Ficção? Já foi

Escrevia há tempos nesta página que vivíamos tempos interessantes convicto de atravessarmos um período de profunda transição onde grande parte do que temos vindo a assumir como pressupostos de vida se vêem em profunda crise. Admitia estarmos à beira de uma revolução. Não necessariamente daquelas com ao tiro e à bomba (quer dizer…) mas uma profunda remodelação de forma de vida. Todavia, não pensava que a coisa pudesse ser tão dramática.
Lia a semana passada um artigo (https://bit.ly/aistatus) de Scott Santens, escritor, activista e psicólogo (scottsantens.com), uma explanação brilhante sobre o estado actual da Inteligência Artificial (IA), um assunto que, aliás, o Hoje Macau (HM) abordou na edição de ontem. Basicamente, argumenta ele que, e copio do artigo de ontem, “quando o AlphaGo derrotou o tricampeão Europeu de Go a comunidade científica começou a perceber que as mudanças que se esperavam bem mais para frente vão começar bem mais depressa. Apenas meses antes, vários especialistas entendiam que precisaríamos de mais uns 10 anos para tal ser possível.” Argumenta ainda Santens, com base num estudo do Bank of America do final do ano passado sobre a revolução robótica (https://bit.ly/botrevolution), que esta conquista é apenas mais um sinal que passámos do paradigma da evolução tecnológica linear para uma evolução parabólica, significando isso que a partir de agora tudo vai acontecer a um ritmo muito mais acelerado.
Scott faz ainda referência a vários sistemas de inteligência artificial actualmente em desenvolvimento, com especial destaque para o “Amélia” da IPsoft, em beta teste em várias grandes empresas mundiais, que irá substituir todos os serviços de assistência ao cliente e de telefonistas, estimando-se na ordem dos 250 milhões de postos de trabalho (!) a serem extintos em todo o mundo. “Amélia”, descreve Santens, aprende em segundos o que a nós, humanos, leva meses e fala mais de 20 idiomas. Mas há mais: um estudo da Universidade de Oxford prevê que nos próximos 20 anos cerca de metade dos empregos nos Estados Unidos venham a ser entregues a máquinas porque elas já não se vão limitar a actividades mecânicas e repetitivas mas chegar muito mais longe. Até às artes…
Isto leva-nos à questão essencial: se as máquinas vão fazer o nosso trabalho, nós vamos fazer o quê? Se as empresas vão ter trabalhadores gratuitos, para onde vai o dinheiro? Scott encontra-se no grupo, onde se inclui Andrew Ng, cientista chefe da Baidu e fundador do projecto de Deep Learning “Google Brain” entre muitos outros, que advoga o rendimento universal garantido para toda a gente e a necessidade urgente que os governos têm de se debruçar sobre o assunto. Porque vai ser um problema, algo que vai transfigurar a vida na Terra sem comparação com algo visto no passado.
Por isso, torna-se absolutamente necessário que todos, e não apenas os governos, em casa, nas escolas e entre grupos de amigos comecemos a debater o advento da IA pois quanto mais se pensa mais são as questões que se levantam. Como vamos reagir ao ócio? Como vão reagir as máquinas? Que vamos fazer com a nossa vida? Como é a vida quando o trabalho desaparecer?…
Isto, claro, partindo do princípio que as máquinas não nos vão tomar como um vírus e acabar connosco como, aliás, Stephen Hawking e até Bill Gates temem. Para já, sinto apenas reforçada a ideia de que o discurso político do crescimento económico está morto e enterrado e tem de ser substituído pelo discurso da distribuição, pelo da mudança de paradigma de vida.
Mesmo após a pesquisa que efectuei, parece-me irreal escrever sobre isto. Mas não é. A verdade é que estamos prestes a entrar na realidade de “2001: Odisseia no Espaço”, “Ex Machina”, “Matrix” e “Exterminador” todos juntos e de uma assentada. Porque não é apenas a IA em plena evolução pois, como a Boston Dynamics está farta de provar, os robots já mexem e andam quase como nós. Ao ponto da Google querer vender esta sua divisão pois as imagens do seu mais recente robot, o Atlas, estão a apavorar meio mundo. Em boa verdade, não é muito difícil imaginar um bicho daqueles com uma arma nas mãos deixando-nos a pensar no que andarão a fazer os produtores de armamento no segredo dos seus laboratórios…
Stephen Hawkins, no final do ano passado, disse mesmo que as máquinas podem acabar connosco porque são muito inteligentes. De facto, quando ainda brandimos Corões e Bíblias para provar um qualquer ponto invisível no céu e destruímos o meio ambiente para ganhar mais uns trocos, esta assumpção não tem nada de extraordinário.
Estamos perante uma revolução como nunca foi vista. O prof. Lionel Ni, no artigo de ontem do HM, comparava a emergência da IA com a invenção da máquina a vapor mas eu acho que ele está ser demasiado comedido. Para mim, o que aí vem situa-se para além do domínio do que consideramos fantástico. Com uma pequena diferença: é híper real e está aí, a bater-nos à porta. Já não é ficção.

Música da Semana

David Bowie – Saviour Machine (1970)

Your minds are too green, I despise all I’ve seen
You can’t stake your lives on a Saviour Machine

I need you flying, and I’ll show that dying

Is living beyond reason, sacred dimension of time
I perceive every sign, I can steal every mind

Don’t let me stay, don’t let me stay
My logic says burn so send me away

30 Mar 2016

Quem foi, foi

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uem foi outrora um amante e o deixou de o ser, junta-se à colecção daqueles que deixámos para trás, mas que, ainda assim, preenchem histórias e as memórias românticas/sexuais de uma vida. As separações e os divórcios vão acumulando um manancial de pessoas popularmente conhecidas por ‘ex’. Pessoas com quem partilhámos grandes momentos de intimidade, sem roupa, com gemidos, outros sorrisos e às vezes choros. E agora já não se partilha: é a morte do conjunto, da sinergia. O fim de relacionamentos românticos traz a dor de perda e a necessidade de um processo de luto, com a excepção que ninguém morreu, só o relacionamento. Morrem relacionamentos, partem-se corações, fala-se de dor e chora-se (bastante) por ela, perdemo-nos em ataques de ansiedade e em negativismo. A vida nunca será a mesma. E com corações partidos criam-se mundos de vidas, de músicas, literatura e arte. Não só pela necessidade de ventilação pelo criador, mas pela partilha que poderá levar a tantos outros corações a se sentirem entendidos. Há sempre corações a precisarem de cura.
Independentemente da duração do relacionamento, cada um de nós desenvolve-se e cresce em função desta ligação que apareceu com a mais bela história de amor e de sexo e que, por várias razões, pode torna-se num thriller de ansiedade e tristeza. Acabar com um relacionamento traz dificuldades emocionais, por mais psicologicamente apto que uma pessoa se possa sentir. A nossa identidade é moldada e incorporada na coisa que se cria. A coisa que se cria é uma vida a dois que, ao terminar, obriga a um renascimento individual. Torna-se num período de negociação de identidade, e o luto não é só do desaparecimento do outro, mas do desaparecimento de si próprio com o outro.
Não admira, portanto, que mesmo com relacionamentos que estejam com os pés para a cova e a morte esteja mais do que anunciada, que a tristeza persista. Para os não-pessimistas a cisão permite mudança e oferece-nos liberdade para fazermos aquilo que nos dá na gana. Mas o desconhecido não deixa de ser o desconhecido, nem deixa de ser assustador para muitos.
O que deixámos no passado são pessoas que muito provavelmente nos tocaram nus e com quem fodemos continuamente. Por isso, para além de um coração partido temos um sexo destroçado. Os órgãos nunca mais se tocarão, os corpos nunca mais se enrolarão nos lençóis que trocaram em conjunto. Porque se há um coração em sofrimento e uma cabeça num constante diálogo interno de raiva, insatisfação e de auto-comiseração, o sexo demorará a encontrar uma nova via de expressão. Depois de um hábito sexual, por mais excitante que seja diferença, o sexo sente-se arrancado do conforto que é estar com alguém de quem se gosta e de quem se conhece as manhas (sexuais).
Os popularmente conhecidos como ‘rebound’ são aqueles engates de pouca ligação emocional: uma ligação estritamente sexual na esperança que o acto faça esquecer o anterior amante e amor. O problema, e muitos esquecem-se disso, é que não se trata de uma forma de resolução eficaz, bom sexo não vai cuidar uma ferida emocional da mesma forma que um sentimento de satisfação pessoal vai em muito influenciar sexo potencialmente espectacular, ou seja, alta auto-estima resulta em sexo fantástico, mas sexo fantástico não vai necessariamente contribuir para um aumento de auto-estima, especialmente quando nos sentimos emocionalmente debilitados por uma separação.
Se há dicas para emocionalmente ultrapassar separações, com alguma certeza afirmo que não há dicas para o luto sexual por aí. O pénis e a vagina precisam de ser ouvidos e entendidos, de alguma forma. No remoinho maniaco-depressivo onde o coração e o cérebro se encontram em permanente conflito, quanto espaço o sexo precisa?

29 Mar 2016

A Europa em risco de desintegração

“The European Union, in turn, would be diminished by Britain’s departure. Britain would cease to play its historic role of maintaining a balance between hostile blocks on the continent. Its departure would powerfully reinforce a process of economic and political disintegration that is already under way.”
The Tragedy of the European Union: Disintegration or Revival?

George Soros and Gregor Schmitz

O sistema de controlo de fronteiras europeu teve fortes probabilidades de se estalar em pedaços, após a reunião a 7 de Março de 2016, entre a União Europeia (UE) e a Turquia. Estava em causa o problema dos imigrantes, pois mais de cinquenta mil refugiados da Síria e do Iraque inquietam a Grécia, que não sabe o destino a dar-lhes, enquanto os países próximos, liderados pela Áustria, constroem barreiras físicas e impõem rígidos controlos. O primeiro-ministro inglês e o presidente francês, entretanto, reuniram-se na França, por causa das comemorações relativas ao centenário aniversário da batalha do Somme, a mais sangrenta da I Guerra Mundial.
A ansiedade do primeiro-ministro inglês reside no próximo referendo britânico que decidirá se existirá “Brexit”, ou seja, se a “Ilha” abandona ou não a UE. O presidente francês, não consegue entender esta frivolidade inglesa, quando a Europa faz face ao enorme problema dos refugiados, apelidada de nova invasão dos bárbaros e a uma grave crise económico. A chanceler alemã jogava o seu futuro político, pois necessitava de convencer a Turquia, a assumir o papel da Grécia e conter as centenas de milhares de refugiados no seu território, em troca de importantes ajudas económicas, que seriam de três mil milhões de Euros iniciais e a promessa de retirar do congelador a integração da Turquia na UE.
A Turquia não é fácil de ser convencida, mais quando, está envolvida no conflito militar generalizado da Síria, e na sua eterna luta contra os curdos. Os Estados membros da UE, pela primeira vez, não demonstram vontade de assumir posições colectivas e preferem a situação oposta, privilegiando soluções nacionais, como é evidente nos casos da Hungria, Áustria, Eslovénia e da Macedónia (Estado candidato à integração desde 2004). Esta sintonia pode ser nefasta, agravada em caso da saída britânica, conjuntamente, com um agravamento da crise de refugiados, a UE não ficaria destruída, mas irremediavelmente prejudicada e com menor relevo global.
A UE com quinhentos milhões de habitantes pode absorver um milhão de refugiados por ano, devidamente repartidos entre os seus Estados membros, após resolução das crises económicas e financeiras de alguns países e do desemprego. A Alemanha não tem capacidade para resolver por si só, o grave problema que atormenta a Europa. Existe o risco de várias divisões. A primeira é Norte-Sul, onde o esquema de Schengen, constituído pelo grupo de países que aceitam estrangeiros em um dos países membros, sendo suficiente para que se desloquem pelos demais, pode ser anulado. A segunda, também Norte-Sul, é o futuro do Euro. A moeda comum tem fortes condicionantes em países como a Grécia, mas também, em Itália, Espanha e Portugal. A terceira, é uma nova divisão Este-oeste, onde os governos democráticos ocidentais começam a sentir dificuldades, com regimes com tendências autocríticas como nos Balcãs, todos herdeiros de anos de dominação do modelo soviético.
O “Brexit”, o novo fantasma que agoira a Europa, e que ninguém parece animado a prever o resultado do referendo inglês, é incómodo, pois o resultado pode ser “SIM” e o Reino Unido sai da EU, e poderá acontecer que a Suécia e a Dinamarca sigam o desastroso exemplo. Após um lento processo evolutivo de integração de sessenta anos, emerge a possibilidade do retrocesso. A UE iniciou negociações com a Turquia a 28 de Fevereiro de 2016, para tomar medidas para cortar o fluxo de imigrantes que entram na Europa, e em troca, receberá ajuda financeira e apoio à sua pretensão de entrada no bloco dos vinte e oito Estados membros. Assim, o governo turco foi pressionado pela UE e pela Alemanha para rejeitar sistematicamente imigrantes não sírios, e a tomar medidas para combater o contrabando, tendo chegado a uma plataforma de entendimento.
A sua implementação, apesar das contrapartidas tentadoras irá ser muito difícil, pois o seu conteúdo, tem por objectivo terminar com a crise de imigração que assoma a Europa. As estratégias implementadas para reduzir a quantidade de pessoas que fogem para a Europa fracassaram. A Turquia concorda em aceitar todos os imigrantes resgatados, em águas internacionais pela missão da NATO. O presidente do Conselho Europeu, advertiu que as portas da Europa se encerravam para todos os que não estavam a ser perseguidos, e assim, em conformidade com tal aviso, a Europa implementará o seu sistema de devolver os imigrantes sem condições de poderem obter o estatuto de refugiado. É de notar que cerca de duas mil pessoas chegam diariamente, às ilhas gregas, sendo metade de não sírios, e em 2016, chegaram por mar aos países europeus, um milhão e duzentos mil imigrantes.
O acordo com a UE é muito sedutor, pois a Turquia recebe o equivalente a seis mil e seiscentos milhões de dólares para deter os refugiados; visto para os seus cidadãos poderem entrar nos Estados membros e negociações para integrar a UE. A Turquia para controlar as entradas dos imigrantes, como contrapartida, recebe muito mais do que lhe foi oferecido há seis meses. A questão dos refugiados ameaça a unidade europeia, e provoca uma enorme e não prevista crise. O acordado menciona que cada refugiado que a Turquia leve para o seu território da Grécia, a UE aceitará um refugiado sírio, tendo começado a produzir efeitos, desde 17 de Março de 2016, e não para momento posterior a ser negociado, como se tem vindo a afirmar.
O acordado só não estaria em vigor nessa data, se a Turquia por razões fortemente fundamentadas e reais, apresentasse novas exigências. É uma aposta colossal que veio comprometer o futuro político do chanceler alemã, como era de prever. O estreitar de relações com a Turquia, trouxe um profundo descontentamento a diversos Estados membros, pois o seu governo, diariamente, torna-se mais autoritário, e no momento das negociações, privou do exercício de actividade um jornal opositor. O acordo significa um retorno em massa de refugiados que enchem os alojamentos provisórios de toda a Grécia, e obrigam a implementar medidas de segurança excepcionais nos Balcãs, Hungria, Eslováquia e Áustria, permitindo que a UE se concentre nos seus problemas económicos, em especial na falta de crescimento e recessão.
A maioria dos Estados membros da UE estão incomodados por um acordo cozinhado exclusivamente entre a Alemanha e a Turquia, à margem das instituições da UE, que previam estar a trabalhar no acordo. A Alemanha teve eleições regionais a 13 de Março de 2016, tendo a extrema-direita populista ganho à direita, e o líder conservador da “União Social – Cristã da Baviera (CSU, na sigla em língua alemã) ” e primeiro-ministro do estado da Baviera, ter renovado os seus ataques à chanceler alemã, aquando do seu triunfo nas eleições. A CSU é meio-irmão da “União Democrata – Cristã (CDU, na sigla em língua alemã) ” da chanceler alemã, prometendo retomar a sua luta contra a política de refugiados do governo federal, após o enorme avanço do partido anti-imigração “Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em língua alemã) ”, com três anos de existência, ter obtido resultados inéditos nas eleições, sendo no estado federado da Saxónia – Anhalt de 22,8 por cento dos votos.
O que aconteceu nas eleições regionais não pode ser ignorado, pois tratou-se de um movimento tectónico na paisagem política alemã, tendo aumentado as pressões sobre Angela Merkel, que tudo fez para conseguir apoio à sua política de portas abertas aos refugiados, antes de começar o Conselho Europeu de 17 e 18 de Março de 2016, que iria aprovar os resultados da “Cimeira da União Europeia e Turquia”, realizada a 7 de Março de 2016, e o subsequente acordo, resultado de intensas e difíceis negociações continuadas após a Cimeira. A Alemanha promotora do acordo com a Turquia provocou não apenas uma desusada tensão política interna, mas também dentro da UE. O acordo estabelece que a Turquia aceita que a UE lhe devolva todos os imigrantes que cheguem de forma ilegal, com as contrapartidas anteriormente discutidas e aceites.
A chanceler alemã fiel à sua ideia, respondeu a todos os ataques, prometendo manter a sua posição, e sem contar, sofre uma importante derrota frente ao partido anti-imigração. Tal resultado afirma claramente que o discurso populista encontra uma terra de cultivo ideal para os alemães expressarem o seu descontentamento com a entrada de um milhão de refugiados, atribuindo-lhes todas as dificuldades porque passa a Alemanha e toda a UE. A Alemanha perdeu apoio e controlo na Europa. O gatilho para fazer explodir a bomba foi a invasão de imigrantes. A política de portas abertas para os refugiados ressoa por todo o mundo. O pré-candidato republicano Donald Trump, considerado como um dos perigos globais, afirmou que a Alemanha era um desastre e muitos líderes europeus, especialmente da Europa de Leste, partilham a mesma opinião, e por tal razão, a extrema-direita ganhou as eleições regionais.
É estranho que a reacção não se tenha produzido antes, se pensarmos que a Alemanha recebeu mais de um milhão de refugiados, em menos de um ano. Além do assunto dos refugiados, é evidente que a posição de Angela Merkel, cada dia se debilita mais no cenário mundial. O ano passado, por contraste, encontrava-se no apogeu do seu poder, e quinze dias antes, negociou um rápido, desesperado e instável acordo com a Turquia para travar a entrada de refugiados na Alemanha, e como resultado perdeu as eleições. A perda de autoridade sofrida, quer na Alemanha, como na Europa, alimentam-se mutuamente, porque a incapacidade de deter a entrada de refugiados na Europa, desgastou o apoio que tinha no seu país, e os eleitores começaram a virar-lhe as costas.
A ideia de que os turcos possam entrar sem visto na Europa, desagrada fortemente o presidente francês, e as críticas intensificaram-se até à realização do Conselho Europeu. Todavia, muitas da críticas são profundamente injustas, pois a Alemanha não é responsável pela guerra civil na Síria, nem pela existência do Estado Islâmico e ressurgimento dos talibãs no Afeganistão. Os resultados das eleições regionais na Alemanha são uma clara penalização para os dois grandes partidos que dominam a vida política alemã há setenta anos, a CDU de Angela Merkel e o “Partido Social-Democrata Alemão (SPD, na sigla em língua alemã) ” devido às suas políticas de abertura aos refugiados, mas também para a UE.

