Olhar para dentro

Hoje proponho um exercício desconfortável a quem vai meter um cravo vermelho na lapela e celebrar os 50 anos do 25 de Abril. De que forma honramos a liberdade conquistada com o derrube do fascismo e dignificamos as vidas sacrificadas para levantar o país das trevas?

Atenção, para já não me vou dirigir a eleitores do Chega ou de outros simpatizantes de forças políticas saudosistas do fascismo. Já lá vamos. Em primeiro lugar, convido o leitor a um momento de introspecção antes de celebrarmos o dia em que os portugueses se voltaram a emancipar.

Lanço um cravo e um ramo de oliveira para ultrapassar um imenso abismo que se cavou logo depois da revolução nas forças à esquerda do espectro político. Fomos aliados no derrube do fascismo, mas a nação precisa exorcizar o demónio da aspiração de querer manter o país amarrado a outro tipo de autocracia. Está mais do que na altura de entender a voz do povo expressa nas eleições constituintes de 1975, passou quase meio século desde então. O povo estava saturado de opressão e não queria uma PIDE com outro nome ou a mera reforma dos cárceres onde a divergência política era sinónimo de tortura e se penalizavam crimes de pensamento.

O respeito pela diferença de opinião, pela liberdade para a exprimir e a autonomia para seguir sonhos e ambições são conquistas de Abril que devemos defender intransigentemente. Portanto, olhemos para dentro, sem medo de fazer o exame exaustivo e perceber se temos tumores de fascismo dentro de nós. Porque estes tumores nunca são benignos e exigem extracção imediata.

Não basta meter o cravo na lapela e partilhar uma banalidade qualquer no Facebook, o 25 de Abril não deve ser um mero pretexto para beber um copo. Que acções, políticas, regimes, grupos, personalidades defendemos, ou branqueamos confortavelmente, apesar de contrárias ou asfixiantes do homem livre? Em que instâncias abdicamos da defesa da liberdade? E, por favor, não me venham com a cantilena bafiosa da harmonia e da ordem porque ocorre-me logo o António Ferro. A liberdade é turbulenta por natureza, a pluralidade pressupõe sempre um motim contido (ou não), uma agitação, inquietação e mais inquietação, confronto. Onde reinam o primarismo e a unanimidade não existem homens livres.

Será que temos centelhas de totalitarismo e primarismo em metástase a espalhar pelo corpo? Uma vez erradicados estes tumores estaremos mais apetrechados para lidar com o ressurgimento da extrema-direita.

Pão, tecto e alma

É indiscutível que Portugal não só ganhou em liberdades, como cresceu economicamente, se desamarrou do analfabetismo e criou as bases para sistemas nacionais de saúde e de ensino abrangentes. Foram construídas as fundações do Estado de Direito, aprovada a Constituição e a justiça deixou de estar, pelo menos exclusivamente, ao serviço do poder executivo e da opressão do seu povo.

Mas tudo isto é ténue, frágil e precisa de cuidado constante. Perder a liberdade é muito mais fácil do que conquistá-la.

Para combater este cancro de populismo e da fetichização do totalitarismo precisamos encarar a realidade de que o Chega nasceu no seio do PSD, um partido supostamente social e democrata, já para não dizer social-democrata. Também no antigo CDS militaram e militam fãs de Salazar. Deveríamos estar vacinados para este vírus, mas ele achou terreno fértil para alastrar nos partidos do arco da governação, que agora vêem o chão fugir-lhes debaixo dos pés. A alarvidade é sempre mais apelativa quando assumidamente vil.

Outra questão fundamental é não nos levarmos pelos institutos menos civilizados e mergulharmos na mesma lama antidemocrática negando a existência desta parte enorme do eleitorado nacional. Fazer mártires nunca dá bons resultados.

Temos de assumir que os problemas que a democracia não tem conseguido resolver em termos das suas responsabilidades sociais e éticas. Todos os casos de corrupção que enchem os jornais, são lenha para esta fogueira antidemocrática que tudo quer reduzir a cinzas, e onde pululam seres que são a personificação da corrupção. Mas as forças do arco da governação têm de se reformar, voltarem-se para a sociedade civil e interromper o ciclo de partidarismo que forma políticos que nunca viveram fora do partido. Este ciclo alimenta o Chega, ou quem quiser surfar a onda da frustração popular.

Está na altura de agir, trazer para a luz quem vive no escuro informativo das redes sociais onde a paranoia, xenofobia, violência de Estado e perfídia são resposta para tudo. Não ostracizemos quem é passível de ser salvado do reino da “chaluparia”, nem nos deixemos cair no abismo da clivagem política intransponível, porque aí teremos problemas sérios.

É imperioso combater a desinformação com conhecimento, a violência com compaixão, desmontando mitos e retirando o protagonismo ao Chega e ao seu messias, omnipresentes em tudo o que é televisão do país.

Seguindo a tendência europeia, uma vez fora do poleiro pseudo-denunciador estas forças tendem a perder força porque não têm soluções para nada. São como aquele cão chato que persegue todos os carros que passam na rua. Se um carro parar, o canino sedento de retribuição cega não sabe o que fazer. Fica a salivar indeciso se morde um pneu, o para-choques, ou se dedica a atenção a outro objecto/animal em movimento. No fim, acaba por seguir o seu caminho com o rabo entre as pernas.

Viva a liberdade, viva o 25 de Abril. Sempre!

24 Abr 2024

Direito a desligar (II)

A semana passada, analisámos o direito a desligar (ROD sigla em inglês), que significa o direito dos trabalhadores recusarem responder a mensagens electrónicas enviadas pelos empregadores fora das horas de serviço. Esta forma de comunicação foi implementada durante a pandemia porque muitas pessoas trabalhavam a partir de casa, e era inevitável receberem mensagens deste tipo. Actualmente, embora a pandemia esteja em vias de extinção, a situação manteve-se e os trabalhadores continuam a ter de responder a mensagens em períodos em que já não estão a ser pagos.

Quem esteja a receber e a responder a mensagens fora das horas de serviço está a fazer horas extraordinárias. Se a empresa não as pagar, está a privar os empregados do seu direito de serem compensados pelo trabalho suplementar. Mas se os empregados só trabalharem nas horas de serviço regulamentares, as empresas não podem lidar com situações de emergência que ocorram fora desse horário. Por conseguinte, as empresas e os trabalhadores precisam de encontrar um equilíbrio entre os interesses de cada uma das partes antes de lidarem com estas questões.

A França e a Austrália criaram legislação para regular este assunto. É obrigatório usar a lei para regular as relações entre as empresas e os trabalhadores. No entanto, como as empresas enfrentam situações diferentes, as condições para os trabalhadores aceitarem receber e responder a mensagens electrónicas fora das horas de serviço também variam de caso para caso. Portanto, no presente artigo, vamos analisar métodos alternativos à legislação para resolver o assunto.

A França e a Austrália criaram legislação para conceder o ROD aos trabalhadores. Assim que a lei é aprovada, todos têm de lhe obedecer. Trata-se de uma medida obrigatória. Além das obrigatórias, podem ser usadas outras medidas para conceder o ROD aos trabalhadores? A principal razão para levantar esta questão prende-se com o facto de, numa era de grande avanço da informação, ser impossível pedir às empresas que se abstenham completamente de enviar mensagens de trabalho aos empregados. Contudo, pedir aos funcionários que respondam a mensagens electrónicas de trabalho fora das horas de serviço é uma infracção e um incómodo. Reduzir os conflitos e encontrar um equilíbrio entre os interesses de ambas as partes é a chave da resolução do problema. Mas, acima de tudo, há que salientar que cada empresa e cada funcionário têm situações particulares; uma norma obrigatória igual para todos pode vir a ter outras consequências. Assim sendo, se a empresa conseguir chegar a um acordo com os funcionários e encontrar métodos para lidar com a questão das comunicações electrónicas fora das horas de serviço, de acordo com as suas próprias necessidades, será a melhor forma de resolver o problema.

A Empresa V é disso um exemplo típico, uma empresa muito famosa no mundo dos negócios. Há muito tempo, a empresa havia instituído uma política exigindo que os funcionários não recebessem e-mails de trabalho depois as 22h. A filosofia da empresa é muito simples. Os funcionários que dispõem de um tempo de descanso adequado têm maior probabilidade de se concentrarem e de serem mais eficientes no trabalho. Para atingir este objectivo, as empresas não podem interferir nos períodos de descanso dos trabalhadores. Por isso, a empresa proíbe o envio de e-mails para funcionários que estão fora das horas de trabalho. Naturalmente, temos também de compreender que este tipo de política só pode proteger os direitos e interesses dos trabalhadores que querem usufruir do direito a desligar, mas não pode impedir aqueles que prescindiram desse direito, de trabalhar depois das 22h, nem pode impedir os funcionários com cargos directivos de tratar dos assuntos pendentes da empresa ou de questões urgentes.

É inegável que as empresas que proíbem voluntariamente os funcionários de entrar em contacto com os seus superiores após a saída do trabalho, lhes garantem o tempo de descanso suficiente, e salvaguardam a sua saúde física e mental e a separação entre o trabalho e a vida pessoal. Os funcionários sentir-se-ão certamente bem tratados pela empresa. Mas, acima de tudo, esta decisão é tomada pela direcção da empresa e deve ser seguida por todos os chefes de departamento. Além disso, este tipo de política vai ao encontro da situação operativa real da empresa, e é também a abordagem que lhe é mais adequada. Portanto, esta é a melhor forma de proteger os interesses da empresa e dos trabalhadores e de demonstrar que a entidade patronal se preocupa com os trabalhadores e é uma boa política de ética empresarial.

Na era da informação avançada, parece ser impossível que as empresas não contactem os funcionários através de mensagens electrónicas fora das horas de serviço para tratarem de questões de trabalho. Alguém com um cargo administrativo terá muita dificuldade de evitar horas extra invisíveis, porque essa função implica mais que todas as outras muitas horas de trabalho extra. Claro que, os empregados de nível médio e os empregados júniores, não devem realizar muito trabalho extra invisível. Desde que a sociedade em geral reconheça que o uso de mensagens de trabalho eletrónicas é inevitável, devem ser implementadas leis que regulem esta situação, para garantir que os trabalhadores tenham horas de descanso suficientes.

Como mencionado acima, a melhor forma de lidar com o ROD é chegar a um consenso entre a empresa e os trabalhadores. Como estes casos são frequentes, parece ser inevitável recorrer à legislação para os resolver. No entanto, a legislação adequada deve deixar espaço para as empresas formularem as suas próprias políticas para garantirem que os seus funcionários possam desfrutar do ROD. Esta é uma garantia legislativa abrangente e a melhor solução para empresas e trabalhadores lidarem com o direito ao descanso.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

24 Abr 2024

O que farei eu com esta revolução?

“A paz, o pão
Habitação, saúde e educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o povo produzir”

( Sérgio Godinho)

Ao som desta canção, vou a trote puxada pelos deuses marxistas que me orientam no rumo deste trajecto a que chamo vida. Eles têm nomes, Foucault, Nietzsche, Duchamp, Rimbaud, Borges… e de certa forma são os meus únicos amigos. Arrastam-me pelo mundo, que passa diante dos meus olhos como se fosse um filme. Assim corre a imagem da revolução, a única a que assisti, e pergunto: onde estamos nós, os que andámos pelas ruas a gritar: Só há liberdade a sério quando houver…?

Lá longe, por trás das músicas de intervenção que animaram a minha adolescência final, ecoa o projecto do Manifesto Comunista: “Anda um espectro pela Europa – o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro…”, fantasma que se alojou nas teorias da revolução que ao mesmo tempo são uma vontade de controlar o curso da história, como se esta fosse uma totalidade fácil de manipular. Sigo as palavras de Bragança de Miranda sobre a Constelação, herdada de Benjamin, como um método de pensar o real sem o aprisionar em linhas totalitárias, mas aceitando tudo o que mexe “trazendo à visibilidade as possibilidades e potencialidades inscritas em cada coisa do real”.

E neste real temos claro que seguir a indicação de Bruno, pensar é “especular com imagens” – uma máquina óptica que mostra ou oculta o que está na realidade, como os filmes. As imagens não são extensões da realidade, mas na verdade revelam o processo de construção do pensamento na actualidade. Outro não pode ser o meu. Criamos mundo ao criar imagens. E imagens quando recordamos o que quer que seja.

Lembro-me do que aconteceu naquele dia: a brancura de um relâmpago, tomando as palavras de Natália, invadiu o meu país, libertando-o da escuridão de 48 anos em que se afundara desde 1932 com a coroação fascista de Salazar. O clarão amassou a memória que conservo protegida entre mãos, assegurando que nenhuma ideia de história virá estragar. Na minha recordação aquele dia possui uma narrativa própria, como se se fosse a cena de um conto adaptado num filme: Era uma vez o primeiro dia do resto da tua vida… E conservava a imagem da revolução como se pertencesse a filmes que ao longo dos últimos 50 anos se projectaram perante o meu olhar. A ilusão histórica de controlar aquele momento real, arranjado e rearranjado em cada reviravolta das forças políticas, como se nos fosse exterior, e como se não fossemos nós que fabricássemos o real nas suas diferentes constelações. Gosto de fazer parte daquela comunidade que exortava o povo poeticamente nas ruas do meu país. E agora? Quando penso agora naquele tempo, sinto-me a cair do céu, onde devo ter estado à espera de ser lançada no mundo, e depreendo que como todos o SER, devo ter sido lançada tarde de mais e vou partir cedo demais. É a condição da minha estadia no mundo. Na queda existencial não há tempo para perceber nada. O caos espera-nos. Primeiro imagens, numa prosa que guardo no coração e que se aquietam à procura de se escreveram ou inscreverem onde nada perdura. No fundo o material da revolução, qualquer que seja, fala-me o cérebro, é esse mesmo: cortar o fio à meada e não o enrolar de novo nem para reencontrar o caminho, mas para avançar sem medo até chegar ao touro libertador. A condição revolucionária é ficar perdida no labirinto e dar-lhe um novo sentido no jogo da vida que então se inaugura, trabalhando, agindo, trabalhando, num sonho poético, não burguês. Esta é a imagem linda que se liberta da imagem projectada do grande filme da história que, como sabemos, de nada serve.

Estamos sempre aprisionados na teoria da produtividade geral de Marx, que mostra a imagem do início do revolucionar: o salto humano que o distancia da physis, a força da empiricidade do existente onde tudo gira assim como a “jaula de ferro” poderosa onde a domesticação humana criará um dos seus pecados originais mais potentes: a propriedade privada. E é nesta clareira que se abrem os problemas, como diria Foucault, que impõem novas respostas, como podemos ler também no manifesto de Marx, novas reconfigurações revolucionárias”, entre opressores e oprimidos que nunca mais tiveram fim.

No fundo já era claro em Marx este papel constelar que aparece de cada vez que o homem quer começar de novo. A crise, a urgência, o perigo precisam de respostas. E por um momento, absolutamente poético, o povo unido das revoluções acredita dá-las em conjunto. E por ventura dá. Não sou tão cínica assim. A imagem de uma revolução é assim a de uma reorganização do real, para lá do bem e do mal. Mas isso, creio, as massas que carregam a matéria inflamável para o motor não sabem. São pequenos efeitos, pequenas combinações, pequenas montagens do mundo que tanto podem caber numa obra de Duchamp, como num gesto de Che Guevara.

Mas voltando ao meu quarto de brinquedos interior. Aquele em que só entram os convidados que acreditam na liberdade. E brinco para dar sentido à teia imaginária e tornar mais nítida a figura da revolução, relembrando a imagem de Delacroix da Liberdade Guiando o Povo, numa comoção romântica, percebendo que para falar da memória dita histórica, não há centro mas um vazio pronto a ser preenchido como o olhar, recriando um caminho singular de um programa para sempre conhecido como o Movimento das Forças Armadas. Impossível esquecer o anúncio: Aqui, Comando das Forças Armadas, e a marcha (afinal uma marcha inglesa, mas adiante). Um som ao mesmo tempo constituinte e constituído pela História Recente do meu país.

Quando pensamos a figura Revolução, não podemos ser hegelianos e achar que o todo é a verdade, mas que a história como um todo é uma escrita teológica, uma ficção afinal, que leva Mallarmé a afirmar que o “próprio pensamento do espírito humano institui a ficção “nas condições gerais da experiência humana”, como aponta Rancière. Pois. Agora corro perigosamente sobre esta coisa a que chamamos real e onde as revoluções – como imagem de desejo de uma erótica política e social – surgem. A revolução é desejada por alguns, produzida no real, acrescentado o real. Porque tudo faz parte do real, fragmentos, lances, gestos, imagens… que a desejam e que a repudiam. E tudo isso jaz no acontecimento revolucionário. É uma imagem caleidoscópica de vontades distintas, num momento em parece prevalecer uma, criando uma imagem de intensa unidade revolucionária. Uma constelação que por um momento institui um novo arranjo do mundo social e político naquele lugar. No meu país, no caso do 25 de Abril.

E volto à cena do filme que conservo na minha memória. Faço a montagem dos acontecimentos que doravante me pertencem. Dia 24 de Abril de 1974. Passa das 11horas da noite. Estávamos na sala. Os meus pais ouviam rádio, nós televisão, e não nos escapava o interesse com que as notícias os afectava. E inesperadamente ouvimos a Grândola Vila Morena. Talvez tenhamos ouvido também o Depois do adeus, de Paulo de Carvalho, mas não tinha o mesmo significado e ainda não sabíamos que era a senha para uma revolução. Era noite. O trânsito da Calçada da Estrela aumentava desmedidamente. Abrimos a porta da varanda e, surpresos, vimos uma coluna de camiões militares, carregados de soldados, a descer a calçada. Os meus pais não queriam que nos deixássemos ver pelos soldados. O receio fundamentado de um golpe militar pairava dentro das nossas quatro paredes, desde Portugal e o Futuro escrito pelo General Spínola. E para as gerações mais velhas, eu não passava de uma adolescente, um golpe militar suscitava sempre receio, medo, terror. O som dos veículos pesados aumenta e invade a casa. Parecia que estávamos dentro de um filme. E que a cena estava a ser filmada algures do céu, algures por Montesquieu. Com cuidado fomos ver da varanda da sala.

E o filme continuava, como um manuscrito de milhares e milhões de pessoas. As ideias relacionam-se como as coisas, num método singular em que os conceitos, as acções, as invenções e alegres sugestões funcionam como operadores luminosos guiando-nos num mundo novo. Houve partes imediatamente felizes: de manhã fomos avisados para não ir ao liceu. E o que podia ser um acontecimento medonho, transformou-se no início do ano mais bonito da minha vida. O ano em que me sentiria, talvez pela primeira vez, como cidadã do mundo. Portugal sai de uma noite escura e abre aquele porto onde o velho do Restelo clamou os seus receios e Pessoa ditou a sua sábia Mensagem.

É uma imagem dialéctica, a imagem da revolução possível que emerge de tudo o que é potencial. A revolução é assim uma imagem potente, devastadora e eufórica. Contrariando Benjamin, a mim agrada-me o que fica de influências mágicas, incandescentes, que não se inclinam submissamente perante o racional. Que permitam escrever que no 25 de Abril a poesia saiu à rua.

Nas ruas, nas assembleias de escola, as célebres RGA, nas associações de moradores, eu podia sentir pela primeira vez que intervinha na vida do meu país. Em liberdade e consciência política. Uma poesis delirante mobilizava a juventude e todos os que ansiavam pela liberdade. Tudo parecia possível e à medida dos sonhos acalentados durante 48 anos.

Era o tempo de sonhar, e eu também gritava afinal. Os soldados sempre ao lado do povo de um MFA que me conquistou quase imediatamente, passado o receio de um golpe de estado militarista, que pouco a pouco a pouco foi recuando o seu ímpeto revolucionário e acomodando à paz podre da democracia. Era assim – uma alegria ingénua que se derramava nas ruas ao som de várias palavras de ordem de forças políticas que se iam organizando, de governos provisórios que se sucediam no chamado Verão quente até ao 25 de Novembro de 1975.

