Ana Jacinto Nunes, pintora e artista plástica: “Gosto da fusão da caligrafia com pintura ocidental”

“Notícias da Floresta” é o nome da exposição de Ana Jacinto Nunes com inauguração marcada para 11 de Junho no edifício do Fórum Macau, no âmbito das celebrações do Dia de Portugal, Camões e Comunidades Portuguesas. A artista fala dos trabalhos que acabam por ser um diário do confinamento ou “um resumo dos dias”, onde se vislumbra “quase um final feliz”

 

“Notícias da Floresta”. Porquê este nome?

Isso tem sido o que temos tido. Está tudo fechado em casa e as notícias que temos é daquilo que nos é próximo, de um ecossistema grande em que tudo é importante e tudo faz parte de um todo. A notícia está a crescer, a semente brotou, a flor abriu, hoje choveu. São notícias que não interessam a ninguém, no fundo, mas que vão acontecendo.

Que obras podemos ver nesta exposição?

Os papéis funcionam quase como um diário, que não é gráfico no seu formato típico de apontamento, mas acaba por ser um diário. É uma escolha de desenhos que fui fazendo desde que não fui para Macau, porque a ideia inicial era fazer a quarentena aí. Há um desenho base, que é a menina e o cão, e que é alterado. Mas as telas não, são um resumo dos dias, momentos. Nas telas acaba por haver um final em que já se está mais descontraído. Apareceu o sol. Há quase um final feliz.

À semelhança de uma exposição que tem patente em Grândola, Portugal, também pintou muito o que estava à sua volta, ao invés de um tema em específico?

Sim. O tema específico talvez seja aquilo que me rodeia. Não tenho uns óculos de mergulho em casa, não desenho à vista, nunca. Parte tudo muito do meu imaginário, que é feito daquilo que vou vivendo.

Há obras da exposição de Grândola nesta mostra, ou pelo menos que transmitam uma mensagem semelhante?

Sendo eu a mesma artista há um fundo que é sempre o mesmo. Tenho estado cada vez mais preocupada com a situação das mulheres na pintura. Talvez isso esteja mais assumido, mas não sei muito bem como.

Porquê?

É óbvio que as mulheres estão menos representadas em todas as áreas. Se perguntarmos, a alguém fora de Portugal, quantas mulheres pintoras conhece, de certeza que são muito poucas. Temos a Paula Rêgo, a Lurdes de Castro. E as mulheres vendem a sua arte mais barata do que os homens.

Como é que através do seu trabalho chama a atenção para isso?

Quando pinto não chamo a atenção. Eu faço mais citações ou mais declarações. Não digo “agora vou fazer uma mulher debaixo da mão de um homem”. Mas se calhar a falta de expressão, o ter sempre o mesmo olhar, um olhar apático e incrédulo. O ter sempre uma mulher ou menina que olha para ti. Os bichos podem ser machos, mas a figura principal é sempre uma mulher. Mas esta exposição em Macau tem uma grande mistura. A forma de pintar, o pincel, o gesto. Nos últimos tempos tenho vindo a juntar o que procurava fazer no meu trabalho de antigamente, junto a expressividade da pincelada mais oriental. Na minha cabeça é um bocadinho como a caligrafia, tenho vindo a fazer isso. Não sei se é muito evidente nesta exposição. Já fiz trabalhos para aí muito dentro deste perceber que gosto de misturar os materiais daí com os de cá e fazer uma fusão entre a caligrafia e a pintura ocidental.

Gosta de trabalhar com vários materiais, de ir experimentando?

Gosto muito. Lá em cima [em casa] está tudo sujo, com óleos, e venho cá para baixo e posso desenhar. Depois tenho a garagem onde tenho a prensa, o material todo para fazer gravura.

É perfeccionista, alguém que quando aprende uma coisa nova quer ir ao detalhe?

Não. Nem pensar. Demora-se uma vida a ser meramente bom no que fazemos. Ter aspirações a fazer uma coisa perfeitinha é um trabalho. Na gravura sim. Não consegues fazer uma edição sem saber fazer aquilo na perfeição. Tudo vem de há muito tempo. O trabalho, aquilo que vou vendo e pensando, e lendo também, vai tudo para o trabalho. Desde há muito tempo que trabalho sozinha. Na gravura temos 90 por cento de trabalho e cinco por cento de criatividade. É um trabalho técnico e muito maior do que o criativo. Mas também gosto desse trabalho. Não gosto nada do trabalho esporádico, mas gosto do de continuidade.