24 Mar 2016

Rota do prazer

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou editor, não sou escritor, não sou organizador de nada. Nem mesmo da minha vida, que de cada vez que julgo estar a reorganizá-la se desorganiza logo de seguida, por qualquer razão, deixando-me sem jeito.

A confrontação com esta realidade ajuda-me a imaginar, porque não posso fazer mais do que isso, o que será a organização de um festival literário que envolve cerca de seis dezenas de entidades, entre patrocinadores principais e secundários, muitos editores e dezenas de autores que chegam dos cinco continentes, visitas a escolas, momentos e espaços para crianças, jovens e adultos, palestras, conferências, exposições, espectáculos musicais, do fado à ópera chinesa, projecção de filmes, lançamento de livros, reservas em hotéis, serviços de catering, organização de viagens, coordenação de horários, workshops de escrita e leitura, sessões de poesia, acompanhamento de convidados, num conjunto de actividades que se desenrola em múltiplos espaços, com recolha de imagens, e onde tudo acontece em três línguas que nada têm em comum (português, chinês e inglês), havendo por isso mesmo exigências de tradução simultânea para que as iniciativas recolham o interesse do público e não se tornem numa chatice.

Se a tudo isto somarmos o facto de haver público interessado, de várias nacionalidades e de todas as idades, de diariamente se poderem ler entrevistas nos jornais locais com os autores convidados, escutar programas na rádio ou ir acompanhando o que se vai passando pela televisão, vendo-se crianças, jovens, adultos e menos jovens, pais e filhos, ouvindo, debatendo, discutindo, aprendendo em salas cheias, sendo possível encontrá-los em simultâneo nos diversos eventos sem que a idade, a experiência ou o currículo façam alguma diferença, e em que os que gostam de livros se misturam com os que começam a gostar por se sentirem estimulados pelo ambiente para gostarem e apreciarem a leitura e a escrita, poder-se-á ter uma ideia, estando longe, do trabalho envolvido e da importância de uma iniciativa desta natureza numa cidade de 650 mil habitantes.

Existe nisto tudo uma dimensão extraordinária, que vai para lá daquilo que seria a imaginação quando a poucos quilómetros daqui a censura é um dado adquirido, não há liberdade de acesso à Internet, raptam-se editores e livreiros e há quem cumpra pesadas penas pelo simples facto de não pensar de acordo com os cânones oficiais. É verdade que mesmo aqui a democracia não passa de uma miragem, mas ter a possibilidade de ouvir quem vem do outro lado da fronteira discutir abertamente com quem chegou de países livres e de terras de democracia consolidada questões relacionadas com a liberdade de expressão e de edição e com os direitos humanos faz da Rota das Letras um espaço único de intercâmbio de ideias, de reflexão, de crítica e debate.

A cidade abre-se para receber os visitantes, acompanhá-los e aprender com as suas experiências. Torna-se possível falar abertamente com os autores, ouvir o que têm para contar e ensinar, e tudo pode acontecer numa sessão de apresentação de uma obra, num workshop ou partilhando-se uma refeição que a própria organização se encarregou de preparar com inscrições abertas a quem queira participar. E até pode dar-se o caso de se ser apresentado e almoçar ou jantar com autores que nunca se leu e em que a leitura é estimulada por esse encontro. Numa dessas ocasiões, estando eu já sentado com mais alguns convivas numa das mesas de um restaurante por onde a Rota passou, vieram perguntar-me se ali à minha beira se podiam sentar três dos autores. Tive então o gosto de conhecer e trocar impressões com gente de estilos e preocupações muito distintas — um é escritor, tradutor e professor da Universidade Nova, com passagens pelo Massachusetts e Vermont, o outro é especialista em Pessanha e Bocage, escreveu sobre Moraes e Raul Proença, e o terceiro é uma das estrelas da nova literatura do Brasil, vencedor do Prémio Machado de Assis, reconhecido cronista e foi escritor-residente da Universidade da Califórnia (Berkeley) — no que se revelou um momento de excelente convívio que me fez interessar por escritas para mim ainda desconhecidas. Não deixa de ser fascinante poder ler um autor consagrado que não se conhecia depois de se ter tido a sorte de com ele conviver primeiro. Em vez de se ler o livro ou conhecer a obra e só depois, um dia, encontrar o autor, toma-se um outro percurso. O exercício aqui será o de procurar na escrita os traços da pessoa com quem se esteve, de tentar encaixar e reconhecer o homem na sua obra e nas próprias palavras.

Sublinho nestas linhas a Rota das Escolas, parte do programa que passou pela Universidade de Macau, pelo Instituto Politécnico de Macau, pelo Instituto de Formação Turística, pela Universidade de S. José, pela Escola Portuguesa e por outras escolas chinesas e internacionais, pela importância que tem na atracção de gente jovem para a leitura e a escrita. Outros marcos foram o relevo dado à divulgação de literaturas menos conhecidas da região onde Macau se insere e a renovação da aposta na divulgação de autores dos países lusófonos, aliás em linha com o que vinha de trás. A pujança de que a língua portuguesa nesses países dá mostras nos diversos géneros em que se manifesta é garantia da sua continuidade e perenidade nas suas múltiplas expressões, cada vez mais avessas — é a minha convicção pelo que tenho visto e ouvido — a qualquer espartilho ortográfico que force a sua unificação e se sobreponha à liberdade de criação por razões comerciais.

Tenho pena, porque não estava de férias, de não ter estado em todos os lugares em que gostaria. Culpo-me por ter falhado apresentações de livros onde gostaria de ter estado e de não ter ouvido mais autores, consolando-me apenas com o facto de os seus livros por cá ficarem. Entretanto, seria muito importante que a equipa se mantivesse, que a Rota das Letras pudesse continuar a contar com o dinamismo, a experiência e o amor às letras do Ricardo Pinto, do Hélder Beja, do Yao Feng e de toda aquela gente jovem e interessada, entre tradutores e voluntários, que se esforça para que tudo corra bem. E que o festival visse o seu público crescer, penetrando mais fundo na comunidade, se possível em espaços mais amplos e bairros mais recuados, tornando-se num pilar da existência, infelizmente cada vez mais erodida, em especial em matéria linguística, de um segundo sistema na RAEM.

A Rota podia ter durado mais uma semana, talvez mesmo mais duas ou mais três. Mas não. Acabou porque tinha de ser assim. Não houve prolongamento e tornou-se inútil o desempate por grandes penalidades porque já se sabia que seria a equipa dos livros e da leitura a vencedora. O público aplaudiu e anseia por mais. A 5.ª edição da Rota das Letras acabou porque tudo tem o seu tempo e entre duas edições é preciso recomeçar tudo outra vez, fazer de novo para voltar a ser diferente em 2017. Venha então a 6.ª edição, se possível depressa.

23 Mar 2016

Confidencialidade ou segurança

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]semana passada o website “Yahoo” publicou um artigo sobre a companhia aérea alemã “Germanwings(GmbH), do qual extraímos o texto que se segue:
“A GmbH, sediada em Colónia e subsidiária da Lufthansa, é uma companhia aérea alemã low-cost.
“A 24 de Março de 2015, o Airbus A320-211, com a chapa D-AIPX, no decurso do Voo 9525, de Barcelona para Dusseldorf, despenhou-se no sul de França, perto de Digne-les-Bains, tendo morrido todos os ocupantes do aparelho. O voo transportava 144 passageiros, dois pilotos e quatro assistentes de bordo. O procurador francês, as autoridades aéreas, francesa e alemã, e o porta-voz da GmbH foram unânimes em afirmar que o desastre tinha sido intencionalmente causado pelo co-piloto, Andreas Lubitz de 27 anos de idade.
A 29 de Março de 2015, Phil Giles, investigador aposentado da Agência Britânica de Investigação de Acidentes Aéreos, em declarações ao Independent, afirmou que a GmbH (logo a Lufthansa) teria de dar satisfações sobre o estado de saúde mental do co-piloto. Lubitz esteve de baixa durante vários meses enquanto fazia a sua formação de voo e a Escola de Formação de Pilotos teve conhecimento que, em 2009, o co-piloto sofreu uma depressão grave. Antes de ter ingressado nesta Escola, Lubitz recebeu tratamento por ter evidenciado tendências suicidas.
A seguir ao acidente, a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) passou a recomendar que deveriam estar presentes no cockpit, sempre, dois funcionários autorizados. As diversas companhias aéreas do grupo Lufthansa, em consonância com as autoridades para a aviação, outras companhias e a Associação para a Indústria da Aviação, daquele País, adoptaram um protocolo no sentido de ser obrigatória a presença no cockpit de dois funcionários autorizados, em todas as circunstâncias.”
O website Yahoo sugeria ainda que, para prevenir a ocorrência de outros casos semelhantes, todos os pilotos deveriam ser submetidos a exames clínicos mais sérios e que os relatórios médicos não deveriam ser confidenciais. Caso se detecte que um piloto sofre de qualquer perturbação psicológica a companhia aérea deverá ser informada.
Embora esta medida se proponha assegurar, na medida do possível, a integridade dos passageiros, levanta-se a questão da privacidade dos pilotos. Até que ponto é que as companhias aéreas deverão ter acesso à informação clínica dos seus pilotos? Não é uma questão fácil. À partida poderemos pensar que qualquer perturbação física ou psicológica, que afecte a capacidade de dirigir um avião, deverá ser comunicada. Por outras palavras, a companhia aérea deve ter acesso à informação clínica relevante, não a toda a informação. Neste caso, a informação relevante, como o seu nome indica, é apenas aquela que se prende com a capacidade de o piloto exercer em pleno as suas funções. Caso não esteja capaz, a companhia terá obrigação de o substituir.
E que tipo de médico deverá seguir um piloto? Um médico de família? O médico da companhia aérea? Um clínico privado? Só se a companhia aérea for responsável pelo seguimento clínico dos pilotos se poderá ter a certeza que vai estar a par da informação relevante.
Do ponto de vista ontológico, estará o médico autorizado a quebrar o sigilo profissional? Não nos podemos esquecer que as questões relacionadas com a saúde são de âmbito privado. À partida, sem a autorização expressa do doente, o médico não tem autorização para revelar a sua ficha a terceiros. Para que esta sugestão seja implementada é provável que a companhia aérea venha a ter de inserir uma clausula no contrato de trabalho, que salvaguarde ser necessário prova de que os pilotos gozam de boa saúde física e mental, quando assumem os comandos de um avião. Nesse caso a companhia deverá ter médicos que certifiquem a saúde dos pilotos. Estes deverão sujeitar-se a exames médicos, digamos, uma vez por ano.
Este acordo deverá ser feito entre a companhia aérea, o médico e o piloto. Não é necessário acrescentar qualquer emenda à Lei. O dever de sigilo profissional dos médicos não será no geral afectado por esta medida, porque à partida os pilotos concordam que os problemas de saúde, susceptíveis de influenciar o voo, deverão ser comunicados à companhia.
Agora, fazemos outra pergunta. Que outros ramos de actividade poderão adoptar o mesmo procedimento? Todos aqueles que possam directamente pôr em risco a vida das pessoas. As companhias rodoviárias poderão pertencer a esta categoria. Lembramos que em Setembro de 2010, em Junho e em Novembro de 2012, ocorreram em Hong Kong acidentes graves com autocarros, causados por problemas de saúde dos motoristas.
A seguir aos acidentes a maior parte dos membros do Conselho Legislativo recomendou que se fizessem exames clínicos mais sérios aos condutores. A recomendação nunca foi implementada.
Se a esta sugestão seguir em frente, será bom considerar estendê-la a todas as profissões que envolvam risco à integridade das pessoas. Não se trata de cuidar da saúde do individuo B ou C, trata-se de uma questão de segurança pública.

* Consultor Legal da Associação de Promoção do Jazz em Macau

21 Mar 2016

O Sotaque

Era eu estudante do Liceu e tinha umas amigas de origem africana que, quando juntas, falavam português com um sotaque próprio da terra delas. Faziam-no a brincar, mas não eram propriamente low-profile quando o faziam e até era visível um certo orgulho da parte delas.
Um dia, para provocar, perguntei-lhes porque apenas falavam assim quando entre si: ou seja, para onde ia aquele sotaque quando falavam comigo e com outros, porque revertiam logo para um português de pronúncia neutra?
A resposta que obtive foi categórica: “e porque não falas tu com sotaque macaense quando estás connosco?”

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No meu ano de caloiro no Porto fui um dia jantar com uma conterrânea minha, Macaense, estudante universitária que já lá estava desde o ano lectivo anterior.
À boa maneira maquista, a nossa conversa à mesa foi feita num misto de português e chinês. Contudo, quando chegou o empregado de mesa e começámos a fazer o pedido, algo de totalmente inesperado deixou-me boquiaberto: da minha amiga, Macaense de gema com apenas um ano de vivência na Invicta, saiu um português com fortíssima pronúncia do Porto.
Frase que me ficou na memória: “E para mim é um cuópu de beinho bráunco”.

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Uma das coisas que me fascina em Singapura é o Singlish, uma vez que representa bem o melting pot que é aquela Cidade-Estado.
Além disso, não posso deixar de achar piada ao sotaque dessa particular forma de inglês e, sendo eu falante de chinês, consigo compreender na perfeição algumas expressões típicas do Singlish.
Uma das minhas favoritas é o “like this also can” (leia-se “lái this also caaaaaan”), equivalente ao kam tou tak (*) em chinês.
Costumava ir com alguma frequência a Singapura. Em tempos fui convidado para o casamento de uns amigos meus e, na igreja, tive de fazer uma leitura em inglês. No final da cerimónia uma senhora veio dar-me os parabéns pela minha excelente pronúncia.
Fiquei surpreendido pois sempre considerei o meu inglês uma mistela, um broken english fruto do que aprendi no Liceu – onde tive bons professores – complementado com o que fui apanhando pelo caminho com os meus amigos filipinos e anglo-saxónicos de origem diversa.
“Really?”, respondi sem esconder a minha surpresa. “Mine’s not really British or the Queen’s English, is it?”, acrescentei.
“Well.. For one thing, it sounded like proper English, not Singlish…”, respondeu.

* * *

Caríssimo leitor, este é um assunto sensível para nós, Macaenses: o nosso sotaque quando falamos português e, numa abordagem mais alargada da questão, o nosso domínio da língua portuguesa.
E ainda outros complexos.
Não sendo linguista ou intelectual, homem da cultura, orador de conferência ou profundo conhecedor da História de Macau – muito menos do tipo que só é capaz de falar do antigamente, do presente tem pouca opinião e do futuro nem um pouco de visão – atrevo-me ainda assim a debruçar-me sobre este tema.
O sotaque Macaense é como o Minchi: cada casa tem o seu, não existe propriamente um standard. Mas, tal como o Minchi, tem as suas características principais que todos reconhecem.
O sotaque em si não é um problema e não tem mal nenhum: é o que é e até podia ser motivo de orgulho ou a nossa imagem de marca, tal como o Singlish em Singapura.
O problema é quando o sotaque é misturado e/ou confundido com o português gramaticalmente mal falado, que por sua vez é associado àquele que não é instruído.
Conversa de elitista? Não.
A conversa do “tem curso, não tem curso” é um complexo que de certa forma herdámos de Portugal, onde ainda se mantém a formalidade de se colocar o título à frente do nome das pessoas – é o senhor doutor, o senhor arquitecto ou o senhor engenheiro – e até se inventou o título Comendador para quem não tem canudo.
(Não fique ofendido quem tem esse título, não é minha intenção desrespeitar quem não teve a oportunidade de tirar um curso superior e que subiu a pulso com base nos conhecimentos da “escola da vida”, e que por essa razão até merece a minha maior consideração).
O caríssimo leitor poderá não concordar com esse ponto de vista, mas entenda como a opinião de quem o sentiu com alguma intensidade ao longo da sua infância no seio da comunidade Macaense.
Não sendo propriamente do tempo em que se anunciava no jornal que fulano de tal, filho de tal, tinha partido para Portugal para prosseguir com os seus estudos superiores – sim, porque ir estudar para Portugal era motivo suficientemente importante para notícia no jornal – é um facto que esses tempos existiram aqui em Macau, pelo que regressar da Metrópole com canudo na mão conferia por si só um certo estatuto na nossa comunidade ao recém-licenciado.
O sotaque prende-se então com isso tudo, com esses complexos todos, e naturalmente com a insegurança de muitos.
Aliando-se isso tudo às crises de identidade e todas as tempestades emocionais que nós, Macaenses, de vez em quando, por razões diversas, enfrentamos dada a nossa natureza mestiça, isso tudo leva a que por vezes tenhamos comportamos inexplicáveis no que concerne ao uso da língua portuguesa.
Não é por acaso que temos a expressão “torâ português” em Patuá, a qual se refere àquele que, de uma forma forçada e pouco natural, procura falar português com pronúncia de Portugal.
Há umas décadas atrás chegámos até a ter no hemiciclo um ilustre Macaense que o torrava de forma particularmente anedótica, transformando todos os “r” em “rr”. Aliás, o senhor era de tal forma diligente que até aplicava essa fórmula ao seu próprio nome.
Por outro lado, há também aqueles que, por insegurança, têm vergonha de falar português à frente de determinadas pessoas, refugiando-se no inglês ou no chinês.
Em que ficamos, então?
Não tenho nenhuma conclusão e nem sequer me atrevo a tecê-las. Mas apetece-me referir que, felizmente, muitos são os que não têm complexos nenhuns e falam à sua maneira, com o sotaque maquista e mesmo cometendo calinadas gramaticais.
E ainda bem que assim é.
Afinal o Patuá, de que tanto nos orgulhamos e do qual se deriva a nossa maneira particular de falar português, é também fruto de uma interpretação local da língua portuguesa, com inúmeras frases e expressões feitas com base numa construção gramatical chinesa e, de certa forma, um português mal falado, não?
Além disso,
Não estamos nós já habituados de ver na televisão, mesmo da boca dos ilustres políticos portugueses dirigentes do nosso país, erros de português? Os habituais “há-des” em vez do “hás-de”; o “interviu” em vez do “interveio”; o “evolóiem” em vez do “evoluem”; o “fostes” em vez do “foste”…
Portanto, se o senhor doutor de Portugal pódi, porque temos nós tantos complexos, porque nós tamém num pódi?

Sorrindo Sempre

Karma hits you back, costuma-se dizer.
No entanto, este ditado muito em voga nas redes sociais é aplicável nas situações em que fazemos mal a alguém, certo?
Ora, porquê decidiu o karma hit me back numa situação em que tratei bem alguém é algo que não consigo compreender.
Pois que há tempos escrevi um artigo a defender a polícia de Hong Kong na sequência daquela (absurda) revolta do yu tan. E, numa interpretação mais abrangente do artigo, defendi também
os representantes do Governo que são vulgarmente maltratados pela população. (**)
Contudo, dias a seguir, acabei eu por ser vítima de maltrato de um polícia de trânsito.
Estava o senhor a passar-me a multa quando me aproximei do carro. Sem eu ter dito uma única palavra que fosse, o agente da autoridade decide desancar-me de cima a baixo, com um tom de voz agressivo em que faltaram apenas os palavrões para completar a coisa.
Não me contive e respondi que achava inadmissível ele falar assim comigo. Houve uma pequena troca de palavras, embora nada do outro mundo porque, ainda assim, mantive a calma – ao contrário do outro.
Moral da história? Nada de especial. Mas não havia necessidade.