A revolução para muitos morria. O espectro do comunismo morria e era a democracia europeia que avançava a todo o vapor Portugal dentro. Era o tempo de sonhar, e eu também gritava afinal. Os soldados sempre ao lado do povo de um MFA que me conquistou quase imediatamente, passado o receio de um golpe de estado militarista, mas que pouco a pouco a pouco foi recuando o seu ímpeto revolucionário e acomodando à paz podre da democracia.

Aquela revolução quase sem sangue derramado, em que como disse Sebastião Salgado o poder popular existia de facto, agonizava aos poucos. As imagens da revolução, discutidas como se pudessem vestir a realidade com um fato completo, esquecem-se que o real é que existe em excesso e convulsivamente com o simbólico, o imaginário e que nos arrasta dentro e fora. O real não tem limites. A nossa vontade pode configurá-lo. Criar uma imagem, desde os mitos às revoluções, projectos de criar um espaço habitável, em condições humanas com o mesmo impulso ditado por Marx: segurança perante um mundo estranho que nos tomba todos os dias na idade da ansiedade, como lembraria Mclhuan.

Como a revolução do 25 de Abril. Não há imagem que a consiga representar na totalidade. Foi uma possibilidade de um povo contra o absolutismo do fascismo. Correu bem e mal, já o disse.

E caímos todos numa sociedade meio esquizóide onde tudo se junta num Maelstrom incoerente. Para ter o bem há-de se conservar o mal, ou vice versa. Os deuses do deserto venceram a parada. O jogo da vida continua. Temos de agir, trabalhar, caminhar para tentar salvar os projectos de esquerda que nos animavam naquele Abril distante. Há os que sabem que naquele dia a constelação da liberdade, da justiça, da democracia, e do estado social ia tomar forma conforme os protagonistas modelavam o real. A esquerda e a direita passaram a governar a retórica do tempo que veio.

Desepero na desilusão de um inferno politiqueriro em que se perdeu quase tudo, gostava de poder conversar com Platão sobre a sua controversa utopia. Era a raiz de mil sonhos ocidentais e já encerrava a perdição dos mesmos. Proibir, censurar, domesticar a liberdade.

E a luta continua! Há aqueles que não desistem e encontram ainda um reflexo de prata no horizonte… Há os que se lembram da fome, do analfabetismo, da inexistência de um serviço nacional de saúde, da censura, do medo, da tristeza social daqueles tempos salazarentos… há os que se lembram dos mortos de uma guerra colonial sem sentido… há os que se lembram daqueles povos que nada tinham de portugueses e que se mantinham colonizados quando toda a Europa os libertava das amarras históricas…

O que é lamentável é que neste projecto democrático, os partidos não se entendam minimamente para consolidar as conquistas de um Estado Social, na fortificação do Serviço Nacional de Saúde e Educação e fim da fome e da pobreza, por uma vez por todas. O que é também uma pena é que o jogo de opressores e oprimidos continue. Que os escravos estejam à disposição do capitalismo selvagem sem sequer saber que são escravos. Que não andem espectros pelo mundo com novos projectos… Por isso, se calhar, prefirei sempre ser anarquista. Na verdade, adoro todos os dias como o 25 de Abril. Todos os dias em que os homens fogem da arké e se apropriam da poesia – que preferiria que nunca se constituísse como poder…

Valeu a pena? Claro que sim! O 25 de Abril será sempre um dia extraordinário que re-arranjou o real, elevando e desatrelando o país de uma continuidade histórica que nos envergonhava e humilhava a todos. O 25 de Abril será sempre o dia em que o regime finalmente terminou a queda da cadeira, iniciada anos antes. O 25 de Abril será sempre o dia em que se fez justiça a todas as censuras literárias, perseguições a estudantes, assassinatos políticos e torturas pela PIDE – será sempre o dia da minha juventude em que a ditadura fascista terminava de vez e que o sol parecia realmente brilhar para todos de igual modo.

Uma revolução é sempre uma amputação do presente. É uma imagem pintada com sangue vivo. Acredito que existem sempre pessoas que são afectadas pela luz da mudança, pela máquina que muda e não pela fábrica que mantém. E às vezes é preciso voar dentro da terra, e com tudo o que ela contém dentro do seu peso. Como o voo dos mortos. Os mortos da minha felicidade.

Com eles, por eles, e com todos os que hão-de vir por acreditarem num mundo melhor, gritarei Unidos venceremos! Os soldados sempre sempre ao lado do povo. Fascismo Nunca Mais! O Povo Unido Jamais Será Vencido! Palavras de ordem que ecoavam pelas ruas e alimentavam a esperança de melhores tempos para Portugal. Um país livre que podia finalmente chorar os mortos da sua felicidade. E na minha ingenuidade de adolescente eu vivi intensamente aqueles dias, um a um, daquele ano, em que pela primeira vez tinha um lugar na política.

Hoje sei, passados 50 anos, que no meu país tratam-nos mal. Abril ainda não se cumpriu – por isso estou tentada a dizer, como o cidadão Kohlaas de Kleist (cito de memória): “num país onde não respeitam os meus direitos eu não quero viver”. e se nos fossemos todos embora? como os enfermeiros e os médicos? o que é que acontecia à cultura portuguesa? Não, por mim falo, eu não desisto, ainda faço parte de pessoas dispostas a lutar para cumprir o SEMPRE de ABRIL!

25 de Abril Sempre, Fascismo nunca mais!

“A opressão é uma ofensa ao ser humano que é naturalmente doado à liberdade”

(Natália Correia)

23 Abr 2024

25 de Abril – 50 anos: Antes de mais, a ética

Foi há 50 anos o 25 de Abril. O dia que marcava o fim de tanta coisa errada e o princípio de tanta coisa certa. O fim da guerra, do atraso, da pobreza, do analfabetismo, do isolamento, da injustiça, da estupidez. Liberdade, Igualdade, Solidariedade. O dia que mudava um país e, sobretudo, mudava as nossas vidas e inaugurava um novo tempo. Um tempo em que se acreditou que era possível. Talvez pela última vez. Um tempo de festa e um tempo de enganos. Ou um tempo de mudança para que tudo conseguisse ficar, mais ou menos, na mesma?

50 anos depois muito melhorou, mas existe uma justiça social por fazer, uma riqueza ansiosa de uma melhor distribuição, um mercado voraz e autofágico a quem ninguém ousa por uma trela.

As questões que o 25 de Abril levantou foram, antes de mais, éticas: somos ou não a favor de uma sociedade mais livre e mais justa, onde todos terão à partida os mesmos direitos e onde mecanismos meritocráticos invalidam o estatuto pela mera posse de bens ou fortuna? Somos ou não por uma sociedade onde todos têm direito aos bens básicos como comida e habitação, educação e saúde, sem distinções e independentemente de origens sociais ou atribulações do destino?

50 anos depois parece-nos ser mais urgente ainda colocar as mesmas questões e ouvir com muito cuidado as respostas. Nada do que nos parecia claro e distinto, em termos éticos e políticos, há 50 anos nos surge hoje sob a mesma luz ou com as mesmas possibilidade de concretização. Os contextos mudaram e nós também. A tecnologia passou a dar cartas nos regimes, controlados pelos mercados, a que chamamos de “democracia” e cujas valências sociais e políticas vemos erodir todos os dias. Estamos num ponto em que existimos sob a temerosa sensação de que tudo pode acontecer.

Talvez agora que assistimos ao regresso farsola de tiques passadistas e ao aparecimento de múmias que, apressadamente, julgámos definitivamente enterradas, seja tempo de melancolicamente nos perguntarmos como chegámos aqui, o que ignorámos, quantas vezes olhámos para o lado, e como podemos (outra vez) resistir. E, sobretudo adquirirmos a consciência de: o que para nós é um registo de farsa, noutros encontra ecos que nos podem levar a uma tragédia.

Os ideais de Abril não alcançam aos 50 anos a sua definitiva maturidade. Pelo contrário, parecem definhar como alguém acometido de precoce doença. Trata-se de uma maleita que está no meio de nós: chama-se indiferença, egoísmo, narcisismo, tiques de uma geração que sonhou mudar o mundo e não foi sequer capaz de se aplanar a si própria, de se manter arreigada aos seus ideais, além de, imersa no frenesim das mudanças, não ter tido a capacidade de passar a sua memória à geração seguinte.

Daí que o Hoje Macau tenha entendido trazer o cinquentenário 25 de Abril para a sua capa, durante esta semana, pela mão e visão de artistas, não somente para celebrar a data mais importante da história contemporânea de Portugal, mas sobretudo como sinal de vida de uma inequívoca resposta às questões éticas que o 25 de Abril levantou, respostas essas que deveríamos ter a coragem de ouvir no interior de cada um de nós.

22 Abr 2024

As tretas de Montenegro

1 – MARCELO COM REMORSOS DE CONSCIÊNCIA

O Presidente da República que aceitou de imediato a demissão de António Costa e que rejeitando uma proposta do antigo primeiro-ministro no sentido de ir para o seu lugar Mário Centeno, visto que o Partido Socialista tinha uma maioria absoluta para governar, é a mesma pessoa que depois de andar absolutamente calado até “colocar” Luís Montenegro em primeiro-ministro, é a mesma pessoa que agora anda cheio de remorsos de consciência relativamente a António Costa ao ponto de vir a público afirmar que seria bom que um português viesse a ocupar o lugar de presidente do Conselho Europeu, referindo-se indirectamente a António Costa.

O Presidente Marcelo sabe bem o mal que fez ao país enquanto não destituiu António Costa apenas com a fobia de colocar lá alguém do seu partido, que por sinal não era Luís Montenegro, mas sim Pedro Passos Coelho. Mas o Presidente da República já anda a falar demais para o que era normal há uns meses. Ao ponto de chegar a afirmar, inacreditavelmente, que Carlos Moedas, o actual presidente da edilidade lisboeta, é uma pessoa indicada para ser candidato a Presidente da República.

Será que o Presidente Marcelo não se dá conta do que já foi dizendo, mesmo em tertúlias de amigos? Começou por desejar Passos Coelho para candidato ao seu lugar. Depois, começou a dar a entender que uma pessoa fundamental para o cargo seria alguém com experiência política como Marques Mendes. E agora, vem falar de Carlos Moedas. Pensamos, muito sinceramente, que Marcelo Rebelo de Sousa ficou imensamente perturbado psicologicamente com o “caso das gémeas”, que na verdade lhe retirou imensa popularidade e que ele sabe bem que andou a meter “cunhas” para a cirurgia das gémeas com um gasto de mais de quatro milhões de euros.

2 – A MODA É DIZER MAL DO BENFICA

O Sport Lisboa e Benfica é uma instituição de prestígio centenário. A equipa tem um treinador com experiência e sapiência invulgares. Mal chegou ao Benfica o clube foi campeão. Depois, um sector da estrutura do clube iniciou uma campanha junto dos adeptos contra Roger Schmidt porque este não dava satisfações profissionais a quem não tinha nada a ver com a prática desportiva da equipa. A partir daí, tem-se acentuado essa campanha contra o treinador ao nível dos mais diversos comentadores de televisão. Ora, Roger Schmidt é um dos melhores treinadores da Europa e sabe o que faz.

Não tem culpa que certos jogadores, influenciados por alguma imprensa desportiva, não pratiquem o futebol que Schmidt ministra no Seixal durante os treinos. Está à vista de toda a gente que existem jogadores que não suam a camisola e que estão constantemente a perder a bola para o adversário, tal como aconteceu no último jogo em França para a Liga Europa. E, isso, é culpa do treinador? Certos adeptos acusam Schmidt de efectuar substituições tardias. Parece mentira.

Essa particularidade, vê-se por esse mundo fora do futebol. Obviamente que o treinador realiza as substituições quando se dá conta que o resultado está a correr negativamente e tudo faz para mudar a situação. Mas não, agora é a campanha total para mandar embora o treinador. Pois bem, os benfiquistas se assim querem, pensem só que têm de entregar ao treinador e à sua equipa técnica mais de 30 milhões de euros, porque o contrato é válido até 2026.

2 – AS TRETAS DE MONTENEGRO

O actual primeiro-ministro, Luís Montenegro, começou a sua participação da pior forma. Em campanha eleitoral e depois de ter sido eleito afirmou a todos os portugueses que o investimento numa descida do IRS atingiria os 1.500 milhões de euros. Nem imaginam a “feira” a que assistimos durante toda a semana passada com os partidos todos a criticar a grande mentira de Montenegro, porque mais de 1.000 milhões já pertenciam ao plano do Orçamento anterior de António Costa. Este novo governo vai apenas investir entre 200 a 300 milhões.

El-rei gritou: embuste! Fraude! Mentira! Propaganda! E que mais epítetos se ouviram por esses canais de rádio e televisão contra a manobra de Montenegro que enganou tudo e todos que o IRS iria ser um bem caído do céu (leia-se AD) para todos os portugueses. O debate extraordinário no Parlamento foi uma vergonha. Nem o primeiro-ministro, nem o ministro das Finanças apareceram no hemiciclo para prestar esclarecimentos sobre o IRS porque andavam a viajar. Ainda nem aqueceram a cadeira dos gabinetes e só pensam na passeata. Até houve um ministro, que sem necessidade nenhuma, foi até Macau. Para quê? Se os portugueses que residem na vossa Região só se sabem queixar que as autoridades portuguesas não ligam nenhuma a Macau…

Montenegro começa muito mal. Escolheu para governante um ministro que tinha participado em grandes cambalachos no fabrico de máscaras clínicas quando Portugal foi atingido pelo vírus Covid 19 e era vice-presidente da Câmara de Cascais, havendo alegadamente as maiores suspeitas de corrupção. Escolheu para governante uma senhora que estava na CP e que saiu para a Autoridade da Mobilidade e Transportes. Duas instituições públicas.

Inexplicavelmente, a senhora ao deixar a CP levou com ela 80 mil euros de indemnização. Por quê? E mais grave ainda, foi para o novo “tacho” com um salário de 13.440 euros mensais. Algo inacreditável. Um pecúlio superior ao Presidente da República, ao presidente da Assembleia da República e ao primeiro-ministro, as três figuras de maior destaque na vida política portuguesa.

O novo primeiro-ministro, aos olhos dos portugueses mentiu, fez propaganda sobre o IRS em campanha eleitoral e na apresentação do Programa do Governo dizendo que o investimento seria de 1.500 milhões de euros. Isto foi grave e ainda se mantém a discussão no Parlamento, onde se tem destacado, diga-se a verdade, quem tem mostrado saber de Finanças a sério, a líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua. Esta deputada já demonstrou por A mais B que a AD mentiu aos portugueses.

22 Abr 2024

O evento diplomático mais importante do ano de 2024

Por Francisco Leandro – Professor Associado da Universidade de Macau

Vai decorrer em Macau, no próximo fim-de-semana, o evento diplomático mais importante do ano: a VI Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Este evento é composto por três momentos, divididos por dois espaços: no dia 21 de Abril, terá lugar o jantar de boas-vindas aos delegados da VI Conferência Ministerial do Fórum Macau, no Centro de Convenções Internacionais, na Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental; no dia 22 de Abril, decorrerá a Cerimónia de Abertura da VI Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa e no dia 23 de Abril, a Conferência dos Empresários entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Estes dois últimos eventos, terão lugar no Salão Nobre do novíssimo Complexo da Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.

São quatro as razões para considerar esta conferência o evento diplomático do ano na RAEM. A primeira, relaciona-se com a consolidação do papel de RAEM no contexto da sua contribuição para os planos nacionais, não só no contexto de “Um País Dois Sistemas”, mas também na política “Um Centro, Uma Plataforma e Uma Base”. O desenvolvimento sustentado e diversificado da RAEM, para além de estar a encaminhar a região para se tornar “Um centro com quatro indústrias nascentes” – “Um Centro” de turismo de nível mundial, facilitando ao mesmo tempo a desenvolvimento de quatro indústrias, nomeadamente: a indústria da saúde de alta qualidade, os serviços financeiros modernos e de nível internacional; as indústrias de alta tecnologia; e a indústria de convenções e exposições – deve estar também atento ao aprofundamento do conceito de Macau como plataforma comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.

A segunda, está associada ao facto de terem decorrido cerca de 8 anos (desde 2016), sem contar com a Conferência Ministerial extraordinária que se realizou online em 2022, desde que os representantes dos 10 estados soberanos, tiveram oportunidade de consolidar laços pessoais e institucionais. Ė, portanto, tempo de estabelecer um plano de acção para os próximos 3 anos, que seja capaz de corresponder ao consenso das diferentes expectativas político-diplomáticas e continuar a valorizar o Fórum Macau, como um bem comum e de interesse público. Um plano de acção estratégica que tenha em conta os novos desafios colocados pelas transformações internas dos 9 países de língua portuguesa, bem como os desenvolvimentos da Grande Baia e da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau, em Hengqin.

A terceira, prende-se com o facto de ser a primeira vez que a delegação da Guiné Equatorial, membro de pleno direito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (desde 2016 na XI Cimeira, em Brasília) e do Fórum Macau (desde 2022), participará ao mais alto nível, alargando o horizonte das possibilidades de cooperação e a visibilidade africana do Fórum Macau.

Finalmente, no momento particularmente tumultuoso da ordem internacional, de um novo dinamismo que a administração do Presidente Lula da Silva veio imprimir às relações Sino-Brasileiras e do recém eleito Governo de Portugal, importa consolidar e alargar a cooperação para o desenvolvimento, num espírito de paz, de modo sustentado, dando passos concretos para que um dia seja possível estabelecer, entre a China e os Países de Língua Portuguesa, uma comunidade de destino partilhado, à semelhança das que a China estabeleceu com o Laos (2019), com a Tailândia (2022), com o Camboja (2023) e com o Quirguistão (2023).

19 Abr 2024

Reforçar o Papel de Macau como Ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa

Reforçar o Papel de Macau como Ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa para a Construção de uma Comunidade com um Futuro Partilhado para a Humanidade
Liu Xianfa*

A 6.ª Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum Macau) terá lugar em Macau, de 21 a 23 de Abril de 2024. Desde a criação do Fórum Macau, há mais de 20 anos, a China e 9 países portugueses continuaram a levar a cooperação em vários sectores a novos níveis, com vantagens significativas em vários aspectos e múltiplos resultados importantes alcançados.

A confiança política mútua foi reforçada e aprofundada. Actualmente, a relação entre a China e os países de língua portuguesa está no seu melhor momento da história. Desde o ano passado, o Presidente Xi Jinping manteve conversações ou reuniões com líderes visitantes dos países de língua portuguesa, incluindo o Presidente Lula do Brasil, o Presidente Lourenço de Angola, o Primeiro-Ministro Xanana de Timor-Leste e o Primeiro-Ministro Maleiane de Moçambique. Foram alcançados importantes consensos sobre o desenvolvimento das relações bilaterais e o aprofundamento da cooperação internacional. A China e os países de língua portuguesa têm sistemas sociais, histórias, culturas e níveis de desenvolvimento diferentes, mas num espírito de respeito mútuo, igualdade e cooperação vantajosa para ambas as partes, sempre se apoiaram mutuamente em questões importantes e lidaram adequadamente com as diferenças, comprometeram em construir uma parceria saudável e estável de longo prazo. Num novo período de intensificação da turbulência e transformação em todo o mundo, tanto a China como os países de língua portuguesa apoiam firmemente a paz e o desenvolvimento e defendem a equidade e a justiça internacionais. Estão unidos na cooperação em áreas de interesse comum para toda a humanidade, como as alterações climáticas, a saúde pública, a prevenção e mitigação de desastres, entre outras. As duas partes trabalharam em conjunto para criar um centro de comunicação sobre prevenção de epidemias em Macau, a fim de melhorar o sistema global de governação da saúde. A China também ajudou a construir estações de monitorização meteorológica marítima e outras instalações para enfrentar catástrofes e alterações climáticas em caso de necessidade nos membros do fórum.

