Karadenis: “Não se mata, nem se salva ninguém com crenças”

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em razão, na escrita a verdade não se encontra no mundo com essa determinação com que se encontra na actividade de matar por dinheiro.

Por isso, parece-me, o juízo auto-crítico deverá ainda ser mais determinante na escrita do que na minha actividade. Falhar o alvo ou ser-se morto parece-me comprovação suficiente para a falta de talento, na minha profissão. Mas, na escrita, o que é falhar o alvo? E, obviamente, morrer, não se morre.

Quer então dizer que estou ainda mais só do que você?

Mais só não estás. Caso sejas um bom escritor, podes estar tão só quanto eu estou, quanto eu estive toda a minha vida, mas não é possível estar-se mais só, parece-me. Agora o que me parece evidente é que estás muito mais incerto do que eu. Muito mais abandonado à dúvida. Não tens ninguém que te possa matar, nem sabes qual é o teu alvo. Se fosse a ti, agarrava-me ainda com mais forças à única possibilidade de certeza que tens: o teu juízo auto-crítico. (pausa) Já reparaste bem na beleza desta cidade, Paulo? Não achas que esta cidade tem que ver com o jazz, Paulo?

Nunca havia pensado nisso, do jazz! A beleza de Istambul só é igualável à beleza dos mitos. Mas porque é que diz que a cidade tem que ver com o jazz?

Porque ela é tocada por modos gregorianos, como o jazz! A cidade é constituída por modos… Sabes música, não sabes?

Sim, sim, pode continuar!

Aqui é o modo dórico (e apontava), ali o modo lídio, mais além o modo mexolídio e por aí adiante. Percebes agora? A cidade não é diatónica, como a música clássica. E a magia do jazz reside nas misturas dos diversos modos numa canção, como Istambul.

Como é que começou a gostar de jazz?

O jazz é do meu tempo, Paulo! Comecei a gostar de jazz quando fui estudar engenharia para a América, para os EUA, na década de quarenta. Depois nunca mais deixei de ouvir jazz.

O seu filho também gosta de jazz?

Gosta.

E também gosta de Istambul?

Gosta, mas não vive cá! Vive em Londres. É um bem sucedido homem de negócios em Londres. Faz importação de legumes da Turquia para Inglaterra. Mas não estou certo de que seja só isso que ele importa?

 

O que o leva a pensar isso?

Pequenos detalhes, Paulo, pequenos detalhes. Mas não quero falar nisso. Posso até estar errado. Não quero ser injusto com o meu filho.

Que idade é que ele tem?

Deve ter a tua idade. Nasceu em 1966.

É um ano mais novo. E a sua mulher?

A minha mulher já morreu. Morreu há 12 anos. Mas já estávamos separados há muito mais tempo. Separámo-nos ainda o meu filho era criança e divorciámo-nos dois anos depois. A minha mulher era inglesa. Depois da separação voltou para Londres. O T. cresceu muito mais em Londres do que aqui. Mas vinha cá todos os anos. Ele fala correctamente turco.

O seu filho sabe da sua actividade passada? A sua mulher soube?

Não, nenhum dos dois! Seria o começo do fracasso, Paulo. Sempre julgaram que eu era um homem de negócios. Negócios disto e daquilo; negócios aqui e ali. O que também acabou por vir a ser verdade.

O que é que o levou a contar-me a sua história?

(sorri) Várias razões. O modo como nos conhecemos e a tua atitude naquele momento de crise; o facto de seres escritor; o facto de amares Istambul; o facto de vires de um país de influência mediterrânica, com um passado grandioso e um presente exíguo. Depois, restam-me poucos anos de vida e já nada vai importar.

3. A MULHER

Em determinadas horas a cidade é coberta pelo som altifalante dos muezines como se algo ou alguém magoasse a cidade e esta se queixasse. Karadeniz abandona o terraço e refugia-se dentro de casa, no isolamento sonoro da casa. Recordo-me de um taxista, que um dia me conduzia a Beyoglu, e desligou o rádio no momento da oração dos muezines. No fim da oração, disse-me que não era por ser religioso, mas por respeito. “Respeito” é uma palavra de grande densidade em Istambul.

Isto é um disparate completo!

Isto o quê?

Estas orações em árabe, que ninguém percebe. Como é que alguém pode acompanhar as orações, se não percebem nada do que está a ser dito? Devemos todos aprender árabe para rezar ou, pelo contrário, as orações deviam passar a ser em turco? A mim parece-me evidente qual a resposta a dar. Não percebo este país!

Porque é que diz isso?