(*) 咁都得 : em tradução directa para português, o equivalente a “assim também pode”
(**) “Rebeldes do Yu Tan”, edição de 19 de Fevereiro de 2016 do jornal Hoje Macau

18 Mar 2016

A pirâmide invertida

Fui observando reacções durante os dias que se seguiram à detenção do ex-procurador do Ministério Público da RAEM, Ho Chio Meng, dando primazia ao que dizia a imprensa em Portugal. Em Hong Kong diz-se mais ou menos o mesmo que deste lado, e claro que aqui e ali era possível identificar a opinião mais ao jeito de provocação, coisas próprias da rivalidade regional entre os dois pólos do Rio das Pérolas. Tive mais curiosidade em observar o que se dizia em Portugal, não tanto na imprensa, que praticamente decalcou a informação que recebeu de Macau e das agências, mas da “vox populi”, que se expressa nas caixas de comentários, redes sociais e afins – afinal um juiz é um juiz quer em Portugal, quer na China, e certamente não faltariam as habituais opiniões mais inflamadas, que dão conta “do fim disto tudo”. Portanto compre já freguesa, que se está a acabar.
Como não podia deixar de ser, as opiniões repartiam-se entre a indignação, por se tratar de um magistrado e ser colocada em causa a credibilidade da Justiça, ou ainda a estupefacção, e aqui teciam-se considerações sobre valores abstractos como a “honestidade” e a “ganância”. Pelo menos foi o que deu para perceber entre tantos erros ortográficos, obscenidades e impropérios vários de teor étnico-cultural – é preciso não esquecer que para muitos portugueses a China e os chineses ainda são uma realidade longínqua e oblíqua. Como se não bastasse, ainda estava bem fresca na memória a notícia do casal chinês que foi jogar no Casino Lisboa e deixou a filha de cinco anos sozinha em casa, vindo a pequena cair da varanda do apartamento onde habitava com os pais, num empreendimento de luxo perto da capital, precipitando-se para uma morte trágica e lamentável. Estes pais são um dos contemplados com os famigerados “golden visas”, uma ideia do anterior Governo de direita para atrair investimento chinês para Portugal, mas que se deparou recentemente com um hiato devido a “lusitanismos”, aqueles problemas tão nossos, tão castiços. Depois do ex-procurador ainda tivemos mais uma notícia nada abonatória para a imagem ainda mal formada que os portugueses têm do país do meio, desta vez dando conta de um casal do continente que vendeu a filha de apenas 18 dias de vida por 3200 euros, dinheiro que investiram num exemplar do novo modelo de uma marca de telemóveis de topo da gama líder do mercado, e um motociclo. Se procurarem esta notícia na “net”, vão encontrar outra muito semelhante reportando-se a Outubro de 2013.
Tenho sempre enormes dificuldades em falar da China ou dos chineses com os amigos e os conhecidos em Portugal, e mesmo os portugueses recém-chegados à RAEM demoram ou nunca chegam sequer a assimilar alguns conceitos paradoxais à sua cultura, e mais importante, à sua moral. Se vêm mais ou menos preparados para o “choque” da primeira, o da segunda pode apanhá-los de surpresa. Para entender o que pode levar uns pais a negligenciar a segurança de uma filha menor para passar a noite toda no casino, ou quiçá uma volta ou duas completas aos ponteiros do relógio, ou ainda outro casal a vender um recém-nascido, com a aquisição de bens de luxo em mente, é preciso entender o valor que se dá à vida humana numa e na outra cultura. Não é exagero se disser que uma derrocada numa das muitas minas que operam em condições de segurança precárias na China que cause mais de cem mortes é “uma mera estatística”. Por outro lado, em Portugal no ano de 2001 caiu uma ponte em Entre-os-Rios, causando a morte a perto de 60 pessoas, um acontecimento que mereceu vasta e demorada cobertura mediática, sendo referido pontualmente durante os meses que se seguiram, e com os familiares a amigos das vítimas a assinalar cada aniversário da tragédia “in loco”, com pompa e circunstância. Na China vão-se dando mais derrocadas, os mineiros morrem às centenas, e para os que vão sobrevivendo, a vida continua. Até ver.
Isto pode parecer uma análise um tanto ou quanto crua do país e do seu povo, mas se não for dirimente de me mandarem a tal sítio, pelo menos servirá para pensarem duas vezes se tiverem em conta que estamos a falar de uma população mais de cem vezes superior à nossa, com 400 milhões de trabalhadores migrantes – 40 vezes mais que a população total de Portugal. E empregos para esta gente toda, como é? Quanto a esse particular, uma das grandes dificuldades com que me deparo quando troco impressões sobre este complexo e delicado tema que é o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente é explicar a forma como é encarado o fenómeno da prostituição. E para este argumento fiquemos pela prostituição comum, o sexo remunerado seguindo os trâmites mais básicos das trocas comerciais, ou “toma lá, dá cá”, em termos mais leigos. É impossível relativizar o tema da prostituição numa conversa com um ocidental, especialmente se for do género feminino, sem dar a entender que estamos a menosprezar a componente do degredo e da humilhação que implica para uma mulher precisar de vender o corpo, mas esta é daquelas coisas que temos que deixar a meio da viagem de avião para este lado, senão pensem nisto: o que iam fazer todas essas mulheres na China, em números quem sabe na ordem dos milhões, para sobreviver? Roubar, e eventualmente matar, se for necessário chegar a tal?
A própria pena de morte tem que se lhe diga, especialmente a forma bastante despreocupada com que o regime executa os condenados por crimes puníveis com o castigo máximo previsto na lei, descurando em muitos casos os mais elementares preceitos da jurisprudência dos padrões ocidentais. Eu não arriscaria a dizer que abolir a pena capital na China surtisse resultados práticos. Pelo que entendo do que eles entendem uns dos outros, esta figura serve como que um garante de que pelo menos se pensa duas vezes antes de se apostar, negociar ou arriscar a vida. Na China a pirâmide que o psicólogo norte-americano Abraham Maslow idealizou, e que representa a hierarquia das necessidades, adquire uma configuração menos convencional. Enquanto para nós a ambição é ascendente, e das necessidades mais básicas almejamos à realização pessoal, e no geral uma sociedade mais livre, mais justa e mais tolerante, na China eles tiveram séculos a fio para racionalizar os factos e dar asas ao seu espírito criativo, e hoje tentam a todo o custo manter-se algures entre os dois estratos mais baixos da pirâmide, tentando no mínimo sobreviver. Por enquanto. Depois logo se vê.

17 Mar 2016

O Erro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Errar é humano. É sempre o que surge quando se pensa em erro. Porque a realidade é que não gostamos de errar. Porque somos fixes, porque errar faz mal e sabe mal. Porque errar faz-nos mais pequeninos, quiçá desprezíveis. Ou, pelo menos, isso poderemos sentir se não formos feitos de calhaus. Errar é humano mas existem muito mais coisas acabadas em “ar” que também são humanas. Como amar. Errar não é só humano, é animalesco também. Em todos os sentidos. Porque os animais também erram e porque errar empurra-nos contra a parede porque, se não formos animalescos, temos de pedir desculpa. Errar comprime porque faz-nos perder a credibilidade. Mas há erros e erros. Podemos errar no caminho e, na pior das hipóteses, ficamos perdidos, isso pertence, portanto, à categoria “não vem mal ao mundo”. Depois existem os erros que implicam com a vida dos outros, portanto da categoria “pode vir mal ao mundo”. A seguir vêm as graduações: de “irrelevante” a “devias ser preso” ou “preso e processado”. A responsabilidade civil e moral. Uma classificação que pode ser atenuada se o autor do erro for irrelevante para os sujeitos passivos, as vítimas do erro, ou considerado inimputável porque, coitado, é tolo. Ainda assim, mesmo que o tolo seja inimputável, o erro pode ser suficientemente grave para estragar a vida a uma série de gente. Não é, portanto, coisa de somenos, coisa de humanos, esta coisa de errar. E eu errei. Muitas vezes. De várias formas. Portei-me que nem um anormal quando não devia, disse as piores coisas a quem não deveria, enfim… A semana passada também errei, por escrito, que é ainda pior pois nem sequer dá para dizer que não se disse. É esse o poder (e o contrapoder) da escrita. Por isso há tantos jornalistas e escritores perseguidos. A escrita pode matar o emissor mas também os alvos. É a natureza da coisa. Errei, talvez na categoria “não assim tão irrelevante” sem grande atenuação porque gerou algum descrédito aos sujeitos passivos, mas um pequeno bónus por ter sido emitido em coluna de opinião por autor pouco importante. Errei porque escrevi que a organização do Festival Literário de Macau tinha banido o português da cerimónia de abertura. Pois que assim não foi. Ouvi dizer (o que é sempre um mau princípio), liguei para a assessoria de imprensa do festival e foi-me confirmado (e até explicada a razão) e assumi por verdadeiro. Erro. Talvez a assessoria tenha confundido com a sessão de abertura com o Pacheco e a Lolita que, essa sim, foi maioritariamente em inglês, à qual assisti. Até se percebeu porquê (o equipamento de tradução não estava a funcionar pelo melhor no início) e não veio mal ao mundo.

O outro lado do erro surge quando ele prejudica alguém ou cria realidades alternativas que afectam outrem para além de nós: a sua reparação tem de ser efectuada. Corrigido, se possível, reconhecido se nada mais houver para fazer. Chama-se pedir desculpa. Pedir desculpa, às vezes, pouco resolve, pois o mal está feito. Pedir desculpa nem sequer nos garante que os ofendidos passem a gostar mais dos ofensores, se bem que muitos pensem que uma desculpa resolve o seu problema interior, o seu sentimento de culpa, a perda de um amigo, ou da credibilidade. Afinal de contas, pedir desculpa custa, e até os jornais, quando têm de o fazer, fazem-no vulgarmente num discreto rodapé. Está lá mas pode ser que ninguém veja, penso ser a estratégia. Enfim, seja o que for, aqui ficam as minhas desculpas à direcção do Rota das Letras e a todos nela envolvidos. Que continuem por muitos anos.

As “verdades”

Começa a ser impossível ler os jornais desportivos, ou assistir aos debates da bola em Portugal. Não há uma reportagem realmente interessante, uma verdade que amanhã não seja mentira, um dia que passe sem que sicrano não acuse fulano, que acusa sicrano, que mata fulano, fulano que é mas depois deixa de ser, um vendaval de acusações, vulgaridades e dedos apontados, um tédio que nos leva à profunda irritação e depois à indiferença. Custa continuar a ver o poder político passar ao lado da batalha campal em curso sem pedir responsabilidades, virando a cara e tapando o nariz para não cheirar o fel. Custa ver um jovem Presidente da Liga manietado num caldo de poderes anacrónicos sem capacidade, ou coragem, para mostrar uns amarelos, mesmo uns vermelhos, aos cretinos de várias cores que mandam no futebol português. O descrédito é total e qualquer dia nem os jogos apetece ver.

A macaína protecção dos feudos

Lia esta semana, neste jornal, a notícia que indiciava estar o governo preocupado com os senhorios e, consequentemente, disposto a simplificar os processos de despejo para os incumpridores do pagamento de renda. Ninguém tem dúvidas que os proprietários têm todo o direito a receberem o que lhes é devido. Todavia, neste ambiente dominado por meia dúzia de gatos gordos, onde se sabe como os locatários têm sofrido com a sua especulação, numa terra onde, apesar dos sistemas, se está incluso num país que se proclama socialista, custa perceber como o governo continua sempre mais inclinado a defender os poderes feudais do que os direitos dos mais desprotegidos, onde o direito a habitação deveria ser um valor fundamental. Porque, quando a coisa toca a tectos nos aumentos, aí o governo diz ao povo para se armar em David e arranjar uma boa fisga para negociar com os gatos gordos, esses Golias, sempre de faca e queijo na mão.

Ainda neste âmbito, o dos feudos, apetece-me deixar uma nota para a presença de empresas ligadas à produção de vídeo na HK Filmart, que termina amanhã, surgindo pela primeira vez numa iniciativa apoiada pelo Governo. O propósito é de louvar, apesar de ser algo inexplicável surgir o Turismo a apadrinhar a iniciativa e continuarmos a ver a Direcção dos Serviços de Economia arredada do processo; como se filmes não fossem negócio, como se a diversificação da economia local não passasse pelas indústrias (pese o termo) culturais. Mas isso levaria a uma coluna inteira. O espantoso, neste caso, é a presença da Salon Films (Macau, claro) presente debaixo deste chapéu-de-chuva tão necessário para empresas mínimas, como são as de que se falam. Especialmente, quando todos sabem que a empresa, apesar de registada em Macau, é apenas um ramal do grande potentado de Hong Kong (também presente na feira com um stand enorme) e que, por algum bambúrrio do acaso, tem ganho imensos concursos do Turismo de Macau desde há uns 30 anos. Não vou entrar pela questão legal, pragmática, se aquela é, ou não, empresa de Macau. Deixo apenas um exemplo: a Coca-Cola (Macau) deixa de ser uma empresa americana apenas por ter uma delegação no território? Será que a Coca-Cola (Macau) pode representar-nos numa feira internacional como bebida local? Fica a interrogação.

16 Mar 2016

Alguns factos (no feminino)

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stes não são os segredos do sexo no feminino, esses deixo ao critério de cada um descobri-los a seu tempo. E quando eu digo descobrir, refiro-me à contínua exploração que, na individualidade e em conjunto, deve ser exercitada e promovida. Há, contudo, informações sobre bem-estar sexual que merecem alguma atenção. Aqui vai uma pequena nomeação de factos no feminino, para a mulher emancipada e para o homem que a acompanha.

Menstruação

Dizem os estudos, e até a cultura popular, que os homens não têm grande interesse em envolver-se no acto sexual quando o ‘Benfica joga em casa’. Não há grande mistério nisso. O que os estudos também mostram é que as mulheres estão muito mais propensas a atingir o orgasmo em dias mais sangrentos. Para além de que, para curar dores menstruais incomodativas, não há eficácia que iguale os orgasmos, uma forma não-medicamentosa para ajudar ao bem-estar. Ademais, e tentando não ser muito gráfica, este é um período especialmente lubrificado. Mas, é claro, percebe-se a aversão. O cenário pós-sexo em menstruação mais facilmente se assemelhará a um cenário de chacina. Recomenda-se o evitamento de lençóis brancos e talvez vislumbrar a possibilidade de gozar o tempo em conjunto na banheira, com superfícies muito mais fáceis de serem limpas. Compreendo que pondo assim as coisas, o sentimento gore e sangrento continue a ser impossibilitador. Contudo, a menstruação é normalíssima. Vivam com isso, os dois.

Vibradores

Os vibradores foram criados como terapêutica para a histeria. Para quem não sabe, a histeria caracterizava-se como uma popular condição psicológica exclusivamente feminina durante o séc. XIX, de sintomas somáticos fortes. A razão seria uma má resolução sexual e por isso teria que ser compensada com artefactos. Actualmente, vibrador é o brinquedo sexual por excelência e o bestseller de qualquer sex shop pelo mundo. Os inquéritos sugerem que as mulheres começam a considerá-lo como um objecto doméstico essencial, para as solteiras e as casadas. O aspecto ‘sketchy’ das sex shops é que ainda impedem uma frequência mais normalizada. Espera-se que sempre que mulheres (ou casais) comecem a exigir um serviço de vibradores especializado e de qualidade, o estigma associado a usuários de lojas de sexo decairá. Quanto mais comum, mais normal se tornará. Porque as possibilidades para um vibrador na vida amorosa do casal são quantas as que queremos ter. Duas palavras em interrogação: Penetração dupla?

A careca lá em baixo

Os pêlos púbicos são agora, mais do que nunca, alvo de grande desdém. O que começou por uma prática feminina espalhou-se para uma prática masculina também. Em certos círculos sociais, quanto menos peludos na zona genital, melhor. A preferência começa a ser cada vez melhor disseminada graças à pornografia e à disponibilidade de casas de depilação que prometem um serviço pêlos free. Há quem se sinta mais limpa(o) ou higiénica(o) com os seus genitais descobertos do arbusto que a puberdade fez crescer. Mas qualquer que seja a preferência é sempre bom insistir que os incomodativos pêlos existem como uma barreira protectora de infecções e inflamações, e que por isso a sua ausência expõe alguma vulnerabilidade. Agora que os cavalheiros ficam contentes com uma careca quando o trabalho é oral, isso, sem dúvida. Diz-se muito mais confortável.

Clitóris

Essa discreta pontinha alimentada por sensivelmente 8000 nervos é causadora de muito prazer e não pára de crescer. Sim, quando se chega aos 80 anos o nosso tão especial orgão sexual estará 2.5 vezes maior do que na purbedade. Diferenças pouco visíveis mas que poderão justificar o sexo fantástico das senhoras octogenárias. Não esquecer que é o único órgão no corpo da mulher dedicado exclusivamente ao prazer e ao orgasmo (o ponto G é um candidato ao mito urbano) e por isso há que tratá-lo bem, e o parceiro que se encarregue dos cuidados também.
Para a semana há mais.

