Carta ao Director

Duvido que em Macau alguma vez tenha sido feito um estudo sério sobre a prevalência do ruído no dia a dia dos seus habitantes. Existem, no entanto, muitos estudos sobre a influência nefasta que a exposição constante ao barulho tem sobre as pessoas (e animais irracionais). É usado, o ruído, como forma de tortura.

Uma das características da paisagem sonora do território é, sem dúvida, o barulho constante de obras. Num espaço pequeno este tipo de ruído tende a ser muito presente. Não há praticamente lugar nenhum onde não sejamos confrontados com ele. Muitas dessas obras parecem desnecessárias ou fruto de falta de planeamento. É normal as pessoas queixarem-se de obras numa rua onde apenas uns meses antes outras tinham incomodado as pessoas durante semanas.

Para além das obras em espaços públicos há, como todos sabemos, muitas obras em casas particulares.
Mas há outros tipos de ruído excessivo. Um deles é o barulho do tráfego de carros, motas e autocarros de turismo e de transporte público e o de camiões de transporte, camiões cisterna ou betoneiras ou tráfego de outros tipos de camiões ligados à construção.

Num território tão pequeno uma administração amiga dos seus habitantes (coisa que Macau nunca teve) preocupar-se-ia certamente em reduzir ao máximo o inconveniente que estes veículos causam a todos os níveis, da poluição sonora à poluição atmosférica. Uma administração consciente reduziria ao máximo o trânsito de automóveis ligeiros particulares fazendo com que o seu uso se tornasse muito inconveniente.

Outro tipo de poluição sonora resulta da obsessão com a música de entretenimento. Há música nos atendedores de chamadas, nos restaurantes, nos cafés, nos supermercados, nos centros comerciais, nos lobbies dos hotéis, em algumas ruas, em alguns elevadores, etc. Na zona do Cotai existe por vezes música na rua, ecoando por toda a zona.

A música enlatada é omnipresente. Já Schonberg chamara a atenção para o modo como a música gravada e difundida em espaços públicos estava a matar a própria música. O excesso retira a exclusividade. Tudo isto se inclui naquilo que Bernie Krause chama a antropofonia, o som provocado pelo homem. As outras fonias são, lê-se no extraordinário livrinho de Carlos Alberto Augusto, Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa, a geofonia, os sons da natureza, do mar, do vento, dos trovões, e a biofonia, constituída pelos sons causados pelos animais e pelas plantas.

Outra fonte de ruído em espaços públicos provém dos telemóveis, aparelhos que são usados por vezes de modo a interferir com o sossego das pessoas circundantes. São os toques, os sons de jogos, o som das pessoas a falar, o som dos vídeos, etc. Os transportes públicos (os autocarros) são uma fonte de cacofonia: os toques para saída, os constantes avisos em 4 línguas diferentes, o barulho dos vídeos dos aparelhos de televisão que quase todos os autocarros têm e, mais uma vez, o barulho dos telemóveis, dos jogos, das pessoas a falar, dos filmes, etc.

Pedro Catalão

24 Mai 2022

Tudo Meretriz

Por João Picanço

A opinião é algo com uma magia muito distinta. Não tanto quanto o preconceito ou o arrendamento, mas já lá irei. O fascínio pelo lavrar livre de um pensamento, por muito absurdo que seja, leva-nos a atracar a nossa lorcha de emoções em praias onde, vejam lá, também há outras lorchas atracadas. E hoje, eu navego ao leme da lorcha das meretrizes. Isto porque elas são o que para aí há mais.

Foi neste jornal que pude ler a opinião do Sr. André Namora, publicada na passada terça-feira, dia 10 de Maio de 2022.

No texto que nos foi apresentado, podemos aprender que o assédio é uma moda, como os sapatos de plataforma ou as calças de fazenda. São professores (homens) a serem vilipendiados com constantes queixas de abuso (de mulheres).

O Sr. Namora diz que “Ninguém nega que um ou outro professor passe das marcas”. Portanto, temos aqui uma espécie de mínimos olímpicos. Quantos abusos é que são o limite para não desconfiarmos da veracidade? Dez?

Mas atenção, porque “Vocês imaginam que catedráticos como Marcelo Rebelo de Sousa andem pelas universidades a tentar levar as alunas para a cama?”. Lógico que não. Todos sabemos que pessoas em posição de poder jamais abusam dos mais fracos. É uma verdade histórica.

E agora, chegamos à parte do “a mim não me enganas”. Vejamos: “Mas, as estudantes que têm apresentado “só agora” queixa dos seus professores, no caso de terem sido abusadas nunca foi com o seu consentimento?”. Regra primária: desconfie sempre de pessoas que não têm a sensatez de passar o vexame de admitirem que foram abusadas. Por que razão o fazem anos mais tarde? Onde já se viu uma pessoa abusada sexual e/ou psicologicamente não ir logo a correr, ainda com as saias arriadas, para a esquadra, fazer queixa do pobre professor? Não se entende.