Os animais estão sempre muito presentes nas suas obras.

[Na exposição de Grândola] há de facto muitos gansos, já os desenho há muito tempo. Se calhar tem a ver com a ida ao parque com os miúdos, não faço ideia. Mas na Gulbenkian eu fugia dos gansos. Em miúda lembro-me de ver um bando de gansos a fazer barulho, e eu adorava aquilo. Na minha cabeça tem a ver com uma antiguidade. [O meu trabalho é] o que acontece dentro de nós, à nossa volta, o que está em casa. E não interessa quando vou ver um concerto à Gulbenkian. Interessa-me todos os dias, se há pão ou não. E não é político o que estou a dizer. Há mesmo pão?

O lado prático da questão, sem ideologia.

Prático é uma expressão que eu não uso porque não sou nada prática.

É desorganizada quando está a criar?

Completamente. E quanto mais em pânico estou, e próxima de uma exposição fico, fica tudo um caos, como a minha cabeça. É preciso fazer e vai tudo à frente. Com os miúdos é: o que querem comer, tratem do assunto, tragam comida. Eles aturam… a Clara neste momento tem uma tela enorme que eu coloquei no quarto dela. Há três dias estava uma desorganização e eu não estava a gostar, aquilo não fazia sentido e queria aqueles quadros lá, mas… e sozinha à noite é que andei com os quadros de um lado para o outro. Eu sei o que está na minha cabeça mas se calhar não o sei dizer muito bem, se calhar por isso é que pinto. Fiz recentemente uma ilustração com base num livro que adorei, “O Plantador de Abóboras”, de Luís Cardoso.

E acabou por ir para o seu trabalho.

É dentro do meu mundo, completamente. O que ele escreve, para mim tem o mesmo tipo de encanto que tem a Marguerite Duras, no sentido de como eu me sinto a ler aquilo, embora não tenha nada a ver. O tipo de mundo em que tu entras… ele numa entrevista diz que as mulheres é que estão, vêem, estão presentes, preocupam-se. Diz que quem lhe contava as histórias era uma mulher, então cada vez que ele conta uma história é através dessa voz. Ele diz as coisas de uma forma muito bonita e consciente do modo de vida das mulheres. O que está na exposição [de Grândola] são ilustrações que foram usadas para esse livro e também outras que não foram usadas. Posso dizer que continuo a ter ali trabalho com os livros da Marguerite Duras que li em Macau, em 1996. Continuam ali, não sei onde, num cantinho.

Que livros da autora a marcaram mais?

Gostei de todos, só não consegui ler teatro. Não consegui fazer as vozes cá dentro, cansa-me muito. Mas “A Barragem contra o Pacífico”, que tenho andado a pensar que podia ler outra vez, porque há muito que não lia um livro que me encha as medidas, isto antes do livro de Luís Cardoso. Mas tenho aquele medo… vai lá ler “A Metamorfose”, de Kafka, agora. A mim não me apetece, não quero. Lês aos 14 ou 16 anos e faz sentido, mas aos 47? Deixa estar. E não queria isso com um dos livros que mais gostei. Mas ando com vontade de ler mais autoras mulheres agora.

Porquê?

Quando cresci, o que é que eu lia? Kafka, Boris Vian, tudo homens.

Foi algo espontâneo?

Lia homens porque ia a uma livraria, quantas mulheres escritoras havia em 1980? Poucas, hoje há mais. Há de facto um lobby masculino. Mas e nas outras artes? Falou-se nos jornais de que temos uma maestrina portuguesa.

A Joana Carneiro.

Sim, mas é a única. Gosto muito de música. Tenho uma filha que me lê em voz alta enquanto eu trabalho, o que se pode querer mais? E um filho que treina escalas ao piano, adoro ouvir aquilo. Acho muito bonito. Trabalho muito com música. Estou a trabalhar num quadro que começa com uma música. Durante aquele tempo, e para azar de quem vive comigo pode ser um mês, só se ouve aquilo. Se voltar daqui a três meses, posso ouvir a mesma música. É como se fosse um discurso musical que me põe naquele sítio a pintar aquilo. A Sylvia Plath tem um verso num poema que diz “I’m vertical but I would like be horizontal”, que penso que é a vontade de morrer dela. Mas aquela coisa entre o vertical e o horizontal, entre a vida e a morte, entre as nuvens e os papiros, ou entre lá em cima e o cá em baixo, o etéreo e o terra a terra… isto tem uma amplitude, para um lado e para o outro, muito grande. Se calhar por causa da doença ou de não sei o quê, e de a casa estar cheia, há a vontade de ir para o Alentejo, ter um sítio grande e arranjar paz.