15 Mar 2016

O Décimo Terceiro Plano Quinquenal da China

“China’s plan to lift all of its poor people out of poverty by 2020 concerns whether the country can fulfill its goal building a moderately prosperous society in all respects throughout the next five years. The Chinese Government has prioritized its poverty alleviation plan across the nation, and has already set in motion the process to improve the living standards of an estimated 70 million people living under the country’s poverty line.”
Beijing Review, Vol 59, No 9, March 3, 2016

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Décimo Terceiro Plano Quinquenal” para o período de 2016 a 2020 foi aprovado na “Quinta Sessão Plenária do Décimo Oitavo Comité Central do Partido Comunista da China”, celebrada em Pequim, de 26 a 29 de Outubro de 2015, e constitui uma referência decisiva, num período capital do processo de reforma e abertura da China. Quer pelo seu contexto, como pelo seu conteúdo e expectativas, está condenado a ser um documento essencial na longa transição chinesa.
É de assinalar, que apesar do aumento sustentado do papel do mercado, como consequência do processo de reforma, o planeamento das políticas de desenvolvimento, iniciadas em 1953, constituem um sinal de identidade irrefutável do modelo económico e político chinês. O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal” deve ter em conta, pelo menos, três elementos determinantes. O primeiro será o facto, de que na transição do próximo período de cinco anos, a China converter-se-á, qualquer que seja o método de medição utilizado, com toda a probabilidade, na primeira economia do mundo, sendo uma situação que terá um singular impacto na economia global, e um efeito maior, em todos os sentidos, nas questões relativas à governança.
A China é a segunda maior economia do mundo e o maior exportador. O yuan, em Dezembro de 2014 ultrapassou o Euro, para converter-se na segunda moeda mais utilizada no financiamento do comércio mundial, depois do dólar, e até 2020 a China será o maior investidor internacional do mundo. A internacionalização do renmimbi será um dos eixos determinantes dos próximos cinco anos. Os seus activos globais triplicaram, passando de quase seis e meio mil milhões de dólares a vinte mil milhões de dólares, o que contribuirá para fortalecer a sua posição económica global.
O segundo tem em consideração, a aceleração do processo de transformação estrutural que vive a economia chinesa, realçando o maior papel atribuído à economia privada na modernização, tal como o papel do mercado, por contraposição com a determinação de tornar menos pesada a burocracia e adequar o sector público. A reforma agrária, por outro lado, deve sofrer uma reestruturação de grande alcance, de forma a adquirir eficiência. A despesa em I+D, que em 2014, foi de 2,1 por cento do PIB, continuará a sua espiral ascendente, de forma a converter a China numa potência tecnológica.
Quanto à questão ambiental, os esforços futuros devem permitir uma notória visibilidade, dado o estado do país no concernente a essa matéria, devendo por outro lado, levar a cabo uma ambiciosa reforma do sector público, de forma a criar gigantes industriais capazes de fazer face aos grandes concorrentes privados mundiais, complemento do “Plano Feito na China 2015”, que deve contribuir para atingir um posicionamento global das suas marcas comerciais. Assim, deve empreender projectos ambiciosos de construção, como os de um “Cinturão” e uma “Rota”, e a interligação e interconexão da Ásia, por meio de uma linha de comboio de alta velocidade. Estas acções foram anunciados pelo presidente chinês, a 8 de Novembro de 2014, e enquadram-se no investimento de quarenta mil milhões de dólares para a criação do “Fundo da Rota da Seda”, que dará ajuda financeira a projectos de construção de infra-estruturas, exploração de recursos e cooperação de indústrias dos países localizados ao longo do “Cinturão” e da “Rota”.
O Fundo e outros bancos de desenvolvimento multilaterais mundiais e regionais cooperarão, e funcionarão segundo a ordem económica e financeira internacional vigente. O Fundo não oferecerá apenas ajudas económicas, mas também, tem por objectivo criar oportunidades de grande desenvolvimento a todos os países envolvidos, por meio da interligação e interconexão. O Fundo é aberto a investidores dentro e fora da Ásia. Os corredores económicos e projectos que contam com numerosos fundos afiliados devem criar novos mercados às empresas produtivas chinesas, em conformidade, com os novos instrumentos de empréstimo constituídos.
O terceiro deve contemplar a junção de todos os elos da reforma, para além do significado estritamente económico, considerando os aspectos que incidem na formação do objectivo de construção de una sociedade ajustada. A criação de um moderno sistema de assistência social, que atenda às características do país, deve contribuir de forma decisiva para vencer uma penosa desigualdade, que continua a ensombrar os efeitos das reformas e abertura económica de Deng Xiao Ping, na década de 1980, tudo sem prejuízo dos factores políticos, especialmente, os relacionados com o reforço da legalidade e do Estado de Direito, dando um novo impulso à feitura de leis. Este processo tem um desafio essencial, no juízo de uma nova cultura de relacionamento entre o poder e a sociedade.
O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal”, que chegará até às vésperas do centenário do Partido Comunista da China (PCC), em 2021, determinará o curso do processo de modernização. A tradição dos planos quinquenais na China remonta aos primórdios do maoísmo, durante o período de influência soviética, com o PCC no poder desde 1949. O primeiro plano quinquenal, vigorou entre 1953 e 1957, por meio do lendário Chen Yun, mais tarde vítima da Revolução Cultural e reabilitado posteriormente por Deng Xiao Pin, após a morte de Mao Tsé-tung.
A combinação da influência do planeamento leninista com a cultura estratégica chinesa, que aponta para uma visão que tem sempre uma mão no presente e outra na história, permitiu em boa medida, que a China, em poucas décadas pudesse recuperar uma parte substancial da grandeza perdida, durante o período da decadência iniciado, essencialmente, no século XIX. A agenda actual da China, em coerência com esse legado, tem os olhos postos em duas datas imediatas que são 2021, o centenário do PCC e 2049, o centenário da República Popular da China. O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal” é inseparável dessas duas datas. Os dois primeiros elementos devem ser tidos em conta, quanto à valoração do documento. O primeiro, considerando a transição para um novo modelo de desenvolvimento, pois no período da presidência de Hu Jintao, entre 2002 e 2012, tiveram consciência de que o modelo iniciado em 1979 estava esgotado. A combinação de mão-de-obra barata, investimento em grande escala e orientação da produção para exportação, permitiu um salto gigantesco na economia chinesa, mas os efeitos secundários não foram desprezáveis.
O “Décimo Oitavo Congresso do PCC”, em 2012, ratificou o novo rumo, incorporando especialmente, as dimensões ambientais e tecnológicas e propiciando mudanças estruturais de grande extensão, tendo em vista conseguir a mudança de carril, tendo como preço, reduzir a velocidade da locomotiva. O segundo, tem por consideração, a construção de uma sociedade próspera e foi reiterado até à saciedade, que o sucesso do processo chinês e a ausência de grandes conflitos sociais que desestabilizam, explica-se por um acordo não escrito, que oferece riqueza aos cidadãos em troca de lealdade, mas esta equação também se esgotou. A sociedade chinesa é mais rica no seu conjunto, mas tremendamente desigual.
As autoridades chinesas reconhecem um índice Gini de 0,469, sobre o limiar de alerta de 0,4, mas existe quem relativize estes números, e os eleve para 0,6. O culminar do processo de modernização do país e a sua entronização no topo da economia global, ultrapassando inclusive os Estados Unidos em termos absolutos, não será possível de atingir, enquanto existir uma sociedade fracturada e com índices de desigualdade insustentáveis, o que exige grandes investimentos na saúde, educação, melhoria das infra-estruturas rurais, urbanização, novas políticas demográficas e um aumento substancial dos salários para criar a classe média, que dê suporte à sociedade de consumo, e encoraje o desenvolvimento dos serviços, em detrimento dos sectores primário e secundário.
A China revelou a 5 de Março de 2016, o “Décimo Terceiro Plano Quinquenal”, onde constam um conjunto de objectivos económicos e sociais para o período de 2016 a 2020, para aprovação do Congresso Nacional Popular. A China face a uma conjuntura difícil fixou como meta, em 2016, um crescimento económico entre os 6,5 e os 7 por cento, e está disposta a deixar aumentar o deficit para intensificar a sua política de incentivos fiscais, sendo sabido que este ano as dificuldades serão mais numerosas e maiores, e os desafios mais temíveis, pelo que se tem de preparar para um duro combate.
A economia mundial tem demonstrado uma recuperação ligeira, enquanto na China se acentuam as pressões descendentes sobre a economia. O PIB chinês, cresceu 6,9 por cento, em 2015, o mais baixo dos últimos vinte e cinco anos. Os indicadores da segunda economia mundial, desde há meses, revelam um desequilíbrio, dada a medíocre procura interna, exportações em queda, contracção da actividade manufactureira, paralisação dos investimentos no sector imobiliário, sobrecapacidade na indústria, fuga de capitais e turbulência nas bolsas. As autoridades chinesas defendem a nova normalidade de um crescimento menor, mas mais sustentável e centrado nos serviços, no consumo interno e nas novas tecnologias. O sector terciário, neste período de transição, representa mais que 50 por cento do PIB chinês, e está a demorar a realçar os motores tradicionais do crescimento, como são o sector imobiliário, infra-estruturas e exportações.
A fim de favorecer a dita transição, o governo chinês quer suprimir as capacidades de produção excedentárias, por meio da reestruturação dos grandes grupos estatais, o que levará a eliminar postos de trabalho, e quer uma solução rápida para as empresas “zombie”, as empresas não rentáveis do sector mineiro e da siderurgia, que apenas sobrevivem devido ao endividamento e aos subsídios públicos. A China, adoptou para 2016, a meta de inflação de cerca de 3 por cento, muito acima do nível actual, e espera manter o desemprego abaixo dos 4,5 por cento. O estado da economia da China move as bolsas de todo o mundo, e as previsões e acções principais que o governo tomará para os próximos cinco anos e que constam do referido documento, são os de um crescimento médio, de pelo menos 6,5 por cento.
O PIB passará dos 67, 7 mil milhões de yuans do passado ano, a mais de 92,7 mil milhões de yuans em 2020, o que significa mais que o dobro do PIB de 2010. O sector de serviços deverá representar 56 por cento do PIB, em 2020, ou seja, 5,5 por cento superiores a 2015, que foi de 50,5 por cento. A China irá reduzir o consumo de energia para um nível abaixo dos cinco mil milhões de toneladas de carvão nos próximos cinco anos. O país consumiu o ano passado quatro mil e trezentos milhões de toneladas. Irá reduzir o consumo de energia e de emissões de dióxido de carbono por unidade de PIB até 2020, em 15 e 18 por cento, respectivamente e relativamente aos níveis de 2015.
A qualidade do ar nas cidades qualificado de bom irá aumentar para 80 por cento, face aos 76,7 por cento do ano passado. Irá aumentar a produção de energia nuclear para cinquenta e oito gigawatts até 2020, pela entrada em serviço de novas centrais com uma capacidade total de trinta gigawatts. A China dispõem de trinta reactores em actividade, com uma capacidade de 28,3 gigawatts, e vinte e quatro encontram-se em processo de construção. A rede rodoviária, irá aumentar para trinta mil quilómetros até 2020, face aos dezanove mil quilómetros do ano passado, e à construção de pelo menos cinquenta novos aeroportos civis.
A China irá aumentar o rendimento “per capita”, em pelo menos 6,5 por cento anualmente. O aumento foi de 7,4 por cento, em 2015. O país irá criar cinquenta milhões de postos de trabalho nas zonas rurais nos próximos cinco anos. A China irá controlar a população que vive nas cidades, equivalente a 60 por cento da população total, ou seja, de oitocentos e cinquenta e dois milhões de pessoas, numa população total de mil milhões e quatrocentos e vinte milhões de chineses prevista para 2020. A proporção era de 56,1 por cento, em 2015.

14 Mar 2016

Privilégios em Coloane

Mário Duarte Duque

A regra que protege os terrenos na Ilha de Coloane localizados a acima da cota 80 medida ao nível médio do mar é uma regra insipiente e avulsa que remonta a 1992, a qual movida em âmbito histórico e cultural, mas sem participação de especialidade ambiental ou de pressão em dar resposta a isso.
Por isso, a regra serve de resguardo mas não serve para administrar esse território natural.
Volvidos mais de 20 anos, a manutenção da mesma regra só pressupõe que nada houve a acrescentar à definição daquele território ou ao conhecimento do que ali existe e que é diferenciador.
A paisagem natural resulta dos chamados “caprichos da natureza” e não se entende, nem se define, na mesma forma sistemática em que é possível definir a paisagem urbana.
Enquanto num edifício se admitem definições do tipo de até determinado andar a finalidade poder ser comércio, por exemplo, e acima desse andar poder ser habitação, por exemplo, na paisagem natural a diferenciação já não se processa na mesma maneira, porque está longe de poder ser homogénea altimetricamente.
A paisagem natural caracteriza-se por relevos e por vegetação diferenciada, pontos conspícuos, uns naturais, outros já construídos, e por atributos de enquadramento visual.
Na cultura da região, não é por acaso que as sugestões morfológicas do relevo natural são muitas vezes origem de santuários ou de mitos.
A prova de que essa regra altimétrica não serve a totalidade dos recursos ambientais e paisagísticos na ilha de Coloane reside também no facto de que dela se excluiu a cota 0.00, que numa ilha corresponde exactamente à frente de mar e a lugares que tanto são de notáveis atributos paisagísticos, como são de vulnerabilidade acrescida.
Por isso, a regra de resguardo, apenas acima dos 80 m de altitude, só pode ser entendida como medida cautelar enquanto melhor definição de especialidade esteja em preparação. Não serve para antecipar intervenções de grande impacto, nem serve de confiança para adiar melhor definição.
Por outro lado, se a vocação da ilha de Coloane não é de santuário natural, e se se admite que a fruição de uma paisagem natural seja por via da construção de infraestruturas, as mesmas devem ser criteriosas, e dificilmente serão em número suficiente para atender exclusivamente todos os promotores interessados.
Por isso, nesses lugares, o equilíbrio reside na possibilidade de essas infraestruturas serem de iniciativa pública, por se tratar de recursos demasiado limitados para serem alienados a particulares, em exclusividade ou em permanência.
E tanto que assim é que quando a ilha de Coloane foi recentemente palco de uma iniciativa habitação pública em grande escala, em Siac Pai Van, cujo impacto paisagístico está longe de ser pequeno, essa iniciativa não foi objecto da mesma polémica que hoje envolve o lote adjudicado ao empresário Sio Tak Hong, e a isso não é estranho o facto de a iniciativa e as contrapartidas em Siac Pai Van terem sido públicas.
Já a polémica em torno da construção em altura é outro mito recorrente. A construção faz-se em altura sempre que é necessário ser distinguida, avistada, atingir um ponto geográfico alto ou assegurar o máximo de utilização, com o mínimo de afectação de solo.
As obrigações que recaem na construção em altura resultam do facto de ser uma presença conspícua. Por isso, a posição de uma torre deve ser criteriosa, e não deve prescindir de atributos visuais e estéticos no seu desenho. Tanto que assim é que, quando viajamos, torres de igreja, de televisão e faróis, todas chamam a nossa atenção e merecem a nossa admiração.
Nessas construções paira também um sentido elitista, seja de recursos de engenho, seja de recursos financeiros, e também não é por acaso que as torres exprimem o prestígio de quem teve a iniciativa de as construir ou, no caso dos edifícios civis, o prestígio de quem lá mora.
Enquanto lugar, as torres são por vezes também expressão do lado miserável do egotismo da condição humana. Daí as expressões “torre de marfim” e “torre de babel”, ou a letra de “sittin’ on the top of the world” ou de “down in the depths of the 90th floor”.
A torre já significa perigo eminente, senão destruição, enquanto expressão de ambições desmesuradas, construídas sobre falsas premissas, tal como na carta XVI do Tarô.
Quando as torres deixam de ser elegantes e passam a ser gordas, ou todos os edifícios passam a ser torres, os atributos das torres extinguem-se e todos esses edifícios passam a parecer uma mole indistinta de edifícios altos.
Quando nessa mole de construções todas as torres são icónicas, as mesmas acabam por sucumbir na indiferença ao ruído urbano.

11 Mar 2016

Lugar decisivo

Quando todos esperavam que o Partido Cívico de Hong Kong perdesse as eleições nos Novos Territórios de Leste, Alvin Yeung Ngok-kiu, candidato por este partido, conquistou um lugar na Assembleia com mais 10.000 votos do que o seu opositor Chow Ho-ding Holden, candidato da Aliança Democrática para a Melhoria e Progresso de Hong Kong. Chow Ho-ding Holden era visto antecipadamente como vencedor devido a uma série de factores que se conjugavam a seu favor. Os habitantes de Hong Kong e de Macau, atentos a esta luta política, não depositavam muitas esperanças na vitória de Alvin Yeung. Embora se acreditasse que o Campo Pró-democrata liderava no Distrito dos Novos Território de Leste, Alvin Yeung estava rodeado por inimigos nestas eleições, tendo de se confrontar com o único candidato apoiado pelas várias forças do Campo Pró-governamental e, sem perder de vista outros candidatos da sua área política. Os incidentes de Mongkok, que tiveram lugar na noite do Ano Novo Chinês, tornaram ainda mais complicado este processo eleitoral. Na sequência destes incidentes, alguns ex-membros do Conselho Legislativo, que inicialmente apoiavam Alvin Yeung, viram-se obrigados a retirar-lhe o seu apoio. Estas alterações dependentes das circunstâncias fizeram com que as pessoas se apercebessem do valor da moral na política. Com Alvin Yeung rodeado por uma série de factores desfavoráveis, foi importante que os eleitores de Hong Kong mantivessem um espírito crítico. Apesar da mobilização do Campo Pró-governamental e das divisões no seio do Campo Pró-democrata, o Partido Cívico conseguiu conquistar um lugar decisivo, mantendo assim um terço do número de assentos no Conselho Legislativo. Desta forma o Campo Pró-democrata mantém uma posição relativamente confortável nesta Assembleia.
A Associação de Novo Macau perdeu um assento nas anteriores eleições para a Assembleia Legislativa de Macau. Algumas pessoas acharam que a perda de um lugar não faria grande diferença para a aprovação, ou rejeição, das leis. No entanto, passados dois anos, verificou-se que a Associação de Novo Macau sofreu cisões internas e os seus deputados não tiveram o desempenho esperado na Assembleia Legislativa. Numa votação recente, que se seguiu a um debate, não esteve presente nenhum deputado da Associação de Novo Macau. Os candidatos nomeados pelas associações que representam, são posteriormente eleitos para o cargo de deputados. Mas se essas associações deixarem de vigiar o desempenho dos seus candidatos eleitos, como é que os eleitores podem confiar que os seus interesses e opiniões continuam a ser eficazmente representados?
Como a política é um assunto que nos diz respeito a todos, os seus protagonistas deverão dar prioridade máxima ao bem-estar do povo e não aos seus interesses pessoais. Infelizmente, existem sempre muitos interesses envolvidos na política e se os seus representantes não tiverem a seriedade e a supervisão necessárias, é muito fácil deixarem-se levar gradualmente sem dar por isso. Ao mesmo tempo, quem defende interesses há muito instituídos fará de tudo para não os ver ameaçados, criando a divisão para reinar. Se não fosse a perspicácia dos eleitores, nestas eleições nos Novos Territórios de Leste, com a fraca popularidade de CY Leung Chun-ying, o lugar podia ter caído nas mãos do Campo Pró-governamental. Vendo que os legisladores do Campo Pró-democrata parecem não dar importância ao quadro geral aliando-se aos Pró-Regionalistas, com risco fazer Alvin Yeung perder votos, pergunto-me quem terá tido a brilhante ideia de uma estratégia tipo “acabarmos todos juntos e arruinados”.
A separação dos poderes faz com que haja controlo e equilíbrio e destina-se a impedir que nenhum dos três se sobreponha e possa cometer abusos impunemente. O poder executivo, quer em Hong Kong quer em Macau, assenta na estabilidade e numa liderança forte, ao passo que o poder legislativo não está à altura da sua função de árbitro das acções governativas, devido à sua composição e à sua estrutura. Portanto, quando os altos responsáveis da RAEM não são pessoas de grande integridade, podem facilmente deixa-se corromper. Desde que veio a lume o caso de Ao Man Long, ficou claro que se o Governo da RAEM, e a sociedade em geral, não se empenharem a fundo, casos semelhantes acontecerão futuramente.
Nas eleições nos Novos Territórios de Leste, o Campo Pró-democrata conseguiu conquistar um lugar, embora seja um mandato de curta duração. Em Setembro haverá eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong. Em face de muitas circunstâncias negativas, quer externas quer internas, os eleitores estão a tornar-se cada vez mais exigentes. A capacidade que o Campo Pró-democrata tiver para actuar de forma inovadora será a chave para obter o apoio da população. Porque em última análise são os eleitores que decidem. O lugar no Conselho Legislativo, em jogo nas eleições nos Novos Territórios de Leste, tem grande significado e se os pró-democratas o tivessem perdido teria tido graves consequências.

11 Mar 2016

ATV, encerrar ou não, eis a questão!

