalhar e a perceber que o português também ganha muito em se aliar, o que não significa perder a sua identidade. Ganhamos em trabalhar em conjunto duas línguas que são próximas e que tem origens comuns.

Como é que isso será feito?
Uma dessas áreas tem a ver com a produção científica em conjunto. Há estudos que nos mostram que as duas línguas em conjunto já constituem a terceira língua de ciência do mundo. Outra área é o digital, onde temos de apostar mais. É neste sentido que o Instituto Camões (IC) e Instituto Cervantes estão a produzir um estudo, no seguimento de outro que foi feito sobre o potencial económico da língua portuguesa que saiu em 2011, sobre o potencial das duas línguas em conjunto. O português tem 260 milhões de falantes, o espanhol tem 540 milhões, então temos uma comunidade de 800 milhões que se entende e que têm laços comuns. Isto é um valor e potencial que podemos explorar. O continente onde se vai falar mais português é África, e isso revela que vai haver um crescimento demográfico nos países de língua portuguesa assinalável. Isto faz com que a América Latina não seja o continente onde se fala mais português. Nas minhas novas funções o meu papel não é apenas o trabalho na área das línguas, mas na partilha de projectos de educação. Estamos a trabalhar nas competências para o século XXI com esses países e a CPLP. O projecto sobre indicadores de ciência está bastante avançado na América Latina, mas também podemos partilhar práticas com outros países. É toda esta dimensão que nos parece que vai ser essencial para projectarmos a nossa língua, o português.

O que gostava de ter feito mais na presidência do IC?
Passei por uma fase difícil, porque num primeiro momento recebemos a rede do ensino do português no estrangeiro, do nível inicial até ao ensino secundário, que estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Essa rede era muito maior do que a dimensão do IC que, até 2010, só tinha o ensino do português no ensino superior. Foi necessário reorganizar a instituição em função dessa rede, criar novos desafios e qualificar esse ensino que se destinava essencialmente às comunidades portuguesas, mas também qualificá-lo para que ele se tornasse um ensino de matriz internacional. Esse foi o grande desafio. Em 2012 tive outro, que foi a fusão com a Agência para o Desenvolvimento e Coesão, e por isso passámos a ter uma grande dimensão que naturalmente foi preciso estruturar. Nesse sentido, há muita coisa que fica por fazer. Julgo que aquilo que gostaria de ter feito e talvez não tenha feito tanto foi reestruturar a rede externa.

Em que sentido?
O IC não tem as escolas portuguesas, mas tem uma rede muito grande de professores e centros culturais de língua portuguesa e tem-se aumentado o número de presenças em países. Estávamos em 84 países em termos de acção mas é preciso reestruturar e consolidar essa rede. Depois de consolidar a estrutura interna, poderia ter também dedicado mais tempo à estrutura da rede externa, que é fundamental. Também tive a sorte de apanhar um momento em que a concepção do desenvolvimento estava em mudança com a Agenda 2030.

O que é que isso trouxe de diferente?
Algumas dimensões que não eram consideradas passaram a ser, como, por exemplo, a cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento. O que tenho de concluir é que aprendi muito, foi uma experiência que me marcou bastante. O IC é uma instituição que tem um trabalho extraordinário. Fico muito contente por ele ser prosseguido pelo meu sucessor e por continuar nesta aposta de levar mais português e participar mais em projectos de desenvolvimento e em parcerias estratégicas, como aquelas que temos com a União Europeia na área do desenvolvimento.

Agrada-lhe a actual estratégia governamental de internacionalização da língua portuguesa?
Claro, essa foi a estratégia que orienta a casa em termos gerais. Há uma grande aposta do actual Governo nessa área, quer na internacionalização quer numa oferta qualificada para as comunidades portuguesas, para que tenham a noção de que a sua língua é internacional. Tem sido feito muito trabalho e há um investimento muito grande do actual Governo nesta área, no sentido de ser uma política que está no topo das preocupações e com grande apoio a todos os níveis, desde o primeiro-ministro ao ministro dos Negócios Estrangeiros, mas também outras áreas do Governo como a educação, cultura ou economia. Neste domínio da economia é relevante a questão da internacionalização da língua como bem percebemos pelo inglês. Daí que haja uma perspectiva que este tema é transversal.