É uma nova fase.

Sim, um descanso. A vida toda até aos 40 andei um bocado à procura de quem era. E agora não sei, mas estou-me lixando. Sou eu e não quero saber o que os outros pensam, se está bem ou mal. É como eu gosto e quero.

Isso é uma grande liberdade. Sente-se mais livre agora do que antes?

Sim, muito mais. Não voltava aos meus 16 anos nem com o Euromilhões na mão.

Não tem medo de envelhecer?

Estou a ficar velha, é esquisito olhar-nos no espelho e ver estas rugas. Dois anos foi muito tempo, as preocupações. Eu emagreci quando todos engordaram na quarentena. Mas comi muitos bolos. Mas não voltava aos 25 nem aos 35 anos. Talvez voltasse aos 40.

4 Jun 2021

Livros | “O Comedor de Nuvens” é lançado hoje na Fundação Rui Cunha

Obra com textos de Carlos Morais José e azulejos da autoria de Ana Jacinto Nunes é apresentada hoje pelas 18h30 na Fundação Rui Cunha. Derivando entre textos e ilustrações, “O Comedor de Nuvens” parte em busca da constante impermanência da forma e do simbolismo do branco sobre o azul, que pode servir de fronteira em relação ao céu ou de lugar de projecção da imaginação

 

Quando uma nuvem passa, parece que nada fica igual. O livro “O Comedor de Nuvens” é apresentado hoje pelas 18h30 na Fundação Rui Cunha, assumindo-se como uma obra que foi crescendo e sofrendo transformações de forma orgânica e ao ritmo da vontade e do tempo. Isto porque de uma pequena fanzine de 20 folhas nasceu um livro com mais de 130 páginas, que inclui textos de Carlos Morais José, ilustrados com fotografias de azulejos de Ana Jacinto Nunes.

“Os azulejos vieram primeiro”, conta a artista ao HM, revelando que o primeiro “comedor de nuvens” foi desenhado no final de 2019 e que, desde então, ficou “apaixonada” pela ideia, acabando por “fazer imensos azulejos”, a pretexto da quarentena a que ficou sujeita, devido à pandemia.

“Para mim, as nuvens contêm o básico para vida e para as plantas crescerem, porque são feitas de água e ar. Ao mesmo tempo são nada e são tudo”, partilhou Ana Jacinto Nunes.

Já Carlos Morais José, admite que a obra começou a crescer, a partir do momento em que passou a “sentir dificuldade em excluir azulejos” e à medida que foi ganhando inspiração para novos textos e poemas, com as ilustrações que iam chegando de mais comedores de nuvens. Para o escritor, apesar de as nuvens terem o condão de “simbolizar muita coisa”, é o facto de representarem a “impermanência” e uma “fronteira em relação ao céu” que lhes confere maior significado. Até porque em Macau há muitos dias em que não é possível ver o céu.

“As nuvens podem simbolizar muita coisa mas, para mim, simbolizam sobretudo a questão da impermanência, ou seja, uma nuvem nunca é igual a si mesma no momento seguinte. É muito fácil ver as nuvens a mudar. Por outro lado, são uma fronteira em relação ao céu. Isto em Macau é muito claro e muito óbvio, sobretudo, quando está tudo nublado e há muitos dias em que (…) não conseguimos ver o céu, precisamente porque há um cobertor de nuvens que nos impede esse acesso ao céu”, partilhou o também director do Hoje Macau.

Ao longo das páginas de “O Comedor de Nuvens” é igualmente abordada a questão da passagem do tempo.
“Quanto tempo dura uma nuvem? Se uma nuvem é uma coisa, um objecto, podemos pensar que todos os objectos têm, no fundo, a mesma duração de uma nuvem e que isso é uma questão de percepção”, acrescentou Carlos Morais José, referindo-se ao texto “Nevoduto”, onde se lê que “Acreditar na permanência de uma nuvem tem o mesmo valor que crer na antiguidade de um rochedo”. “Pedras e nuvens: ambas se desfazem à mesma velocidade”, pode ler-se também no mesmo texto.