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s últimas notícias sobre a ATV deixaram de ser novidade já há algum tempo. No dia 1 de Abril de 2015, o Conselho Executivo de Hong Kong deu à ATV um prazo de um ano para cancelar a licença de emissão de Televisão Digital Terrestre, que até aí lhe tinha sido cedida gratuitamente. Mal esta data expire deixaremos de poder assistir às emissões da ATV.
Logo após o anúncio do Conselho Executivo, começaram a ser ventilados vários casos relacionados com a estação e que nada abonavam a seu favor. A ordem de liquidação provisória foi dada em Tribunal, no passado dia 4, e a notícia de despedimento dos 300 funcionários foi emitida pelo executor Deloitte. O despedimento foi geral.
Uma ordem provisória de liquidação determina o fim da actividade de uma empresa e antecede a sua extinção legal. O executor provisório é apontado pelo Tribunal para levar a cabo a liquidação. Quer a ordem quer o executor têm um carácter temporário. Só poderão ser confirmados após reunião dos credores da ATV na qual sejam decididos os termos da liquidação.
Sem perda de tempo, logo no dia 5 deste mês, a China Culture Media International Holdings Limited (o novo accionista) readmitiu 160 dos 300 funcionários despedidos, para manterem a estação a funcionar. Foi-lhes proposto trabalharem até ao próximo dia 1 de Abril, recebendo dois salários por um mês de trabalho.
Não parece uma má proposta receber um mês a dobrar. No entanto a ATV ainda devia a estes funcionários os salários de Janeiro e de Fevereiro, pelo que esta proposta apenas resolvia parte do seus problemas.
Acresce ainda que o novo accionista estipulou condições contra os direitos legais destes trabalhadores. Ficaram impedidos de reclamar o pagamento dos salários em atraso antes de dia 3 de Abril. Por outras palavras, os 160 trabalhadores não podem processar, nem a ATV nem a Deloitte, pelos salários em falta antes desta data. No entanto estão autorizados a apresentar queixa ao Fundo de Insolvência para Protecção de Salários, para tentarem recuperar o valor em falta.
O Fundo de Insolvência para Protecção de Salários foi criado pelo Governo da RAEHK. As empresas que operam em Hong Kong são obrigadas a pagar 250 HKD por ano pela sua licença comercial. Estes valores são depositados num Fundo que cobre o pagamento de salários quando as empresas ficam impossibilitadas de o fazer. Qualquer valor que os empregados recuperem posteriormente do seu empregador deverá ser restituído ao Fundo. O Fundo funciona como um intermediário entre patrões e empregados e é um garante para os trabalhadores. Em caso de falência, pelo menos parte dos salários em falta será devolvida.
Em Macau não foi criado um Fundo similar.
E agora pergunto eu, se o meu caro leitor estivesse na pele de um destes 160 funcionários, aceitaria ou não a proposta que lhes foi feita?
Bem, do ponto de vista financeiro não me parece que lhes reste outra alternativa senão aceitarem. Com um passivo de dois meses de salário em atraso e, evidentemente, com vidas para gerir, que mais podem fazer? Por um mês de trabalho recebem dois ordenados, estão à espera de quê?

Do ponto de vista legal, serão legítimas as condições estipuladas pelo novo accionista, ou seja, que os trabalhadores abdiquem dos seus direitos legais até dia 3 de Abril?
Em Hong Kong as leis que regem o emprego orientam-se por um princípio básico que defende que nunca deve haver qualquer limitação dos direitos dos trabalhadores. Mesmo que os trabalhadores concordem com essas limitações, continua a ser ilegal. E isto porque os acordos entre patrões e empregados não se sobrepõem aos requisitos estatutários. A Lei deverá ter sempre a última palavra.
No entanto este acordo não priva propriamente os trabalhadores dos seus direitos, apenas os adia. O facto de se absterem de qualquer acção até 3 de Abril, não reduz em nada os seus direitos, portanto aparentemente não se verifica uma transgressão da Lei do Trabalho de Hong Kong.
Mas o efeito de “adiar o exercício dos direitos legais” pode ser prejudicial. Está fora de questão pôr em causa o dever que o empregador tem de pagar os salários aos seus funcionários. Mas nesta situação esse dever é intencionalmente adiado, não lhe parece?
É evidente que o novo accionista terá as suas razões para agir desta forma. A transferência das quotas dos accionistas originais da ATV para os actuais leva tempo. A aprovação do Governo de Hong Kong é necessária. Sabemos pelos media que esta transferência ainda está em curso. Logo se a transferência ainda não está efectivada, de momento os novos investidores são estranhos à ATV, ainda não são accionistas de pleno direito. Não têm direito a pronunciar-se. Além disso como a licença da ATV não vai ser renovada, o seu futuro ainda é um grande ponto de interrogação. Ninguém sabe dizer se depois de 3 de Abril
a ATV vai continuar a emitir. Para já a estação precisa de investimento. No caso de haver um encerramento, todo o dinheiro que os novos investidores já injectaram será desperdiçado.
Podemos pensar que o acordo feito com os 160 funcionários é melhor que nada. A nova vida da ATV vai depender dos novos accionistas e da sua equipa.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

10 Mar 2016

Só conversa (吹水)

Strange days have found us
Strange days have tracked us down
They’re going to destroy our casual joys
We shall go on playing or find a new town, yeah

The Doors, Strange Days

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ão dias estranhos, estes que vivemos agora em Macau, e se não se pode dizer que estes dias tenham vindo atrás de nós e nos tenham encontrado, pode-se dizer que fomos nós que os procuramos, e se não formos cuidadosos, pode ser que arruínem a nossa felicidade. Discutem-se por aí agora questões que tiveram todo o tempo do mundo para ser discutidas, como sejam a identidade, e que papel desempenha cada um no contexto da RAEM. Tudo isto tem sido o mote para as mais variadas análises, que vão da simples opinião até a estudos mais ou menos elaborados, e se há alguma conclusão que pode ser retirada, é que não há conclusões a retirar. Tudo varia conforme o que se procura saber, e junto de quem. Macau é assim, uma terra de contrastes e de pessoas que contrastam, e permitam-me o lugar comum, “cada caso é um caso”.
Quer no que concerne à questão da identidade, ou da forma como se encara esta realidade tão particular que é Macau, há um factor que é preciso ter em conta: a falta de um valor essencial que seja comum a todas as comunidades, algo precioso, original e único que seja um resultado do convívio entre todas elas, que tenha perdurado e cuja necessidade de preservar fosse unânime – em suma, uma matriz. Nunca seria fácil, mesmo que houvesse uma pretensão a tal, uma vez que Macau foi sempre tido como um lugar de passagem, parte de um plano maior, e nunca uma meta. O território usufrui hoje de um estatuto que é mais uma vez temporário, mesmo que os cinquenta anos estabelecidos até nova mudança sejam mais do que qualquer outro período da sua história recente na mesma condição. Parece confuso posto nestes termos, mas vou elaborar.
O que se sabe de Macau dos tempos remotos não é muito diferente daquilo que hoje temos; podem ter desaparecido os pescadores, mas o passatempo a que estes já se dedicavam antes de chegarem os portugueses permanece e é a principal fonte de receitas, senão a única com relevância: os jogos de fortuna e azar. A história muitos de nós conhece mais ou menos bem, mas é já partir do século XX que Macau adquire a forma tem actualmente, e nesse particular foi sempre refém dos sobressaltos da História dos dois elementos que entraram na sua génese: Portugal e a China. O primeiro, longínquo e nem sempre atento administrador, passou por três fases distintas após o evento da República, e se por um lado o gigante chinês atingiu o mesmo estatuto quase em simultâneo, tudo aquilo que veio a seguir, e praticamente até aos dias de hoje nunca transmitiu uma sensação de segurança que garantisse a Macau um desenvolvimento paralelo à sua situação política. Durante estes cem anos não se pode dizer que tenha havido um período de estabilidade que permitisse a Macau que aparecessem mais do que duas gerações, e com elas um conjunto de valores comuns que se pudessem enraizar ao ponto de valer a pena lutar por eles. Não é fatalismo, é apenas a única realidade que temos.
Por isso é que me causa alguma estranheza que se faça isto agora e com carácter de urgência. Ninguém se ralou durante os 15 anos que se passaram desde a transferência de soberania em chegar a consenso algum sobre temas como a identidade macaense, o papel da comunidade portuguesa ou como é o português-tipo em Macau, e numa perspectiva mais abrangente, qual o “peso” de cada um no contexto actual da RAEM – posso ir adiantando que o meu anda pelos 80 quilos, um pouco mais quem sabe, mas nunca acima dos 85, garantidamente. Toda esta súbita separação do trigo do joio dá até a entender que se prepara algo semelhante às Leis de Nuremberga de 1935, e torna-se urgente encontrar um lugar ao sol.
Fora de brincadeiras, e voltando à questão do consenso: não somos um povo de consensos, temos um carácter que eu não chamaria de vincado, mas antes rígido, confundimos firmeza de princípios com casmurrice, e não temos a rectidão que muitas vezes é necessária para dar o corpo ao manifesto. Neste particular julgo ter sido Martim Moniz o último a fazê-lo, antes de ser inaugurada a modalidade de “heroísmo de bancada”, em que nos tornámos exímios. As descobertas? Bem, detalhes à parte, foi no rescaldo dessa epopeia que chegámos aqui e por cá continuamos, sem que para tal nos fosse necessário ser atribuído um papel, a não ser que estejamos aqui a falar do BIR, o que nesse caso será antes um cartão. Se somos titulares deste cartão que nos permite usufruir um estatuto de igualdade perante os restantes portadores do mesmo, devemo-lo unicamente à diplomacia – não à última administração portuguesa, e muito menos ao Governo português. Aqui quando digo governo falo obviamente nos sucessivos governos, que depois de se terem servido de Macau para financiar campanhas eleitorais e outras pantominices antes da transferência de soberania, vão-se demitido lentamente dos compromissos que assumiram inicialmente com Macau, revelando sempre um distanciamento que ora se vai acentuando, ora se fica pelas boas intenções.
E é esta a imagem que passamos para os outros, para os que partilhando do mesmo estatuto que nós, e que nos é dado pelo tal BIR, têm consciência da nossa desunião e do nosso orgulho que consideram “bárbaro”, por culpa das vezes em que nos recusamos a parar para olhar um pouco à nossa volta e entender alguns sinais. A pouca queda que temos para o associativismo, que no nossa caso é misto de provincianismo e vaidade, faz com que a comunidade chinesa diga de nós que “só temos é paleio”, ou no dialecto cantonês “chui sôi” (吹水). E sim, aquele “sôi” é o caracter para “água”, que é como quem diz “saliva”, que temos de sobra e não nos inibimos de gastar. Mas há um lado positivo em tudo isto, e que foi abordado num dos tais estudos “à la minuta” que por aí apareceram: o direito de matriz portuguesa. E isso, meus amigos, é o princípio, meio e fim de todas as coisas, o que nos segura a nós e aos outros, todos os que têm BIR e alguns que não têm, e foi o maior tesouro que aqui deixámos. Fico a torcer para que tratemos dele com a maior reverência, e que lhe demos o corpo ao manifesto, se necessário. E eis finalmente qualquer coisa que valha a pena esse sacrifício.

10 Mar 2016

Tribunal, “tops” e tiques

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão nos levem o Velho Tribunal. Não transformem o Velho Tribunal numa nova biblioteca cheia de ares condicionados e janelas cromadas. A sério, até parece uma boa ideia mas não é. Até parece um acto em defesa da cultura, mas não é. Não tenho nada contra livros, muito pelo contrário, e muito menos contra bibliotecas, mas o tribunal tal como está funciona e não precisa de ser alterado- talvez um reboco aqui ou acolá, talvez pintar-lhe as paredes exteriores de várias cores, e depois mudar outra vez. Talvez não fazer nada. Transformá-lo numa biblioteca será um desperdício pois essa pode muito bem funcionar noutro sítio qualquer. Se mais fosse preciso, a realização do festival de literário de Macau, que o tem vindo a utilizar como quartel general nos dois últimos anos aproveitando as suas capacidades multidisciplinares, as recentes actuações de teatro do grupo Hiu Kok, ou as várias exposições que por ali têm ocorrido chegam para perceber o porquê deste pedido. Há algo de intrinsecamente apelativo para um artista quando se depara com um espaço que já teve outros propósitos, como fábricas antigas, ou antigos tribunais, há algo de extremamente atraente e convidativo em desenvolver expressões artísticas em espaços nus, de concreto à vista, que parecem predispostos a tudo, disponíveis para acolherem as mais díspares manifestações. Tal como numa pintura o artista deve perceber quando é altura de parar, neste caso é preciso entender não ser necessário embelezar nem reconverter, bastando conservar. Poupa-se dinheiro e dota-se a cidade de um espaço multidisciplinar, atraente para as artes, onde tudo pode acontecer bem no centro da cidade. Quando tanto se fala na promoção da criatividade e das artes em geral, que melhor do que um local como o Velho Tribunal para a sua promoção? Entidades governamentais competentes, pensem nisso, por favor. Ainda estão a tempo de mudar de ideias.

Tops

Das coisas mais irritantes com que nos deparamos nos dias de hoje é a proliferação de rankings para tudo e mais alguma coisa. A praia mais bonita do mundo, a cidade mais não sei quê, os principais destinos para umas férias assim, os melhores locais para não sei quê assado, os mais ricos, os mais bonitos, os mais…. livra! Não há traseiro que aguente. Listas feitas para idiotas que não sabem distinguir, para incapazes de perceberem o que é melhor para eles, para bandos de carneiros se poderem juntar às moles e tirarem mais uma selfie à frente do não sei quê que está no top de não sei que mais. Mas, pior do que isso, quando se fala de destinos turísticos, é o orgulho pateta dos autóctones, quiçá mais seguros de si por viverem na cidade com mais igrejas, ou com mais pessoas de calções cor-de-rosa. Depois vêm os resultados. Porque quando se atraem muitas moscas o melhor é dar-lhes poias com fartura pois, caso contrário, o mosquedo vai varejar para outras paragens. Coitados dos locais, entretanto, zonzos no meio do zumbido, nauseados pelo número de poias bruscamente plantadas aqui e acolá. É o que me ocorre quando olho para a minha cidade natal, Lisboa, a ficar descaracterizada, dia após dia, em função de um fogo fátuo chamado turismo, embriagada em gourmets e boutiques, atarantada com tuk tuks e quejandos como se andar de triciclo motorizado fosse coisa de local desenvolvido e não uma necessidade de povos com menos recursos como os tailandeses, os cambojanos ou os indianos, fartos que estão de não terem autocarros não poluentes como Lisboa ou sistemas de metropolitano abrangentes. O turismo, esse tesouro dos países subdesenvolvidos, essa arma de arremesso de políticos populistas e sem ideias, especialmente quando é gerido de forma provinciana como em Portugal (e noutros locais mais próximos de nós) é apenas um bem temporário e nunca uma solução de fundo pela quantidade de impactos negativos que provoca e já mais do que estudados. Mas as pessoas não aprendem, não querem aprender ou, ignorantes por falta de mundo, não sabem. Portugal, em boa verdade, só evolui na aparência porque, lá no fundo, continua a ser formado, na sua maioria, por um povo de simplórios com tiques de grandeza desejosos de serem aceites entre os que considera importantes nem que para isso tenha de se prostituir.

Tiques

E por falar em tiques, mais ou menos pategos, custou-me ver o Festival Literário de Macau abrir com uma sessão em chinês… e inglês. Depois de ter sido revelado à imprensa a política da organização em não convidar autores banidos na China , foi também banido o português na abertura oficial, idioma oficial de Macau para os mais distraídos, e substituído pelo inglês, língua oficial de Hong Kong. Até percebo os desejos de internacionalização do festival e consequente reorientação estratégica ao abrir o elenco a escritores de outras línguas que não o português e o chinês para dar mais mundo ao evento, mas numa cerimónia de abertura de um evento organizado por um jornal português, numa terra onde os simbolismos políticos são tão importantes, com a presença do Secretário Alexis Tam que representa a cultura do território e fala português, numa sessão onde, ainda por cima, existia tradução simultânea, por mais que tente entender não consigo. A não ser à luz da eterna reverência portuguesa que nem aqui, tão longe de casa, continua a assomar nos comportamentos e de um processo de autocensura que, como o próprio convidado do festival, Chan Koonchung, dizia ontem nas páginas deste jornal, “é sempre uma das coisas mais perigosas”. Mas não pensem que tenho algo contra o festival, muito pelo contrário. É, provavelmente, o evento mais interessante do território. Mas não me lixem. Full stop.

Música da Semana

David Bowie – “We Are Hungry Men”

“We are not your friends
We don’t give a damn for what you’re saying
We’re here to live our lives
I propose to give the pill
Free of charge to those that feel
That they are not infertible
The crops of few, the cattle gun
There’s only one way to linger on
So who will buy a drink for me, your
Messiah”

9 Mar 2016

Caso Ho Chio Meng – Afinal… em que ficamos?