Não acha que a vontade da China de expandir o português não levou a uma maior estratégia por parte de Portugal na internacionalização da língua? Foi o motor de arranque?
Não me parece. Acho que Portugal é dos países que mais tem uma política para a língua, ao contrário do que muitas vezes se diz, e tem-na de uma forma consistente. O Brasil não tem nenhuma instituição para a promoção da língua, diz-se que vai ser criado agora um instituto para esse fim. Desse ponto de vista, Portugal tem uma longa tradição e o IC é um dos grandes institutos europeus, ao lado do Goethe, Cervantes, entre outros. Não tenho nada a ideia de que tenhamos ido a reboque da China. Esta complementaridade é muito útil, relevante e reforça a nossa posição de divulgação da língua, torna-se muito mais atractiva, mas tenho a dizer que as autoridades portuguesas fazem muito pela língua. Quer o projecto da Escola Portuguesa de Macau e escolas portuguesas no mundo, ou o IPOR em Macau, são esforços para um país que tem 10 milhões de habitantes. Temos de ter noção da nossa dimensão e ver que, fazemos muitíssimo pela língua. Há um aspecto que ajuda muito que é a estratégia e o valor que se tem desenvolvido com a presença de portugueses em altos lugares de organizações internacionais. Essa é uma estratégia de Portugal mas claro que tem muito a ver com o valor das pessoas, tal como ter António Guterres na ONU.

O IPOR celebrou 30 anos de existência recentemente. Está contente com o trabalho realizado?
Muito contente. Houve momentos, no período da transição de Macau, em que não se sabia se valia a pena, mas ainda bem que se continua a apostar. Penso que o IPOR tem feito um trabalho muito importante e é uma referência importante em Macau. Só tenho de saudar todos os que estiveram na origem da ideia e todos os que contribuíram para a construir.

11 Out 2019

Entrevista | Ana Paula Laborinho, presidente do Instituto Camões

Regressou ao território na semana passada para integrar o 12º Congresso de Lusitanistas. A presidente do Instituto Camões vê a língua portuguesa como parte de um futuro internacional. No que respeita ao oriente, Macau tem um papel fundamental tanto na formação de professores como na divulgação literária

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á esteve em Macau. Que mudanças vê no território, nomeadamente, do ponto de vista do desenvolvimento da língua portuguesa?
Já cá estive tanto com a administração portuguesa como com a chinesa. Dei conta que faz agora 29 anos que cheguei a Macau. Cheguei no final dos anos 80, num momento muito efervescente. Estava-se em pleno período de transição, e é preciso ter em conta que o que existia aqui era uma administração portuguesa. Macau nunca foi considerado um território português, mas muita coisa estava a acontecer e mesmo do ponto de vista da língua. Até esses anos o que existia relativamente ao ensino do português era alguma coisa paralelo ao que existia em Portugal e tínhamos até uma situação que, diria, era surpreendente e ao mesmo tempo embaraçante: a língua chinesa não ser oficial. No final dessa década foi quando percebemos que, se queríamos manter aqui o português teria de ser ensinado como língua estrangeira, que tinha de existir uma metodologia específica de ensino para falantes de chinês e que era fundamental a oficialização da língua chinesa, não só pelo número de falantes mas porque isso dava um paralelismo de situação às línguas que só poderia ser vantajoso para o português no futuro. Recordo ainda uma conferência por volta de 1990, do professor Manuel Ferreira, um académico que veio a Macau numa altura em que muito pouca gente cá vinha. Trabalhava em literaturas africanas. Veio fazer uma conferência à Universidade de Macau (UM). Chamava-se “Que futuro para a língua portuguesa?”. Surpreendentemente, numa altura em que a UM não tinha estudos portugueses a conferência estava cheia. Foi um debate interessantíssimo em que também foi possível traçar como quadro de futuro uma instituição que já estava a ser constituída, o Instituto Português do Oriente (IPOR). Regressei em 1995 para esta instituição para desenhar o que seria a instituição no futuro. De 1996 a 2002 foi um período especialmente interessante por ser, efectivamente, o período de transição. Tivemos de experimentar a solução. Uma coisa era trabalhar com a administração portuguesa e outra era construir uma instituição que pudesse ter autonomia e existir no quadro da administração chinesa. Foi esse o grande desafio que penso que resultou. O IPOR mantém-se e continua a ter um trabalho importante. Foi um processo em que também foi preciso convencer as autoridades portuguesas.