Enquanto objecto poético, o escritor considera a nuvem “fascinante” e um elemento “muito rico que nos permite navegar em várias direcções”, dado que possibilita criar objectos “muito belos”, dependendo das “pespectivas” e “pensamentos” de cada um.

“Quando as nuvens se transformam, podemos projectar nelas a nossa imaginação. Vemos animais, palácios, caravanas que passam e tudo aquilo que quisermos projectar nelas”, apontou.

Questão civilizacional

Do ponto de vista cultural, partilha Carlos Morais José, é também “curioso” verificar que o simbolismo atribuído às nuvens pode variar consoante a civilização em causa.

Se na China, os comedores de nuvens são os “homens montanha”, ou seja, “monges que se isolam nas montanhas, alimentando-se de nuvens e bebendo chá de nuvens”, na perspectiva islâmica, por exemplo, “a nuvem é entendida como algo que não nos deixa pensar claramente e que nos impede o acesso ao céu”. Já na mitologia “há deuses que vivem pendurados nas nuvens, olhando cá para baixo (…) rindo-se dos nossos disparates”.

Sobre a obra, Ana Jacinto Nunes considera que os textos da autoria de Carlos Morais José “oferecem uma legenda muito mais rica aos desenhos”, fazendo com que o “casamento” entre azulejos e texto seja “perfeito”. Além disso, o facto de haver textos com formatos diferentes, faz com se aproximem das próprias nuvens.

“Os textos são todos muito bons e gosto especialmente que sejam textos com formatos diferentes, tal como acontece com as nuvens. Considero o texto sobre a Liberdade muito bonito. Há textos para qualquer dia da semana e qualquer minuto”, referiu a artista.

Quanto aos azulejos que podem ser vistos em “O Comedor de Nuvens”, Carlos Morais José afirma que os seus favoritos “são aqueles em que as figuras representadas se desfazem em nuvem” e o “comedor se transforma na coisa comida”.

“Nisso é que a Ana é genial, porque tudo ganha mais sentido quando é visto (…) e experimentado de uma forma totalizante”, acrescentou.

Questionado sobre que expectativas tem para o lançamento de “O Comedor de Nuvens”, Carlos Morais José diz esperar que “as pessoas gostem” e que a obra “seja bem recebida”.

“A parte mais importante é fazer. Se houver um leitor que goste para mim já é suficiente. Se forem dois é excelente, se forem 100 é maravilhoso e mais que isso (…) fantástico”, apontou.

A sessão de apresentação de “O Comedor de Nuvens”, que tem a chancela da editora COD, será conduzida por Sara Augusto na Fundação Rui Cunha. A entrada é livre.

15 Abr 2021

Exposição | Arte feminina em destaque nas Casas-Museu da Taipa 

A Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau promove, na zona das Casas-Museu da Taipa, uma mostra de arte exclusivamente feita no feminino. A exposição, intitulada “Exposição de Arte da Nova Mulher Contemporânea” está patente até ao dia 16 deste mês e revela obras de mulheres naturais de Macau ou que viveram no território, com uma grande aposta na diversidade

 

[dropcap]O[/dropcap] Instituto Cultural (IC), a Fundação Macau e a Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau promovem, até ao dia 16 de Novembro, a “Exposição de Arte da Nova Mulher Contemporânea”, que revela o trabalho de seis mulheres artistas com ligações ao território.

De acordo com uma nota de imprensa, a ideia é mostrar o trabalho de artistas que viveram ou vivem em Macau, como Yang Sio Maan, Angel Chan, Luna Cheong, MJ Lee, Ana Jacinto Nunes e Tchusca Songo. Estas “criam peças de arte com diferentes perspectivas da mulher”, sendo que “as obras foram criadas de diversas formas e são apresentadas no sentido contemporâneo de liberdade, singularidade e inovação”.

Citada pelo mesmo comunicado, Kathine Cheong, curadora e directora artística da exposição, disse esperar que “o público possa prestar mais atenção às similaridades dos géneros dos seres humanos através do tema da exposição deste ano”.

Neste sentido, a temática da mostra é “WM”, “Woman” (Mulher em inglês), mas também representa Macau, adiantou Kathine Cheong. Para a responsável, o território é “uma terra abençoada que combina as culturas chinesa e ocidental e que também cultiva artistas locais e multiculturais”.