* Por Mário Alves Cardoso, advogado

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]todos os títulos, é uma questão bem curiosa, jurídica e socialmente interessante, a que agora se levantou a propósito do julgamento do pedido de habeas corpus interposto pelo antigo Procurador do Ministério Público de Macau e actual Procurador-Adjunto, Ho Chio Meng.
Questão essa que, sucintamente, se traduz no seguinte: qual a posição, qual o estatuto de que o magistrado em causa gozava no momento em que interpôs o pedido de habeas corpus, alegando a ilegalidade da prisão preventiva decretada pelo TUI ?
Para ele, para a sua defesa, a fundamentação do pedido era simples, crê-se: o arguido, magistrado do Ministério Público, não podia ser nem detido nem preso preventivamente, tendo em conta o n.º 1 do art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados ( que é uma lei especial, sublinhe-se, e prevalece por isso sobre as leis gerais, nomeadamente sobre o Código de Processo Penal ), o qual estipula que « Os magistrados não podem ser detidos ou preventivamente presos antes de pronunciados ou de designado dia para a audiência, excepto em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 ( três ) anos.»
E, no entanto, o magistrado em causa foi detido e depois colocado em prisão preventiva, sem que estivesse pronunciado, sem que houvesse dia designado para a audiência de julgamento e, mesmo, sem que houvesse acusação por parte do Ministério Público.
Apresentado o arguido ao TUI, foi este órgão judicial supremo que tomou a decisão de o colocar em prisão preventiva. Ou seja, considerou-se competente para tal, face ao art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM, que determina, na alínea 8), a competência daquele tribunal para « julgar processos por crimes e contravenções cometidos pelos magistrados referidos na alínea anterior. » ( ou seja, por Juízes de Última Instância, pelo Procurador, por Juízes de Segunda Instância e por Procuradores-Adjuntos ).
Julgou-se, pois, o TUI competente para apreciar, quer tivesse considerado a categoria profissional do arguido à data dos alegados factos criminosos ( Procurador ) ou a categoria à data da decisão ( Procurador-Adjunto ). De resto, o arguido fora já ouvido no CCAC, em 4 de Fevereiro de 2015 — de acordo com a Comunicação Social de matriz portuguesa –, pouco antes de ter sido nomeado coordenador da Comissão de Estudos do Sistema Jurídico-Criminal.
Pois bem: de acordo igualmente com notícias da mesma Comunicação Social, em favor da decisão que indeferiu o pedido de habeas corpus militou a circunstância de o TUI considerar que não era aplicável ao caso a citada norma especial do art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados. Isto pelo facto – ainda de acordo com o noticiado nos jornais – de o arguido não estar actualmente a desempenhar funções de magistrado do MP mas outras estranhas à sua magistratura.
Dando como certo este ponto de vista, esta posição do TUI – que não conhecemos em pormenor por só ter sido publicitada pelo tribunal, até agora, a versão em língua chinesa do acórdão proferido –, levanta-se então uma importante questão, cremos, e salvo melhor e fundada opinião: a competência do Tribunal de Última Instância para o processo em causa.
Para isso, há que esclarecer: o que é que altera ( ou não ) o ponto de vista alegadamente adoptado pelo TUI no que respeita à sua competência para julgar o processo-crime relativo a um ex-Procurador e actual Procurador-Adjunto ? Será que o facto de considerar não aplicável in casu o art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados ao arguido, por não se encontrar na situação de exercício efectivo de funções judiciais, poderá levar a que se conclua também que, então, a sua condição, o seu « estatuto de magistrado » está suspenso ? E que, face a essa suspensão, não seria aplicável ao caso a regra da competência do TUI estabelecida na Lei de Bases da Organização Judiciária?
Afigura-se-nos — salvo melhor opinião –, no que respeita à competência para apreciar e julgar, que o TUI continua a ser o tribunal competente face ao disposto na Lei de Bases da Organização Judiciária, porque o arguido não deixou de ser magistrado com determinada categoria, no caso, Procurador-Adjunto.
Mas, se para este efeito o arguido continua a ser magistrado e com aquela categoria, e, por conseguinte, a competência do TUI se mantém – independentemente de o magistrado estar, ou não, no exercício efectivo de funções judiciais –, então a subordinação plena, total, do arguido ao Estatuto dos Magistrados ( aos deveres que ele impõe mas também ao benefício dos direitos que nele estão consignados ) parece-nos inevitável.
De resto, é o próprio Estatuto dos Magistrados que decide, que expressamente consigna, a única excepção a esta regra de subordinação dos profissionais do foro abrangidos, ao estipular, no n.º 6 do artº 72.º, que « A pena de demissão importa a perda do estatuto de magistrado conferido pelo presente diploma e dos correspondentes direitos. »
Face ao ponto de vista alegadamente expresso pelo TUI na decisão que indeferiu o habeas corpus requerido – ou seja, a impossibilidade de o arguido se socorrer da norma constante do art.º 33.º, que lhe confere o direito a não ser detido nem preso preventivamente quando não se verificam as situações ali referidas, decorrente do facto de estar a desempenhar outras funções que não as judiciais –, posição radical ( polémica, certamente ) poderia então equacionar-se, concretamente a seguinte: o magistrado que deixe de exercer, temporariamente, as funções judiciais inerentes ao seu cargo e categoria passa, automaticamente, a deixar de estar abrangido pelas regras do Estatuto dos Magistrados.
Ou seja, a sua condição de magistrado passa a estar suspensa, não produzindo ela quaisquer efeitos enquanto se mantiver a situação de não exercício das funções judiciais. Assim sendo, não seriam aplicáveis ao magistrado com essa condição suspensa, e por causa disso, quaisquer regras jurídicas que se reportem à condição de magistrado.
Forçoso seria, então, de concluir, por exemplo, que os tribunais de última e de segunda instância – competentes, como se viu, para apreciarem processos e decidirem acções que envolvam magistrados – deixariam, nessa circunstância, de o ser, dada a ausência, temporária, da condição de magistrados dos arguidos. Passando, então, a competência para apreciar os crimes e contravenções, alegadamente praticados por aqueles magistrados « suspensos », para os tribunais de base, de primeira instância.
É um facto que o comunicado emitido pelo TUI na sua página oficial electrónica apenas refere não ter admitido o pedido o pedido de habeas corpus porque este « só pode ser pedido e concedido nos termos prescritos na lei, fundamentando-se, obrigatoriamente, nas situações enumeradas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 206.º do Código do Processo Penal. Outros tipos de eventual prisão ilegal não podem servir de fundamento do pedido de habeas corpus. » Não há, pois, no comunicado qualquer referência ao alegado « ponto de vista do tribunal » quanto à não aplicabilidade do referido art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados à situação concreta do arguido, o não exercício efectivo, no momento, de funções judiciais.
Repita-se: não conhecemos o texto exacto ( em língua portuguesa ) do acórdão proferido. Mas, conhecemos o comunicado oficial em Português divulgado pelo tribunal. E, perante ele, é forçoso concluir: o indeferimento do pedido de habeas corpus nada tem a ver com a aplicabilidade, ou não, do art.º 33 do Estatuto dos Magistrados.
Tem a ver, sim – e, pelos vistos, exclusivamente –, com o facto de o tribunal ter considerado não estar preenchido nenhum dos pressupostos exigidos pelo art.º 206.º do Código de Processo Penal para o deferimento de um tal pedido de libertação de arguido preso. Ou seja, que: a ) a prisão foi ordenada por entidade incompetente; b ) foi motivada a prisão por facto pelo qual a lei a não permite; e c ) que a prisão se manteve para além dos prazos fixados pela ou por decisão judicial.
Todavia, escreveu-se num jornal: « O juiz Sam Hou Fai acrescentou ainda que , para inverter a situação de prisão preventiva, Ho Chio Meng teria de interpor um recurso e não fazer um pedido de habeas corpus. » ( « Hoje Macau », 2 de Março ). Permita-se-nos que perguntemos: o meritíssimo juiz-presidente do TUI afirmou, na audiência de julgamento do pedido, aquilo mesmo que atrás está referido? Que o arguido em causa teria que interpor um recurso da decisão que ordenou a sua prisão preventiva ? Um recurso ? Mas para quem ?
Com todo o respeito que o tribunal, as pessoas e a matéria nos merecem, isto demonstra claramente a incongruência do sistema jurídico quando se trata de decisões do TUI tomadas em primeira instância, pois que, como é sabido, é jurisprudência daquele tribunal delas não ser admissível recurso.
Ao arrepio da justiça e do bom-senso, como o reconhece a maioria da comunidade jurídica da RAEM. E, provavelmente, como o sente o próprio Tribunal de Última Instância.

8 Mar 2016

Infidelidade

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que é a infidelidade e de que forma é tolerada, ultrapassada ou pura e simplesmente recusada no âmbito de um relacionamento romântico e sexual?

A psicologia evolutiva preconiza que os homens e as mulheres perceberão como problemática a infidelidade de forma distinta, caindo, por isso, noutro cliché de género. Os homens ficarão mais magoados por saberem que o seu parceiro(a) se envolveu sexualmente com alguém, enquanto que as mulheres ficarão mais magoadas por saberem que o seu parceiro(a) nutre sentimentos românticos por outra pessoa. Ademais, diz a disciplina que há razões evolutivas para os homens procurarem relacionamentos extra-conjugais, enquanto que as mulheres terão mais vantagens em permanecer em relações monogâmicas. Uma matemática simples, mas complicada de concretizar, se os homens e as mulheres procuram na natureza da relação coisas completamente diferentes, algum dia encontrarão compatibilidade?
Se há casais felizes por esse mundo fora é porque muito provavelmente encontraram um consenso em relação a muitas coisas, em especial, de como a relação extra-conjugal é entendida. Como defensora de explicações não-redutoras de qualquer fenómeno, parece-me vantajoso dissecar ao tutano este diálogo relacional, no âmbito pessoal e científico, da significação do sentimento de traição por quem vê o seu amado envolvido numa outra relação íntima. A infidelidade, a traição ou adultério envolve-se de complexidade cognitiva, relacional e social.

O relacionamento ‘extra’, como é encarado de forma polémica, mas não obstante, de uma forma muito sensual, preenche a imaginação dos criadores consumidores de literatura, cinema e… de telenovelas. A combinação de sensualidade, rebeldia e dramatismo transforma qualquer história aborrecida em qualquer coisa mais aliciante – escandalosa! E são estas as histórias e outras práticas que invadem a modelação de atitudes e de práticas (extra) relacionais. Com a imperativa diversidade que para aí anda, diria que a construção ideológica do sexo e do amor (e as suas dissonâncias) que cada um de nós carrega resultará em assumpções não-universais da infidelidade.

A habitual assumpção de que a causa da procura do outro para além da díade provém de um descontentamento relacional, pode ser contestada. Muitas vezes, não se vai à procura de outra pessoa porque o relacionamento sente falta de qualquer coisa (sexo?). O descontentamento não está no outro, mas em si mesmo. O descontentamento em relação ao que somos e fazemos é o maior propulsor pela procura exterior de novidade. O desconhecido incentiva a nossa reinvenção e inovação. A consequência, sim, pode ser um relacionamento quebrado e desentendido, que poderá ser reinterpretado, arranjado ou esquecido. O melhor que as pessoas envolvidas podem fazer por isso.

Há por aí uma senhora, uma terapeuta conjugal, que é muitas vezes convidada a falar em palestras sobre a questão da infidelidade: Esther Perel. Na sua descrição de ‘porque é que casais felizes traem?’ chegamos à conclusão que a infidelidade não tem anda que ver com as nossas ideias pré-concebidas. Da sua experiência com casais que sofrem com a descoberta que existe uma terceira pessoa, o relacionamento passa por uma transformação que até pode ser bastante positiva para o casal que quer salvar o seu relacionamento. Ou pode ser positiva também para o casal que decide terminar e seguir com as suas vidas. Afinal, a infidelidade, por pior que seja para diferentes pessoas, até pode ser uma abertura para discutir o relacionamento, se assim o quiserem, constituindo a rotura necessária para o novo começo.

De relembrar, contudo, que os relacionamentos extra-relacionais podem ser não dramáticos quando fazem parte do acordo entre casal. Amante(s) podem ser a norma e não a disrupção: tudo por casais felizes.

8 Mar 2016

Corrupção de alto nível

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta semana as atenções focaram-se na prisão do antigo Procurador-geral Ho Chio Meng (Ho), por alegada fraude.
O website “macaodailytimes.com.mo” fez notícia do assunto no passado dia 27 de Fevereiro, divulgando que Ho estava “sob investigação do Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) por alegado envolvimento em negócios ilegais. Estas operações fizeram movimentar cerca de 167 milhões de patacas e tiveram lugar entre 2004 e 2014, período durante o qual Ho chefiou o Ministério Público.”
Segundo o comunicado de imprensa do CACC, emitido no sábado à tarde, “destas transacções, os suspeitos deverão ter recebido em luvas pelo menos 44 milhões de patacas.”
O caso ainda está sob investigação. Notícias de última hora davam conta que o Tribunal rejeitou o habeas corpus interposto por Ho.
“Habeas Corpus” significa literalmente em latim “Que Tenhas o Teu Corpo”. Consiste basicamente num pedido de restituição de liberdade.
O website “wikipedia” informa que Ho foi o primeiro Procurador-geral da Região Administrativa Especial de Macau, a ser designado para três mandatos, em 1999, 2004 e 2009.
Em 1983, Ho doutorou-se em Direito pela Universidade de Direito e Ciências Políticas Southwest, na China. Entre 1987 e 1990 foi Juiz Assistente, Juiz e Presidente do Tribunal do Povo da província de Guangdong. Voltou a Macau em 1990. Pouco depois foi para Portugal, para a Universidade de Coimbra, com o objectivo de aprofundar os seus conhecimentos de Português e de Direito. De regresso a Macau obteve o bacharelato em Direito pela Universidade da cidade.
Já em Macau, em 1998, frequentou um curso de formação destinado a funcionários públicos seniores, no Instituto Chinês de Administração Nacional, e completou o doutoramento em Direito Económico na Universidade de Pequim em 2002.
Com este currículo, não admira que tenha sido designado para o cargo de Procurador-geral da RAEM
Confrontados com este caso, não podemos deixar de nos lembrar de outro, o de Ao Man Long (Ao). Ao foi preso a 8 de Dezembro de 2006 na sequência de uma investigação do CCAC, e tornou-se o mais alto funcionário a ser preso em Macau. Alegadamente, Ao tinha dado preferência em projectos governamentais a certas empresas, em negócios que montaram a 804 milhões de patacas. A 30 de Janeiro de 2008, Ao foi considerado culpado de 40 acusações de suborno passivo, entre outras, e foi condenado a 27 anos de prisão.
Se Ho for condenado, irá tornar-se o segundo funcionário de patente mais elevado a ser preso em Macau.
Existe um ponto comum nos caos de Ho e de Ao – os cargos elevados que ocupavam. Foi apenas há cerca de 16 anos que a transferência de soberania de Macau foi efectuada, mas neste espaço de tempo um funcionário superior foi preso por suborno e outro está preso sob suspeita. A imagem do Governo de Macau é afectada por estas situações.
De qualquer forma, o CCAC desempenhou bem as suas funções e os comunicados de imprensa que emitiu transmitiram a mensagem correcta. Estas medidas poderão ajudar a repor a boa imagem do Governo macaense.
Mas é vital que a longo prazo se possa impedir que casos como estes voltem a acontecer. Por exemplo, não será preferível que o Governo tenha apenas um departamento para coordenar todos os contratos? Independentemente da natureza do que estiver a ser negociado e de quem for o seu responsável, este departamento único desempenharia a função de regulador das boas práticas negociais, evitando que se possam cometer fraudes com facilidade.
Mas de qualquer forma é necessário que haja uma investigação a fundo do caso Ho. Se efectivamente foi cometido um crime, é indispensável que seja feita uma acusação. Se o crime não ficar provado, Ho deve ser libertado. Um procedimento correcto e independente é indispensável, não só para que seja feita justiça, mas também para que o público compreenda que todos são iguais perante a Lei, seja qual for a sua posição social e as suas relações com o poder.
Os casos de Ao e Ho já ocorreram. O importante é evitar que outros semelhantes voltem a acontecer.

*Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

7 Mar 2016

PERSPECTIVAS |A vida sem violência é um direito humano fundamental

[drocap style=’circle’]A[/dropcap] ONU define a violência contra as mulheres como qualquer acto de violência de género que resulte, ou possa ter como resultado um dano físico, sexual ou psicológico para a mulher, incluindo as ameaças de tais actos, a coacção ou a privação arbitrária da liberdade, ocorrida em público ou em privado. A violência familiar refere-se ao comportamento do parceiro ou ex-parceiro íntimo, que causa dano físico, sexual ou psicológico, incluídas a agressão física, coacção sexual, abuso psicológico e os comportamentos de controlo.
A violência sexual é qualquer acto sexual, a tentativa de consumar um acto sexual, ou outro acto dirigido contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coacção de outra pessoa, independente da sua relação com a vítima. A violência contra as mulheres é um problema grave de saúde pública, bem como uma violação flagrante dos direitos humanos da mulher. A nível mundial, uma em cada três mulheres, em todo o mundo, foram vítimas de violência física e/ou sexual do seu companheiro, ou violência sexual por pessoas diferentes do seu parceiro íntimo, em algum momento da sua vida.
Ainda que, as mulheres possam ser expostas a muitas outras formas de violência, consta-se que uma elevada percentagem da população feminina mundial, senão na sua maior parte é vítima de violência doméstica. A maioria dos casos é violência infligida pelo seu parceiro íntimo. É de considerar que, em todo o mundo, quase um terço de todas as mulheres que tiveram um relacionamento de casal, referem ter sido vítimas de violência física e/ou sexual por parte do seu companheiro, e em algumas regiões, este valor pode ser muito superior.
A nível mundial, cerca de 40 por cento do número total de homicídios femininos são cometidos pelo seu parceiro íntimo, o que mostra ser um cenário alarmante. As mulheres que têm sido vítimas de abuso físico ou sexual pelos seus parceiros íntimos, correm um maior risco de sofrer uma série de graves problemas de saúde. Assim, por exemplo, têm mais 16 por cento de probabilidades de dar à luz crianças com baixo peso, e mais do dobro de sofrer um aborto, ou quase o dobro de padecer uma depressão e, em algumas regiões, são uma vez e meia mais propensas a contrair o vírus do HIV, por comparação com as mulheres que não tenham sido vítimas de violência doméstica.
A nível mundial, 7 por cento das mulheres foram agredidas sexualmente, por uma pessoa distinta do seu parceiro íntimo. Ainda que, exista menos informação sobre os efeitos da violência sexual não conjugal na saúde, da informação existente depreende-se que as mulheres que sofreram esta forma de violência, são 2,3 vezes mais propícias a desenvolver distúrbios relacionados com o consumo de álcool, e 2,6 vezes mais inclinadas, a sofrer de depressões ou ansiedade. Assim, existe a necessidade de redobrar os esforços em várias áreas, de forma a prevenir esta forma de violência, e oferecer os serviços necessários às mulheres que sofrem.
A mudança assinalada na prevalência da violência dentro das comunidades, países e regiões, ou entre estes, põe em evidência que a violência não é inevitável, e que pode ser prevenida. Existem programas de prevenção promissores, que terão de ser testados e alargados, e há cada vez mais informação sobre os factores que explicam a modificação observada em todo o mundo. Tal informação, mostra a necessidade de abordar os factores económicos e socioculturais, que fomentam uma cultura de violência contra a mulher, incluindo a importância de interrogar as normas sociais que reforçam a autoridade, e a dominação do homem sobre a mulher, e aprovam ou toleram a violência contra as mulheres.
É necessário reduzir o grau de exposição à violência na infância, reformar o direito da família, promover os direitos económicos, sociais e culturais da mulher, e acabar com as desigualdades de género no acesso ao emprego na economia formal e ao ensino secundário. É necessário também, prestar serviços às vítimas de violência. O sector da saúde deve desempenhar um papel mais importante, quando tenha de dar resposta à violência por parceiro íntimo e sexual contra a mulher. As novas directrizes clínicas e normativas sobre a resposta do sector da saúde à violência contra a mulher, revelam a necessidade urgente de integrar estas questões na educação clínica.
É importante que todos os prestadores de cuidados saúde entendam que a exposição à violência e má saúde das mulheres estão intimamente relacionadas, e que podem dar respostas adequadas, sendo um aspecto fundamental, o de encontrar oportunidades para oferecer apoio e encaminhar as mulheres a outros serviços que carecem, como por exemplo, quando as mulheres procuram acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, como o cuidado pré-natal, planeamento familiar, pós-aborto, serviços de rastreio do vírus HIV, saúde mental ou de urgência.
A disponibilidade de serviços complementares de cuidado às vítimas de violações, deve ser assegurado, e o acesso aos mesmos numa escala maior que a existente na maior parte dos países. A violência contra a mulher, especialmente a exercida pelo seu parceiro íntimo e a violência sexual, são um grave problema de saúde pública e uma violação dos direitos humanos das mulheres. É de notar que o baixo nível de instrução, abuso infantil, exposição a cenas de violência na família, uso nocivo do álcool, atitudes de aceitação da violência e as desigualdades de género, são factores associados a um maior risco de serem cometidos actos violentos.
Os factores associados ao aumento da possibilidade de ser uma vítima do parceiro íntimo ou de violência sexual, incluem um baixo nível de educação, a exposição a cenas de violência entre os pais, abuso durante a infância, atitudes de aceitação da violência e desigualdades de género, e em famílias de altos rendimentos, existe informação que permite mostrar que os programas escolares de prevenção da violência por parceiro íntimo, ou violência na fase de namoro entre os jovens podem ser eficazes. As estratégias de prevenção primária nas famílias de baixos rendimentos, parecem ser prometedoras, como sejam, o microfinanciamento conjuntamente, com a formação em igualdade de género e as iniciativas comunitárias direccionadas contra a desigualdade de género, ou inclinadas a melhorar a comunicação e aptidões para as relações interpessoais.
As situações de conflito, pós-conflito e deslocamento podem agravar a violência, como a violência por parte do parceiro íntimo, e originar formas adicionais de violência contra as mulheres. A violência do parceiro íntimo e a violência sexual são cometidas na sua maioria por homens, contra mulheres e crianças do sexo feminino, ainda que o oposto tenha vindo a aumentar.
O abuso sexual infantil afecta crianças do sexo feminino e masculino. Os estudos realizados demonstram que aproximadamente 20 por cento das mulheres e 5 a 10 por cento dos homens, referem ter sido vítimas de violência sexual na infância. A violência entre os jovens, que inclui também a violência doméstica é outro sério problema. As crianças que crescem em famílias, em que existe violência, podem sofrer diversos transtornos de comportamento e emocionais. Estes transtornos, podem associar-se também, à acção ou ao sofrimento de actos de violência, em fases posteriores da sua vida.
A violência doméstica também está associada a maiores taxas de mortalidade e morbilidade em menores de cinco anos. Os custos sociais e económicos deste problema são enormes, e repercutem-se por toda a sociedade. As mulheres podem ficar numa situação de isolamento e impossibilitadas de trabalhar, perder o seu emprego ou salário, deixar de participar nas actividades diárias, e ver diminuídas as suas forças físicas e anímicas para cuidar de si e dos seus filhos. Existem poucas intervenções actualmente, em muitos países, cuja eficácia tenha sido demonstrada por meio de estudos bem delineados e revelados à sociedade.
É necessidade urgente a existência de mais recursos para reforçar a prevenção da violência pelo parceiro íntimo e a violência sexual, sobretudo no campo da prevenção primária, para impedir que se produza o primeiro episódio. Quanto à prevenção primária, existe alguma informação correspondente a países de altos rendimentos, que sugerem que os programas escolares de prevenção da violência nas relações de namoro são eficazes. Todavia, não foi avaliado a sua possível eficácia em meios de recursos escassos. A fim de propiciar mudanças duradouras, é importante que se façam leis e se formulem políticas que protejam a mulher, combatam a discriminação da mulher, fomentem a igualdade de género e ajudem a adoptar normas culturais mais pacíficas.
A resposta adequada do sector da saúde pode ser de grande ajuda para a prevenção da violência contra a mulher. A sensibilização e a formação dos prestadores de serviços de saúde e de assistência social constituem outra estratégia importante. Abordar de forma integral as consequências da violência e as necessidades das vítimas supervenientes requer uma resposta multissectorial. Estas considerações são defendidas com maior veemência no relatório da Organização Mundial de Saúde “Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence” de 2013.
O relatório apresenta a primeira revisão sistemática e resumo de todas as informações científicas sobre o predomínio de duas formas de violência contra as mulheres, nomeadamente a violência pelo parceiro íntimo ou violência doméstica e a violência sexual infligida por outra pessoa, que não seja o parceiro íntimo, e denominada por violência sexual não conjugal. As previsões agregadas a nível mundial e regionais do predomínio destas formas de violência, obtidas a partir de informações demográficas mundiais recolhidas de forma sistemática foram apresentadas no relatório, pela primeira vez.
As conclusões do relatório são impressionantes e devem ser tidas em conta na feitura das leis sobre a matéria. O relatório salienta que a violência contra a mulher é um fenómeno omnipresente em todo o mundo e transmite a forte mensagem que não se trata de um pequeno problema que afecta apenas alguns sectores da sociedade, mas também, de um problema de saúde pública mundial de proporções epidémicas, que requer a adopção de medidas urgentes.
A “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, denominada de “Carta Internacional dos Direitos da Mulher”, foi adoptada pela ONU, a 18 de Dezembro de 1979, e entrou em vigor 3 de Setembro de 1981, sendo seguida da “Declaração Sobre A Eliminação Da Violência Contra As Mulheres” da ONU, de 20 de Dezembro de 1993.
A “Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica” foi adoptada, em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e entrou em vigor a 1 de Agosto de 2014. O seu principal objectivo é o de prevenir e averiguar os actos de violência sobre as mulheres em geral, e a violência doméstica, em particular. É de realçar que a “Lei da Violência Doméstica” da China, entrou em vigor, a 1 de Março de 2016.
É necessária uma intervenção a nível mundial, pois uma vida sem violência é um direito humano fundamental inerente a todos os homens, mulheres e crianças.