A cooperação económica produziu resultados frutíferos. A Iniciativa Faixa e Rota tem desempenhado um importante papel de liderança na cooperação económica e comercial entre a China e os países de língua portuguesa. Guiados pelos princípios de ampla consulta, contribuição conjunta e benefícios partilhados, os dois lados avançaram na liberalização e facilitação do comércio e do investimento, bem como na cooperação em matéria de conectividade de infra-estruturas e capacidade de produção. A cooperação na agricultura, protecção ambiental, transportes, comunicações, finanças e outras áreas deu frutos. As medidas relevantes para promover a cooperação entre a China e os países de língua portuguesa anunciadas pela China na Quinta Reunião Ministerial do Fórum de Macau foram integralmente implementadas. Em 2023, o valor total dos bens importados e exportados entre a China e os países de língua portuguesa foi de 220,9 mil milhões de dólares, um aumento de quase 90 mil milhões de dólares em comparação com há 10 anos. Desde a sua criação em 2013, o Fundo de Cooperação e Desenvolvimento para a China e os Países de Língua Portuguesa apoiou a implementação de 10 projectos com uma contribuição total de 470 milhões de dólares, levando as empresas chinesas a investir mais de 5 mil milhões de dólares nos países de língua portuguesa. Estes projectos abrangem infra-estruturas, agricultura, finanças, cooperação em capacidade de produção e outras áreas-chave. Projetos de cooperação como o Terminal de Contentores de Paranaguá no Brasil, o Parque Agrícola de Moçambique e equipamentos de transmissão e distribuição de energia e abastecimento de água em Angola, que foram concluídos e colocados em operação, promoveram efetivamente o desenvolvimento econômico local e melhorou a vida das pessoas.

A apreciação mútua entre civilizações alcançou resultados notáveis. Embora a China e os países de língua portuguesa estejam distantes um do outro, há muitos anos que estão envolvidos em intercâmbios interpessoais e na comunicação civilizacional. Na Dinastia Ming, o Navegador Zheng He visitou a Ilha de Timor e o Porto da Beira em Moçambique, escrevendo uma história de intercâmbios pacíficos e cooperação amigável entre chineses e estrangeiros. Tanto a China como os países de língua portuguesa procuram a independência e opõem-se à hegemonia, defendem a procura de um terreno comum, ao mesmo tempo que reservam as diferenças e abraçam a diversidade, e esforçam-se por abrir novos caminhos, ao mesmo tempo que seguem as boas tradições e defendem os princípios fundamentais. O número de turistas chineses que visitam os países de língua portuguesa está a crescer rapidamente. Os dois lados também reforçaram os contactos educacionais e culturais. As línguas portuguesa e chinesa tornaram-se cada vez mais populares nos países uma da outra. A cooperação entre a China e os países de língua portuguesa nos domínios da cultura, arte e turismo continuou a aproximar as pessoas de ambos os lados, aumentando a compreensão mútua e os sentimentos de amizade. No ano passado, Macau acolheu um seminário sobre homogeneidades culturais entre a China e os países de língua portuguesa e um fórum sobre aprendizagem mútua de civilizações entre a China e os países de língua portuguesa. Os especialistas e académicos participantes apoiam fortemente a Iniciativa de Civilização Global apresentada pelo Presidente Xi Jinping, acreditam que o aprofundamento do intercâmbio, a aprendizagem mútua e a inovação entre as civilizações da China e dos países de língua portuguesa é de grande inspiração e significado prático para todos os países que darem as mãos na construção de uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade.

Macau é o primeiro lugar onde as civilizações chinesa e ocidental interagiram e trocaram. É também uma cidade onde a tradição e as civilizações modernas se misturam bem. Este ano assinala-se o 25º aniversário do regresso de Macau à pátria. Hoje, Macau está a aproveitar plenamente as vantagens de “um país, dois sistemas”, implementando plenamente o importante posicionamento de “Um Centro, Uma Plataforma e Uma Base” conferido pelo Governo Central, e aproveitando activamente grandes oportunidades como a Iniciativa Faixa e Rota, a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin. Acredito que Macau, que serve como uma ponte importante para a cooperação entre a China e os países de língua portuguesa e como cidade anfitriã permanente do Fórum Macau, dará maiores contribuições à China e aos países de língua portuguesa que trabalham para construir uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade.

* Comissário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China na Região Administrativa Especial de Macau

19 Abr 2024

O Ocidente dividido

“Make no mistake, the normative authority of the United States of America lies in ruins. The decision to go to war in Iraq, without the explicit backing of a Security Council Resolution, opened up a deep fissure in the West which continues to divide erstwhile allies and to hinder the attempt to develop a coordinated response to the new threats posed by international terrorism”.

The Divided West – Jürgen Habermas

(continuação)

Revela também a perplexidade dos dirigentes israelitas, que não imaginavam que os terroristas palestinianos fossem tecnicamente capazes de uma tal operação. Como disse o general israelita Giora Eiland, a coligação de direita e de ultra-direita no poder prejudicou gravemente a imagem e a credibilidade de Israel ao lançar a represália de dois meses no interior de Gaza, em vez de se limitar a controlar o “Corredor de Filadelfia” (o corredor Filadelfia é uma zona limite entre a Faixa de Gaza e Egipto. Este corredor, de 100 metros de largura e 14 km de comprimento, poderia ser a única via de passagem para centenas de milhares de palestinianos no caso de um grande ataque do exército israelita em Rafah) e isolar a “Faixa” para obrigar o inimigo a render-se, pelo que “Sentimo-nos vítimas do 7 de Outubro, um ataque frio e impiedoso e agora toda a gente nos considera carniceiros”.

Abriu-se um novo capítulo na disputa secular entre judeus e árabes palestinianos. Ninguém sabe nem pode saber onde vai acabar. Depois de se ter afastado a quimera dos dois Estados, uma hipótese que nunca existiu mas que era conveniente para todos, restam três possibilidades, a de um Estado, nenhum ou “cem mil”. No primeiro caso, Israel formalizaria o facto de que, entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, existe apenas um Estado, o seu. O resto são territórios ocupados, corroídos todos os dias pelo impulso dos colonos. É suposto estabelecer-se assim a quota de palestinianos que é tolerável no Estado-nação do povo judeu.

Os restantes terão de emigrar, espontaneamente ou não. A 28 de Janeiro de 2024, realizou-se em Jerusalém uma manifestação festiva, com a presença de doze ministros, para anunciar a recolonização de Gaza. Com um mapa detalhado dos colonatos. O ministro das Comunicações, Shlomo Karhi, criou para a ocasião o conceito de “emigração voluntária imposta”. O resultado de com a acção desencadeada pelo Hamas deve, portanto, consistir num grau de limpeza étnica determinado por meras relações de poder. Os “Estados Zero” seriam, em vez disso, a consequência de um conflito alargado com a Cisjordânia, o Líbano e a Síria, mas também para o Irão e os Estados Unidos com os seus respectivos associados. Sem excluir a utilização da “bomba atómica”.

Todos os conflitos do Médio Oriente seriam perturbados e redesenhados ou ficariam fora do alcance de qualquer entidade estatal. Israel e os “Territórios”, tal como são actualmente, deixariam de existir. Improvável, mas não impossível. Por “cem mil” entende-se a tribalização paroxística que afecta as populações de Israel, profeticamente denunciada pelo antigo Presidente Reuven Rivlin em 2015. Nos meses que antecederam a guerra, multiplicaram-se os projectos de federalização, de cantonização e de parcelizações diversas, talhados a bisturi no espaço exíguo do Estado judaico. Desde os panfletos da Cisjordânia aos de Israel. A homogeneidade étnico-cultural-religiosa determinaria a divisão de territórios considerados heterogéneos. Um gosto pela escultura que sempre animou os projectos de reconfiguração de espaços estreitos e disputados.

Tal como no “Plano Eiland” para Gaza, que na versão de 2008, previa o alargamento da “Faixa de Gaza” a uma fatia do Sinai Egipto em troca de uma parte do Negev (região de Paran) atribuída ao Cairo e 12 por cento da Cisjordânia anexada a Israel. Ou os oito emirados palestinianos entre Gaza e a Cisjordânia, fruto da acrimónia de Mordechai Kedar, antigo oficial dos serviços secretos. A tentativa de resolver o insolúvel convida à auto-destruição. Mas nesta altura a “Caixa de Pandora” já foi aberta. A responsabilidade recai sobre todos os actores envolvidos na região. Deixar às armas a imposição de projectos geopolíticos que serão sempre contestados pelos adversários do momento significa resvalar para a guerra permanente. Potencialmente suicida. Tudo menos uma vitória decisiva. Poder-se-ia estabelecer neste contexto dez dogmas da guerra de Israel contra o Hamas num conflito de longa data que resultou em inúmeras baixas e destruição de ambos os lados em que Primeiro, o Hamas é uma organização terrorista: Um dos dogmas centrais da guerra de Israel contra o Hamas é a rotulagem do grupo como uma organização terrorista. O Hamas tem sido responsável por numerosos actos de terrorismo, incluindo ataques com foguetes contra civis israelitas e a utilização de bombistas suicidas. Este dogma justifica as acções militares de Israel contra o Hamas, enquadrando-as como medidas necessárias para proteger os seus cidadãos da violência.

Segundo, Israel tem o direito à auto-defesa: Outro dogma fundamental da guerra de Israel contra o Hamas é a crença no direito do país à auto-defesa. Israel argumenta que as suas acções militares são necessárias para proteger os seus cidadãos dos ataques do Hamas e de outros grupos militantes da região. Este dogma constitui a base das operações militares de Israel em Gaza, incluindo os ataques aéreos e as incursões terrestres. Terceiro, o Hamas utiliza escudos humanos: Israel acusa o Hamas de utilizar escudos humanos, uma táctica em que os militantes se escondem entre os civis para dissuadir os ataques das forças inimigas. Este dogma é utilizado para justificar o ataque de Israel a áreas civis em Gaza, uma vez que os militares israelitas afirmam que o Hamas está deliberadamente a pôr em risco vidas inocentes ao utilizá-las como escudos. Os críticos argumentam que esta justificação constitui uma violação do direito humanitário internacional, que proíbe o ataque intencional a civis durante um conflito armado.

Quarto, o bloqueio de Gaza é necessário para a segurança: Israel mantém um bloqueio a Gaza, controlando o fluxo de bens e pessoas que entram e saem do território. Este dogma afirma que o bloqueio é necessário para a segurança de Israel, uma vez que restringe o movimento de armas e militantes para Gaza. Os críticos argumentam que o bloqueio é uma forma de punição colectiva contra a população civil de Gaza, uma vez que restringe o acesso a bens e serviços essenciais. Quinto, a solução de dois Estados é a única via para a paz: Muitos apoiantes da guerra de Israel contra o Hamas argumentam que a solução dos dois Estados é o único caminho viável para a paz na região. Este dogma afirma que a criação de um Estado palestiniano ao lado de Israel é a melhor forma de resolver o conflito e de responder às aspirações de ambos os povos. Os críticos argumentam que a solução dos dois Estados já não é viável devido à expansão contínua dos colonatos israelitas na Cisjordânia e à falta de vontade política de ambas as partes para negociar um acordo de paz duradouro.

Sexto, o direito internacional apoia as acções de Israel: Israel afirma que as suas operações militares em Gaza estão em conformidade com o direito internacional, nomeadamente com as leis dos conflitos armados. Este dogma afirma que as acções de Israel são respostas proporcionais e necessárias às ameaças colocadas pelo Hamas e por outros grupos militantes na região. Os críticos argumentam que Israel violou o direito internacional ao visar zonas civis em Gaza, ao utilizar força excessiva e ao ignorar os princípios da distinção e da proporcionalidade. Sétimo, o Hamas rejeita o direito de Israel à existência: Outro dogma central da guerra de Israel contra o Hamas é a rejeição, por parte do grupo, do direito de Israel a existir. O ideário do Hamas apela à destruição de Israel e à criação de um Estado palestiniano no seu lugar. Este dogma é utilizado para justificar as acções militares de Israel contra o Hamas, enquadrando-as como medidas defensivas contra uma ameaça existencial. Os críticos argumentam que a rejeição pelo Hamas do direito de Israel a existir é uma posição política que deve ser abordada através da diplomacia e das negociações, e não da força militar.

Oitavo, o papel dos actores externos no conflito: a guerra de Israel contra o Hamas não é apenas um conflito localizado entre duas partes, mas uma luta geopolítica complexa que envolve múltiplos actores externos. Este dogma reconhece a influência de países como o Irão e o Qatar no apoio ao Hamas e a outros grupos militantes na região. Reconhece também o papel dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais no apoio militar e diplomático a Israel. Este dogma salienta a necessidade de cooperação e empenhamento internacionais para abordar as causas profundas do conflito e promover uma resolução pacífica. Nono, o impacto do conflito na população civil: O actual conflito entre Israel e o Hamas tem tido um impacto devastador na população civil de ambos os lados. Este dogma reconhece o sofrimento e as perdas sofridas por pessoas inocentes apanhadas no fogo cruzado do conflito, incluindo crianças, mulheres e idosos. Sublinha a necessidade de assistência humanitária, de protecção dos civis e de respeito pelos direitos humanos no meio de um conflito armado. Este dogma apela a uma maior atenção às dimensões humanitárias do conflito e a um empenhamento na defesa dos princípios do direito internacional humanitário.

Décimo, a necessidade de diálogo político e de negociação: Apesar da profunda animosidade e desconfiança entre Israel e o Hamas, reconhece-se a necessidade de diálogo político e de negociação para resolver o conflito. Este dogma sublinha a importância da diplomacia, do compromisso e do reconhecimento mútuo na abordagem das causas profundas do conflito e na obtenção de um acordo de paz sustentável. Apela ao reinício das conversações de paz, à implementação de medidas de confiança e ao envolvimento de mediadores externos para facilitar uma resolução pacífica do conflito. Os dogmas da guerra de Israel contra o Hamas reflectem a natureza complexa e multifacetada do conflito em curso entre as duas partes. Embora cada dogma apresente uma perspectiva diferente sobre as causas e as consequências do conflito, todos eles apontam para a necessidade urgente de uma solução abrangente e sustentável para alcançar a paz e a segurança para o povo de Israel e de Gaza. Só através do diálogo, da negociação e de um verdadeiro empenhamento na defesa dos direitos humanos e do direito internacional será possível quebrar o ciclo de violência e alcançar uma paz duradoura na região.

18 Abr 2024

A noite funda do tempo

Sem preces o mundo adormece. Estamos no ciclo mais baixo das alvoradas e dessas madrugadas que trouxeram as boas-novas e que passaram a lendas encantadas face a este escurecer de todas as auroras. Como se chegou tão rápido a esta realidade é questão de maior interesse. Nunca seríamos capazes de abranger num só diálogo coisa tamanha, mas por algum lado devemos começar. E comecemos por este instante todo em ebulição guerreira onde faltam soldados e onde a devassa da opinião atingiu níveis de guerrilha e a mordaça do sentido da vida uma caricatura que fere uma certa noção de humano, e veremos que estamos aqui, silenciados no meio do ruído em modo de espera por uma coisa qualquer que virá calamitosa. Não vem como o chamado ladrão na noite – não, não- todos nós estamos formatados para uma disrupção de nível avançado que nos tirará da jaula do nosso [melhor dos mundos] e nem por isso a nossa atenção se volve pertinente, precisa e urgente. Vamos ficando até a corda partir.

A Guerra é a Guerra. Ponto. Temos toda uma certa componente guerreira inserida nos genes e dela não parecemos sair, nem distantes nos foram ficando as tormentas do sangue assassino da espécie que a matança elegeu como seu mais alta representante, e nesta exorbitância toda feita de razões, pretextos e códigos armamentistas, vamos flutuando como escribas de um duelo eterno. Só que não. Está tudo à beira de um qualquer fim. Basta abrir o tabuleiro de xadrez e passar ali dois dias seguidos para compreender a perfeição do organismo assassino que integrará os vates, valetes, reis e cavalos da parte potestativa do desejo de ação, que nós veremos como a matéria negra engole toda a formatação do jogo, onde, e sempre, as táticas de defesa, perfídia, crueldade, acabam tão menorizadas como o próprio Xeque- Mate. Dois dias a jogar serão dois anos…ou, dois anos jogando a razão cruente de uma extinção certeira.

«O acaso não traz nada de novo, encontra cada um como está» por isso não será de forma abrupta todo este desvincular para um trevoso quaternário onde a memória faltará ao ciclo dos vindouros. Vamos ser desprogramados – grande ” crash”…apagão, apagar… – começar de novo sem a faculdade da memória para bem do ciclo futuro, que desta consciência agreste e difícil não restará nos espelhos aquilo que fora a nossa imagem, creiamos então que todo este fulgor destrutivo será somente o ardil varonil do suposto herói, e que no mais distante dos mundos será finda a insígnia que o segura. Ver para crer? Não se acredita que tenhamos de ver mais do embuste que fora chamado ” evolução” pois que involuímos já com hora marcada para as calendas onde só o Inferno nos nomeia.

Gaza derrubou de vez a esperança na inteligência humana, a Europa fartou-se de pensar e está exangue, o muito que resta do planeta deixará a marca da sua futura vinda global, e mesmo assim, atravessada por transformações abissais que não comportam nenhuma sustentação, que outrora falávamos no fim dos Impérios, mas o Fim dos Fins, nunca foi falado, e Impérios são calendas que o nosso imaginário já nem comporta. Se estamos tristes? Não. Não estamos coisa nenhuma. Estamos a festejar a Batalha de Aljubarrota, o 25 de Abril e o 14 de Julho como se isto tudo fosse uma una e grande Festa. Ao menor sinal de empolgamento dizemos logo em coro: estamos contra a escalada dos conflitos! Há um Napoleão que quer ir para a Rússia armado em Valquíria, e lá vamos fazendo os nossos negócios, mudando os sexos (cansados e irreprodutíveis) escalando ainda mais a montanha da irrelevância. Pode haver um senão, como aquele antídoto da Bruxa da Branca de Neve: e se nos galgarem por cima e o bruxedo se desfizer? Pois bem, encontrarão apenas povos desolados a jogar futebol e a palitar os dentes artificiais. As dentadas nas carnes frescas desses caçadores- recolectores desfizeram-se em estrelas «Michelin» de aldrabices gastronómicas tais, que mais vale morrermos todos. Ai ai ai… que não! Afinal foi este o melhor dos mundos…! Até ao dia em que se tornaria também o mais anacrónico.

E nunca esquecer que o melhor que a Terra tem, os poetas o fundam. Eles desapareceram no meio deste enxame de banditismo escrevente, mas sem eles, também perdemos de vez a única solução.

17 Abr 2024

Direito a desligar (I)

Recentemente, algumas estações de televisão de Hong Kong debateram o ‘direito a desligar’ (ROD sigla em inglês) nos seus programas. O ROD significa o direito dos trabalhadores a recusarem responder a mensagens electrónicas dos seus empregadores fora das horas de serviço. Este direito garante a separação completa entre o trabalho e a vida pessoal e evita que a fronteira entre os dois fique indefinida devido à interferência de mensagens electrónicas fora do horário de serviço.

Nos últimos anos, o debate sobre o ROD tem-se intensificado, especialmente porque muitas empresas implementaram o tele-trabalho durante a pandemia. Trabalhar a partir de casa requer o recurso às comunicações electrónicas. Agora, a pandemia está gradualmente a desaparecer, mas a prática das comunicações electrónicas mantem-se. Por conseguinte, os trabalhadores vêem-se confrontados com ‘o trabalho extra invisível’. O “trabalho extra invisível ” aumenta as horas de serviço. Se o empregador não pagar este tempo de trabalho extra, está basicamente a explorar o assalariado. Além disso, quando os trabalhadores não conseguem separar o trabalho da vida pessoal, passam a sofrer de stress adicional o que tem efeitos negativos quer a nível físico como a nível emocional, bem como nas relações inter-pessoais.