Porque temos escrito no bilhete de identidade que somos religiosos, que somos muçulmanos, mesmo que não sejamos coisa nenhuma, como a maioria das pessoas que vivem nesta cidade. Mesmo os que dizem ser religiosos, se não são extremistas, não rezam cinco vezes ao dia e bebem regularmente bebidas alcoólicas. É possível um país ser muçulmano e ter como bebida nacional o Raki, que tem 45% de álcool? A religião muçulmana não é compatível com a vida em grandes cidades como Istambul. Provavelmente nenhuma religião é compatível com as grandes cidades. Sinto o meu bilhete de identidade como uma agressão contra mim mesmo. Ando pelo mundo com uma mentira escrita por baixo do meu nome.

Percebo que o Karadeniz não tem religião, mas acredita em Deus?

Acredito coisa nenhuma! Sou agnóstico, sou um homem de ciência. Não se mata, nem se salva ninguém com crenças, mas com conhecimento e acção.

Porque é que o Karadeniz se separou da sua mulher?

Não fui eu que me separei dela, foi ela que se separou de mim.

E porquê?

Porquê? Porque as pessoas se fartam muito depressa umas das outras. Porque à medida que se envelhece ficamos mais sós connosco mesmos e torna-se muito difícil viver com os outros. Principalmente se os outros esperam que nos comportemos desta e daquela maneira precisa. E estar casado é ter de ser desta ou daquela maneira.

Parece então que não foi propriamente uma desilusão, quando a sua mulher decidiu deixá-lo…

Claro que não! Por um lado, até foi um grande alívio. Mas não seria eu a deixá-la. Isso não conseguia fazer.

O Karadeniz é um homem feliz?

A felicidade é uma grande contradição. Aquilo que mais se ambiciona é ser feliz, mas na felicidade não se faz nada. Se o mundo fosse feliz, parava. Ser feliz é sair do mundo. Quer ser feliz quem se sente a mais ou a menos no mundo! No fundo, é o que todas as religiões vendem: a felicidade, sair do mundo. Claro que isso tem um preço muito elevado: Deus. É estranho que tu, sendo escritor, me perguntes pela felicidade.

Não foi uma pergunta para saber se era ou não feliz, mas para saber o que pensava da felicidade. Só que não consegui perguntar-lhe se acreditava na felicidade ou o que é que pensa dela. Essas perguntas parecem-me ainda mais esdrúxulas do que a que lhe fiz. A sua mulher chegou a aprender turco?

Não! Os ingleses têm muita dificuldade em aprender a língua dos outros. E ela não era excepção. Falávamos sempre em inglês. A B. nunca se sentiu bem em Istambul. Não era só pela língua, mas por tudo. Ela não gostava do cheiro da cidade, nem da comida, nem das pessoas. Sentia a falta do bife. (risos)

Por conseguinte, foi por convicção que não voltou a casar. Mas ao longo dos anos não sentiu a necessidade de ter alguém junto a si?

Aprendi duas coisas preciosas na profissão que tive: não se podem cometer erros; mas se por acaso cometemos um e sobrevivemos, então é imperioso aprender que não o podemos voltar a fazer. Para mim, o casamento foi um grande erro. Sou uma pessoa que não nasceu para viver com outra. Nasci para mim. Muitas vezes penso que as pessoas vivem umas com as outras por fraqueza. Devíamos viver todos sozinhos e depois encontrarmo-nos uns com os outros para o que quiséssemos, ou não nos encontrávamos. Sei que isto é impossível, mas parece-me que se vivêssemos sozinhos a vida seria melhor para todos. Dá-se mais valor à vida, só, do que acompanhado. A vida torna-se maior, mais pesada e mais densa. A vida torna-se no que ela verdadeiramente é.

Mas então por que é que se casou?

Casei-me por fraqueza e por um erro de cálculo. Fraqueza, porque julgava que precisava daquela mulher para viver; ninguém precisa de ninguém para viver. Erro de cálculo, porque queria ter um filho e julguei que casar-me ou viver com alguém era fundamental para que isso acontecesse. O que se passou foi que o casamento acabou por me levar o filho. O T. é muito mais filho da B. do que meu; e é muito mais inglês do que turco. Um homem se quiser ter um filho, é melhor que pague. Pague a alguém para gerá-lo consigo e carregá-lo nove meses na barriga. Depois, assim que nasça, dinheiro numa mão e a criança noutra. É o único modo de ficarmos descansados quanto à possibilidade de mais tarde alguém nos querer tirar o filho. De outro modo, é impossível. As pessoas não vivem juntas para sempre e quando se separam a mãe leva a criança consigo. E mesmo que consigam viver juntas, o filho é sempre mais filho da sua mãe do que do seu pai. (pausa prolongada) Ainda que seja verdade tudo o que tenho estado a dizer, os factos são diferentes…