E depois: Não terão estas pessoas sido abusadas com o seu consentimento? É algo que acontece todos os dias, uma mulher chega e diz “abuse de mim, sff”.

De seguida, chegamos ao “eu até sei que”. “Conversámos com um professor reformado da Universidade Católica de Lisboa (…)” que garante que havia professores em Lisboa que tinham residências para dar “explicações” (as aspas são para os mais espertos, claro. Não para mim).

Já agora, a dada altura o autor diz que estes docentes tinham “(…) um apartamento alugado”, mas em português correcto é “arrendado”, porque os imóveis não se alugam. Já não passava neste teste, Sr. Namora, tinha de ir “à oral” (afinal, também sei usar aspas).

No entanto, há a declarar que “(…) algumas das jovens que se têm queixado têm telhados de vidro.” E porquê? Porque, diz-nos o Sr. Namora, algumas andam na prostituição e chegam a cobrar “100 euros à hora” e têm “uma média de seis clientes por dia ou noite”.

E continua “Ora, se está mais que provado (ndr: onde?) que muitas universitárias ganham dinheiro na prostituição, temos que admitir que essas jovens têm de estar caladinhas e não apresentar queixa dos professores por abuso sexual só porque sim”. Toda a gente sabe isto. Então andam a prostituir-se e agora não querem ter sexo à força? Com franqueza!

“Só não entendemos é a razão de as queixas terem agora aparecido”. Pois, logo agora que já estão formadas e nem precisam da nota para coisa alguma. E todos nós sabemos que os danos psicológicos são uma mariquice desta nova agenda de género.

Ainda por cima porque atacam “tantos docentes dignos, bons chefes de família, mestres exemplares e que constatando esta moda ficam envergonhados e com vontade de abandonar a vida académica”. Bom, se eles são isso tudo, eu não sei, mas diria que, caso sejam abusadores, esse crédito não chega para pagar o suposto mal que tenham feito. Já viu alguém dizer “oh, coitado, abusou da rapariga, mas é tão bom chefe de família”?

Mas agora, chegamos à parte crucial deste texto. A parte em que se ilibam (porque somos todos inocentes até que o contrário seja provado) os eventuais abusadores e se culpa quem realmente merece ser culpado: a suposta vítima.

“Muitas culpas para as estudantes que se vestem de maneira provocante. Já nos dizia um sacerdote que abandonou a Igreja de “que um homem não é feito de pau…”. Ora bem. E se estivéssemos a falar de símios, que se comportam como paus, tudo bem. Mas como falamos de homens, temos de perceber que, bem, se são provocados, ai, ai, ai. Ainda por cima na coutada do macho ibérico, como tão bem disse o Sr. Dr. Juiz Neto de Moura.

Acho que nos devemos debruçar no mal que os homens estão a sofrer. A história diz-nos que a mulher é sempre um ser horroroso, que se aproveita da sua posição de privilégio para sugar a bondade dos homens, neste caso professores, bons chefes de família, que não se seguram perante um decote mais arrojado. É dos livros. Enfim, tudo meretriz.

A luta das mulheres existe e está para durar. Porque enquanto o cheiro a mofo pulverizar o espaço, quer seja em casa, quer seja num local como a fonte de sabedoria que são as universidades, ela tem de ser travada. E não são, nem devem ser, as mentes bafientas das turvas manhãs de outrora, que teimam em poluir o céu, a fazê-las recuar.

Eu pouco posso fazer. Afinal, também sou um homem privilegiado. Mas se as mulheres que me estão a ler se sentem abusadas, por favor, denunciem. Com ou sem decote. Um abuso é um abuso.

11 Mai 2022

O sucessor

[dropcap]R[/dropcap]ecentemente tomei conhecimento de várias entrevistas do padre Peter Stilwell a órgãos de comunicação de Macau, assinalando o fim dos seus dois mandatos enquanto reitor da Universidade de São José (USJ). O essencial das suas declarações deixou-me perplexo, por razões que já adiantarei, e daí decidir rabiscar estas notas.

Para que seja clara a minha antiga ligação à USJ, devo dizer que lá fui professor de 2010 a 2013, tendo sido testemunha da mudança de liderança da universidade. A minha ligação terminou, por ter sido despedido pelo padre Stilwell. Como é assunto que não vem ao caso, não refiro as circunstâncias. Apenas digo que nenhum mau sentimento guardo e porque gosto da USJ torcerei sempre pelo seu sucesso.
Porque estas palavras, então?

A primeira coisa que me chocou nas referidas entrevistas, foi a deselegância com que tratou o seu antecessor. Nem do seu nome se lembra, repetindo a palavra antecessor. Mas, há mais.