Recentemente, algumas notícias publicadas em Macau assinalavam que a China continental está a considerar incluir o ROD na sua legislação laboral.

O artigo 13 da Lei das Relações de Trabalho de Macau estipula que os empregadores devem ter sistemas de informação e registo das horas de trabalho dos seus funcionários. O artigo 20 estipula que o contrato de trabalho tem de incluir o tempo de deslocação e o horário normal de trabalho do funcionário; o artigo 33 estipula que o horário normal de trabalho não pode exceder as 8 horas diárias e as 48 horas semanais. O artigo 36 estipula que o empregador tem de ter o consentimento do funcionário se quiser que ele faça horas extraordinárias.

Embora estes artigos não afirmem explicitamente que os empregados têm o ROD, quando as pessoas estão a responder a mensagens electrónicas fora do seu horário de trabalho, estão a fazer horas extraordinárias. Se o empregador não obteve o consentimento do trabalhador nesse sentido, este tem o direito de se recusar a responder. Daqui se depreende que os trabalhadores têm o ROD desde que não tenham aceitado fazer horas extraordinárias.

Hong Kong ainda não implementou o ROD e os trabalhadores ainda têm de lidar com o problema das comunicações electrónicas fora das horas de serviço. Uma organização de Hong Kong conduziu um inquérito em 2018 e apurou que 93.5 por cento dos questionados afirmaram ter recebido mensagens electrónicas fora do horário de trabalho. Cerca de 80 por cento afirmavam sentir-se incomodados, cerca de 60 por cento afirmavam que isso teve um impacto negativo na sua vida privada e cerca de 90 por cento concordaram que o ROD devia ser implementado para proteger o direito dos trabalhadores “ao sossego”’.

A França implementou o ROD em 2017, uma resposta legal ao impacto das tecnologias avançadas na saúde física e mental dos trabalhadores.

A lei francesa indica que deve haver negociações colectivas entre empregadores e empregados sobre esta matéria. Na ausência de uma negociação colectiva, os empregadores devem estabelecer directrizes e têm o dever de lembrar os trabalhadores do seu “direito a desligar”. A lei também estipula que os empregadores que não estabelecem directrizes não serão punidos, mas em caso de conflitos laborais, o tribunal irá considerar se a empresa estabeleceu ou não essas directrizes.

A Austrália está a preparar-se para legislar de forma a conferir o “direito a desligar” aos trabalhadores e garantir que não ficarão sujeitos a “contactos poucos razoáveis” fora das horas de serviço. O âmbito de aplicação da nova lei destina-se a regular os contactos de serviço com os empregados fora do horário de trabalho. Os factores abaixo indicados devem ser considerados para determinar se um contacto é ou não razoável.

(1) Natureza e urgência do motivo do contacto,

(2) Método de contacto (por exemplo, as chamadas telefónicas podem ser mais intrusivas do que os e-mails),

(3) O horário normal do funcionário e se é ou não pago pelas horas adicionais fora do local de trabalho,

(4) Responsabilidade e posição dos colaboradores na empresa,

(5) Situação pessoal do trabalhador. “Por exemplo, pode ser razoável uma empresa esperar que os gestores de topo respondam a e-mails urgentes após o horário de trabalho, mas a mesma situação não se aplica necessariamente aos executivos juniores.”

A nova legislação australiana centra-se no contacto fora do horário de trabalho. O âmbito de aplicação da legislação não se limita às mensagens de trabalho electrónicas. Espera-se que a nova legislação reduza o número de contactos desnecessários entre empresas e trabalhadores após o horário do trabalho e que reforce a protecção do direito dos trabalhadores ao descanso.

Continuaremos esta análise na próxima semana.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

16 Abr 2024

Até parece que Passos Coelho aderiu ao Chega

1 MARCELO JÁ ABRIU O ESPUMANTE o Presidente da República parece outra pessoa. Agora, anda de escola em escola a dar lições a miudagem que não entende metade do que diz. O seu contentamento diz respeito à garrafa de espumante que já abriu para celebrar a cabala que chefiou para destruir a carreira de António Costa, que na condição de primeiro-ministro começou a enfrentar Marcelo Rebelo de Sousa dando-lhe a entender que Portugal não tinha um governo presidencialista. Marcelo montou um golpe palaciano com a sua amiga procuradora-Geral da República que levou à demissão de António Costa. Marcelo não aceitou um governo de maioria absoluta chefiado por Mário Centeno. Marcelo tinha o objectivo de colocar Luís Montenegro, líder do seu partido (PSD) na chefia de um novo governo que resultasse de eleições antecipadas e assim, conseguiu todos os seus intentos. Anda de vento em popa regozijado ao ver o seu pupilo Montenegro a chefiar o novo governo.

2 PORTUGAL TEM NOVO GOVERNO Luís Montenegro respirou de alívio na semana passada ao ver as moções de rejeição do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda rejeitadas no Parlamento. O novo primeiro-ministro tem prometido este mundo e o outro aos portugueses. Acontece que ninguém sabe onde irá Montenegro buscar os milhares de milhões de euros que diz ir gastar para beneficiar o nível de vida dos portugueses. Um novo governo que recebeu no primeiro debate na Assembleia da República sobre o Programa do Governo as maiores críticas da extrema-direita à extrema-esquerda. Aliás, refira-se, que os tão badalados casos na governação anterior socialista já começaram a fragilizar o governo de Montenegro que nem ainda aqueceu a cadeira. Veio a lume um caso muito grave: as suspeitas de ilegalidades e respectivas buscas na Câmara Municipal de Cascais, visando o actual ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, ex-vice-presidente da edilidade de Cascais e que alegadamente negociou com chineses o terreno e a fabricação de milhares de máscaras clínicas do tempo da pandemia, um negócio de milhões de euros.
No entanto, a maioria dos analistas é unânime em não acreditar que este novo governo consiga durar mais de seis meses, inclusivamente porque no passado sábado rebentou uma “bomba” de Montenegro ter mentido aos portugueses sobre o IRS.

3 PARTIDO SOCIALISTA DESCONTENTOU OS SEUS SIMPATIZANTES Pedro Nuno Santos à frente do Partido Socialista deixou o desalento total em muitos dos portugueses que votaram no seu partido. No debate da Assembleia da República sobre o Programa do Governo o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda apresentaram moções de rejeição ao governo de Montenegro. Recorde-se que Pedro Nuno Santos foi o principal negociador e apoiante da chamada geringonça que fez governação com a unidade entre o Partido Socialista, os comunistas e bloquistas. Qual não foi o espanto de milhares de eleitores socialistas ao verem a bancada parlamentar socialista a abster-se na votação das moções de rejeição. Afinal, que Pedro Nuno Santos é este? Um novo político? Que pretende dizer que o seu papel político é de oposição ao governo de Montenegro e depois tudo faz para que o Governo continue nos melhores carris? Os socialistas têm que definir claramente se estão ou não contra a existência deste novo governo apoiado pela extrema-direita.

4 PASSOS COELHO ATÉ PARECE QUE É DO CHEGA o ex-primeiro-ministro do PSD, Pedro Passos Coelho apresentou na semana que findou um livro sob o título “Identidade e Família”. Nem o queiram ler. É possivelmente a página mais negra de um homem que veio da Juventude Social-Democrata, chegou a líder do PSD e a chefe do Executivo. A obra possui matéria inacreditável. Antes de mais, dizer-vos que na apresentação do livro não esteve presente ninguém do PSD. Só se viam caras do CDS e do Chega. A obra de Passos Coelho apela a uma “família natural”. O que será isso? Famílias há muitas e de todos os tipos. Passos Coelho que tanto tem mencionado Sá Carneiro, deve ter-se esquecido com quem vivia o líder do PPD. Passos Coelho discorda com o aborto, com a homossexualidade, e neste particular, observamos a maior contradição quando Passos Coelho teve sempre no seu partido e agora em ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, que se assumiu como homossexual. Passos Coelho não apoia a entrada de imigrantes vindos de África e de outras paragens, esquecendo-se, vergonhosamente, que foi casado com uma senhora de origem africana e tem filhas mulatas. Passos Coelho apresenta no livro as mais diversas teses retrógradas e racistas provocando que o partido da extrema-direita, o Chega, populista, xenófobo e racista, tenha ficado tão agradado com a obra “literária” que logo anunciou que desejava e apoiaria uma candidatura de Passos Coelho para Presidente da República.

Este país, está a caminhar para um abismo. Ninguém faz ideia da profundidade do abismo nem a data em que será a queda. O que se sabe é que estamos sem políticos do nível de Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Aparecem meninos de coro dos mais variantes quadrantes que logo passam a secretários de Estado ou a deputados. Sem experiência e sapiência políticas. Sem a mínima noção do país real, onde milhares de portugueses passam fome e dormem na rua. Governar um país não é só passar a ter um Mercedes e um motorista…

15 Abr 2024

Sexo: o segredo para a longevidade dos Abcázios?

A Abcázia é um território com uma história de disputa ainda hoje. Após a queda da União Soviética, o território que fica entre o mar negro e as montanhas do Cáucaso, acolhe uma minoria étnica que tem sido alvo de alguma tensão territorial e política. Já foi considerada parcialmente independente, mas vive entre a dependência económica da Rússia e a soberania governativa da Georgia.

Trago-vos, contudo, uma outra visão da Abcázia. Uma que foi popularizada especialmente nos anos 70 pelos EUA. Várias reportagens na época incidiram sobre um facto surpreendente: a quantidade de centenários na sua população. Muitos foram visitar aquele que parecia ser o lugar onde estaria o segredo da longevidade. O New York Times escreveu um texto extensíssimo em 1971 sobre os mistérios destes homens e mulheres que pareciam querer fintar a morte.

Os depoimentos destes centenários são maravilhosos. Quando questionados sobre a sua longevidade, os Abcázios diziam que era por causa do seu trabalho, dos seus hábitos alimentares e por causa da sua vida sexual. A vida sexual mantinha-se ativa muito para além dos 80 anos de idade.

O trabalho dos Abcázios era exigente, com o ar fresco da montanha a abrir-lhe os pulmões. Eles pareciam ter energia e capacidade atlética muito mais vigorosas que muitos citadinos amantes de ginásio. O trabalho era duro, a inclinação montanhosa visível. A alimentação, pasmem-se, era rica em vegetais, cereais integrais e alimentos fermentados, como iogurte e vegetais em pickles. A carne não era consumida diariamente, e peixe não era consumido de todo. O sexo, apesar de se reger por tradições patriarcais, como a recusa completa da mulher que não é virgem na noite do casamento, era vivido entre quatro paredes de forma bastante livre e prazerosa. Na descrição dos etnógrafos que lá estiveram e interagiram havia uma total ausência de culpa. Algo impensável pelos observadores americanos da época.

Também havia uma característica importante desta sociedade que, apesar de tudo, não eram apologistas de demonstração pública de afeto. Havia uma integração visível das pessoas mais velhas na sociedade. Não eram postas de lado nem ostracizadas. Muitos casavam-se aos 80 chegando a viver a sua paternidade nessa altura. Para além do respeito que a sociedade lhes nutria, as pessoas não eram “velhas”, eram pessoas que “viviam muito”. E todos tinham como contribuir para o bem comum da comunidade. Os mais velhos talvez trabalhassem menos, mas continuavam a trabalhar, nem que fosse a limpar ervas daninhas. Para eles, o descanso só fazia sentido para o corpo quando havia trabalho. Da mesma forma que só se trabalhava quando havia descanso.

Parece-me que eles conseguiam encontrar um equilíbrio bem mais interessante do que as sociedades de cansaço de hoje. Uma equipa de médicos da União Soviética registou a baixa prevalência das doenças clássicas destes que vivem muito, como a osteoporose, artrite, cancro ou demências.

Claro que as máquinas propagandistas da época tiveram todo o intuito de promover a mitologia da longevidade. Ora para estimular o consumo de iogurte nos EUA, ora para comprovar a estamina soviética, ao fazer querer que um Abcázio terá chegado aos 165 anos. Fizeram-no uma espécie de herói nacional, com direito a selo comemorativo. Contudo, ainda permanecem dúvidas se alguns destes jovens chegaram para além dos 120.

Quis saber como estão os Abcázios atualmente e já pouco se fala deles. A minha descrição no pretérito perfeito tinha uma razão de ser. Não encontro informação se continuam a ganhar na percentagem de centenários, nem informação relativa aos seus estilos de vida, organização social e vidas sexuais. Será que ainda mantêm os hábitos? Já passaram por conflitos armados e outras vicissitudes sociais e políticas, seria relevante perceber se as pessoas que vivem muito se mantém distantes ou simplesmente imunes ao estilo de vida moderno.

De tudo do que aprendi dos Abcázios, foi o reconhecimento do sexo na longevidade que mais me surpreendeu. Apesar de cientificamente a longevidade ser uma experiência multifatorial, os Abcázios lá tinham as suas teorias vividas. E para eles havia um reconhecimento e integração do prazer na vida em casal e em sociedade. Podiam ter vidas humildes e de grande trabalho tal como a vida rural vos sugere, mantendo os corpos fortes e tonificados, mas também se experienciava prazer e também se descansava. E se esse equilíbrio não é a melhor fórmula para uma vida longa e bem-vivida, não sei o que será.

12 Abr 2024

O Ocidente dividido

“Make no mistake, the normative authority of the United States of America lies in ruins. The decision to go to war in Iraq, without the explicit backing of a Security Council Resolution, opened up a deep fissure in the West which continues to divide erstwhile allies and to hinder the attempt to develop a coordinated response to the new threats posed by international terrorism”.
The Divided West
Jürgen Habermas

 

O ataque do Hamas a Israel a 7 de Outubro de 2024 não deriva da invasão da Rússia à Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. Confirma que a introversão americana solicita as ameaças que o caos representa para o Ocidente dividido e as oportunidades de quem usa o caos para se expandir. É o caso do Irão. A dimensão estratégica do “pogrom” do Hamas no interior do Estado judaico desafia a disputa Irão-Estados Unidos-Israel. O jogo dá-se no “Grande Oriente Médio”. Este estende-se desde a intersecção do Mar Negro, do Mar Cáspio e do Cáucaso, da encruzilhada do império russo, turco e persa, para leste até ao Paquistão e ao Afeganistão, para oeste através dos estreitos do Suez, de Babelmândebe e de Ormuz.

O Sul da Europa, atento ao seu próprio destino, verá ameaçados os seus interesses (um Mar Mediterrâneo livre e aberto), (evitar uma colisão com o caos) e (estabilização dos vizinhos estrangeiros). Confirmando a urgência de estabilização dos vizinhos estrangeiros (Euroquad), o núcleo ocidental do Mar Mediterrâneo, o menor denominador comum para se afirmar na luta em expansão descontrolada. O futuro da zona, pois falar de região é não perceber o seu interior, depende do resultado do confronto entre o par Estados Unidos-Israel e o Irão, que se apoiam em clientes seleccionados. O objectivo americano e israelita é conter a expansão do império russo e proibir-lhe por todos os meios o acesso à “bomba atómica”.

O sonho iraniano é obrigar os Estados Unidos a recuar para a linha Egipto-Chipre e isolar Israel. Não destruí-lo, pois é o inimigo perfeito, útil para legitimar o “eixo de resistência”, o suporte da sua esfera de influência entre o Afeganistão Ocidental e o Oriente, com clientes árabes xiitas e sunitas. Entretanto, a Turquia afirma o seu peso decisivo, pronta a lançá-lo sobre este ou aquele prato da balança, enquanto os sauditas e os petromonarcas do Golfo se adaptam a qualquer acto de equilíbrio para não serem esmagados por concorrentes superiores. A Rússia aproveita a “distracção” americana, que deixa a Ucrânia numa situação desesperada.

A China, que, ao contrário da América, extrai da região recursos energéticos essenciais e aí desenvolve os portos de escala das “Rotas Marítimas da Seda”, ostenta uma ligeira honestidade, treinando os seus músculos diplomáticos com vista a um possível futuro hegemónico.

No Médio Oriente, Washington encontra-se, portanto, na encruzilhada clássica, a de encurtar as frentes, retirando-se entretanto do Iraque e da Síria, onde é um alvo fácil para as milícias pró-Irão, correndo o risco de agravar a crise em Israel, facilitar o castigo da Rússia e a influência da China. Ou reentrar nela em estilo feroz, admitindo o fracasso do desengajamento gradual disfarçado com o paradoxo de “liderar por trás”, postulado após os desastres da “guerra contra o terrorismo” no Afeganistão e no Iraque.

Nesse caso, a sobre extensão das estrelas e das riscas revelar-se-ia monstruosa, pois a guerra quente com a Rússia, morna a ferver contra o Irão, fria mas decisiva contra a China para não falar da Coreia do Norte. Compromissos de intensidade militar inversamente proporcionais às vagas prioridades estratégicas actuais de Washington. Enquanto a única fronteira que realmente interessa à opinião pública americana é a do “Vale do Rio Grande”, onde talvez se decida a corrida para a Casa Branca. Como se isso não bastasse, o eixo com Israel está rachado.

Em aparência, porque Biden considera Netanyahu um inimigo pessoal em casa como se fosse um dos líderes do Partido Republicano, bem como o primeiro-ministro mais desastroso da história do Estado judaico. No fundo, isso provoca uma clivagem entre as estratégias e as tácticas de um casal em crise de nervos. Washington tinha a ilusão de poder gerir o Médio Oriente à distância, contando com o entendimento entre Israel, parente e não aliado e o Golfo liderado pelos sauditas, serpentes e não parentes.

O ataque do Hamas a Israel e a reacção de Jerusalém, surda aos apelos da administração americana de “não repetir os nossos erros”, ou seja, nada de “guerra contra o terrorismo”, quebraram a confiança e como resultado, mais desordem na “Terra do Caos”. O único grande Estado da região que parece ter sido poupado à ofensiva da desintegração é a Turquia. Todos os outros, incluindo o Irão e Israel, lutam pela sobrevivência. Uma roleta russa mortal, com Ancara a ser a porta giratória entre as entropias ucranianas e do Médio Oriente que se alimentam mutuamente. O Sul da Europa conta muito pouco num espaço que já o viu importante no início do século XX, e depois também durante a Guerra Fria.

Será um caso de reaprender algumas lições esquecidas dos nossos antepassados levantinos, capazes de tecer relações oblíquas com potências locais, mais ou menos otomanas. Por exemplo, a economia e o comércio não valem por si, mas são meios necessários para ganhar peso geopolítico, que por sua vez abre novos mercados. O objectivo estratégico é contribuir para evitar o choque de civilizações entre o Ocidente e o Oriente, do qual nós europeus seríamos uma das primeiras vítimas. Neste caso, estamos ao lado dos Estados Unidos e de Israel, mas, juntamente com muitos outros, sabemos que uma guerra potencialmente atómica contra o Irão incendiaria o nosso quintal.

E tornaria intransitáveis as águas que nos abrem as rotas oceânicas. A crise do Mar Vermelho, com os Hutis a bloquearem selectivamente o tráfego ao longo do corredor Suez- Babelmândebe e vice-versa, é uma proclamação moderada do que aconteceria em caso de guerra total na região. Seria equivalente a um bloqueio naval. Um desastre a ser evitado com a ajuda de amigos e aliados clássicos. E menos clássicos, como os turcos. Nem que seja pelo facto de serem activos e ambiciosos em toda a nossa vizinhança externa, da Tripolitana aos Balcãs do Adriático, passando pelo Oriente e pelos centros do Mar Mediterrâneo. Que desce do Adriático e do Jónico em direcção ao sul, com a parte ocidental plantada na antiga Líbia e a oriental entre o Suez, Israel e o Oriente. Pontos fulcrais do sistema em que se situa o centro da Europa do Sul e que dão sentido e enfoque ao projeto euro-mediterrânico.