19 Mai 2017

O Governador de Angola Pedro Alexandrino da Cunha

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]omeado a 31 de Maio de 1845 Governador-Geral da Província de Angola, Pedro Alexandrino da Cunha tentando “harmonizar as leis da metrópole com a prática colonial, conseguira que a administração portuguesa em Angola deixasse de depender dos direitos alfandegários que incidiam sobre as exportações ilegais. Ao mesmo tempo, Luanda e Benguela abriam-se à navegação estrangeira, tornando-se já visível a modificação da estrutura das trocas, com o crescimento e a diversificação das exportações de produtos de colheita directa e da caça, como a urzela (musgo com aplicação na tinturaria) e o marfim. Mas não tardaria que o tráfico, banido dos portos principais, fosse reimplantar-se noutros pontos do litoral, como Ambriz e Moçâmedes, procurados pelos comerciantes luso-brasileiros para escapar às alfândegas e ao patrulhamento britânico”, como se refere no Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor de 1851, [que constava não existir, pois perdido entre documentos microfilmados do Arquivo Histórico de Macau].

“A burguesia colonial de Angola era constituída não só pelos agentes directos dos poderosos mercadores residentes no Brasil e por alguns negociantes emigrados de Portugal, como pelas grandes famílias crioulas, bem implantadas e adaptadas ao clima, mantendo ligações estreitas com Portugal e com o Brasil e desenvolvendo, ao mesmo tempo, um bom relacionamento com os Africanos. Chegou a afirmar-se que, nesta altura, Angola mais parecia uma colónia brasileira que portuguesa e não foram raras as tentativas no sentido de uma união com o Brasil com vista a garantir a manutenção do tráfico, mas que a Inglaterra sempre conseguiu contrariar. Apesar de tudo, os indícios de mudança continuavam a manifestar-se e era já muito clara a importância económica que as colónias africanas iam assumindo para alguns sectores da sociedade portuguesa”, segundo Maria Manuela Lucas, que refere Angola representar “o baluarte mais sólido do poderio português em África”.
A 6 de Setembro de 1845, na mesma altura em que tomou posse como Governador-Geral da Província de Angola, Pedro Alexandrino da Cunha foi promovido a Capitão-de-Mar-e-Guerra.

Bons préstimos

“A arte agrícola foi aqui [Angola] quase sempre abandonada pela autoridade, e nesta parte, curto é o espaço para descrever o muito que devemos ao Exmo. Sr. Pedro Alexandrino da Cunha, que se esforçou, quanto cabia nas forças humanas, para o seu desenvolvimento” e seguindo com o Boletim Oficial, “Os talentos administrativos deste Governador chegaram mesmo a exceder o que dele se esperava, e para desviar todas as suspeitas de parcialidade, repetirei o que a própria Câmara Municipal de Luanda se abalançou a dizer ao seu sucessor naquele governo-geral.

Presságio de maior desgraça

“A exoneração do governo de Angola foi dada ao Sr. Pedro Alexandrino por Decreto da 18 de Fevereiro de 1848, reservando-se Sua Majestade a colocá-lo em lugar de não menos conveniência pública, como prova dos valiosos e aturados serviços, dizia o mesmo Decreto, por ele prestados nas Possessões portuguesas de África Ocidental além do Equador. A saída do Sr. Pedro Alexandrino de Angola para a Ilha de Luanda, foi um verdadeiro e irrefragável testemunho da sua boa conduta, por lhe ser dado espontaneamente pelos habitantes de Luanda, no mesmo momento em que ele deixava de todo o poder: alas de archotes se lhe fizeram até ao cais, duas bandas de música o acompanharam, e multiplicados abraços se lhe deram no acto do seu embarque misturados de repetidos vivas. Chegado a Lisboa o bordo do brigue Audaz, em 12 de Dezembro de 1848, depois de uma nova estada em Angola de cinca anos, Sua Majestade, por Galardão dos seus relevantes serviços, e não menos por consideração às recomendações que por mais de uma vez o governo britânico tinha feito de tão distinto empregado, o condecorou com a Comenda da Torre e Espada, e o Governo o nomeou, em 1849, Comandante da nau Vasco da Gama, mandada em comissão ao Rio de Janeiro. Já defronte da barra daquela Capital um violento pampeiro (vento) arrasou a mesma nau, levando-lhe o pano, e partindo-lhe os mastros pelas enoras. Este contratempo, presságio de maior desgraça, encheu dos mais cruéis dissabores o coração do Sr. Pedro Alexandrino; o seu temperamento, sempre no mais alto grau melancólico, e agravado não menos com a notícia do trágico fim que tivera em Macau o seu particular amigo, o Conselheiro João Maria Ferreira do Amaral, tornava-se cada vez mais sombrio, e pouco comunicativo. Tudo isto reunido com as infundadas apreensões que concebera, quando recebeu a nomeação de sucessor daquele distinto Oficial, quase lhe cortaram de todo a existência que apenas lhe chegou para, do Rio de Janeiro, seguir viagem para o lugar do seu novo destino a bordo da corveta D. João I, que aportara a Macau a 26 de Maio do corrente ano (1850), tomando posse do respectivo governo o Sr. Pedro Alexandrino”.