Jorge Rodrigues Simão

4 Mar 2016

O português em Macau

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]i com algum interesse o artigo neste jornal sobre a tese da doutoranda Vanessa Amaro que se debruçou sobre os padrões de comportamento dos portugueses em Macau. (*)
Naturalmente, quando se faz um estudo dessa natureza não é de todo inesperado que os resultados obtidos desencadeiem discussões agrestes, conforme se constata no próprio website do Hoje Macau onde o dito artigo pode ser lido.
Generalizar é sempre perigoso – mais ainda quando (1) o universo de inquiridos se limita a um pequeno grupo de 60 portugueses e (2) o público é incapaz de interpretar de forma devida os resultados do estudo.
Não se pretende com esse comentário tirar mérito ao trabalho feito o qual, conforme acima referido, me despoletou curiosidade por se tratar de um tema bastante interessante.
O importante, parece-me, é ter-se consciência de que se trata de um estudo assim talhado e que, por isso, não querendo colocar em causa os resultados obtidos e as conclusões tiradas pela autora, há que aceitar que logo ao virar da esquina poderemos encontrar um português aqui em Macau com um comportamento diametralmente oposto.
Dito isso, vou deixar aqui algumas considerações sobre o que me pareceu mais intrigante, esclarecendo-se desde já que o faço apenas com base no artigo do jornal, cujas passagens vou transcrever.

O carácter temporário

“Uma coisa comum é que todos pensam Macau como uma coisa muito temporária (…), nunca compraram casa, não aprenderam chinês porque sempre tiveram a intenção de um dia ir embora.”
Já estivemos pior – se é que se possa considerar o “carácter temporário” uma coisa má.
O que é certo é que antes da transferência de soberania esse “carácter temporário” era muito mais forte pois o português vivia Macau num cenário de contagem decrescente.
Contudo, as coisas estão a mudar. Frequentemente assisto a conversas entre pais portugueses sobre a educação dos filhos e preocupações com a língua chinesa, não descartando a possibilidade de um futuro em Macau. Não significa que se tenha descartado o “carácter temporário”. Quando muito, abandonou-se a ideia do regresso já agendado.4316P22T1
É claro que existem sempre uns ilustres que assumidamente não gostam de cá estar, mas que aqui estão porque, enfim, não têm outra alternativa.
Mas há também outros recém-chegados que gostam genuinamente de cá estar e não sentem necessidade de planear uma eventual saída. E isto para não falar daqueles que já aqui estão há uma data de anos, já se multiplicaram, e que não se conseguem imaginar a viver noutro sítio tão cedo. Alguns, mesmo já reformados, são incapazes de deixar Macau para sempre: passam umas temporadas cá e outros lá, vêm e vão conforme a saudade lhes aperta – seja ela em que sentido for.

Rejeição do termo emigrante

“Outro denominador comum é a recusa do termo emigrante para definir um português que vive em Macau, por ser pejorativo.”
Esse comportamento não se restringe apenas aos portugueses. Em geral, muitos que aqui estão, portugueses ou não, preferem a expressão “expatriado”, precisamente para evitar o cunho negativo que a expressão “emigrante” traz consigo.
No entanto, já me parece mais grave quando se lê no artigo que os portugueses em Macau poderão considerar “(…) uma ofensa colocá-los em pé de igualdade como outras comunidades, como os filipinos (…)” e que terá a ver com “(…) a necessidade de a comunidade se tentar posicionar como elite.”
É um facto que alguns têm essa mentalidade da elite, talvez fruto de um certo orgulho ferido. Contudo, e curiosamente, é também após a transferência de poderes que se observa em Macau a presença de portugueses com condições de trabalho e formas de vida não muito diferentes das dos nossos amigos da comunidade filipina.
Portanto, ainda que existam os tais com a mania da elite – e felizmente não serão muitos, seguramente uma minoria – há também outros que têm uma postura admiravelmente humilde.

E finalmente: a bolha

“(…) a bolha em que vivem alguns portugueses, que adoptaram a ideia de que podem fazer a sua vida sem ter de aprender chinês (…), fecham-se nos seus grupos e fazem toda a sua vida no circuito português.”
A bolha existe sim. E a língua é o factor principal.
Questionou-me um dia um amigo meu da faculdade, que já aqui esteve por duas vezes, por que razão não falam chinês os portugueses em Macau.
Dizia ele – com razão – que o português que fixe residência em qualquer outro país que seja aprende sempre a falar a língua local.
A minha resposta?
Este é um assunto para ser tratado com pinças e não quero (voltar) a ser mal interpretado e, como tal, limito-me a dizer o seguinte: tive o privilégio de ser educado desde muito cedo a aceitar de forma objectiva a transferência de soberania.
Por essa razão hoje, na qualidade de português de Macau e em Macau, vivo harmoniosamente na RAEM sem complexos.
Há coisas que levam tempo a mudar – estamos a falar de uma alteração profunda de mentalidade.
E, analisando bem as coisas, a RAEM existe há apenas 16 anos.
É preciso dar tempo ao tempo.

Sorrindo Sempre

Voltou à carga o nosso amigo Roy Eric Xavier. Como se não bastasse a birra que fez no passado quando instituições locais lhe recusaram o apoio para um projecto pessoal, agora, por alguma razão, decidiu acusar os líderes da comunidade macaense de miopia cultural. (**)
As bombas que o senhor doutor lança sazonalmente já se tornaram habituais e a malta até já encolhe os ombros. Tal como o cão do vizinho que ladra sempre que alguém passa por perto – era preferível que não ladrasse, mas como está fechado dentro de casa e atrás da porta, também já pouco nos importamos.
Melhor de tudo continua a ser a sua definição de Macaense – o tal International Macanese – que, confesso, ainda hoje fui incapaz de compreender.
E mais baralhado fiquei depois de ler as suas últimas declarações: os Macaenses são “(…) os portugueses euroasiáticos (…) nascidos em Macau ou os descendentes de portugueses euroasiáticos nascidos ou com ligações familiares a Portugal, Goa, Índia Ocidental, sul da China (…) Japão, Malásia, Indonésia ou Timor”. (***)
Com definições assim, não admira o senhor doutor considerar os líderes da comunidade Macaense uns míopes culturais.
Porque afinal o mundo está cheio de Macaenses – de Portugal a Timor e até mesmo no Japão, os porutugaru kei nihonjin são também Macaenses, a Tina Yuzuki é também Macaense – mas por alguma razão ninguém os reconhece como tal, ninguém os consegue ver.
Mas, tal como os extra-terrestres que a pouco e pouco vão colonizando o planeta Terra sem nos apercebemos – they are out there.

(*) Hoje Macau, edição de 29 de Fevereiro de 2016
(**) JTM, edição de 25 de Fevereiro de 2016
(***) JTM, edição de 1 de Março de 2016

4 Mar 2016

Perguntaram a Jesus?

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]último fim-de-semana marcou um retrocesso civilizacional em Portugal, com mais um acto de censura por parte da Igreja Católica, e a conivência do seu rebanho, que se diz “indignado”. Tudo por causa de um cartaz do Bloco de Esquerda, destinado a assinalar a aprovação no último dia 10 de Fevereiro da lei que permite a adopção por casais do mesmo sexo, um dos grandes cavalos de batalha do lobby “gay”, que com o pretexto da igualdade queria ver todos a usufruir dos mesmos direitos, sem distinção entre famílias convencionais e alternativas (é difícil escrever em linguagem de “igualdade”). No cartaz em causa aparecia uma imagem de Jesus Cristo do Sagrado Coração, e ao seu lado uma mensagem onde se lia “Jesus também tinha dois pais”, e em baixo em letras mais pequenas uma menção à lei aprovada, acompanhada da data. Só isto e mais nada.

Confesso que sorri quando vi pela primeira vez o cartaz, não por maldade, e muito menos por o achar engraçado. A verdade é que não sei porque é que esgalhei aquele sorriso quase espontâneo, mas pode ter sido por instinto, feliz pelo país ter atingido um patamar do progresso em que coisas como estas já não deixam ninguém chocado, e que incidentes dignos do Index da Santa Inquisição, como a censura de uma obra daquele que viria a ser até agora o único Nobel português, ou a perseguição a um humorista por causa de uma rábula com a última Ceia, eram tudo coisas do passado. Infelizmente enganei-me, e quem quiser começar a contar a partir de sábado passado a última vez que algo de tão retrógrado aconteceu, não perca tempo, pois parece que não se aprendeu nada.

Os católicos ficaram ofendidos, sim senhor, e vejam lá que até encaminharam para a Procuradoria Geral uma queixa com três mil assinaturas, acusando o Bloco de “blasfémia”, uma figura que em pleno século XXI consta do Código Penal. Compreendo que conste, aceita-se, mas o que se entende por “blasfémia”, que só consigo visualizar dita por um padre de olhos muito abertos segurando uma Bíblia na mão e acenando um crucifixo na outra urrando “blasfééémia… esconjuuurooo!”? Uma imagem que por incrível que pareça ainda faz sentido. A imagem não estava adulterada, mas mesmo assim houve quem alegasse que “as cores estavam mudadas” – algum fotófobo cristão com toda a certeza – e a mensagem era “sugestiva”, pois associava Jesus à adopção por casais do mesmo sexo. Deve ser aí que está a tal “blasfémia”, afinal. “Que nojo, casais do mesmo sexo”, terão eles pensado.

Para não desviar as atenções do essencial, vou-me abster de mencionar o registo da Igreja com tudo o que tenha a ver com crianças, orfanatos e afins. Seria rebaixar-me ao nível de quem condenou e enxovalhou pessoas com base na sua orientação sexual, tentou a todo o custo privá-las dos mesmos direitos CIVIS, e ainda conseguiu que a tal lei fosse vetada uma vez, prolongado assim a angústia de quem tem a consciência de que isto partia de uma instituição que tem um historial de séculos de perseguições, tortura e execuções contra todos os que eram apenas diferentes.

Gostava de saber se estes cristãos que se dizem ofendidos vão à missa, comungam e confessam os seus pecados, como qualquer bom cristão com moral para acusar alguém de blasfémia. Não? É exagero meu? Então certamente que se partilharem a sua vida com mais alguém (do sexo oposto, lógico) são casados, caso contrário vivem em “fornicação”. Não? A Igreja diz que sim, e no caso de virem a terem filhos, a lei civil dotou as crianças do mesmo estatuto de todas as outras que também não pediram para nascer. Para a Igreja continuam a ser “bastardos”. Não é um insulto, não, é mesmo isso que lhes chamam.

O Bloco de Esquerda recuou na intenção de publicar o cartaz. Fez mal, e de ter ficado perto de fazer História, passou ao anedotário nacional, com as beatas de braço cruzado a bater com o pé e carantonhas medonhas a ralhar “vejam lá, ai que temos o caldo entornado”, em mais um postal muito nacional. O fundador do PS, Alberto Barros, veio defender a iniciativa, alegando ainda que “a blasfémia está na Bíblia”. De facto o cartaz não diz nenhuma mentira – tecnicamente, lá está. Eu entendi a ideia, agora quem vê naquilo algo de pérfido, ou a sugestão de que um dos três elementos ali mencionados tem alguma coisa a ver com a adopção por casais “gay”, tem uma imaginação fértil. E doentia.

A discussão que veio depois, quer nas redes sociais, quer em artigos de opinião, mais pareciam o concurso “quem é o mais engraçadinho”, com a temática centrada em “quantos pais tem afinal Jesus”, e qual deles era o quê, um sem fim de inanidades que nem parecem vindas de gente que diz ter “fé”, algo que deve e merece ser respeitado, pois apesar de não carecer de fundamentação científica, é do desígnio de cada um – e o que tenho eu a ver com isso? Pior foi ler comentários do género “sou agnóstico, mas…”, mas nada, e se é agnóstico não tem nada que partilhar de uma indignação de que se desmarcou à partida. Outros ainda sugeriram “que se fizesse o mesmo com Maomé”, que como se sabe, diz-nos muito a nós, e anda sempre na nossa mente e nos nossos corações, e “iam ver o que acontecia”. Estes devem ser os mesmos que ainda há um ano “eram Charlie”. Sabem o que mais? Na altura achei aquilo uma bacoquice saloia, de um pedantismo gritante. Hoje vejo que tinha razão.

No fim, e depois de mais uma decepção, chego à conclusão que ainda estamos muito atrás do que seria o ideal nesse princípio da separação entre a Igreja e o Estado, quando uma imagem inocente com aquela ainda fere sensibilidades a este ponto. Eu pessoalmente considero muito pior aquela em que Jesus aparece pregado, ensanguentado, com uma coroa de espinhos e um ar de quem se não está a divertir mesmo nada, mas esta é uma imagem “adorada” pelos mesmos católicos que se ofenderam com a outra. Se calhar era mais justo se perguntássemos a Jesus o que preferia: se ter dois pais, ou ser torturado em nome de quem insiste em não lhe atribuir qualidades humanas. E eles e a outros, para o bem e para o mal.