Houve relutância por parte de Portugal?
Não quer dizer que tenha havido relutância. Debatíamo-nos com duas visões que, podemos dizer, antagónicas. Uma tendia a ser dominante e que era uma visão muito pessimista que dizia que, no dia em que Portugal se fosse embora, acabaria a língua portuguesa. Acho que houve uma negociação muito competente por parte de ambos os lados no sentido da salvaguarda do português e que estava já designada na Declaração Conjunta. Era necessário saber se assim aconteceria efectivamente. A verdade é que os primeiros anos não foram fáceis. Foram anos de ainda alguma turbulência, o que é normal. Estávamos a passar de um regime colonial mesmo que com características próprias, para um novo tempo e uma nova administração com uma população que tinha aumentado muito com pessoas vindas do Continente e que não tinham raízes em Macau. Tudo isto eram vicissitudes em que era necessário perceber qual seria resultado. Um outro factor importante: Macau também tinha mudado muito o seu perfil. As pessoas quando aqui chegavam vindas de Portugal diziam que aqui ninguém falava português e, como tal, a língua iria a acabar. Foi necessário convencer Portugal de que isso não iria acontecer e que tínhamos noção de que a parte chinesa também tinha interesse nisso.

Qual era a receptividade por parte da administração chinesa?
Havia consciência de que Macau não era uma cidade como as cidades chinesas e bastava atravessar as Portas do Cerco para notar isso. É essa diferença quase imaterial, que faz a especificidade de Macau. Por algum motivo é uma região administrativa especial. Esta diferença também se marca por este cruzamento com uma outra cultura que está muito presente mesmo de uma forma que, se pode dizer, etérea. Edmund Ho tinha a perfeita percepção desta particularidade. Claro que havia algumas forças contrárias, mas, muito rapidamente, o Governo Central percebeu que a língua portuguesa era uma ferramenta para o mundo. Não era apenas uma relação com Portugal, mas sim com África, com o Brasil e uma relação com Timor também. Temos este esforço extraordinário que a administração chinesa em Macau faz, o investimento na língua, na comunicação social, de querer verdadeiramente que exista cá uma formação de quadros bilingues percebendo que são muito relevantes para o território e para a China. Não posso deixar de recordar que, por volta de 2011, estive na China e que um vice-ministro me dizia que o objectivo da China era formar 5000 professores de português. E estão nesse caminho.

O que é que significa o Congresso de Lusitanistas nesse sentido? É um reflexo desse investimento?
Significa também essa aposta. O Congresso de Lusitanistas é esse ponto áureo de tudo aquilo que tem sido feito e da maneira como as autoridades de Macau se têm emprenhado verdadeiramente no projecto da língua portuguesa. Trazer aqui um congresso de Lusitanistas, trinta anos depois de uma chegada a Macau de um especialista em língua portuguesa é um acontecimento incomensurável, é muito importante.

Numa entrevista que deu há uns anos, falava, por exemplo, da necessidade de mais traduções para uma maior divulgação do português. Como está este aspecto?
Nos três anos em que não estive em Macau, mas que não deixei de estar ligada ao território, foi lançada uma colecção que se chamava “Biblioteca Básica de Autores Portugueses”. Eram traduções para chinês, feitas na China, em que editámos quase 40 obras. Foi muito importante trabalhar com os tradutores chineses e, em muitos casos, o que fiz foi tirar das gavetas traduções que eles tinham feito e que estavam enterradas porque não tinham tido condições de serem editadas. Havia coisas extraordinárias. Houve também algumas traduções feitas propositadamente para esta colecção. Um exemplo é “O Memorial do Convento” do José Saramago. Tive a possibilidade de levar o Saramago, antes do Nobel, a Pequim para fazer a apresentação desta obra e foi um sucesso extraordinário. A tradução que foi feita de “O Memorial do Convento” ganhou o principal prémio de tradução da China. Na altura traduziu-se desde o Camilo Pessanha ao Eugénio de Andrade. Depois foram também traduzidos o Eça de Queirós, o Júlio Dinis, etc. Já existiam antes algumas traduções mas eram dispersas e com esta ligação arranjou-se uma unidade. Foi preciso muita determinação para o conseguir e muito apoio, nomeadamente, dos tradutores. Hoje em dia, o Instituto Cultural de Macau tem estado a fazer uma ou outra tradução e isso é muito importante. Lançámos, em Lisboa, a tradução de Camões e de poetas chineses. Julgo que também é necessário traduzir autores chineses para português, até porque há um acolhimento muito grande. Infelizmente, a maior parte das traduções de autores chineses é feita via inglês ou francês mas há um grande interesse pela literatura clássica chinesa e já temos exemplos de traduções feitas pelo professor António Graça de Abreu. Também é necessário maior investimento na tradução de autores portugueses. Claro que a tradução para chinês é um projecto duplamente caro. Com a necessidade que existe de tradutores, o que se passa é que estes profissionais se fizerem traduções técnicas são muito mais bem pagos do que os tradutores literários e o trabalho de tradução literária é muito complexo. Acabamos por ter muito pouca gente a faze-lo. Espero que o Instituto Cultural possa também aí ter uma intervenção.