19 Mai 2017

As profecias de Horacio e de Duchamp

13/05/2017

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem estive atento às manobras de Trump, que, enquanto o ar lhe falta, procura o pipo.

A direcção dos meus binóculos tem uma razão de ser: li uma profecia segundo o qual o desdenhoso americano lançava os cães contra a Coreia do Norte no dia 13 de Maio.  Transcrevo:

«O místico Horacio Villegas, que previu a vitória de Trump nas presidenciais, declarou que a terceira guerra mundial vai ser iniciada este ano. Uma guerra, onde serão envolvidos os EUA, a Rússia, a Coreia do Norte e a China, e que terá início em 13 de Maio de 2017 por iniciativa de Trump.

Ele precisou que a guerra não iria durar muito e acabaria já em 13 Outubro de 2017, mas causará muitas destruições e mortes.

​A data de 13 de Maio não foi escolhida acidentalmente: é o centenário das Aparições de Fátima em Portugal. Por outro lado, o dia 13 de Outubro de 2017 marca a sexta e última aparição mariana de Fátima que, segundo a lenda, tinha declarado que “a guerra vai acabar e os soldados vão regressar para suas casas”. Há 100 anos, estas palavras foram interpretadas como uma profecia sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Hoje em dia, Horacio Villegas aplicou estas palavras para apoiar sua teoria. »

Ora, eu acredito piamente em todos os Horácios, menos no poeta romano, dado que os poetas, como se sabe, mentem. Este é místico e nas acareações com o divino algo lhe será transmitido – é assim que eu penso.

A profecia não se cumpriu.

Porém em Portugal, no mesmo dia, completou-se um ternário: o Papa canonizou os pastores, o Benfica somou o tetra (e o 4 introduz aqui a quaternidade) e um cantor português ganhou a Eurovisão, com o singular nome de Salvador.

Se eu acreditasse no pensamento mágico diria que isto anda tudo ligado e a configuração desenhar-se-ia assim: numa espécie de efeito borboleta a ida do Papa a Fátima despertou um novo ciclo de fé que levou o Criador a lançar um relance misericordioso sobre o tão nefasto globo tendo, num piscar de olhos, desviado os dedos sápidos de Trump do alcance de alguns botões mais nocivos que a peste, e dado oportunidade a que uma nova ressonância quaternária reintroduza no mundo a harmonia e a cura das almas, como o atesta o indubitável transe que ontem se deslocou de Fátima para o Marquês de Pombal. E a prova de que o Espírito Santo esteve entre nós é certificada pelo nome do cantor, muito mais do que uma coincidência, o qual nos devolveu a espontaneidade, a crença no impossível e a alegria primordial.

Claro que tudo isto já fora anunciado pelos pastorinhos… e por Agostinho da Silva.

E como nesta explicação saturada de sentido devolvi ao mundo alguma dignidade profética (dei-te um bigode, ó Horacio!) vou já abrir uma conta bancária para colher alguns contributos para uma (merecida) vida de folia. Logo, logo, informo-vos sobre o iban da conta.

15/05/2017

É curioso como nunca vi lavrada qualquer reflexão sobre a estranheza do mictório do Duchamp se chamar Fonte. As fontes emanam de dentro enquanto para o urinol confluem os fluxos, de fora. Os ready-made são um gesto cujo sentido último mostra de forma paródica que não existe uma essência da arte embora, paradoxalmente, Duchamp tenha designado o seu como Fonte. Mesmo que ironicamente o dadaísta não saiu da orbe do sagrado. Talvez o Bataille tivesse sido o homem ideal para nos falar desta ambivalência, pois afinal por detrás da negação do emérito xadrezista vislumbra-se uma aporia. Deus (que é ateu como eu) deu-lhe xeque-pastor.

Em 1912 Duchamp, em companhia de Brancusi e de Fernand Léger, visitou o Salão da Locomoção Aérea e dissera aos amigos, «Acabou-se a pintura. Quem pode fazer melhor do que esta hélice?». E foi consequente com esta rendição quando, poucos anos depois, enviou a Fonte ao Salão dos Independentes, em Nova Iorque, mercê de cujo gesto a arte se tornou aquilo que livremente o artista decide que seja arte. O autor, a partir daí, converte em obra de arte qualquer objecto, bastando assiná-lo. Com graça e petulância diria depois Warhol: «Eu assino tudo, bilhetes de banco, tickets de metro, inclusive um recém-nascido em Nova Iorque, (nas nádegas suponho). Em tudo acrescento ‘Andy Warhol’ para que se converta numa obra de arte».