Em Israel, com outros europeus, para além do interesse geopolítico, existe uma responsabilidade histórica para com o Estado judaico que fala muito mal dos sul europeus. A esta realidade afastada ou, pior ainda, algebricamente ritualizada, junta-se a maldade oferecida aos palestinianos sob ocupação, que disputam com os israelitas um espaço que ambos sentem como seu. Até 7 de Outubro de 2023, havia um acordo não escrito entre os dirigentes israelitas e palestinianos segundo o qual ninguém tentaria solucionar um problema que só poderia ser resolvido através da aniquilação de um ou de outro povo. Ou de ambos. A simetria entre o poder de Israel e a fraqueza dos palestinianos divididos e sem Estado deixava a Jerusalém uma margem de manobra muito grande para interpretar esta limitação, expandindo entretanto as colónias na Judeia e na Samaria (Cisjordânia).

E a subcontratação de Gaza aos Hamas, regulando a entrada de dinheiro do Qatar para manter a sobrevivência precária da “Faixa”. No entanto, continua separada da Cisjordânia, aproximada ao fantasma da “Autoridade Nacional Palestiniana”, portanto controlada por Israel. Com o 7 de Outubro de 2023, este equilíbrio foi quebrado. E a ânsia de uma vitória decisiva, palavra de ordem dos estrategas israelitas, ressoa.

Não sabemos até que ponto o Hamas, ou melhor, a sua ala militar, tinha sofrido as consequências do ataque aos “kibutzim” e aos postos militares israelitas em torno da “Faixa”. Mas a ferocidade desse massacre totalmente falhado produziu um tal choque em Israel que este recaiu na armadilha de Gaza, da qual se tinha emancipado em 2005, pensando sufocar a questão palestiniana sob uma eterna borbulha. Irritado com os avisos dos americanos e de uma parte da cúpula militar, Netanyahu desencadeou o castigo colectivo dos habitantes de Gaza, comparados ao Hamas, apelidados de “animais humanos” pelo ministro da Defesa Yoav Gallant. (continua)

11 Abr 2024

As Nações Unidas, a Meteorologia, o Esperanto e a Língua Portuguesa

Muito se tem comentado sobre a ineficácia da Organização das Nações Unidas na resolução de conflitos internacionais. Na realidade, há fortes razões para tal, e um exemplo flagrante consiste no contexto internacional atual, em que, mercê do uso indiscriminado do direito de veto por parte de alguns membros do Conselho de Segurança, se impede a resolução de conflitos em curso.

A ONU é a organização internacional mais abrangente à escala global. Não atua apenas no campo político, desenvolvendo também forte atividade em várias áreas, através de agências especializadas, nomeadamente nos campos da meteorologia, clima e hidrologia (Organização Mundial de Meteorologia – OMM); alimentação e agricultura (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO); aviação (Organização Internacional da Aviação Civil – OACI); trabalho (Organização Internacional do Trabalho – OIT), telecomunicações (União Internacional de Telecomunicações – UIT), educação, ciência e cultura (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO), etc.

Além das agências especializadas estão também associadas à ONU diversos fundos e programas, entre os quais sobressaem o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (United Nations Environment Programme – UNEP). Sob os auspícios da OMM e do UNEP foi criado o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), órgão que trata da monitorização das alterações climáticas.

Tal como sucede todos os anos, em 23 de março foi comemorado o Dia Meteorológico Mundial pelos estados e territórios-membros de uma destas agências, a Organização Meteorológica Mundial, cuja convenção entrou em vigor nesta data, em 1950.

O Dia Meteorológico Mundial é celebrado em 23 de março

Macau é território membro da OMM desde 1996, mercê de diligências conjuntas da China e de Portugal. Algo de semelhante havia ocorrido com Hong Kong, que aderiu à OMM desde a sua criação. Após a passagem das administrações portuguesa e britânica para a China, ambas as regiões mantiveram o estatuto de território-membro, o que faz com que a China, em situações importantes da vida da OMM, como na eleição do Secretário-Geral, tenha direito a três votos, na medida em que a Região Administrativa Especial de Macau e a Região Administrativa Especial de Hong Kong dificilmente votariam de forma divergente da mãe-pátria.

A atividade da ONU através dos vários programas e agências é altamente meritória, mas, o facto de falhar estrondosamente na resolução de conflitos, tem feito com que se tenha gerado um certo consenso de que esta organização necessita de reestruturação. O próprio Secretário-Geral, António Guterres, tem insistido neste aspeto. Se tal pretensão se vier a concretizar, seria de toda a conveniência que os países de língua oficial portuguesa insistissem na necessidade de o português vir a ser uma das línguas oficiais da ONU, as quais são atualmente: árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo.

No entanto, nem sempre foi assim. Quando a ONU foi criada, em 1945, o árabe não fazia parte deste grupo de línguas. Apenas foi aceite em 1973, devido à pressão exercida pelos países árabes. Os países de língua portuguesa poderiam ter diligenciado nessa altura no sentido de o português ser também admitido. Antes de 1974, Portugal não gozava de grande prestígio internacional e era alvo de ostracismo por grande parte dos países membros da ONU. A vigência de uma ditadura e as políticas colonial e do “orgulhosamente sós” impediam o nosso país de ter voz ativa no que se refere à possibilidade de a língua portuguesa também vir a ser adotada. Nessa altura também o Brasil era governado por uma ditadura, que perdurou de 1964 a 1985.

Entretanto, com o advento da democracia, foram efetuadas algumas tentativas nesse sentido, mas esbarraram sempre com a falta de consenso por parte dos membros da ONU. Curiosamente, em alguns congressos da OMM, Portugal foi parcialmente bem-sucedido, tendo sido criado um fundo para que a língua portuguesa alcançasse o estatuto de língua de trabalho, para o qual houve contribuição financeira de alguns estados-membros além do nosso país, nomeadamente Angola, Brasil e a Região Administrativa Especial de Macau.

Quaisquer que tenham sido os critérios de seleção das línguas oficiais, a realidade é que estão desatualizados, na medida em que, em termos de comunicação internacional e número de falantes, o português é muito mais difundido do que uma das atuais línguas oficiais da ONU. Enquanto o russo é língua oficial em apenas cinco países (Bielorrússia, Cazaquistão, Federação Russa, Quirguistão e Tajiquistão), cujo número de habitantes perfaz, no total, cerca de 190,5 milhões, o português é língua oficial de nove países (Angola, Cabo Verde, Brasil, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste) num total de, aproximadamente, 285,6 milhões. É também língua oficial de uma região da China, a RAEM.
Houve alguns esforços diplomáticos por parte dos governos dos países de língua portuguesa, mas não tiveram sucesso. Seria necessário continuar a insistir, dado que já foram dados alguns passos. Assim, por exemplo, foi decidido pela 40ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 2019, proclamar o dia 5 de maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa (World Portuguese Language Day).

Como organização abrangente à escala mundial, seria racional que a ONU tivesse adotado uma língua oficial neutra de fácil aprendizagem, o que asseguraria uma maior participação de todos os estados-membros, bem como uma maior eficácia nas discussões. O esperanto (que nesta língua significa “aquele que tem esperança”) poderia ter desempenhado esse papel.

Ainda houve tentativas nesse sentido, nomeadamente por meio de uma resolução da Conferência Geral da UNESCO de 1954 (Resolução IV.4.422-4224), conhecida como Resolução de Montevideu, em que se preconizava a adoção do esperanto como língua internacional auxiliar. Em 1985, esta agência especializada da ONU aprovou outra resolução, recomendando que os seus estados-membros estimulassem o ensino dessa língua internacional.

O esperanto foi criado pelo judeu polaco Ludwik Lejer Zamenhof (1859-1917), com base em várias línguas, nomeadamente alemão, inglês, italiano, latim, polaco e russo. O objetivo de Zamenhof era que o esperanto se tornasse uma língua que transcendesse nacionalidades e contribuísse para a paz mundial.

Ludwik Lejzer Zamenhof

Apesar de o esperanto não ter vingado como língua auxiliar da ONU, é reconhecida como ferramenta de grande utilidade para a tradução automática, e faz parte das 64 línguas utilizadas pelo “Google Translate”. Graças à sua simplicidade, o conjunto de dados para a tradução de um texto para esperanto é cerca de cem vezes menor do que para o espanhol ou o alemão.

Atendendo a que é largamente admitido que a ONU deva sofrer uma profunda reestruturação, é altura de os meios diplomáticos dos países lusófonos intensificarem esforços no sentido de o português vir a ser admitido como língua oficial das Nações Unidas.

10 Abr 2024

Mestre do crime

Segundo o Los Angeles Times (ABC News), no passado dia 31 de Março, um edifício de armazenamento de dinheiro não identificado foi assaltado em Los Angeles. Os assaltantes roubaram 30 milhões de dólares americanos (aproximadamente 240 milhões de patacas) deste edifício situado em Sylmar, na área de San Fernando Valley.

A empresa de segurança descobriu o caso quando abriu o cofre. Após investigação, a polícia descobriu que existia um grande buraco no telhado e ainda outro numa das paredes do prédio. Na sequência da investigação, a polícia apurou que o cofre não tinha sido forçado nem danificado e não havia sinais de que os assaltantes tivessem entrado a partir do exterior. Por enquanto, a polícia não tem a certeza se entraram pelos buracos abertos no tecto e numa das paredes, nem como desactivaram o alarme. Este caso é um mistério intrigante.

O edifício é gerido por uma empresa de segurança. Existem grandes quantias no cofre porque a empresa de segurança recolhe e guarda aí dinheiro de diversas lojas da cidade. Os investigadores estão de momento focados em tentar perceber como é que os assaltantes tiveram conhecimento de que estes valores estavam guardados no edifício e como é que lá entraram sem activar o alarme.

200 milhões de dólares foram roubados tranquilamente sem que qualquer pista fosse deixada, este foi sem dúvida um caso que chocou o mundo e que, pela sua natureza, nos faz lembrar o filme “Master Thief” (Mestre do Crime).

Em 2006, ocorreu um assalto a um banco na Argentina. Os ladrões usaram pistolas de brincar e fizerem dos clientes e dos empregados reféns, enquanto roubavam os conteúdos dos cofres. Antes do assalto, os ladrões fizeram todos os preparativos. Um deles aprendem técnicas de negociação para poder posteriormente negociar com a polícia e ganhar tempo para permitir que os seus comparsas abrissem 143 cofres. Porque é que o alvo foram os cofres? Os cofres contêm dinheiro, mas a origem deste dinheiro é questionável, porque não foi depositado nas contas dos seus proprietários. Alguns dos ladrões eram engenheiros, responsáveis pela abertura de um cofre a cada 7 segundos.

Estes assaltantes roubaram o banco com pistolas de brincar, pelo que os reféns não correram perigo de vida. Mas o facto mais digno de nota foi terem percebido que uma senhora idosa, que se encontrava entre os reféns, fazia anos naquele dia. Por isso o ladrão fez-lhe um bolo e cantou-lhe os parabéns. Foi um acto de gentileza para com os reféns.

Após o assalto, os ladrões usaram túneis subterrâneos de drenagem de água para escapar. No entanto, cinco semanas depois, a mulher de um deles informou a polícia e o caso foi resolvido. A mulher denunciou o marido porque ele estava a ter um caso extra-conjugal. Após os polícias terem apanhado os ladrões, pensaram que tudo tinha terminado, mas, inesperadamente, perceberam que estavam apenas no começo.

De facto, a denúncia tinha sido combinada entre os assaltantes, que pretendiam ser presos. Como não havia provas conclusivas sobre a quantidade de dinheiro roubado, o banco não podia indicar uma soma. A polícia só podia apresentar como prova para acusação o dinheiro que tinha sido reavido e que era uma pequeníssima percentagem do total. Como a polícia só conseguiu reaver uma pequena parte do furto e os ladrões trataram bem os reféns, o tribunal só os pôde condenar à pena mínima por roubo. Depois de terem sido libertados, o caso ficou encerrado. A polícia já não podia voltar a investigá-los, e eles puderam desfrutar do dinheiro, que não foi descoberto pelos investigadores, em segurança. Este caso foi mais tarde transportado para o cinema.

Na vida real, claro que não podemos confiar nos filmes e muito menos deixarmo-nos enganar por enredos onde o crime compensa. Roubar dinheiro constitui um crime de furto, roubar muito dinheiro é um crime de furto agravado. De acordo com o Código Penal de Macau, o ladrão pode ser condenado a 10 anos de prisão se for considerado culpado. De acordo com a Portaria de Roubo de Hong Kong, a pena máxima para o mesmo caso é de 14 anos. No entanto, uma vez que os prisioneiros em Hong Kong gozam de férias legais, depois de deduzidas, a pena máxima será de cerca de 10 anos de prisão. Portanto, as leis que se aplicam a este respeito são muito semelhantes em Hong Kong e em Macau.

Embora os filmes nos proporcionem entretenimento, enquanto nos estamos a distrair devemos distinguir os comportamentos certos dos comportamentos errados. Devemos também lembrarmo-nos sempre que todos os residentes são responsáveis pelo cumprimento da lei. Não se deixe enganar pelos enredos dos filmes e muito menos não imite o comportamento dos bandidos. Esperamos também que a polícia de Los Angeles possa resolver o caso o mais rapidamente possível e levar os culpados a tribunal.

“Devemos também lembrarmo-nos sempre que todos os residentes são responsáveis pelo cumprimento da lei. Não se deixe enganar pelos enredos dos filmes e muito menos não imite o comportamento dos bandidos.”

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

9 Abr 2024

Governo a prazo

O novo Governo de Portugal tomou posse da pior maneira. A primeira preocupação foi inacreditavelmente substituir os símbolos nacionais do anterior governo. Algo absurdo e ignóbil. O novo primeiro-ministro apresentou 41 secretários de Estado. Mais 41 chefes de Gabinete, mais 41 secretárias de confiança, mais 82 assessores, no mínimo. O povo não entende políticas deste tipo. Esperava o anúncio das mudanças apresentadas na campanha eleitoral que deu a vitória a Montenegro por uns míseros votos de diferença para o Partido Socialista.

O novo Governo não tem o mínimo de condições para governar, salientando-se a nomeação de Paulo Rangel para ministro de Negócios Estrangeiros, o mesmo político que ofendeu e insultou o primeiro-ministro de Espanha por várias vezes em comícios do PP espanhol e que agora anuncia que a primeira viagem ao estrangeiro de Montenegro será a Madrid. Não, os espanhóis acompanham há décadas a política portuguesa e agora sabem que têm adversários políticos pela frente. Não querem negociações sobre nada, muito menos, boas relações com quem se fartou de os insultar.

Portugal está numa encruzilhada devastadora em termos políticos e económicos. O novo governo pretende gastar o pouco que o seu anterior deixou nos cofres. Pretende privatizar tudo o que puder e lamentavelmente, assim que puder, acabar com o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este governo não quis o apoio do Chega para formar uma maioria absoluta de direita e enraizar todas as teorias neonazis. E pensou que seria o Partido Socialista a dar-lhe a mão. Debalde. Os socialistas farão oposição ao novo governo e Pedro Nuno Santos, líder dos socialistas, já anunciou que não é salvador de pátrias direitistas e populistas. Neste sentido, estamos perante um governo a prazo.

Este governo não vai durar mais de seis meses e teremos novas eleições antecipadas. Por quê? Porque se trata de um governo minoritário, arrogante, petulante, de políticas antidemocráticas e à espera que o Chega, um partido nazi de extrema direita, lhe pudesse dar a mão. Puro engano. O Chega, o que quer, é destruir o novo governo e ultrapassar em votos o PSD. O Chega de André Ventura nunca perdoará a Montenegro a tal máxima do “não, é não”. E sendo assim, Ventura tudo fará para haver eleições antecipadas e que os votos angariados o transformem no partido mais votado, à semelhança de alguns países europeus.

Infelizmente, Portugal com cerca de quatro milhões de cidadãos no nível de pobreza, não será com um governo deste estilo autoritário e partidário que verá os seus problemas de habitação, educação, justiça, forças de segurança e das Forças Armadas resolvidos. Antes pelo contrário, este governo de Montenegro quer gastar aqui e acolá, sem saber onde irá buscar dinheiro quando acabar o que Fernando Medina deixou nos cofres. A demagogia dos apoiantes do novo governo é atroz, demonstra uma incapacidade total de resolver os problemas do país e, neste sentido, muito que custe ao “guru” Marcelo Rebelo de Sousa, as eleições antecipadas lá para Outubro devem ser uma realidade. Este governo não vai ter o apoio parlamentar nem do Chega com 50 deputados, nem do Parido Socialista com 78 representantes do povo.

Os canais de televisão, quase completamente afectos ao novo governo, não se fartam de propagandear que este governo é algo de bom para o país. Mas, o povo não é estúpido, e já viu que as promessas da campanha eleitoral não serão cumpridas. No governo, o primeiro-ministro até escolheu para seu chefe de Gabinete um suspeito de violência doméstica, um crime muito mais grave que cometeu o chefe de Gabinete de António Costa ao ter escondido dinheiro em envelopes no próprio gabinete. Verificamos que existem ministros no elenco governamental absolutamente com telhados de vidro e incompetentes. Até foi escolhido uma filha de um comentador televisivo que só tem feito, ao longo de meses, a propaganda de Montenegro. Afinal, o governo de Costa era incompetente, corrupto e ineficaz, mas já ouvimos membros do novo governo a afirmar que, afinal, no sector da Saúde, especialmente nos Centros de Saúde, está tudo bem e que não há nada a melhorar.

Por seu turno, Pedro Nuno Santos escolheu enquanto ministro o novo aeroporto de Lisboa para Alcochete. Essa sua decisão, sem dar cavaco ao primeiro-ministro, custou-lhe a demissão. Contudo, o novo governo já está a preparar tudo para anunciar que o aeroporto será em Alcochete. Este, é apenas um pequeno exemplo de que este governo nunca poderá percorrer os quatro anos de mandato. Não tem o apoio do Chega e muito menos do Partido Socialista, do PCP, do Livre, do PAN e do Bloco de Esquerda para aprovar o seu Orçamento do Estado. Por isso, é que na nossa simples opinião, a arrogância de vencedor de umas eleições pela margem mínima não tem solução a longo prazo.

Teremos que admitir que os pobres ficarão mais pobres. Ainda durante a semana passada, um nosso amigo que sempre recebeu reembolso do IRS, nos transmitiu que verificou no Portal das Finanças que terá de pagar cerca de 500 euros, sem que em 2023 tenha tido mais algum euro de rendimento. É este o apoio que os pobres podem esperar de uma política anterior e futura. O país não é para pobres, mas sim para os Berardos, Salgados, Sócrates, Rangéis, Granadeiros, Bavas, Mexias e quejandos. Prometeu-se a mudança, mas já se constatou que as dificuldades de sobrevivência da maioria do povo irão continuar. A prazo.

8 Abr 2024

10 NÃO dos jovens chineses

Em 1900, Liang Qichao, um político e activista chinês, escreveu um ensaio intitulado “Sobre a juventude chinesa”, inspirado nos princípios fundadores da associação política italiana “La Giovine Italia”. No ensaio, Liang assinalava que para que a China não fosse mencionada como um império em declínio, era necessário valorizar a geração mais jovem. Liang Qichao acreditava que “se os jovens forem sábios, o país será sábio. Se os jovens forem abastados, o país será abastado. Se os jovens forem fortes, o país será forte. Se os jovens forem independentes, o país será independente. Se os jovens forem livres, o país será livre. Se os jovens progredirem, o país progredirá”.

Durante o século passado, o regime político da China mudou várias vezes. Actualmente, a China já não é um país empobrecido nem atrasado do ponto de vista cultural e científico, nem tão pouco uma sociedade semi-colonial e semi-feudal. O povo chinês conseguiu basicamente atingir uma vida razoavelmente próspera. Mas recentemente, deparei-me com um artigo online sobre os “10 Não dos jovens chineses” publicado num website chinês, que me deixou preocupado.