A falta de solidariedade institucional foi ainda mais longe ao dizer que quando chegou à USJ não tinha dinheiro para pagar salários (é verdade, porém que numa entrevista não tinha dinheiro para os salários de Maio e numa outra eram os salários de Junho que estavam em risco). Ora, o que me espantou nestas declarações é que me lembro de ter visto o último relatório de contas da gestão do antecessor e, devidamente, auditado. Sim, auditado. Esse relatório espelhava a sã situação financeira da USJ e com substanciais lucros no período abrangido.

Que se passa aqui? Não sei se são motivos de vã glória dando lustro a um reitor que teria, assim, sido o salvador de uma moribunda universidade; não sei se esquecimento (numa entrevista diz que não se lembra muito bem); não sei se qualquer outo motivo que me escapa. Pela minha lógica racional, prefiro valorizar um documento objectivo, não elaborado pelo antecessor e devidamente auditado.

O padre Stilwell aponta com rigor, reconheço, os pontos fortes da universidade. Desde logo, o seu cosmopolitismo. De facto, é verdade que é um privilégio para alunos e professores pertencerem a uma universidade plena de tantas nacionalidades. Uma riqueza inestimável para uma instituição académica. Mas eu, ao contrário do padre Stilwell, lembro-me que essa mais-valia tem um nome. Chama-se Ruben de Freitas Cabral. De um pequeníssimo instituto fez uma universidade onde gente de todo o mundo se entrecuzava fazendo gabar o sucessor.

Em segundo lugar, a modernidade tecnológica da USJ. Verdade, de novo. Um facto que, logo em 2010, muito me surpreendeu. A USJ era já uma universidade muito avançada tecnologicamente e onde bytes tinham substituído papel. O sucessor não se lembra do nome do responsável. Eu lembro-me. Chama-se Ruben de Freitas Cabral.

Por último, um novo e moderno campus. Caramba, não é que esse campus tem, também ele, o mesmo nome? Sim… Ruben de Freitas Cabral. Não sou indefectível de ninguém e tantas vezes discordei do prof. Ruben Cabral enquanto reitor. Isso é uma coisa. Outra, diferente, é ver árvores quando a floresta se impõe.

Nestas entrevistas em jeito de balanço, muito me surpreendeu a ausência de um tópico tão fundamental para uma universidade privada: o número de alunos. Talvez falta de lembrança. Quais são os números desde 2012 até hoje? Ganhou a USJ alunos? Perdeu-os? Não é esta variável imprescindível para um balanço global da última reitoria? Suspeito que a cadeira, com nome, onde o sucessor se sentou oito anos muito tenha encolhido e enrugado.

Depois de deixar a USJ em 2013, voltei várias vezes a Macau e mantive sempre contactos com muitos amigos da RAEM, dentro e fora da USJ. A ideia que todos me transmitiram sobre o rumo da USJ, incluía uma nau e incluía, também, muita água a conquistar espaço vital. Certo é que os professores de maior envergadura intelectual e que eu muito respeitava ou foram atirados borda fora ou trocaram de embarcação.

Fechou cerca de trinta cursos, afirmou o sucessor. Talvez. Tenho dúvidas mas não quero maçar os leitores com números. Muito bem. Sejam trinta. Necessidade de reestruturação, afirma o sucessor. Não nego as permanentes necessidades de reajustamento numa qualquer instituição. O que me parece é que reestruturação efectuada foi traçada a lápis de merceeiro. Como se pode compreender, por exemplo, que numa universidade tão cheia de diferentes nacionalidades, numa cidade tão vibrantemente multicultural como Macau, se encerre um curso como o de Relações Internacionais? Ao contrário, quase que deveria ser um curso bandeira da USJ. A pobreza da visão estratégica grita-nos aos ouvidos.

Por fim, não posso deixar de referir um facto que me deixou atónito e ficará sempre associado à administração do sucessor. O despedimento de um académico por exercer a sua liberdade de expressão. Em 2009, a preparar-me para Macau, perguntei ao Prof. Ruben Cabral se teria alguma limitação na USJ enquanto professor de Ciência Política. A resposta que obtive foi um rotundo não. Que gozaria de todas as liberdades académicas. Como é possível que o sucessor, professor na minha alma mater, a Universidade Católica, onde fiz todos os meus estudos pós-graduação até ao doutoramento, tenha sacrificado princípios basilares por… por o quê? Aconselhava o sucessor a procurar o prof. João Carlos Espada, seu colega em Lisboa e director do Instituto de Estudos Políticos da Católica, e tentar aprender alguma coisa sobre o valor e a tradição da liberdade.

Há uma frase muito bela atribuída a Newton que reza: “Construí sobre ombros de gigantes”. E que gigante ele era. Na sua visão geral não veio falar das limitações de Tales, Arquimedes ou Galileu. Limitações e imperfeições que naturalmente tinham. Que todos temos. Gigantes, chamou-lhes. É verdade que pelos séculos fora muitos anões houve. De anões ninguém recorda nomes. Eu próprio só me lembro de um. Chama-se o sucessor.

29 Jun 2020