Tem graça a imodéstia, mas não passa disso.  O drama é que se acreditou. E da frivolidade engenhosa associada à frivolidade com que os media procuram novidades nasceram os Jeff Koons, os Paul McCarthy (o do dildo gigante na Place Vêndome em Paris, a que deu o soporífero nome de Árvore de Natal – e nada me move contra os dildos, acentue-se), as Joanas Vasconcelos, os Claes Oldenburg, as Sophie Calle deste mundo, que, numa concepção empobrecedora do que seja a arte (afinal, basta-lhes a sua assinatura, só comigo a coisa é mais trabalhosa), limitam a sua criatividade a uma  reprodução  mecânica dos jogos de deslocar e de multiplicar (cf. “galo de Barcelos” de Joana Vasconcelos que os coitados dos chineses têm de pagar).

Contra este embuste, apetece lembrar que Eduardo Chillida e Jorge Oteiza, por exemplo, inventaram maravilhosos objectos que superaram na sua expressividade formal e ilimitada abertura perceptiva  as linhas funcionais das hélices dos aviões (profecia, de que até o Duchamp se alheou não voltando à pintura mas produzindo posteriormente algumas peças extraordinárias – o problema está sempre nos epígonos), ou que, mesmo para a pintura, houve excelentes saídas e tão diversas como as de Matta, Tapiès e Soulages.

Mas seja no domínio da crença como no da arte, a farsa emerge porque há sempre um profeta peremptório que nos obnubila a capacidade de pensar e de acreditarmos no valor da nossa experiência. Continuamos no geral a preferir a imitação à invenção, estigma de que temos de nos salvar. Salvadores à parte.

18 Mai 2017

Dez frases que revelam toda a essência da China (Parte 2) 随时翻翻《红楼梦》(第一部分)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A Vermelhologia é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao, tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Trata-se de literatura, mas também de política (chinesa). Pode servir igualmente como uma Bíblia dos negócios. Aborde a coisa com cuidado (do género quando faz yoga).

Sê verdadeiro contigo próprio 不忘初心

A história: Miss Yiu é uma mulher apaixonada, ao contrário da irmã mais velha que não se atreve a tomar decisões. Sente-se atraída pelo Sr. Liu e decide esperar por ele o tempo que for preciso.

A certa altura, diz: “O amor não é um jogo de crianças. Também não é um negócio. Eu não sou o tipo de mulher que precisa de escolher um homem para ser feliz. Mas, se dependesse de ti, escolhias o homem mais rico que pudesse conquistar o meu coração. Que desperdício de vida!”

Miss Sexy é uma das mulheres mais memoráveis da câmara vermelha, contando com um total de 500 caracteres.  Ela põe-nos KO!

Distribui a tua atenção (igualmente) (e serás recompensado) 一视同仁

A história: A Tia Zhao (segunda mulher do chefe da Dinastia Jia) não cabia em si de contente quando soube que a jovem senhora Baochai tinha enviado presentes ao seu filho. Pertencendo à “segunda divisão”, estava habituada a ser ignorada. Por causa deste pequeno gesto, Baochai conquistou a sua eterna lealdade.

O coração dos que são maltratados é como um tesouro negligenciado, que não lamentamos ter recolhido porque um dia pode fazer-nos falta!

Nunca desafies a ordem 安分守己

A história:  Uma anciã que estava a cuidar da fruta quer ter uma conversinha com Xiren, um serviçal de posto elevado, e oferece-lhe um cacho de uvas.  Xiren repreende-a: “As uvas podem ainda não estar maduras, mas, mesmo que estivessem, não estamos autorizados a comê-las antes dos nossos patrões. Oh velha, perdeste o juízo?”

A obediência às regras é uma virtude chinesa tão profundamente enraizada que é praticamente impossível de eliminar. Por pensar nisto; é possível que a revolução cultural do Presidente Mao não tenha sido tão disparatada como pensámos?   

Não dês nas vistas 八面玲珑

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng saúda a jovem senhora Daiyu, acabada de chegar, e elogia-a na presença da matrona, com uma voz emocionada: “É verdade o que os meus olhos vêem? Que bela rapariga, não acredito que pertença à “segunda divisão” (subtilmente lisonjeia a matrona). Parece mesmo uma das raparigas da “primeira divisão” (desta vez lisonjeia a jovem senhora).  Não admira que a nossa matrona esteja sempre a falar de ti. Pobrezinha, a tua mãe morreu tão cedo…” A seguir põe-se a chorar como se estivesse num velório, durante uma cruzada promocional.