Os chamados “10 Não” indicam 10 práticas que actualmente os jovens chineses rejeitam e são os seguintes: não doam sangue, não fazem donativos para instituições de solidariedade, não se casam, não têm filhos, não compram bilhetes de lotaria, não investem no mercado de acções, não compram aplicações financeiras, não apoiam os mais velhos, não se envolvem emocionalmente. Embora os dez NÃOs acima referidos não reflictam a mentalidade da maioria dos jovens chineses, ainda assim são dignos de atenção.

Recentemente, a RAE de Hong Kong concluiu a promulgação de leis próprias para proibir qualquer acto de traição, secessão, sedição e subversão contra o Governo Central, e ainda para proibir o roubo de segredos de Estado. Também não é permitido que organizações políticas estrangeiras desenvolvam qualquer actividade no território da RAEHK, estando as organizações políticas da RAEHK igualmente interditadas de estabelecer laços com organizações políticas estrangeiras, ao abrigo do Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong.

O Chefe do Executivo, John Lee, afirmou que o próximo passo é a total revitalização da economia de Hong Kong. O Index Hang Seng fechou nos 16.618.32 pontos no passado dia 26 de Março, cerca de 6.700 abaixo do valor registado a 26 de Março de 2020. Vai levar ainda algum tempo até que as finanças de Hong Kong recuperem! Para erradicar a instabilidade social e proteger o nível de vida dos residentes da cidade será necessário unir esforços para além de se promulgar leis ao abrigo do Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong para salvaguardar a segurança nacional.

Se compararmos com a vida das pessoas em Gaza e na Ucrânia, pode considerar-se que os residentes da China, de Taiwan, de Hong Kong e de Macau são muito afortunados. Taiwan caiu do 27º para o 31º lugar, mas ainda mais alto do que o do Japão e da Coreia do Sul, aparecendo em 2º lugar no leste asiático, logo atrás de Singapura. A China subiu para a 60ª posição, ao passo que Hong Kong desceu para o 86º lugar e Macau não foi incluído na lista de países e regiões classificadas. As variáveis para determinar o índice de felicidade baseiam-se principalmente no seguinte: esperança de vida saudável, PIB per capita, apoios sociais, liberdade, níveis de corrupção e laços solidários entre as pessoas.

Em relação aos “10 Não dos Jovens Chineses” acima mencionados, é necessário melhorar o nível de felicidade do país e das suas regiões, para evitar a propagação de uma mentalidade negativa entre a geração mais jovem. A China proclamou há algum tempo que os “valores socialistas fundamentais” são “a democracia, a harmonia, a liberdade, o Estado de direito, o patriotismo e a simpatia”. É necessário reforçar continuamente estes valores na sociedade, para evitar o surgimento de dilemas éticos, indiferença ou insensibilidade social e dúvidas morais.

É necessário eliminar o oportunismo, a fraude, o monopólio e a exploração. A corrupção institucional pode provocar crises de confiança. Quando os jovens sentem que os seus direitos são respeitados e as suas vidas são protegidas voltam a querer casar e ter filhos. Um país só terá futuro quando os seus jovens forem moral e eticamente sãos. Quando a juventude da China for forte, a China será forte. O que Liang Qichao escreveu em “Juventude da China” não reflecte um sonho, mas sim um ideal a atingir.

5 Abr 2024

Adopção inovadora (II)

Na semana passada, analisei uma notícia que circula na China continental sobre um novo modelo de venda de animais de estimação.

O cliente não paga nada pelo animal, mas compromete-se, através de um contrato, a comprar nessa loja tudo o que o animal precisa até perfazer uma determinada soma. O modelo de negócio é atractivo porque se pode escolher o animal e não se paga nada por ele. Por outro lado, a loja assegura lucros futuros, garantindo a satisfação de ambas as partes.

No entanto, os problemas surgem se o animal morre dentro do prazo contratual. Se o dono não quiser voltar a adoptar, deixa de ter necessidade de comprar provisões para animais, e, portanto, vai querer rescindir o contrato. Mas neste caso os donos da loja ficam descontentes porque gastaram dinheiro para adquirir o animal antes de o colocarem para adopção. As compras que o dono faria cobririam essa despesa e garantiriam a sua margem de lucro e se o contrato for rescindido a loja é prejudicada.

Para resolver o litígio, o adoptante pode ser dispensado da obrigatoriedade de comprar provisões. Essas provisões podem permanecer na loja para serem vendidas a outros clientes e o dono do animal que faleceu pode ser reembolsado. No entanto, terá de compensar a loja garantindo-lhe o lucro que esperava ter no momento em que deu o animal para adopção.

Para além da nova forma de compensação acima referida, existem outros métodos que podem ser considerados. Quando a loja redige o contrato de adopção, deve explicar detalhadamente os seus conteúdos à pessoa que adopta o animal e lembrá-lo que o contrato não cessa se o animal morrer enquanto ainda está em vigor. Desde que o cliente conheça e concorde com os termos contratuais, evita-se litígios futuros.

Em segundo lugar, para além da loja e do cliente considerarem a inclusão de uma cláusula de compensação no contrato, quem adopta o animal pode também considerar a possibilidade de lhe fazer um seguro. Se o animal morrer, o dono pode receber uma indemnização. Além do mais, estes seguros oferecem ainda outro tipo de protecções. Por exemplo, indemnizações se o animal morder alguém, descontos nas despesas de saúde, etc. Embora o seguro seja pago, garante mais protecção. Acresce ainda, que em caso de acidente, o seguro também cobre parte das despesas. No entanto, deve ser dito que a cobertura oferecida varia conforme a companhia de seguros, e a pessoa que vai adoptar um animal deve fazer uma escolha cuidadosa em função das suas necessidades.

Em terceiro lugar, se a loja for à falência, que destino se dará aos depósitos feitos para compras futuras? As duas regiões administrativas especiais, Hong Kong e Macau, têm legislação para regular estas situações. Actualmente, a Lei das Empresas de Hong Kong tem disposições neste sentido. Se se puder provar que o responsável da loja tem intenções fraudulentas e, sabendo que a loja tem problemas financeiros continua a efectuar transacções comerciais e a pedir aos clientes que façam depósitos adiantados, o Governo de Hong Kong iniciará um processo penal contra a loja e o seu responsável. As vítimas também podem intentar acções cíveis para obter uma indemnização.

Resumindo, a compreensão do contrato por parte do cliente, a adição de cláusulas compensatórias, a aquisição de um seguro animal e ter controlo sobre a forma como o depósito é feito, são formas de reduzir as disputas entre a loja e o cliente em relação à necessidade do contrato de adopção se manter em vigor na eventualidade da morte do animal, e devem ser tidas em consideração por ambas as partes.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Abr 2024

O declínio do Império Americano

“The rise and fall of great powers is, thereby, the central dynamic of international politics”.

The Rise and Fall of the Great Powers – Paul Kennedy

A causa principal de uma possível guerra em grande escala deve-se ao rápido declínio do Império Americano. A pretensão global corroeu a nação. Põe em causa a sua existência. E revela o seu lado maníaco-depressivo. Doença dos impérios, oscilando entre o delírio de omnipotência, com a sua excitação psicomotora, e a depressão catatónica, manifestada pela abulia e pela distimia. Em nada menos de trinta anos, a potência número um passou do unipolarismo geopolítico ao bipolarismo psíquico. O pêndulo de Washington oscila entre a expansão ilimitada e a contracção descontrolada.

Considerando as invasões e outros envolvimentos militares, de todos os Estados, apenas Andorra, Butão e Liechtenstein não experimentaram a presença de forças armadas dos Estados Unidos no seu território. Os americanos podem estar a aproximar-se da sua concha, a Ilha da América do Norte constituída pelos Estados Unidos mais o Canadá, mas sem o México, um veículo de infecção migratória. É difícil que o descanso seja poupado à festa dos Estados Desunidos. A melancolia que aflige os americanos desencadeia no resto do Ocidente, a Europa atlântica à cabeça, síndromes de abandono desordenado.

Em contrapartida, no duplo inimigo sino-russo, par improvável gerado pela palidez visível das estrelas e riscas, como nos outros adversários declarados, do Irão à Coreia do Norte, prevalece o sentimento de poder esbofetear o antigo poder hegemónico sem arriscar a pele. No caso Iraniano, pagando direitos limitados, enquanto na família Kim o limiar da dor parece mais elevado. Talvez se trate apenas de uma encenação. Se assim não fosse e o sumo-sacerdote do Juche (a ideologia oficial do regime de Kim Jong-un) descongelasse o jogo coreano ao fim de mais de sete anos, a III Guerra Mundial rebentaria por fusão das peças evocadas pelo profeta Papa Francisco quando afirmou que a “terceira guerra mundial foi declarada” e que o conflito na Ucrânia “talvez tenha sido provocado”.

A possível guerra espalha-se de diferentes formas. À frente quente na Ucrânia juntou, desde 7 de Outubro de 2023, Israel e o Médio Oriente. Teatros que adquirem uma dimensão mundial graças ao envolvimento dos Estados Unidos e aos ataques do Outono no Mar Vermelho, confluência entre o Atlântico e o Indo-Pacífico. No antigo Terceiro Mundo, curiosamente rebaptizado de Sul Global, os tabus da superpotência e a fragilidade das antigas nações imperiais europeias excitam vontades de vingança dispersas após séculos de colonização ocidental. A “Terra do Caos” está a expandir-se à medida que se torna mais caótica. Entre colisões de poderes e convulsões nas zonas de baixa pressão geopolítica que rodeiam a Europa, todas as linhas vermelhas se esbatem simultaneamente. Vista de Bruxelas, esta deriva representa o pior cenário possível que é a negação dos interesses vitais europeus.

O catálogo de desgraças traduz uma tempestade na América, virada sobre si e convencida de que está a apostar tudo em jogo na luta com a China; uma crise no império euromediterrânico dos Estados Unidos, do qual a Europa é uma província importante; uma tensão entre o Ocidente colectivo (slogan de Putin) e o Sul global (imprecisão homologada pelos meios de comunicação), ou seja, entre um oitavo da população mundial, conservadora porque rica e de idade média, e os restantes sete, adolescentes precários e inquietos, revolucionários muitas vezes imaginários e, portanto, imprevisíveis; a guerra semi-directa contra a Rússia na fronteira oriental, com Moscovo a penetrar no mar mediterrâneo para criar os seus portos de escala e fortalezas entre o Levante e a África; o oportunismo neo-imperial turco, uma lição para aqueles que ainda acreditam na santidade das alianças; a ingovernável diferença e desfaçatez francesa à Europa do Sul (correspondida), com Paris em modo predatório face ao que resta da indústria avançada daquela zona da Europa e a rotação da Alemanha sobre si.

Para os apocalípticos, a III Guerra Mundial foi anunciada, tendo em conta o ponto de partida das duas primeiras. Nas dobras da possível guerra está o confronto fatal entre os Estados Unidos e a Alemanha. Existe uma má visão que a América está a tentar seguir na guerra da Ucrânia, pois cada golpe da América na Rússia é também um golpe na Alemanha e vice-versa. O mesmo se aplica à China. A Europa foi avisada e meio salva, porque se voltasse a negociar em grande escala com os russos e chineses com os alemães no meio, como fizeram durante décadas nos domínios da energia, do comércio, da indústria e outros, a retaliação seria pesada. A cadeia Pequim-Moscovo-Berlim, que a América sente apertar-se à volta do seu pescoço, não poderia e não poderá envolver a península central do Oceano, um semi-protectorado das estrelas e das riscas.

O confronto entre os Estados Unidos e a Alemanha, uma constante da I Guerra Mundial, da II Guerra Mundial e, eventualmente, da III Guerra Mundial, é totalmente assimétrico. Uma coisa é o número um, que luta pela sobrevivência. Outra bem diferente é ser o antigo aspirante a potência hegemónica, esmagado em 1945 e submetido a uma lavagem cerebral tão lenta que lhe distorceu as feições e o meteu no casulo da grande Suíça. De tal forma que convenceu muitos alemães da replicabilidade do paradigma suíço. Neutralização de facto insustentável depois de 24 de Fevereiro de 2022. Tal, é apercebido, talvez antes dos alemães que ainda se debatem com os efeitos secundários do excesso de hipnóticos que lhes foram administrados pelos vencedores. Os americanos entram, os russos saem, os alemães caem.

Os Estados Unidos continuam a tratar a Alemanha como um sujeito impróprio. Inimigo latente. Como o reflectido na ameaça do Presidente Biden ao Chanceler Scholz na conferência de imprensa conjunta na Casa Branca em 7 de Fevereiro de 2022 onde é afirmado que se a Rússia voltar a invadir a Ucrânia, não haverá “Nord Stream 2” (que é uma cadeia de gasodutos que transportam gás natural pelo Mar Báltico e da Alemanha, uma grande parte do gás é redistribuído para outros países da Europa). É perguntado ao Presidente Biden como iriam fazer, uma vez que o projecto está sob controlo alemão? Tendo este respondido sem tergiversações de que o fariam e o Chanceler alemão perante tal resposta não esboçou qualquer sinal de oposição. O caso do “Nord Stream 2” é apenas o mais impressionante dos infortúnios que se abateram sobre a Alemanha desde o fatídico 24 de Fevereiro de 2022.

A lista de desastres sofridos até à data é longa. A começar pela perda do gás russo, substituído pela Noruega numa quota-parte de necessidades (60 por cento) quase igual à anterior, com um mínimo de diversificação. Seguida da contracção do comércio com a China, de que sofre sobretudo a indústria automóvel, despreparada para a agressão dos carros eléctricos no mercado chinês e não só. Mais uma vez, a Alemanha perde o controlo sobre o seu império geoeconómico informal, a Mitteleuropa alargada ao Leste de França e ao Norte de Itália, com a Polónia a empurrar-lhe para a cara a factura das reparações devidas pelo tratamento dado pelos nazis no valor 1,3 mil milhões de euros.

A Polónia nunca os verá, mas o gesto impressiona. A face geoestratégica desta crise reside na afirmação da Polónia como o parceiro europeu privilegiado pelos Estados Unidos numa função anti-russa. E na tentativa americana de descarregar sobre a Alemanha e, portanto, sobre os outros europeus, os milhares de milhões de euros que foram calculados para pôr a Ucrânia de pé. A recessão, até agora modesta (-0,3 por cento), não é apenas conjuntural. Na verdade, exprime uma paragem estrutural do motor económico do continente devido à falta de combustível. O motor terá de ser reconstruído e o combustível terá de ser mudado. Isso levará muitos anos. A repercussão política da crise reside na queda vertiginosa do prestígio e da influência da Alemanha na Europa e no mundo.

Se houvesse uma votação agora, o governo estaria em minoria. A estrela neo-nacionalista da “Alternativa para a Alemanha (AfD) ” brilha na antiga RDA, de tal forma que as autoridades sugeriram a sua ilegalização por “migração” neo-nazi. Um quinto do eleitorado seria desqualificado. Não há vestígios do rearmamento anunciado pelo Chanceler alemão. As forças armadas alemãs continuam a ser o menos eficaz dos exércitos dos principais países europeus. Enquanto se espera que a terapia reparadora faça efeito, há quem pense em deitar a mão à bomba atómica. Opção impensável ontem, debatida hoje. Porque o guarda-chuva americano não está lá, apenas com Trump na Casa Branca. Há os que evocam a europeização do arsenal francês, tabu para qualquer inquilino do Eliseu, e os que acrescentam uma bomba para cinco que são a França, Alemanha, Itália, Polónia e Espanha.

Um condomínio decididamente heterogéneo. É também uma forma de habituar a opinião pública a considerar a alternativa por defeito. Alguns sugerem uma aproximação à Rússia e à China, quase como se o perigo viesse do exterior. O AfD é mais do que favorável, pois se a OTAN não nos protege, protejamo-nos com os seus (e não nossos) inimigos. É melhor estar à mesa do que na ementa. Por baixo da pele, os velhos laços com a Rússia e as relações de interesse com a China estão à espera que o massacre ucraniano seja reavivado. A começar pelo canal do Báltico, talvez reduzido a metade. Se, na Alemanha, há um vale-tudo, o AfD propõe o Dexit, um divórcio ao estilo britânico da família da União Europeia, enquanto a América mantém tudo sob controlo, e para os europeus o cenário escurece.

Sobretudo se tivermos em conta a interdependência industrial entre os países do Sul da Europa e a Alemanha, a “segunda fábrica europeia”, o orgulho nacional, é, na realidade, o “único bis”, porque respira a pulmões teutónicos (e, em menor grau, vice-versa). O sentido profundo da crise alemã é que tudo na Europa parece estar a estacionar. Paradoxalmente, a principal razão pela qual a guerra continua é precisamente a de que os termos das longas tréguas que se seguiriam – a verdadeira paz não é para este século – são bastante previsíveis, a menos que a Rússia, a Ucrânia ou ambas desapareçam do mapa geopolítico (e nós Europeus, eventualmente, com elas) com Kiev a trocar a cessão de territórios ocupados por Moscovo por rigorosas garantias de segurança do Ocidente amigo, bem como da Rússia inimiga e de outras potências, sobretudo a China.

Mas como fazer com que os povos beligerantes cheguem a um tal entendimento? Quando Putin e Zelensky ou quem quer que seja encontrarem uma forma de não perderem a face e em lugar de assinarem o acto de tréguas, assinarão talvez um acordo de quatro etapas. Primeiro, um cessar-fogo por tempo indeterminado, com a interposição de um contingente internacional de manutenção da paz, para o qual teriam contribuído os Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Polónia, Itália, Israel, Turquia e outros. Também teríamos querido a China, mas Washington estava preocupado com o facto de Pequim se intrometer na fronteira armada entre o seu império e a Rússia. Este grupo de países também teria promovido os passos seguintes. Por esta ordem, a de uma Ucrânia neutra protegida pelas garantias internacionais das grandes potências, com o início imediato das negociações para a entrada na União Europeia; a confirmação dos acordos ucranianos feitos aquando da independência em troca de um governo autónomo para as zonas da Geórgia, com o entendimento não escrito de que a Crimeia e Sebastopol continuariam a pertencer a Moscovo; finalmente, o ponto decisivo seria o início das negociações para um tratado internacional entre os Estados Unidos, a Rússia e as potências europeias para a paz e a segurança na Europa.

Putin fez saber à diplomacia europeia que apreciava este último ponto, que abriu a porta ao entendimento pan-europeu reclamado por Moscovo. Em conformidade com a aspiração secular da Rússia de participar no equilíbrio de poderes na Europa. Mas Biden e sobretudo Johnson, que tinham acabado de sabotar o acordo de cessar-fogo negociado e parafraseado pelos russos e ucranianos na Turquia, não tencionavam discutir o assunto. O que resta dessa iniciativa, apresentada com um eufemismo nostálgico como um “conceito aberto”? Muito, se a interpretarmos à luz dos interesses nacionais primários e da urgência, não só europeia, de apagar o fogo antes que destrua a Ucrânia, totalmente dependente de uma ajuda externa cada vez menor.

Estado falhado a reconstruir. Mas também um aviso de que as acrobacias europeias, espremidas como estão entre a Cila do alinhamento com a América sem linha e a Caríbdis da pressa para encerrar decentemente este conflito antes que ele nos domine, corremos o risco de cair entre duas cadeiras. Manobras diplomáticas que nos excluirão do clube dos co-decisores, que só se lembrarão de nós quando tivermos que pagar a conta do renascimento ucraniano, hoje estimado em cerca de milhares de milhões de euros. Na Ucrânia há muito cansaço de todos os lados e aproxima-se o momento em que todos compreenderão que é necessário uma saída.

O apoio militar a Kiev deve ser aliado a uma “acção diplomática incisiva” para parar a guerra. Resta compreender porque é que a quantidade de sabedoria depositada na diplomacia europeia e americana não se expressa de uma forma suficientemente profunda, mas em formas involuntárias ou semi-clandestinas, entre auto-censura, conversas fúteis e notícias falsas para orientar a opinião pública.