“Esperamos poder expressar o lado único dos sentimentos humanos e contar a história e cultura de Macau através de cada obra artística nesta exposição”, acrescentou.

“WM” significa ainda “WE (WO MEN)” em mandarim. “Dentro dos constrangimentos do sistema social e das influências culturais, a maior parte exalta determinadas características de um género humano em particular, ignorando a existência de uma homogeneidade entre homens e mulheres”, aponta a mesma nota.

Assim, esta exposição explora o termo “WE” (Nós), no sentido de promover oportunidades iguais para pessoas de diferentes géneros. Além disso, o termo “MUN” (“WO MUN”) significa “DOOR” (Porta) representando Macau (cujo nome em cantones é Ou Mun), levando a que as artistas participantes possam fazer um intercâmbio de ideias e partilhar as suas inspirações.

Cor branca

A mostra patente nas Casas-Museu da Taipa é dominada pela cor branca, o que mostra ao público presente “um forte sentido de espaço, o que vai de encontro aos trabalhos das artistas e ao tema da exposição”. O local da mostra conta com design de Sueie Zhe, também natural de Macau.

Até ao dia 16 de Novembro os organizadores irão promover uma série de actividades interactivas com o público, como visitas guiadas e workshops, entre outras. Estas iniciativas visam levar o público “a compreender de forma profunda a filosofia e as ideias dos artistas”.

A Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau foi criada em 2017 e reúne mulheres de várias idades e de diferentes campos profissionais. Através da promoção de eventos ligados à cultura e arte, este grupo pretende “promover o desenvolvimento das mulheres a nível psicológico e físico”.

7 Nov 2019

Exposição | Arte feminina em destaque nas Casas-Museu da Taipa 

A Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau promove, na zona das Casas-Museu da Taipa, uma mostra de arte exclusivamente feita no feminino. A exposição, intitulada “Exposição de Arte da Nova Mulher Contemporânea” está patente até ao dia 16 deste mês e revela obras de mulheres naturais de Macau ou que viveram no território, com uma grande aposta na diversidade

 
[dropcap]O[/dropcap] Instituto Cultural (IC), a Fundação Macau e a Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau promovem, até ao dia 16 de Novembro, a “Exposição de Arte da Nova Mulher Contemporânea”, que revela o trabalho de seis mulheres artistas com ligações ao território.
De acordo com uma nota de imprensa, a ideia é mostrar o trabalho de artistas que viveram ou vivem em Macau, como Yang Sio Maan, Angel Chan, Luna Cheong, MJ Lee, Ana Jacinto Nunes e Tchusca Songo. Estas “criam peças de arte com diferentes perspectivas da mulher”, sendo que “as obras foram criadas de diversas formas e são apresentadas no sentido contemporâneo de liberdade, singularidade e inovação”.
Citada pelo mesmo comunicado, Kathine Cheong, curadora e directora artística da exposição, disse esperar que “o público possa prestar mais atenção às similaridades dos géneros dos seres humanos através do tema da exposição deste ano”.
Neste sentido, a temática da mostra é “WM”, “Woman” (Mulher em inglês), mas também representa Macau, adiantou Kathine Cheong. Para a responsável, o território é “uma terra abençoada que combina as culturas chinesa e ocidental e que também cultiva artistas locais e multiculturais”.
“Esperamos poder expressar o lado único dos sentimentos humanos e contar a história e cultura de Macau através de cada obra artística nesta exposição”, acrescentou.
“WM” significa ainda “WE (WO MEN)” em mandarim. “Dentro dos constrangimentos do sistema social e das influências culturais, a maior parte exalta determinadas características de um género humano em particular, ignorando a existência de uma homogeneidade entre homens e mulheres”, aponta a mesma nota.
Assim, esta exposição explora o termo “WE” (Nós), no sentido de promover oportunidades iguais para pessoas de diferentes géneros. Além disso, o termo “MUN” (“WO MUN”) significa “DOOR” (Porta) representando Macau (cujo nome em cantones é Ou Mun), levando a que as artistas participantes possam fazer um intercâmbio de ideias e partilhar as suas inspirações.