A poderosa Dama Wang Xifeng é pura comédia.  Os seus improvisos são como uma taça de noodles, simples instantâneos e funcionais, se não mesmo, completamente originais.

Sê louco sempre que puderes 难得糊涂

A história:  A poderosa Dama Wang Xifeng quer agradar à matrona e põe-se a fazer pouco da velha Liu, uma parente humilde que estava de visita. Conseguiu que a matrona e a sua selecta entourage desatassem a rir às bandeiras despregadas. A seguir, Wang pediu desculpa pelo seu comportamento.  A velha Liu desvalorizou a situação: “Não estou zangada contigo. Sou uma prima da província. Não me importo de ser o bobo da festa por uma causa nobre. Podes confiar em mim.”

Que mulher tão esperta!      

A décima frase é um mistério. Ainda não consegui perceber se é sobre obrigações kármicas – um ponto de vista que os especialistas têm imposto aos leitores– ou sobre desejo sexual ardente. E este último, acho eu, é o motivo pelo qual a ficção clássica chinesa é um trabalho verdadeiramente revolucionário.  Não saiam do vosso lugar.

(Continua)

17 Mai 2017

Gastar mundos

Latitudes, Óbidos, 29 Abril

[dropcap style≠’circle’]Ó[/dropcap]bidos, feita de tempo parado, abriu as portas aos viajantes e suas viagens. Nada parece fazer mais sentido, de tão gastas as ruas pelo arrastar dos pés dos visitantes, se até as casas parecem amaciadas pelo correr das câmaras, cada vez mais elas, que os olhos vivem presos aos ecrãs. O gesto temerário de lançar o novo festival «Latitudes» deve-se ao eixo do «Folio», a vereadora Celeste Afonso e o José Pinho, com a incansável Julita Santos, e abriu engalanado pela ilustração, o que se saúda por milhentas razões. As paisagens do André [Carrilho] possuem textura que há-de obrigar a parar e a ver de outros modos. Turismo vai sendo cada vez menos viagem, aproxima-se mesmo da patologia. Valham-nos os livros, que, a pretexto, atirámos dois, ambos com capas do Rui [Garrido], travestindo falsos cadernos com títulos rasgados a pincel. O de Luís Maio, que, desconfio, marcará estes dias ao conter, além dos saborosos relatos, fortíssima reflexão acerca da «natureza das viagens e ao acto de viajar – desde sempre uma metáfora popular para os dilemas da vida, em particular os que advém da inquietude e da demanda existencial». Em «Ninguém Sabe Onde Está» há tanto para fruir como para pensar e gostei tanto de ouvir o autor apresentar-se como aquele que caminha. Muito além do acumular de milhas, do coleccionar de lugares, é definido pelos passos dados. Enquanto o dizia, turistas atravessavam-nos qual etéreo cenário. O Brasil do puto Luís [Brito], contado em «Oi?» vem pintado de carnes. A sua escrita surge atirada para a frente, em permanente desequilíbrio, levando-nos em passo de corrida, pelos lugares, mas sobretudo pelas pessoas com que se cruza, que toca. Vemo-lo, também a ele, autor que caminha, constante e candidamente desnudo em 24 arrepios e algumas cicatrizes. Não há sítios errados. «Ofereceram-me drogas diversas e travestis passaram a berrar, com as suas vozes de tenor. Rimos muito, e Leo, o mestre da pandeireta, disse-me uma frase de sua autoria: «algo de errado aqui não está certo», até que chegámos ao sítio errado que não podia ser mais perfeito.»

São Luiz, Lisboa, 3 Maio

Saio em êxtase de «O Nosso Desporto Preferido: Futuro Distante», do Gonçalo [Waddington], que escreveu, encenou e encarna Hermes, e da Carla [Maciel], que faz de cego Tirésias, o que lê vaticínios e sabedoria na própria própria merda. O bilhete dizia que o lugar era no palco e não mentia. Do lado de lá da cena havia mais espectadores-deuses e a oscilação dos seus rostos e expressões tornou-se cenário vivo. O chão era de espelho partido e por todo o lado havia penas de badmington, a metáfora-bomba desta tetralogia: as penas da humanidade são jogo entediante. Os actores cobriam-se com uma transparência de órgãos bordados à superfície do seu lugar no mapa do corpo. Logo estalou a pura volúpia de uma linguagem entretecida de clássicos greco-vicentinos e quotidiana escatologia, caudalosa torrente em verso dos mais carnudos pensamentos. Enquadrados pelo bulício da dança, a luz como bisturi até ao esplendor final da abertura para a plateia nublada: o mundo. Este vórtice gira em torno do buraco negro que a ausência de sexo nos abre, da cabeça aos pés. Muita merda, desejam-se os actores, nas vésperas de subida a cena, para invocar sortes. Não havia necessidade. Nunca vi tanta e tão excelsa merda. A não ser em cada um de nós. (Cartaz de Alex Gozblau na ilustração).