O tempo está a esgotar-se. Este ano saberemos se o conflito ucraniano será resolvido ou descarrilado. É pouco provável que se desenrole de forma linear durante muito tempo. A guerra de fricção que a Rússia e o Ocidente impuseram simultaneamente à Ucrânia, por razões opostas mas convergentes, está a esgotar os recursos humanos e materiais do país atacado. A caça aos tesouros que lhe restam está a decorrer. Para Putin, humilhado pelo assalto falhado a Kiev, a redução drástica mas temporária das ambições, em que o objectivo da operação continua a ser restabelecer a Ucrânia como um tampão, se não mesmo a fronteira ocidental do império impõe paciência.

O Kremlin apostou na distracção gradual do Ocidente (facto), na resiliência do complexo militar-industrial russo (outro facto) e no patriotismo exaltado na propaganda que pretende que a Santa Rússia seja a antemuralha dos valores tradicionais contra o Ocidente desperto (funciona, mas não demasiado). Até que ponto é que este esquema se aguenta? Para Biden e os seus apoiantes que hoje, em seu nome, tentam evitar que a América se afunde e que amanhã se dedicarão a sabotar o eventual regresso de Trump à Casa Branca, trata-se de “anular” a Rússia (falhou, por agora), aguentando a resistência ucraniana à custa de a sangrar até à exaustão (feito) e, com ela, a fachada da unidade atlântica (não há tinta que o simule). Os estrategas de Washington estão divididos entre os que gostariam de negociar uma trégua longa e suja com os russos, segundo o modelo coreano, possivelmente antes de o modelo explodir, e os que estão dispostos a sacrificar o último ucraniano para manter a Rússia sob pressão, na esperança de que o regime imploda. O princípio partilhado por quase todos é que a guerra não deve ser travada contra a Rússia em caso algum. Para isso, há os ucranianos. Estamos em guerra por dupla representação, russa e americana.

Os americanos estão a tentar a todo o custo (ucraniano) evitar o colapso de Kiev. Até ao ponto de arriscarem a desertificação do país de que se dizem protectores, mas que, uma vez terminada a guerra, entregarão aos europeus para que cubram os custos da reconstrução. E contar com a substituição de Zelensky pelo general Valerii Zaluzhnyi, ex-chefe das Forças Armadas e, portanto, seu potencial sucessor, ou por quem mais subscrever a mascarada coreana. O festival dos jogos duplos, ou melhor, múltiplos, conta com a participação dos europeus, que querem abrir as portas da União Europeia a Kiev, enquanto empatam a ajuda financeira e militar, também por falta objectiva de recursos.

Em Bruxelas, calcularam em cento e oitenta e seis mil milhões de euros a ajuda que Kiev receberia em sete anos dos cofres da União Europeia em caso de adesão. Esse montante subiria para cerca de duzentos e cinquenta e sete mil milhões de euros no caso de um alargamento que incluísse a Moldávia, a Geórgia e os seis Estados dos Balcãs Ocidentais na fila de espera em frente aos cofres da União Europeia. Para os Europeus, cada dia que passa agrava o dilema de como garantir que a agressão russa é recompensada sem destruir totalmente a Ucrânia e desestabilizar a Europa para o conseguir? Se a guerra de fricção continuasse, teríamos de lidar com um enorme buraco negro na junção com a cortina de aço anti-russa, guardada pelas vanguardas atlânticas do Nordeste.

Para lá da costa adriática, teríamos de viver com a constelação recortada dos Grandes Balcãs, incluindo o que restará da Ucrânia, a começar pela quantidade de armas enviadas para Kiev e depois dispersas, das quais até os americanos perderem o rasto. De todas as ameaças ao quarteto dos nossos interesses primários, a balcanização da Ucrânia é a pior. Porque sancionaria a fractura quebrada do Ocidente e ameaçaria sugar uma parte dele para a “Caoslândia” total. Mesmo que nada aconteça, seria importante para levar a opinião pública a pensar positivamente. A catástrofe não é uma consequência da catástrofe, é uma premissa da catástrofe.

Feliz Páscoa!

28 Mar 2024

Sobre a relação entre a voz e o sexo

Uma das características do sexo são as suas vocalizações. As vocalizações, apesar da variabilidade em tonalidade e expressão, têm algumas características em comum e são facilmente reconhecidas em qualquer contexto cultural. A respiração ofegante, os gemidos, a intensidade e espontaneidade durante o orgasmo são algumas constantes.

A investigação nos humanos, apesar de escassa, parece verificar duas tendências que também presentes nos primatas: as vocalizações parecem cumprir uma função comunicativa e as mulheres/espécies fêmea são as que mais vocalizam durante o coito. As fêmeas ao fazer estes ruídos, podem estar a promover a ligação, aumentado a sincronicidade entre os corpos. Os gemidos podem servir também uma função fisiológica, isto é, as vocalizações durante o sexo podem contribuir para aumentar a pressão nos pulmões e estabilizar o toda a área abdominal e ajudar a performance atlética do sexo. Estima-se que o sexo gasta à volta de 100 kcal (o equivalente a uma banana).

Os vocalizos podem ser feitos de forma consciente para ajudar aumentar a excitação do parceiro, mas um estudo recente, que analisou milhares de vocalizações de pessoas a masturbarem-se ou a terem sexo, chegou à conclusão de que as vocalizações são uma expressão genuína de prazer. A base de dados para o estudo foi criada com auxílio de uma plataforma online onde as pessoas colocam as suas gravações áudio dos seus encontros sexuais e dos seus orgasmos. O intuito da plataforma é mostrar a diversidade na expressão vocal. É de livre acesso para quem queira fazer investigação pessoal sobre o tema ou simplesmente contribuir com a vossa forma especial de ter prazer (orgasmsoundlibrary.com). Curioso também é que mesmo quando o sexo é a solo, as vocalizações não deixam de ser expressivas. Nas pessoas com útero os gemidos correlacionam-se com as contrações musculares. Para os que têm um pénis, os gemidos correlacionam-se com os esguichos da ejaculação.

Claro que os saberes alternativos também refletiram sobre estas questões e foram mais longe ao propor, principalmente nas mulheres, uma ligação directa entre a laringe e a pélvis. Quando falo em saberes alternativos, quero dizer que não são cientificamente comprovados, mas são experiencialmente vividos. Este modelo conceptual alternativo entende que os músculos da zona pélvica são afectados pelos músculos da laringe. Isto poderá acontecer dada a sua proximidade na sua forma muscular diafragmática.

Recomendo a espreitarem as criações visuais que comparam as duas zonas, e as suas semelhanças. Também há quem compreenda a ligação das duas regiões através do nervo vago, o maior nervo do corpo que percorre a garganta até a pélvis. Também não será por acaso que em inglês a zona uterina é designada por cervix que tem a sua origem no latim de pescoço, a cervical em português. As implicações da ligação entre a voz e o sexo podem ser então de outro teor. Por exemplo, li o depoimento de uma doula (uma figura que ampara o processo do parto) que começou a ficar mais atenta às vocalizações das parturientes. Reparou que as vocalizações mais contidas se relacionam com uma zona pélvica mais tensa. Os exercícios de respiração, ou uma forma livre de vocalizar, pode tornar a pélvis mais relaxada. Também no sexo esta ligação poderia ser pensada: os vocalizos são também uma forma de relaxar e possibilitar a irrigação sanguínea para a zona sexual.

O moral da história é que os gemidos e vocalizações são parte importante do sexo, não são acessórios ou facilmente descartáveis. Fazem parte do pacote de um funcionamento íntegro. Claro que nem sempre há condições para a expressão plena. A voz atravessa paredes e janelas. Também se adverte que há vocalizações genuínas e outras menos. A voz faz sentido quando é sentida na sua plenitude e não como um mecanismo de influência, como acontece em filmes pornográficos. Se perceberem a voz como mais um domínio de exploração e descoberta na cama, verão que poderá abrir outras formas de experimentar o sexo e a ligação com o corpo e com quem vos acompanha.

27 Mar 2024

Adopção de animais inovadora (I)

Surgiu recentemente uma notícia na imprensa de Hong Kong sobre um novo modelo de negócio que permite adoptar de forma “gratuita” animais de estimação e que se está a popularizar na China. A loja que promove o negócio pede um depósito de determinada quantia, a partir do momento da entrega do animal. Num certo intervalo de tempo após a adopção, o dono pode levar da loja tudo o que precisa para o animal. No entanto, se por um infortúnio o animal morrer antes do contrato de adopção terminar, o dono tem de continuar a fazer os pagamentos até ao final.

A adopção em si é gratuita e a loja põe à disposição animais de muitas raças, o que torna este modelo de negócio verdadeiramente atractivo. Depois de adoptar um animal, o seu dono terá necessariamente de lhe comprar tudo o que ele precisa. O depósito que fez destina-se a cobrir despesas futuras. O modelo de negócio assegura receitas vindouras, a pessoa pode escolher o animal que quer e todos ficam satisfeitos.

No entanto, se o animal morrer, o dono deixa de ter necessidade de fazer compras e, se não quiser voltar a adoptar outro animal, o que comprou deixa de ter utilidade. Mas, de acordo com o contrato, tem de continuar a comprar até à data do seu término, pelo que terá, naturalmente, objecções.

Se o dono do animal que morreu não aceitar estas condições, será a loja que colocará as objecções. E isto porque inicialmente a loja teve de comprar o animal para depois o colocar para adopção. A compra do animal teve custos para a loja. À partida, estes custos são deduzidos das compras mensais feitas pelo dono. Mas se o animal morrer e o dono der por terminado o contrato a loja será prejudicada.

Podemos ver que a morte do animal prejudica o dono e a loja. A questão-chave passará pela forma de ambas as partes chegarem a um consenso. Vale a pena que todas as partes contratuais possam ter em consideração os seguintes métodos.

Em primeiro lugar, pode ser incluída no contrato uma cláusula de compensação, indicando que, uma vez que o animal morra, o dono pode rescindir o contrato após garantir o lucro da loja. Por exemplo, quem adopta o animal deposita na loja $10,000. O contrato estipula que este valor tem de ser gasto no período de um ano. Quatro meses depois da adopção o animal morre. Como o dono já gastou até essa altura $4,000, ainda lhe restam $6,000 que não foram usados. Assumimos que a taxa de lucro na venda de artigos da loja é de 1 a 0.5 por cento. Ou seja, os artigos vendidos por $6,000 implicam uma despesa de $4,000 e um lucro de $2,000. Como o animal morreu e o dono não pensa adoptar mais nenhum, os artigos que iria comprar com o capital que lhe resta não terão destinatário. Ao incluir uma cláusula de compensação, estes artigos ficarão na loja e serão vendidos a quem deles necessitar. Por conseguinte, a loja tem de devolver $4,000 à pessoa que perdeu o animal, dos $6.000 que ainda sobram, porque $2,000 representam o lucro que é devido a loja. Além disso, o contrato pode ainda estipular o valor da compensação que a loja deverá receber por parte do dono do animal se ele morrer antes do final do contrato. Com estes dois termos contratuais, os conflitos entre a loja e os donos dos animais podem ser resolvidos.

Este acordo faz sentido para ambas as partes. Por um lado, quem adoptou o animal comprometeu-se as fazer as compras a partir desse momento na loja permitindo-lhe garantir a sua margem de lucro. No entanto, como deixa de precisar de comprar artigos para o animal a partir do momento em que ele morre, o custo dos artigos que já não lhe fazem falta não deve ser suportado por ele. A loja pode vendê-los a quem precise. Mas a loja deve receber os lucros que teria até ao final do contrato. A cláusula de compensação em caso de morte do animal garante que a loja irá receber a compensação adequada se a morte ocorrer no período contratual. Estes termos contratuais também permitem que quem adopta o animal saiba que responsabilidades terá de assumir se ele morrer. Na próxima semana, continuaremos com esta análise.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

26 Mar 2024

Vai começar novo circo

Os resultados finais das eleições legislativas levaram o Presidente da República a indigitar Luís Montenegro como o novo primeiro-ministro. Na próxima quinta-feira Montenegro terá de apresentar o elenco governativo ao inquilino do Palácio de Belém e a posse do novo governo está marcada para 2 de Abril. Há quatro meses que andamos neste “circo” que incluiu cabalas, saltos mortais, golpes palacianos, demissões, um novo secretário-geral para o Partido Socialista e o regresso do CDS ao Parlamento.

Os resultados finais levam às bancadas do Parlamento o mesmo número de deputados do PSD e PS (78), com a vantagem dos dois deputados do CDS para que a direita democrática possa governar. Governar como? Essa é a parte paranoica ou preocupante do “circo”. Não faltam palhaços que pretendem um lugarzinho no governo, como assessores de ministros ou secretários de Estado, e o povo não sabe se vai chorar ou rir.

O novo governo poderá fingir que o Chega não existe com 50 deputados? Poderá pensar que o Iniciativa Liberal servirá de muleta? Poderá ter em conta que os socialistas aprovem esporadicamente alguns temas estruturais? Tudo é uma incógnita porque a esquerda socialista, comunista, bloquista e os dois partidos que podem andar no trapézio conforme o balanço político, o Livre e o PAN, já deram a entender que tudo poderão decidir desde que o governo apresente propostas que caibam nos seus programas políticos.

Só faltam os leões no “circo”, ou seja, as centrais sindicais e os patrões. Estes, estão todos satisfeitos com a vitória da Aliança Democrática (AD) mas querem mais. Pretendem que Montenegro dê o dito por não dito e que faça um acordo com o Chega. Aliás, um facto que existe no próprio interior do PSD, onde um grande número de militantes deseja essa união com os racistas e populistas. Aliás, existe mesmo um movimento no interior do PSD liderado pelo ex-governante Rui Gomes da Silva para que se forme uma maioria absoluta de direita, para a esquerda não levantar a cabeça nos próximos tempos. Por seu lado, Pedro Nuno Santos já anunciou que o Partido Socialista nunca votará a favor de um Orçamento do Estado apresentado por Luís Montenegro.

O “circo” deu que falar na semana passada por duas razões absurdas. A primeira, disse respeito à inacreditável decisão de o Presidente Marcelo receber os partidos políticos antes de se ter conhecimento do resultado final das eleições. Partidos, ponto e vírgula, porque o Presidente da República recebeu em Belém alianças partidárias, o que é contra todas as regras constitucionais. Marcelo Rebelo de Sousa não podia receber a CDU, mas o PCP em audiência diferente de Os Verdes, tal como tinha de receber o PSD separadamente do CDS e do PPM. A segunda, deixou o país à beira de um ataque de nervos. Imaginem que Luís Montenegro foi recebido em Belém já de madrugada, a fim de seguir para Bruxelas já como primeiro-ministro indigitado. E esta atitude absurda foi incrivelmente a pedido do líder do PSD. Até onde vai o narcisismo na “porca” da política, como dizia Bordalo Pinheiro.

Resta-nos aguardar esta semana pelo bailarico no “circo” com a dança dos possíveis nomes que irão ocupar os cargos ministeriais. Uma fonte do PSD, transmitiu-nos que os pretendentes “são mais que as mães”. Tal é a vontade férrea de sentarem-se nas cadeiras do poder, porque sabem que existe muito dinheiro para movimentar. O ministro das Finanças, Fernando Medina, já alertou que as poupanças feitas ao longo dos últimos anos e que contribuíram para que a dívida pública baixasse como há muito não acontecia, que os novos governantes não se ponham a esbanjar o que o país não suporta. A máquina governamental é enorme: ministros, secretários de Estado, sub-secretários de Estado, chefes de Gabinetes, assessores para todos os ministros e outros membros do governo, secretárias da confiança dos novos inquilinos do edifício da Caixa Geral de Depósitos onde irá passar a funcionar o novo Governo de Portugal.

Todavia, o “circo” é outro completamente diferente destes jogos de bastidores e da luta por um lugar ao sol. O importante são os problemas que há para resolver com as Forças Armadas, com as Forças de Segurança, com os bombeiros, com os médicos e enfermeiros, com os oficiais de justiça, com as urgências hospitalares encerradas, com os guardas prisionais que ultimamente têm sido alvo da violência macabra dos detidos nas prisões. Pior ainda é a situação geral de mais de quatro milhões de portugueses que vivem ao nível da pobreza e que dia após dia veem a sua qualidade de vida a deteriorar-se. Onde é que o novo governo vai buscar dinheiro para ajudar os mais desfavorecidos?
Onde vai buscar dinheiro para um novo aeroporto de Lisboa que custará milhares de milhões de euros, extraindo os óbvios cambalachos que sempre existem, tal como aconteceu na compra dos novos submarinos no tempo governamental de Paulo Portas e Passos Coelho? Onde? À União Europeia? Aos PRR? Esse pecúlio gigante vai terminar e nada se adivinha de bom se o novo ministro das Finanças for Paulo Macedo, que anteriormente já tinha mostrado a sua incompetência como governante. Num aparte, apenas referir que a Caixa Geral de Depósitos apresentou milhões de lucro porque os emigrantes nunca tinham depositado tanto dinheiro e porque o banco meio estatal nem sequer aprova um crédito pessoal mínimo a um cliente com mais de 70 anos de idade, uma discriminação anti-constitucional que até tem posto o Banco de Portugal a assobiar para o lado.

O novo circo político vai iniciar-se em 2 de Abril. Aguardaremos se a palhaçada que assistimos anteriormente no Parlamento não será muito pior, porque o Chega de André Ventura não vai perdoar a Luís Montenegro o seu slogan eleitoral do “não, é não”…

25 Mar 2024

O jumento, o boi e os pássaros

A fábula de Esopo, “O Jumento, o Boi e os Pássaros”, conta-nos a história do boi que se debatia para puxar a carroça do pastor e do jumento que se recusava a ajudá-lo. Quando o boi morreu de exaustão o jumento puxou a carroça sozinho e também morreu de esgotamento, até porque também tinha de carregar o cadáver do boi.

Os pássaros desceram, começaram a debicar o corpo do jumento e disseram, “Se te tivesses apiedado do boi, não nos terias servido de alimento e não terias tido uma morte prematura”. A fábula termina aqui, mas eu gostaria de completar a história com o seguinte: enquanto os pássaros se alimentavam, o pastor segurou uma rede. Quando estavam todos reunidos, o pastor lançou a rede e capturou-os a todos, transformando-os assim no seu jantar, e exclamou, “Nenhum floco de neve se considera responsável pela avalanche”.

Recentemente, o discurso do Papa Francisco sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia provocou muita polémica. Na verdade, já foi há mais de dois anos que a Rússia deu início à operação militar especial contra a Ucrânia. Para além do controlo russo sobre os territórios do leste da Ucrânia, a guerra teve outra consequência importante: a mudança de atitude da Finlândia e da Suécia em relação à NATO. Estes países que tinham uma posição de não alinhados passaram a desejar integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte,

Actualmente, o líder da Ucrânia não quer cometer o pecado de ceder a sua Pátria a troco de uma paz de curta duração. A ascensão e queda do Terceiro Reich ensinou muito aos europeus e deixou-lhes uma marca duradoura. O conflito entre a Rússia e a Ucrânia continua, mas resta a dúvida se a Rússia poderá vir a usar armas nucleares para salvaguardar os seus interesses, ou se irá aceitar a proposta de outros países (incluindo a China) para a realização de conversações de paz que conduzam ao fim das hostilidades. A opção por uma destas soluções vai depender do Jumento ter ou não vontade de colaborar com o Boi.

O jejum islâmico do Ramadão, com a duração de um mês, teve início a 11 de Março. Como as negociações para o cessar-fogo entre Israel e o Hamas falharam, a guerra em Gaza continua. Felizmente, as autoridades israelitas permitiram finalmente que os muçulmanos da Cisjordânia fossem rezar à Mesquita de Al-Aqsa, no Monte do Templo, em Jerusalém, o que aliviou as tensões religiosas e evitou o alastramento do conflito a todo o mundo árabe, trazendo uma acalmia temporária a Jerusalém, a Cidade da Paz!