Há pelo menos duas entidades em Macau com um trabalho relevante na edição e livros traduzidos e de obras que juntam as duas culturas, nomeadamente a Livros do Meio e a Associação Amigos do Livro e que contribuem para o papel de plataforma local.
Só Macau é que pode ser essa plataforma até porque pode intermediar com a China. Julgo que o papel de Macau é essencial. Aquilo que é sempre uma dificuldade tem que ver com a distribuição dos livros de Macau em Portugal. E são livros muito apetecidos. Há muita gente interessada por aquilo que é feito em Macau, quer as traduções, quer a literatura, quer os ensaios. Felizmente já há gente que lê em chinês, mas falta, de facto, um meio para a distribuição dos livros de Macau em Portugal. As obras chegam com grande dificuldade a Portugal. Não há um ponto onde as pessoas saibam que se podem dirigir e comprá-las. Deveria existir uma forma de serem adquiridas digitalmente. Há muito trabalho a fazer nesse sentido e Macau tem de o fazer.

A língua como expressão de uma identidade. Se falarmos de língua portuguesa, estamos a falar de múltiplas identidades.
Essa é a parte mais interessante. Como dizia o professor Adriano Moreira, actualmente o português é também a língua dos portugueses e é cada vez mais uma língua de outros povos, e que tem os saberes e sabores desses outros povos. É uma língua de múltiplas identidades e é assim que deve continuar a ser construída. O português é uma língua de várias identidades e penso que isso está muito presente nas artes. É muito importante não esquecer este lado como um lado fundamental para que estas identidades permaneçam, tenham desenvolvimentos, transformações e continuidades. Outra dimensão, que é aquela com que trabalho mais, é a internacionalização da língua portuguesa. Aí, vemos que cada vez há um interesse maior do mundo pelo português. Tem que ver com a enorme mudança a que assistimos. A velha separação entre norte e o sul e em que norte pontificava sobre o sul está diluída. Prova disso é a própria agenda 20/30 das Nações Unidas que vem dizer claramente que deixa de haver os países ricos e pobres, os doadores e os beneficiários, e que, afinal, os indicadores de desenvolvimento dão para todos. Os países desenvolvidos também têm muitas bolsas de subdesenvolvimento e de pobreza e vemos que os países pobres também têm bolsas de riqueza. O mundo que se está a impor é o mundo do hemisfério sul onde temos um Brasil e temos uma África pujante, onde temos toda uma América Latina que está também a fazer um caminho muito forte e muito interessante na forma como entendem a educação e como se projectam na economia. Hoje em dia, parece-me que é óbvio, não há economias fortes sem educação e sem aposta na cultura, o que promove uma coisa que é um bem essencial: a criatividade. O mundo do sul está a impor-se e a verdade é que nesse mundo do sul a língua mais falada é o português e todos os indicadores nos dizem que no final do século, onde se vai falar mais português é mesmo em África. O continente africano vai ser pujante e vai ser também onde o português será umas das três línguas mais faladas, juntamente com o árabe e com o inglês. Tudo isto nos permite compreender porque é que a China aposta tanto no português. É uma visão muito estratégica. Em meu entender há duas línguas que vão crescer exponencialmente: o espanhol e o português. Temos a vantagem de que estas línguas também se entendem entre si e isso forma uma comunidade, para já de 700 milhões, que se entende e que até tem relações culturais de proximidade. Não é por acaso que temos como secretário-geral das Nações Unidas, um português. Portugal é também visto como um bom mediador e como um país que cumpre os seus tratados internacionais. Foi isso mesmo que a China disse ao país quando foi defender António Guterres: “confiamos em Portugal porque cumpriu tudo aquilo a que se comprometeu em, relação a Macau”.