Bairro Alto, Lisboa, 9 Maio

Cada homem importa por conter uma biblioteca de mundos, um modo único de segurar este com gestos e palavras. A morte de Baptista Bastos encerra como velho cinema de bairro um fragmento vivo do jornalismo-que-já-não-há. O passamento do Baptista Bastos atira para o pó das estantes uma literatura de esticanços, pendurada entre a fala das ruas e a língua trabalhada a escopro e maceta dos clássicos. O desaparecimento de Baptista Bastos apaga restos de uma Lisboa-que-já-foi.

O trespasse de Baptista Bastos torna a noite bastante mais banal. Não poupava nos ódios, aliás de tantos que estimo, nem na generosidade, menos ainda na vida. Não poupava. Ponto. Deu muito nas quatro direcções. Murros no ar. Palavras azedas. Ideias parvas. Sim, bem sei. Mas deu-se incontido e inconsútil e nisso o prefiro a tantos acanhados. Ficas a dever-nos as memórias, BB. Não te perdoo.

Nacional, Lisboa, 9 Maio

Aprimorado e estranho volume, este que reúne dois romances e outros tantos livros de poesia do Paulo [José Miranda]. O requinte deve-se ao cuidado posto na tradução, no prólogo e nas notas do Felipe Cammaert, mas também ao grafismo. Insólito por, assim reunidos, nos surgirem distintos, oferecendo a aparência de outras densidades. Despiciendo não será, portanto, nem rosto nem formato. «La enfermedad feliz y otras obras» brilha doravante em castelhano na importante Colección Labirinto, que o Jerónimo [Pizarro] dirige na Universidad de Los Andes. Estimulante o peso do título «A Máquina do Mundo», que se referia à violência, mas evocava Camões, na interpretação de Felipe: «Toda la escritura de Miranda, sea esta en prosa o en verso, apunta a descobrir las relaciones entre el universo, el ser humano y la naturaleza».

No excelente «Clube dos Poetas Vivos», animado pela leitura e curiosidade da Teresa Coutinho, o nómada e cosmopolita revelou-se em grande forma, afirmando, com verve, a sua vocação maior: leitor, leitor de outros. Os leitores do Hoje Macau conhecem bem as suas libertárias leituras.

Barraca, Lisboa, 11 Maio

De uma assentada, o Miguel Martins anuncia um «turning point» (sic): o fim do seu blogue, «o único verdadeiro deus vivo», o abandono da editora, a Tea for One, o fim das leituras nas quintas d’A Barraca, e a cessação, «num horizonte previsível», da escrita de poesia. Nenhum amigo lhe conseguiu arrancar explicação palpável na melancólica 235ª e última sessão, sublinhada a sopros de saxofone. Seriam avisos de reviravolta alguns versos de «Desvão» (não (edições), 2016): «nem sei estar indubitavelmente presente,/como o frasco dos picles, na prateleira de baixo do armário»?

Ou ainda: «Os meus dias são feitos de excessos e vazios/e o vazio excessivo é a própria matéria porque pugno/o muito tempo todo em que não me calha compor/estas vagas linhas sobrepostas/a que insistem em chamar poesia/mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono.»

17 Mai 2017

As mulheres em Francisco Huguenin Uhlfelder

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as fotografias de Francisco Huguenin Uhlfelder (FHU), [refiro-me às fotografias de mulheres maduras] as mulheres aparecem diante de nós expostas ao esplendor do paradoxo humano: o lugar inalcançável da beleza. Digo: a intangibilidade da beleza surge-nos aqui mais intangível do que nunca. O que é que nos faz ficar tão angustiados face àquelas mulheres: a beleza que já foi, a beleza que ainda nos tenta ou reconhecermos que estamos vulneráveis à indagação desta manifestação omnipresente, à indagação do que é que vale a pena nesta vida? O mistério da beleza identifica-se nestas fotografias com o mistério da vida. Diante do limite extremo da beleza a desaparecer, a vida e a morte assumem uma consciência concreta, uma pedra de que não nos podemos desviar. A fotografia, mais ainda do que um texto, impede-nos de não ver o que está a acontecer na metáfora que o autor trabalha. Ainda que distraídos, ainda que não haja uma elaboração do problema que está diante dos nossos olhos, não é possível furtarmo-nos a ficar incomodados, como se estivéssemos mal sentados há muito tempo e na mesma posição. Porque exerce a beleza tanto poder sobre uma vida? Porque faz tanto frio (à vida que a contemplava e à vida que a transportava) quando a beleza se acaba ou se vislumbra o seu fim?