Algumas pessoas temem que se a Rússia usar armas nucleares, se desencadeie a III Guerra Mundial. No entanto, na minha opinião, enquanto as regiões asiáticas se mantiverem estáveis, não há motivo para preocupação. O famoso historiador inglês Arnold Joseph Toynbee previu que o Século XXI seria o século chinês. A China é uma nação que ama a paz e também o primeiro país que prometeu nunca vir a usar armamento nuclear. Em relação à questão russo-ucraniana a posição da China é de respeito pela soberania destes países, de rejeição da mentalidade da Guerra Fria, e de promoção das conversações que conduzam ao cessar-fogo e ao fim da guerra. Se todos os países puderem abraçar os princípios de equidade e justiça e trabalhar em conjunto para manter a paz mundial, a guerra russo-ucraniana virá a terminar.

Embora Macau seja uma cidade pequena e o Governo Central se ocupe da defesa nacional e dos negócios estrangeiros, deve maximizar as suas potencialidades para não se tornar um fardo para o Governo Central ou naqueles pássaros que só se alimentam de cadáveres.

Este ano, no início de Fevereiro, muita gente estava optimista e esperava que a receita bruta mensal dos jogos de fortuna ou azar para esse mês pudesse exceder os 20 mil milhões de patacas, mas este valor ficou-se pelos 18,5 mil milhões de patacas, um decréscimo mensal de 4 por cento. O facto de o total da receita bruta mensal não ter atingido os valores esperados estará certamente relacionado com a situação macro-económica interna e internacional, bem como com a situação de Macau propriamente dito.

Ao mesmo tempo que se integra na Área da Grande Baía, Macau terá de fazer bom uso dos recursos disponíveis para incrementar a economia da RAEM, atrair mais turistas internacionais, que venham a gastar dinheiro na cidade, e encorajar os seus residentes a comprarem localmente. Estas devem ser as principais prioridades do Governo da RAEM. Quando o Boi morreu de exaustão e o Jumento lhe seguiu as pisadas, o destino dos pássaros que se alimentavam de cadáveres não foi melhor.

22 Mar 2024

O inimigo da paz

“Bibi Netanyahu has an innocent-sounding first name. But he is the danger man for a dangerous region. Even an avid supporter like Trump knows that Bibi doesn’t want peace. On and off, for the 16 years he has occupied Israel’s highest office, he has butchered tens of thousands of Palestinians. Under him, Gaza has endured a 16-year blockade, with itsa 2 million-plus population languishing in a virtual concentration camp. Now, Netanyahu threatens to Hiroshima it with a massive non-nuclear ground invasion.”
Hendrick Kung

Em 2009, Israel regressa às urnas e o Kadima voltou a ganhar com Tzipi Livni, mas não tinha os assentos necessários para governar. Em vez disso, Netanyahu (conhecido por Bibi) consegue-o, graças a um acordo com o líder da extrema-direita Avigdor Lieberman. É o seu segundo governo, ao qual se seguirão outros quatro, que lhe permitirão bater o recorde de Ben Gurion como o primeiro-ministro com mais anos de governo da história de Israel, ou seja, mais de 14 anos de poder, desde 2009, excepto o interlúdio dos governos Bennett e Lapid (Junho de 2021-Dezembro de 2022). Em 2010, Obama reiniciou as negociações à distância entre Netanyahu e Abu Mazen, que foram interrompidas quando Bibi retomou a colonização da Cisjordânia a toda a velocidade. E volta a atacar Gaza em 2012 com a “Operação Coluna de Nuvem”.

Em 2013, ganha novamente as eleições e regressa ao cargo de primeiro-ministro pela terceira vez. No ano seguinte, lança um novo ataque violento contra Gaza para atingir o Hamas. É a “Operação Margem Protectora” (dois mil e duzentos palestinianos e setenta e um israelitas mortos). Em 2015, Netanyahu consegue declarar no “Congresso Sionista Mundial”, como qualquer negacionista, que “Hitler não queria exterminar os judeus, apenas expulsá-los”, mas depois foi atraiçoado pelo Mufti de Jerusalém (tio de Arafat). Mas a maioria dos eleitores continuou a votar nele. Nas eleições antecipadas do mesmo ano, volta a ganhar e forma o seu quarto governo, novamente entre o Likud e a extrema-direita nacionalista e religiosa. No entanto, já estava a ser investigado em três processos diferentes por corrupção, fraude fiscal e quebra de confiança (correspondente ao nosso abuso de poder).

E, ao contrário de Olmert, ataca frontalmente o poder judicial, acusando-o de fabricar falsas acusações contra ele. Em 2018, faz aprovar uma lei constitucional que altera a natureza secular e multiétnica de Israel, transformando-o num “Estado-Nação do Povo Judeu”. No mesmo ano, Netanyahu concorda que o Qatar deve transferir milhões de dólares por ano para o governo do Hamas em Gaza. Numa reunião do Likud, chega mesmo a confessar que “quem quiser impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o reforço do Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia, de isolar os palestinianos de Gaza dos palestinianos da Judeia e da Samaria” (mesmo com o famoso muro de separação, que ele prolonga com uma barreira subterrânea muito cara).

Um conceito que ele irá mesmo reiterar perante a polícia que o interroga num dos seus julgamentos, dizendo “Temos vizinhos que são nossos arqui-inimigos… Envio-lhes mensagens a toda a hora, engano-os, desestabilizo-os, provoco-os e bato-lhes na cabeça… Controlamos a altura das chamas”. Ele ilude-se, como um aprendiz de feiticeiro, para guiar as chamas do Hamas para queimar Abu Mazen. Tal como pensa que está a remover o furúnculo palestiniano sem o curar, mas ignorando-o enquanto espera que desapareça por si próprio. Em 2019, Israel regressa às urnas e Netanyahu volta a ganhar, mas não consegue formar governo e obriga o Knesset a “dissolver-se” por lei e a mandar o país de novo às urnas. Mas nem mesmo desta vez surge uma maioria clara, antes o partido centrista “Azul e Branco” do antigo chefe do Estado-Maior do Exército, Binyamin “Benny” Gantz, ultrapassa o Likud por alguns pontos.

E ninguém consegue quebrar o impasse. Em 21 de Novembro, o procurador-geral Avichai Mandelblit decidiu acusar (ou seja, colocar em prisão preventiva) Netanyahu, que se tornou assim o primeiro primeiro-ministro israelita a ser acusado no exercício do cargo (embora apenas por assuntos correntes). As acusações são de fraude e abuso de confiança em dois casos; e de suborno, fraude e abuso de confiança num terceiro caso. O primeiro caso (fraude e abuso de confiança) diz respeito a presentes muito caros oferecidos a Bibi por dois amigos ricos (o magnata de Hollywood Arnon Milchan e o bilionário australiano James Packer) em troca de favores como a ajuda na obtenção de vistos, facilitação e promoção de interesses comerciais.

Segundo a acusação, os dois terão oferecido ao primeiro-ministro e à sua terceira mulher Sara (uma antiga hospedeira de bordo com quem casou em 1991) mais de duzentos e sessenta mil euros, bem como viagens e estadias em hotéis. No segundo caso (fraude e abuso de confiança), Netanyahu deve responder por ter usado a sua influência política sobre o editor do diário gratuito “Israel Hayom” para favorecer o seu principal concorrente, o jornal “Yedioth Ahronoth”, que deveria retribuir escrevendo bem sobre ele. Mas o acordo acabou por não se concretizar. O terceiro caso é o mais grave (corrupção, fraude e abuso de confiança) e diz respeito às decisões de Netanyahu enquanto ministro das telecomunicações e nessa qualidade, teria favorecido o “guru dos média” Shaul Elovitch, proprietário do primeiro colosso editorial “Bezeq”, para obter boa imprensa no seu site “Walla News”.

De acordo com os investigadores, o primeiro-ministro e a sua mulher Sara, bem como Elovitch e a sua mulher, intervieram continuamente para influenciar o conteúdo do sítio, chegando mesmo a controlar as nomeações de jornalistas. Em troca, Netanyahu terá aprovado regulamentos pró-Elovitch e várias facilidades que renderam ao magnata mais de quinhentos milhões de dólares. Em Israel, os arguidos não podem ser ministros e, se os ministros acabam por ser julgados, o Supremo Tribunal obriga-os a demitir-se. Mas uma lacuna na lei permite salvar os primeiros-ministros que estão a ser julgados, até porque ninguém antes de Bibi tinha estado nessa posição (Olmert tinha-se demitido antes), no pressuposto de que devem sair se forem condenados no recurso. No entanto, é sempre possível que o Supremo Tribunal se pronuncie sobre o caso de Bibi, preenchendo essa lacuna, pois de facto, Netanyahu está a começar a colocá-lo na mira.

Em 2020, como não há acordo, Israel volta às urnas. Desta vez, Netanyahu e Gantz chegam a acordo sobre um “governo de emergência” em forma de estafeta, ou seja, Bibi assume a sua liderança, à espera de passar o testemunho a Benny. A 13 de Agosto, em plena emergência Covid, Netanyahu assina na Casa Branca os “Acordos de Abraão”, mediados pelo seu amigo Donald Trump, com os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein, estabelecendo relações diplomáticas com estes países (à semelhança das sancionados com o Egipto e a Jordânia). Seguiram-se acordos semelhantes com Marrocos e o Sudão. E está a ser preparado o muito mais decisivo com a Arábia Saudita. Tudo sobre a cabeça e a pele dos palestinianos. A grande ideia prevê, pelo menos numa primeira fase, a luz verde para a anexação de 30 por cento da Cisjordânia, ou seja, dos territórios que rodeiam as colónias judaicas. Uma dupla provocação para o povo dos Territórios e para a Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) do cada vez mais fraco Abu Mazen.

E mais um favor inesperado para os extremistas do Hamas. Em 2021, o governo de amplo acordo desmorona-se e tanto Gantz como Netanyahu optam por mais uma votação antecipada. O Likud volta a ser o partido líder, mas Bibi não consegue encontrar o número de assentos para governar. E, desta vez, a oposição une-se contra ele, interrompendo o seu reinado após 12 anos ininterruptos. A 13 de Junho, Naftali Bennett, líder da “Yamina” (a nova federação da direita anti-Likud), aliou-se aos centristas liderados por Gantz e Yair Lapid, mas também a grupos de esquerda e (pela primeira vez) a um partido árabe, e tornou-se primeiro-ministro. A fórmula do revezamento regressa, e os dois primeiros anos da legislatura para Bennett, os outros dois para Lapid. Em Março de 2022, Bennett declara a neutralidade de Israel na guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia.

Apesar da pressão de Biden, apenas envia aos ucranianos armas defensivas, capacetes e escudos militares. E oferece-se como mediador entre Moscovo e Kiev. Mas justamente quando um cessar-fogo parece próximo, (ele próprio o diz) o veto conjunto dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha chega para bloquear tudo. Entretanto, em Telavive, a coligação governamental desmorona-se ao fim de apenas um ano. Em Julho, Bennett passa o testemunho a Lapid, na expectativa de eleições antecipadas em Novembro. As sondagens dão a Bibi o favoritismo, com uma maioria relativa de lugares no Knesset. Mas ele, consciente do desaire do ano anterior, não quer arriscar e continua a ter a espada de Dâmocles de um julgamento sobre a sua cabeça. Por isso, apresenta às urnas uma ampla coligação de extrema-direita com os partidos religiosos “Shas” e “Judaísmo Unido da Torá” e, pior ainda, com a direita fundamentalista “Sionismo Religioso”, uma lista encabeçada por Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir.

Este último, líder do “Poder Judaico”, é um supremacista fanático e fascistóide, repetidamente acusado e uma vez mesmo condenado por incitar ao racismo contra os palestinianos, também famoso por ter ameaçado publicamente Rabin duas semanas antes do seu assassinato. Um aliado indesejável até para os seus amigos americanos na administração de Joe Biden. Nas eleições de 1 de Novembro de 2022, a coligação de Netanyahu venceu com sessenta e cinco dos cento e, após dois meses de negociações frenéticas, Bibi formou o seu sexto governo. O mais à direita de toda a sua história e da história de Israel. Anuncia imediatamente uma reforma contra a justiça para colocar o Supremo Tribunal sob a alçada do governo. Nomeia Aryeh Deri, líder do “Shas”, condenado por suborno e fraude fiscal, para Ministro do Interior, mas o Tribunal obriga-o a demiti-lo. Em vez disso, Ben Gvir torna-se nada menos que Ministro da Segurança Nacional e, a 3 de Janeiro de 2023, estreia-se com uma caminhada na “Esplanada das Mesquitas” em Jerusalém, imitando a caminhada de Sharon que desencadeou a segunda Intifada em 2000.

Poucos dias depois, o exército invade Jenin, na Cisjordânia, onde morrem uma dúzia de palestinianos. No dia seguinte, um ataque palestiniano mata nove israelitas em frente a uma sinagoga em Jerusalém Oriental. E os confrontos voltam a explodir tanto na Cisjordânia como em Gaza. Na política externa, Netanyahu confirma a linha de Bennett com nenhum envio de armas ofensivas para a Ucrânia. Na política interna, o seu verdadeiro inimigo são os magistrados que o julgam e o Supremo Tribunal que o pode expulsar se for condenado. De facto, já em Janeiro, apresentou a sua anunciada reforma judicial, que dá ao governo (ou seja, a si próprio) mais poder na nomeação dos juízes e ao parlamento (ou seja, à sua maioria) o poder de anular as decisões do tribunal com uma votação de 50 por cento +1. É um ataque à divisão de poderes, a pedra angular de todas as democracias, incluindo a israelita.

E, desde Fevereiro, as pessoas saem à rua praticamente todos os dias em Telavive, Jerusalém e em todas as principais cidades do país, protestando contra essa lei, mas também contra outra que é a criação de uma força policial especial, a “Guarda Nacional de Israel”, directamente dependente do ministro Ben-Gvir.

Netanyahu foi em frente, mas a 27 de Março, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, criticou a reforma do Tribunal e o primeiro-ministro expulsou-o na mesma noite, decapitando efectivamente as forças armadas (um gesto de que se arrependeria amargamente alguns meses mais tarde). As ruas e praças ficam ainda mais inflamadas com manifestações pró-Gallant, greves, barricadas, confrontos, marchas, até de soldados e reservistas enfurecidos. Bibi é forçado a voltar atrás no despedimento do ministro. Mas, em Julho, fez com que o Knesset aprovasse a lei anti-judiciária em etapas forçadas, lançando mais achas para a fogueira.

Nessa altura, o Presidente da República Isaac Herzog interveio, apelando a Netanyahu para que retirasse a reforma. Israel nunca esteve tão dividido biblicamente em quarenta semanas de protestos ininterruptos. No final, o primeiro-ministro concordou em congelar a medida enquanto se aguarda uma mesa redonda com as oposições, mas não a da Guarda Nacional. Entretanto, continua a financiar novos colonatos na Cisjordânia como antes e mais do que antes, pois em apenas seis meses, o seu governo aprova a construção de mais treze mil casas do outro lado da fronteira. Trata-se de um recorde desde 2012. E uma escolha tão cínica quanto suicida. Os dados demográficos são impiedosos, dado a taxa de natalidade dos palestinianos ser superior à dos judeus israelitas e uma anexação da Cisjordânia (com o direito automático de voto para os seus habitantes) entregaria em breve a maioria parlamentar à população árabe e “Adeus Estado Judaico”.

Mesmo a ideia de uma anexação parcial é insustentável, porque dizer adeus à fórmula “dois povos, dois Estados” deixaria Israel cercado e sitiado por populações ainda mais hostis do que é actualmente. É impensável imaginar um paraíso rodeado de inferno. Sharon compreendeu-o em 2005. Netanyahu não o entendeu agora e varre o pó velho para debaixo do tapete e acumula pó novo. Em 1993, ano de Oslo, havia cento e trinta e seis mil colonos na Cisjordânia. Depois, Rabin reduziu-os e Sharon também, desde 2004. Actualmente, são cerca de quatrocentos e setenta mil na Cisjordânia e duzentos e trinta mil em Jerusalém Oriental, distribuídos por duzentos e setenta e nove colonatos em que metade deles nem sequer são reconhecidos pelo governo, ou seja, duplamente abusivos. Ocupando os territórios palestinianos mais férteis e ricos em água, os colonos são mal vistos pelos invasores, despojados de terra e água, muitas vezes expulsos das suas casas, não raro destruídas para os mandar embora.

Por isso, Israel é obrigado a fazer enormes esforços para os proteger, com cerca de quinhentos postos de controlo e grande parte do exército reduzido à sua escolta armada. Na frente norte da Cisjordânia, o governo de Netanyahu mantém vinte e seis batalhões do exército, deixando os serviços secretos (outrora os melhores do mundo) sem bússola, e a frente sul de Gaza, guarnecida por apenas duas companhias de recrutas e a polícia local, desprotegida. Para Netanyahu, o Hamas já não é uma emergência, dado que em 2023, o Governo deixa de pôr os seus dirigentes sob escuta para “não desperdiçar recursos”. E logo na frente sul, às 06h30 de 7 de Outubro de 2023, no dia seguinte ao 50.º aniversário da guerra do “Yom Kippur”, enquanto Israel festeja a “Simchat Torah” (Alegria da Torah), o Hamas lança a operação “Dilúvio de Al Aqsa” com dois mil e quinhentos terroristas que se infiltram de Gaza em Israel, atravessando a fronteira a bordo de carrinhas, camionetas, motos, asas-delta e parapentes.

E atingem vários “kibutzim” na fronteira com a Faixa de Gaza e uma festa Rave. O Estado judaico é apanhado totalmente desprevenido, exactamente como no Kippur, cinquenta anos antes, e apesar dos avisos dos serviços secretos egípcios e americanos sobre o perigo iminente de Gaza. É uma carnificina, um ” pogrom”, o pior massacre de civis jamais sofrido por Israel com cerca de mil e quatrocentos mortos num dia (incluindo muitas crianças, rapazes e mulheres) e duzentos e trinta e nove reféns. Netanyahu, agora no fim da corda, proclama o estado de guerra, como não fazia desde 1973. Tenta recompor o país que ele próprio dividiu, com um governo de unidade nacional a que se junta Benny Gantz. E desencadeia a operação “Espada de Ferro na Faixa de Gaza” que é um cerco com lançamentos indiscriminados de mísseis, ataques aéreos e incursões por terra, mar e ar, que cheira a retaliação decidida com raiva, a “vingança colectiva” contra a população, uma vez que os dirigentes do Hamas estão quase todos no estrangeiro, entre o Qatar e a Síria.

Os relatórios da ONU são aterradores e indicam sete mil palestinianos mortos, incluindo três mil crianças, só nos primeiros vinte dias; 40 por cento das casas destruídas; cerca de seiscentos mil deslocados (mais de um quarto da população) em fuga para a parte sul da Faixa de Gaza e para o deserto do Negev; uma catástrofe humanitária e sanitária; ajuda alimentar em abundância que demora muito a chegar aos destinatários (as fronteiras com o Egipto e Israel estão seladas, salvo algumas brechas esporádicas). E uma catadupa de anúncios loucos de invasão de terras sem um plano ou uma saída. Até à data, o número de mortos subiu para trinta e um mil e trezentos e de feridos para setenta e três mil e cem. Todos os dias estes números aumentam e a comunidade internacional não tem uma solução imediata para parar a carnificina.

Entretanto, o Hamas, longe de estar enfraquecido, continua a atacar o Estado judaico com quase dez mil rockets em três semanas. E atinge dois dos seus objectivos com o “pogrom” que é o congelamento dos novos “Acordos Abraâmicos entre Israel e a Arábia Saudita” e uma guerra aberta com o Estado judaico na selva de Gaza. Se, a 7 de Outubro de 2023, Israel tinha regressado por um dia ao lado da direita, ou pelo menos do agredido, em poucas horas Netanyahu conseguiu a árdua tarefa de o fazer regressar ao lado errado, ou pelo menos do agressor. A profecia de Gandhi torna-se realidade pois à força de “olho por olho”, ficaram todos cegos.

21 Mar 2024