3 Mar 2016

O ouro da capital sem abrigo

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vou esconder o alívio que sinto por já ter passado mais uma gala dos homenzinhos dourados com nome de porteiro. Um momento conhecido por celebrar o cinema mas que, em boa verdade, tenho-a por ser precisamente o contrário. Um sinal dos tempos onde a rendição ao deleite dos brilhos é muito mais importante do que qualquer reflexão de conteúdo. Este ano, o ponto alto foi a não nomeação de actores negros, uma polémica que, sinceramente, apesar da minha ascendência africana, não subscrevo porque quotas só por que sim é coisa que me enerva. Para o ano sugiro uma polémica à volta da ordem de entrega dos galardões. Uma vez que começam dos menos importantes para os mais importantes, interrogo-me porque o de “melhor actor” é entregue depois do de “melhor actriz”. (Ema Watson, se estiveres a ler isto fica aqui a sugestão para 2017).
Enfim, polémicas à parte, apesar dos milhões de caracteres que lhes são dedicados, das inúmeras páginas de jornal e da enormidade de tempo de antena que lhes são dedicados eu até podia passar ao lado do assunto, pois podia. Podia estar a escrever sobre outra coisa qualquer, pois podia. Mas gosto de cinema e estou farto de comportamentos ovinos. A questão não é quem ganha ou quem perde mas a quantidade dos quem sem esta marmelada de evento não passam, como os mosquitos não dispensam o brilho das luzes mesmo que o resultado desse fascínio seja o churrasco. Só por isso perdemos todos. A forma patética, a reverência e o quase fanatismo com que a festa da Academia de Beverly Hills é seguida, como se estivesse a anunciar alguma coisa realmente importante, como uma boa colheita, é no mínimo redutora. Perdem-se noites, tardes, dias a discutir sobre quem vai levar, ou deixar de levar o alienígena dourado para casa como se isso fosse realmente digno de nota. De uma forma benigna, poder-se-á dizer que a culpa é do cinema, do seu poder, um grande e importante poder, digo eu. Mas não é o cinema que está em causa aqui. Só de forma aparente, porque a realidade é que a cerimónia das estatuetas dos áureos carecas é apenas uma contingentação de mercado e, no limite, uma tentativa de asfixia do cinema e é isso que me desgosta em toda este assunto. O que este evento é, isso sim, é a força do marketing, e não a do cinema, porque o cinema não se reduz àquela meia dúzia de filmes que anualmente por ali desfilam.
Concordo que a ideia que fica, claro, é que aquilo é o cinema todo porque é essa a ideia que as grandes produtoras norte-americanas precisam de passar. Para elas, o cinema começa e acaba naquela estrita selecção. Não que os filmes em presença sejam normalmente maus, ou normalmente bons, mas porque o esforço colocado na cerimónia dos homenzinhos carecas é apenas desenhado para condicionar toda uma produção mundial, pois os filmes que por ali não passam praticamente não existem em termos de mercado ou têm muito mais dificuldades em ser distribuídos. Em boa verdade, é o marketing no seu melhor, verdadeira lamparina de centenas de megawatts, porque promove e executa na perfeição a estratégia dos grandes estúdios. Ou seja, como grande parte dos filmes dão prejuízo, os estúdios necessitam de pelo menos um blockbuster no catálogo, de pelo menos uma nomeação, nem que seja para a “melhor maquilhagem”, para que pelo menos um dos chouriços da tábua se destaque da mole e assim possam pagar o prejuízo dos outros, que raramente são filmes independentes de qualidade mas sim produtos de enchimento de natureza duvidosa. Basta ver um canal de filmes…
Como dizia Carlos Morais José, director deste jornal, numa entrevista recente à imprensa local, “os leitores são inventados pela literatura”, o que faz todo o sentido e parece-me perfeitamente possível de aplicar também ao cinema. Todavia, ao promovermos até à loucura este mito dos douradinhos da Academia temo pelos cinéfilos que esta alienação inventa. O cinema das carpetes vermelhas e dos vestidos faustosos (os brilhos) numa cidade que alberga umas das maiores populações de sem abrigo nos Estados Unidos, que já vai nos 44.000 segundo a New Yorker, ao citar a Los Angeles Homeless Services Authority.
De positivo, apenas o facto de alguns dos premiados aproveitarem a massiva exposição mediática para levantarem assuntos realmente importantes como DiCaprio fez, e bem, ao alertar para o aquecimento global. O resto é um potencial churrasco de mosquito.

Música da semana

“Heroes” David Bowie

I, I will be king
And you, you will be queen
Though nothing will drive them away
We can beat them, just for one day
We can be Heroes, just for one day

And you, you can be mean
And I, I’ll drink all the time
‘Cause we’re lovers, and that is a fact
Yes we’re lovers, and that is that

Though nothing, will keep us together
We could steal time,
just for one day
We can be Heroes, for ever and ever
What d’you say?

2 Mar 2016

A sete chaves

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uinta-feira passada, o website Yahoo de Hong Kong publicou uma notícia retirada de um artigo do jornal “Sing Tao newspaper”, onde se fazia saber que a Apple Inc. (Apple) se tinha recusado a criar um código de segurança universal para os Iphones5c., rejeitando a decisão do Tribunal que deliberara nesse sentido.
O terrorista Syed Rizwan Facook, utilizou um Iphone5c no ataque de San Bernardino em 2015. O ataque aconteceu a 2 de Dezembro último e provocou 14 mortos e 22 feridos graves. No ataque participou também Tashfeen Malik, companheira de Syed Facook. Eram ambos islamitas sunitas.
O casal fugiu após o tiroteio. Quatro horas mais tarde foram cercados pela polícia, acabando por ser mortos nos confrontos que se seguiram. O FBI desencadeou um processo de investigação. A 6 de Dezembro, quatro dias depois do ataque, Barack Obama anunciava que o ataque tinha sido um acto de terrorismo.
No website Wikipedia podia ler-se,
“… o FBI obteve uma ordem do Tribunal a exigir que a Apple criasse uma forma de os serviços secretos poderem contornar o controlo de segurança do Iphone usado por um dos terroristas envolvido no ataque e. poder aceder aos seus conteúdos. A Apple alegou que esta ordem representa um ataque às liberdades fundamentais que o governo deve defender.”
A Apple ficou perante um dilema. Se, para ajudar na investigação, a Apple obedecer à ordem judicial, terá de criar uma nova versão do iOS, contornando várias especificações de segurança de extrema importância, para que venha a ser instalada neste iPhone. Mas, desta forma, esta nova versão pode ficar disponível. Ao contrário do “Yahoo”, do “Google” e do “Facebook”, cujas receitas advêm principalmente da publicidade, a Apple factura a partir da venda dos seus produtos. Se o público passar a desconfiar da segurança do Iphone5c, a imagem da empresa será afectada. O volume de vendas dos produtos da Apple pode vir a baixar.
Embora o FBI garanta que só iria usar este programa nesta situação, a Apple mantem-se inflexível. Compreende-se facilmente que se este programa puder desbloquear o Iphone do terrorista, também pode ser usado para desbloquear qualquer outro. É colocar em risco a segurança da informação. Esta é mais uma razão pela qual a Apple se recusa a cumprir a ordem.
Não há dúvida que a Apple está a proteger as liberdades e a privacidade do público, mas também está a ir contra uma ordem do Tribunal. Se a Apple mantiver esta posição, um dos seus responsáveis, por exemplo, o Presidente ou o Director Executivo, pode vir a ser preso. Também pode ser acusada de ignorar a segurança nacional. É como se fizesse vista grossa ao perigo que ameaça o país. Em última análise os consumidores poderão deixar de comprar produtos da Apple. Neste perspectiva os lucros da Apple também podem vir a baixar.
O Iphone pode desempenhar várias funções. pode ser usado para enviar emails e mensagens, pode tirar fotografias e fazer vídeos. Fazendo o download de certas aplicações, como o Whatsapp e o Wechat, o Iphone pode ainda desempenhar outras tarefas. Sabemos que este litigio entre a Apple e o FBI se vai arrastar. Os recursos irão suceder-se até ao limite do possível. Podemos antever um processo com uma duração de três a cinco anos. A bem da investigação deste caso, seria preferível o FBI passar por cima da Apple e procurar a informação de que precisa noutras fontes. Por exemplo, vários repórteres chamaram a atenção para o facto de os terroristas terem publicado informações relacionadas com o ataque no Facebook. Também é possível que tenham usado uma conta do Yahoo para enviar e receber emails relacionados com este acto criminoso. A Apple pode não estar disposta a colaborar com o FBI, mas não quer dizer que as outras empresas não estejam. Como já referi, o Facebook e o Yahoo vão buscar a maior parte das suas receitas à publicidade, estas empresas não podem deixar de colaborar com o FBI. Se esta colaboração se vier a verificar, deixa de ser tão importante encontrar a “chave para abrir” o Iphone5c de Syed Rizwan Facook.
Mas voltemos à litigação. A questão entre o FBI e a Apple é muito simples – como conciliar a segurança nacional com a liberdade e a privacidade da informação? Os cidadãos americanos não querem que o governo invada a sua privacidade, o que é compreensível. É também óbvio que a maioria das pessoas é pacífica. Não vão ver-se a braços com a justiça e, portanto, não querem que o governo tenha acesso aos seus dados. No entanto o Iphone5c de Syed Rizwan Facook, guarda os dados pessoais de… Syed Rizwan Facook. Poderá o FBI aceder à informação armazenada no Iphone5c de Syed Rizwan Facook, só porque ele é terrorista? Este caso é excepção?
Ao analisar os factos, o Tribunal vai ter de responder a estas questões. Se o FBI ganhar, a Apple será obrigada a colaborar. Deixa de ser apenas uma ordem para desbloquear um Iphone. Para equilibrar as exigências da segurança nacional com as da defesa das liberdades e da privacidade da informação, o Tribunal pode pedir ao FBI que prove que Syed Rizwan Facook usou o Iphone5c no ataque. Se o Iphone5c tiver sido um instrumento usado para cometer um crime, então o Tribunal pode pedir a “chave para abrir” o Iphone5c. A ordem não é incondicional.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

29 Fev 2016

A China entre o optimismo e a retracção

“Industrialization is necessary. But if this industrialization is connected with the new global division of labor, China will bear a greater cost compared with traditional industrialization in terms of the exhaustion of energy resources, the exploitation of cheap labor, damage to the environment and the loss of labor protections.”

China’s Twentieth Century: Revolution, Retreat and the Road to Equality
Wang Hui

O mundo divide-se entre optimistas e pessimistas e alguns países são extremamente optimistas sobre o futuro da humanidade, e outros crêem que estamos praticamente condenados. Alguns países têm as melhores e as piores expectativas no que diz respeito ao futuro da humanidade. A sondagem realizada pela “YouGov”, e cujo relatório foi publicado, a 20 de Janeiro de 2016, inquiriu mais de dezoito mil pessoas, revelando que entre os dezassete países estudados, a China é o país mais optimista do mundo, tendo mais de 40 por cento de cibernautas chineses, afirmado que o mundo está cada vez melhor em termos gerais, quase o dobro que o segundo país mais optimista, a Indonésia.
A percentagem de optimistas na China representa quatro vezes a média mundial que é de 10 por cento. Os países mais pessimistas do mundo são a França, Hong Kong, Austrália e Tailândia. O mundo, em geral, está equilibrado, uma vez que a sondagem mostra que 50 por cento da população mundial, é pessimista relativamente ao seu futuro. O relatório ressalta o facto de que não parece existir uma relação, ou uma muito pequena, entre o PIB e o optimismo.
Os Estados Unidos são mais ricos que o Reino Unido, com um PIB de cinquenta e três, e quarenta e dois mil dólares, respectivamente, apesar de se encontrarem empatados quanto ao pessimismo. A Austrália, por outro lado, possui um PIB “per capita”, vinte vezes maior que o segundo país mais optimista. A grande diferença da China para com os restantes países, pode dever-se ao facto, de que tem um crescimento económico muito alto, em comparação com o resto do mundo, e dá prioridade ao seu sistema de saúde.
A combinação facilita a realização de objectivos pessoais que podem contribuir para o optimismo dos asiáticos. O ser pessimista a respeito do futuro da humanidade, parece ser algo lógico, sobretudo, em França devido aos ataques terroristas que sofreu, e em particular, no respeitante aos problemas climáticos e às ameaças que se prevêem para os próximos anos. Todavia, alguns dados, permitem interrogar o pessimismo, e a ONU deu a conhecer que em 2012 a pobreza reduziu para 12,7 por cento, quando em 1981 era quatro vezes superior, ainda que existam oitocentos milhões de pessoas que passam fome e que no inicio do milénio, cerca de trinta e quatro milhões de crianças tiveram acesso ao sistema educativo, em parte, devido ao facto de muitos países terem conseguido atingir os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio”, promovido pela ONU.
As previsões do crescimento mundial não são tão optimistas, pois é atenuada a procura. O crescimento mundial, que as previsões actuais situam em 3,1 por cento para 2015, alcançaria 3,4 por cento em 2016 e 3,6 por cento em 2017. É de prever que a recuperação da actividade mundial será mais gradual que o previsto nas das “Perspectivas da Economia Mundial -World Economic Outlook Report”, de Outubro de 2015, do Fundo Monetário Internacional, especialmente no caso das economias de mercados emergentes e em desenvolvimento. É de prever que as economias avançadas, continuem a recuperar-se de forma moderada e desigual, e que as diferenças dos seus produtos continuem a reduzir-se gradualmente.
O cenário das economias de mercados emergentes e em desenvolvimento é diverso, mas em muitos casos, coloca desafios. A desaceleração e o reequilíbrio da economia Chinesa, a queda dos preços das matérias-primas e as pressões a que se encontram submetidas as principais economias de mercados emergentes, continuarão a constranger as perspectivas de crescimento em 2016 e 2017. A retoma do crescimento projectado para os próximos dois anos, apesar da desaceleração que está a sofrer a China, reflecte principalmente um prognóstico de melhoria gradual das taxas de crescimento dos países que estão a sofrer pressões económicas, especialmente o Brasil, Rússia e alguns países do Médio Oriente, ainda que, que tal recuperação parcial projectada, poderá fracassar por novos choques económicos e políticos.
Os riscos para as perspectivas mundiais continuam a tender para a diminuição, e estão relacionados com os ajustes que se estão a dar na economia mundial, como a desaceleração generalizada das economias de mercados emergentes, o reequilíbrio da economia chinesa, a queda dos preços das matérias-primas e a retirada gradual das condições monetárias extraordinariamente acomodatícias nos Estados Unidos. Se estes desafios essenciais não forem geridos adequadamente, o crescimento mundial descarrilará. A actividade económica internacional manteve o abrandamento, em 2015.
As economias dos mercados emergentes e em desenvolvimento, apesar de contribuírem com mais de 70 por cento para o crescimento mundial, desaceleraram pelo quinto ano consecutivo, tendo as economias avançadas continuado a registar uma ligeira recuperação. As perspectivas mundiais continuam a ser determinadas por tês rotas críticas, como a desaceleração e reequilíbrio gradual da actividade económica da China, que se está a afastar do investimento e da manufactura, direccionando-se ao consumo e serviços, a redução dos preços da energia e de outras matérias-primas, e o endurecimento gradual da política monetária dos Estados Unidos, no contexto de uma resiliente recuperação económica, no momento em que os bancos centrais de outras importantes economias avançadas, continuam a relaxar a política monetária.
O crescimento global da China, em geral, está a evoluir, ainda que as importações e as exportações estejam a reduzir com maior rapidez do que se esperava, em parte como consequência da contracção do investimento e da actividade manufactureira. Esta situação, adicionada às inquietações do mercado em torno do futuro desempenho da economia chinesa, está a criar o efeito de contágio a outras economias através das vias comerciais, e da queda dos preços das matérias-primas, assim como, devido a uma menor confiança e um aumento da volatilidade dos mercados financeiros. A actividade manufactureira e o comércio continuam a ser débeis em todo o mundo, devido não apenas à situação da China, mas também à fraqueza da procura mundial e do investimento a nível mais alargado, e especialmente, a contracção do investimento nas indústrias extractivas.
A queda violenta das importações num conjunto de economias de mercados emergentes e em desenvolvimento a sofrer pressões económicas, também, estão a afectar negativamente o comércio mundial. Os preços do petróleo têm vindo a sofrer uma considerável redução desde Setembro de 2015, devido à expectativa de que continuaria a aumentar a produção, por parte dos membros da “Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) ”, dentro de um contexto no qual, a produção mundial de petróleo continua a superar o consumo. Os mercados de futuros, neste momento, apontam para aumentos leves dos preços, em 2016 e 2017. Os preços de outras matérias-primas, especialmente os metais, também diminuíram.
A queda dos preços de petróleo está a exercer pressão nos saldos fiscais dos exportadores de combustíveis, e está a turvar as suas perspectivas de crescimento, e ao mesmo tempo, a suportar a procura de habitações e a fazer diminuir o custo comercial da energia nos países importadores, especialmente nas economias avançadas, onde os utilizadores finais beneficiam inteiramente deste embaratecimento. A descida dos preços do petróleo, impulsionado por um aumento da oferta, deveria suportar a procura mundial, uma vez que os importadores de petróleo têm uma maior tendência ao consumo que os exportadores, e nas circunstâncias actuais, existem vários factores que têm reduzido o impacto positivo da queda dos preços de petróleo.
É de ter em consideração, como consequência das pressões financeiras que estão a viver muitos exportadores de petróleo, tem uma menor margem para amortecer o choque, o qual contém uma contradição substancial da procura interna. O embaratecimento do petróleo tem produzido um notável impacto no investimento na extracção de petróleo e gás, o qual também, tem afectado a procura agregada mundial. A retoma do consumo dos importadores de petróleo, tem sido menor do que se esperava, tendo em conta outros acontecimentos de quedas de preço no passado, possivelmente, devido a que algumas dessas economias, ainda se encontrem em processo de desendividamento.
É possível que em várias economias de mercados emergentes e em desenvolvimento, a transmissão do embaratecimento aos consumidores tenha sido limitada. A distensão da política monetária, em geral, empreendida pela zona euro e Japão contínua, enquanto a Reserva Federal dos Estados Unidos, subiu a taxa de juros dos fundos federais, que durante sete anos, e até Dezembro de 2015, se tinha mantido em quase zero, para sustentar a recuperação. As condições financeiras, em geral, continuam a ser muito acomodatícias nas economias avançadas. As perspectivas de um aumento gradual das taxas de juros, como evolução da estratégia de política monetária nos Estados Unidos, assim como estrépitos da volatilidade financeira num contexto marcado pelas inquietações, à volta do futuro crescimento dos mercados emergentes, têm contribuído para condições financeiras externas mais restritivas, menores fluxos de capital e novas depreciações das moedas de muitas economias de mercados emergentes.
O nível geral da inflação moveu-se lateralmente na maioria dos países, em termos amplos, sendo provável que desça, tendo em conta que as novas quedas dos preços das matérias-primas e a fragilidade da manufactura mundial que estão a exercer pressão sobre os preços dos bens negociados. As taxas de inflação subjacente mantêm-se muito abaixo dos objectivos das economias avançadas. A evolução desigual da inflação nas economias de mercados emergentes reflecte, por um lado, as implicações de uma procura interna débil e da queda dos preços das matérias-primas e, por outro lado, as pronunciadas depreciações cambiais ocorridas no curso do ano de 2015.
O crescimento nas economias avançadas aumentaria 0,2 por cento em 2016, a 2,1 por cento, e manter-se-ia sem alterações em 2017. A actividade global conserva a robustez nos Estados Unidos, graças a condições financeiras que ainda são favoráveis e ao fortalecimento do mercado imobiliário e do trabalho. A fortaleza do dólar está a sobrecarregar a actividade manufactureira, e o recuo dos preços do petróleo está a travar o investimento em estruturas e equipamentos de mineração. O fortalecimento do consumo privado, na zona euro, estimulado pelo embaratecimento do petróleo e as condições financeiras favoráveis, está a compensar a fragilidade das exportações líquidas.
É de acreditar no crescimento do Japão em 2016, por força do suporte fiscal, queda dos preços de petróleo, condições financeiras acomodatícias e aumento das receitas. O crescimento das economias de mercados emergentes e em desenvolvimento, aumentará de 4 por cento em 2015, o nível mais baixo desde a crise financeira de 2008 a 2009, a 4,3 por cento, e 4, 7 por cento em 2016 e 2017, respectivamente.
É de prever que o crescimento da China diminua para 6,3 por cento em 2016, e 6 por cento em 2017, devido ao crescimento baixo do investimento, à medida que a economia continua a reequilibrar-se. A Índia e as restantes das economias emergentes da Ásia terão uma continuação do crescimento robusto, ainda que alguns países, venham a enfrentar fortes ventos contrários, criados pelo reequilíbrio da economia chinesa e a fragilidade da indústria manufactureira mundial. Assim, dar-se-á uma desaceleração mais marcada do que o esperado, enquanto a China, leva a cabo a transição necessária para um crescimento mais equilibrado, com maiores efeitos de contágio internacional por via do comércio, os preços das matérias-primas, confiança, e os efeitos consequentes nos mercados financeiros internacionais e de valorização das moedas.

26 Fev 2016