Tem defendido, apesar das contestações, que o acordo ortográfico integra esse processo de internacionalização.
A CPLP tem um instituto que se ocupa da língua portuguesa com o qual colaboro e onde tenho de ouvir, infelizmente, que a questão do acordo ortográfico é uma questão de Portugal e que todos os outros países já a resolveram. Angola não resolveu, é verdade, a Guiné Equatorial também não resolveu mas é porque ainda nem iniciou um processo de integração do português no seu sistema, mas tirando isso todos os outros países já resolveram essa questão pelo que já é uma não-questão. Só continua a ser debatida por Portugal nos termos que ainda é mas que, penso, são cada vez menos justificáveis. Será ainda durante mais uma geração, mas, desde 2011, no sistema de ensino só existe o acordo ortográfico.

Vem aí uma geração que não se vai lembrar da língua portuguesa antes do acordo?
Sim.

Está há quase oito anos à frente do Instituto Camões. Que balanço é que faz do trabalho desenvolvido ao longo deste tempo?
Estive em várias configurações institucionais dentro do Instituto Camões e em todas elas encontrei “tsunamis”. A primeira, ainda como Instituto Camões, quando foi nos foi passada a rede de ensino básico e secundário no estrangeiro que representava cerca de três vezes a dimensão do instituto. Fizemos, pela primeira vez, a avaliação dos professores, a introdução da certificação da aprendizagem, programas de ensino e o programa de incentivo à leitura. Conseguimos ainda chegar aos países em que têm professores que não fazem parte da nossa rede. No conjunto apoiamos quase 660 professores. Não temos rede oficial, mas apoiamos também os Estado Unidos, o Canadá, a Venezuela e a Austrália. Por outro lado, temos tido um crescimento muito grande daquilo que é o português na vertente de língua estrangeira. Nós hoje estamos, em termos de língua, em 78 países e temos cerca de 90 mil alunos. Temos relações institucionais com 358 universidades e também aí fomos reforçando a qualidade do ensino, sobretudo na construção de uma rede coerente em que há uma grande aposta na formação de professores. Outra coisa que tem sido muito gratificante é o reconhecimento do português como acesso ao ensino superior. A nossa vitória mais recente, porque era quase impossível, foi nos Estado Unidos em que, finalmente, os exames de acesso às universidades já contemplam a língua portuguesa. Foi um salto qualitativo muito grande. Além do ensino superior temos também apostado muito na integração do português nos sistemas curriculares. Está-se a passar em África e o primeiro caso, e de grande sucesso, é a Namíbia, mas também estamos no Zimbabué e na Suazilândia. Na Europa estamos em países como a Roménia, a República Checa e a Bulgária que também estão a introduzir o português. Pela primeira vez, os últimos relatórios do British Council reconhecem o português como uma das grandes línguas internacionais. Em 2012 tive o segundo tsunami que foi a fusão com a Cooperação para o Desenvolvimento. Sendo uma área muito distinta, também foi possível trabalhar de forma interessante. A cooperação portuguesa tem na educação uma das suas áreas fundamentais de intervenção nos países parceiros. Aí, a minha coroa de glória, do ponto de vista da língua e pela primeira vez, está associada a um projecto na área da justiça em Timor Leste em que já existe uma componente de língua portuguesa. Não se trata de ensinar português mas de uma formação especifica. A nossa última aposta tem sido na modernização e no digital. O futuro passa pelo desenvolvimento de parcerias. Não é possível fazer crescer a língua portuguesa sem parcerias e esse é o repto que temos. Trabalhar com as universidades de outros países de língua portuguesa. Foram ainda aprovados planos de acção para a internacionalização da língua portuguesa.

31 Jul 2017