Cor branca

A mostra patente nas Casas-Museu da Taipa é dominada pela cor branca, o que mostra ao público presente “um forte sentido de espaço, o que vai de encontro aos trabalhos das artistas e ao tema da exposição”. O local da mostra conta com design de Sueie Zhe, também natural de Macau.
Até ao dia 16 de Novembro os organizadores irão promover uma série de actividades interactivas com o público, como visitas guiadas e workshops, entre outras. Estas iniciativas visam levar o público “a compreender de forma profunda a filosofia e as ideias dos artistas”.
A Associação para o Desenvolvimento da Nova Mulher de Macau foi criada em 2017 e reúne mulheres de várias idades e de diferentes campos profissionais. Através da promoção de eventos ligados à cultura e arte, este grupo pretende “promover o desenvolvimento das mulheres a nível psicológico e físico”.

7 Nov 2019

Casas e ocasos

Rebelva, Carcavelos, 18 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]s ateliers são-me assim como o reverso das telas, modo de espreitar as hesitações, de passear no grande jardim do caos, de tocar as bainhas da beleza. Sinto-me acolhido na confusão, a lareira acesa das ideias, queimando-se na absoluta liberdade, hesitantes ou disparatadas, roupas tocadas por restos das cores, por gestos involuntários, as ferramentas e as matérias postas no seu repouso prestes a. A pretexto do mais que improvável, logo desafiante, projecto da Catarina [Marques da Silva], a emergente galeria Cisterna, encontro-me no meio dos panos e formas da Ana [Jacinto Nunes]. Anuncia-se a chuva nas massas de cinza lá fora, erguendo pano de fundo apropriado para o que por aqui se passa ou guarda. Um rolo pode desdobrar-se em texturas e mistérios. Um recanto pode tornar-se janela para um jardim do Éden. Sobre a mesa podem baloiçar-se uns pássaros do paraíso ou alongar-se uma bailarina. A Ana pratica um desenho que mantém relação líquida com a palavra e o pensamento, desaguando nos mais díspares suportes. Anda em inquietação com os modos da mulher ser contra a gravidade, a paisagem e o tempo, de se fazer corpo no confronto com os bichos da arca atracada ao dilúvio. Admiro a estupefacção dos rostos, as figuras envolvendo o seu próprio movimento, os objectos de assentar. Aliás, vi por ali rostos a fazer de bancos, bailarinas suspensas na parede suportando peso. Trouxe nos olhos uma deusa de duas cabeças, desmultiplicada em olhos e bocas, sentada sobre rosto ecoando águas de cisterna de velha encruzilhada de civilizações, a interpelar-nos, a nós enrolados no tempo, com frescura de seda. «A deusa imaginária/ planeia crimes/ progride o caos.» Assentam bem, os versos finais de Progride o Caos, do Rui André Delídia. Entretanto, chove.

Horta Seca, Lisboa, 18 Dezembro

Escavamos na circunstância e, desfocados dos ritmos alheios, até em título excluindo natal («Às Voltas em Dezembro»), arranjámos maneira de plantar pretexto para mostrar a carne do ano, feita de livros e imagens. A generosidade do mano [José] Anjos suscitou um pouco mais, dispondo-se a tocar enquanto o António [de Castro Caeiro] ou o Pedro [Lamares], o Valério [Romão] ou a Raquel [Serejo Martins] foram dizendo. Surgiu do nada um calor que suspendeu a chuva e permite esperançar outros verões. Leio, do Delídia com delícia, de Em Pó como Antiquíssimas Memórias: «Infinito? Estrada de fogo nocturno?/ silencioso caminho/ por onde se parte para nunca chegar;/ máscara círculo etéreo/ de ódio contra a luz alastra a voz/ na névoa onde as formas se confundem/ contra aranhas e estrelas explodem as palavras.»

Lisboa, 19 Dezembro

Para o estado, o óbito é uma bala expansível, das que em requinte de crueldade se fragmentam e expandem por todo o corpo da vítima. Incontáveis gestos burocráticos minaram os últimos dias da contagem que me importa tão pouco. No seu afã prático, o meu pai resolveu partir de lugar próximo de tantas oficialidades. Não facilita voltar ali para sublinhar a morte com funcionalidades do obrigatório seguir em frente. Depois, no banco, era suposto herdar o seu nome, tal qual, quando há muito me escolheram outro apelido, com desagrado seu, estou certo. Tive que o dizer alto, sem querer: não quero esse nome.

Horta Seca, Lisboa, 20 Dezembro

Comecei por pensar em lâminas, vítima de dramatismo. Passei para golpes de papel, respondendo com optimismo. Nada disso. Alguns dias metamorfoseiam-se em corredores, longos corredores com paredes movediças e uma floresta de mãos. O terror tem raízes no quotidiano mais plano. De pouco serve voltar atrás, mas continuar implica arranhadelas, nódoas negras e, sobretudo, o asco. Não me posso queixar, pois ninguém me obrigou a vir passear para o pântano. Mas custa aguentar, sem qualquer ordem particular, o desdém e a indiferença, a má-fé e a ganância, a volúpia do ataque gratuito e a miséria fria dos pequenos poderes, enfim, o desprezo generalizado. «Corte/ feridas no olhar incurável/ doença aberta/ mapa volátil.» Delídia, de novo.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

«em forma de árvore, a face oculta do mal/ agrava a chama dos jardins, escultura/ aérea. Faca volátil, colecção de mortes,/ ombros, braços contra paredes, raivas privilégios/ nas cabeças dos visionários, aventureiros/ como colares ou pássaros, tigres alfabéticos.» Trata-se de «Uma Ideia Mineral», isto é, um seu fragmento (terceiro). Nem para os editores as memórias se ficam pela espessura do papel. De uma penada perderam-se dois dos que importavam nisto de erguer livros que são vidas. Devo a ambos, além de preciosíssimos títulos para bibliotecas instáveis, conversa solta e o farol de uma ética. Coincidem no acaso desta croniqueta com a animália. Não foi apenas a Salamandra que o Bruno da Ponte (1932-2018) criou, mas nela nos encontrámos, tendo sido prévio leitor da Questões & Alternativas, e partilhando o interesse pela poesia experimental além de recorrente discussão sobre luta armada. Fez-se primeira ilha açoriana conhecida e ainda nos cruzámos na Abril em Maio, maneira de dar nós no tempo, aqui há tempos. Afastado que tenho andado dos sábados e da Anchieta, há muito que não me encontrava com o [Rui] Martiniano (1954-2018), mas a Hiena jamais deixará de me gargalhar ao peito. A boa editora faz-se cruzamento dos vários tempos que se souberam inventar uma literatura a partir dos restos arestas do humano. Um catálogo cometa, resultado de investigação de um particular e partilhado gosto febril. São peças simples e cuidadas, feitas para servir textos indispensáveis e nomes únicos, que brilharão no alfarrábio, como convém. Pássaros que continuam a voar na noite. Acendi, nestes dias, a Luz Negra, do seu lado B, a do poeta Rui André Delídia. Faça-se parágrafos de silêncio.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

Voltámos a consumir a tarde por entre os acordes do [José] Anjos e as palavras de quem se chegou ao microfone. Desta ecoaram inéditos da Rita [Taborda Duarte] e do Ricardo Gil Soeiro, augurando horizontes. A inesperada figura da tarde acabou sendo o Tóssan, de que o Jorge [Silva], além de grande divulgador, se tornou voz. Suscitou mesmo a amorosa participação de vários putos sem medo. Tudo fragmentário, desorganizado, discreto. Aqui e ali surpreendente. Para o fim da tarde, rimando, deu-se a breve e inusitada apresentação de «Caridade Romana», a nova e inclassificável polifonia de José Emílio-Nelson. Pequeno somatório de impossíveis, cruzando momentos de fulgurância poética com confissões ejaculadas nas redes sociais, invocando a erudição das teologias heréticas para as queimar nas fogueiras dos misticismos desregrados e celebratórios do corpo, altar maior. Pensar com espinhos que esfolam, que pedem a paciência dos prazeres estendidos ao limite. Quem arriscará para além do paleio transgressivo? As capas (algures na página) são visões (dobradas) da carne do mergulhador de corpos, António [Gonçalves].

Cova Funda, Lisboa, 28 Dezembro

Fazendo da mesa tantas vezes bússola, saber que o Cova Funda vai fechar agrava a minha desorientação.
Foi ponto de partida e porto de abrigo, lugar de encontro, miradouro de horizontes, plantação de desafios e ideias, casa de família. Construído a partir da mesa. A Ana [Jacinto Nunes] faz das cadeiras um bicho. Soubera eu, e faria da mesa animal doméstico. A mesa é o melhor amigo do humano. Também serviam, no Cova, dos melhores cozidos da cidade, um peixe que o fogo celebrava como carícia, pezinhos de coentrada e outra comida de tacho que soerguia a cova a pontos altos. A companhia importava, mas até o farol precisa ser aceso.

9 Jan 2019