A melancolia percorre o olhar destas mulheres que são convocadas a enfrentar a câmara. Em algumas das fotografias, consegue-se perceber muito bem o incómodo por parte de quem fica exposto, vulnerável à luz que há-de revelar esse exacto momento para sempre. É este “exacto momento” que inunda estes rostos de melancolia! Se a luz não fosse revelada, muito diferentes seriam as expressões nestes rostos. Saber antecipadamente que o “exacto momento” será revelado, será mostrado, é que introduz um arrepio existencial. Mais do que ser revelado ao mundo, o que arrepia é ser revelado ao próprio (pois o próprio toma como certo que o mundo o vê como a câmara o revela). Ninguém é como a sua revelação à luz de um “exacto momento” captado entre si e uma câmara, obviamente, mas quem se deixa fotografar sabe que vai enfrentar muito mais a imagem que os outros vêem de si, do que aquela que vê frente a um espelho. O que FHU capta na sua câmara, no fundo, é o medo. O medo de não se ser quem se é. O medo, por parte de quem é fotografado, de não se ir reconhecer na imagem que tem de si mesmo. Estas mulheres, outrora indiscutivelmente belas, sentem medo de não se encontrarem na revelação. FHU capta esse arrepio existencial, que é o medo de, ao nos olharmos na revelação de uma fotografia, ficarmos diante de um desconhecido. Pode acontecer muito pior ainda: ficarmos diante de quem nos recusamos a ser (um desconhecido que não queremos aceitar que somos). Mas também pode acontecer algo muito mais simples: apenas não querermos ser lembrados da imagem que somos (embora geralmente estes recusem enfrentar a revelação). O que leva então estas mulheres a enfrentarem a câmara, exporem-se ao medo?

Para além das diferentes circunstâncias e dos diferentes dias de cada uma das mulheres fotografadas, isto é, para além da subjectividade, importa tentar perceber a objectividade da exposição à luz da câmara. Nesta procura de razões objectivas, adiante-se três: porque sabem que ainda são belas; porque querem uma confirmação de como o mundo interpreta a sua beleza; porque querem afirmar as suas próprias vidas acima da imagem que o mundo possa ter delas. A quem sabe que é bela, a câmara não capta um ar de melancolia, nem causa arrepio nenhum. Só que a situação aqui não é “sabe que é bela”, mas antes “sabe que ainda é bela”. Este “ainda” muda tudo. Quem tem consciência de um “ainda”, tem um arrepio pela existência acima. Num jantar, entre apreciadores de vinho, quando se ouve a frase “ainda há vinho”, ouvem-se sem dúvida duas coisas contraditórias: isto está bom, por enquanto, mas vai ficar mau. E, se usarmos como exemplo aqueles que cheiram cocaína, torna-se mais visível: se ao “ainda” não se juntar “há muito”, eles pensam imediatamente que as coisas estão a ficar mal. Mas o exemplo que prefiro vem do desporto. Se, num jogo de futebol, uma equipa precisa impreterivelmente de marcar um golo e um dos seus jogadores ou adeptos pergunta o tempo que falta para o jogo acabar e a resposta é “ainda faltam cinco minutos”, esse ainda não traz muita alegria (embora haja esperança, por isso se justifica responder “ainda”). “Ainda”, enquanto advérbio de tempo, põe-nos imediatamente reféns da duração, da medida da duração daquilo que o “ainda” acusa. O arrepio advém de, no fundo, a consciência nos dizer: isto está a acabar. No caso das mulheres das fotografias: a beleza está a acabar. No caso de quem fica diante das fotografias: a vida está a acabar. Se as mulheres destas fotografias sentiram um arrepio mais próximo do jantar dos apreciadores dos vinhos ou do adepto da equipa de futebol, provavelmente variou dependendo de cada uma delas e do ânimo subjectivo desse dia em frente da câmara, mas do “ainda” e do seu arrepio não se livraram. Por outro lado, a confirmação da beleza que essas mulheres possam ir buscar à revelação, por si só, mostra a situação em que se encontram as suas consciências: necessidade de confirmação. Quem está imerso numa necessidade de confirmação, do que quer que seja, está imerso em águas desconfortáveis. Necessidade de confirmação é muito diferente da necessidade de ouvir o que já se sabe, mas que se gosta de ouvir continua e repetidamente (o exemplo da mulher e da rapariga que necessita de ouvir que é bela, que necessita de ouvir o mundo repetir o que ela tão bem sabe). Necessidade de confirmação acerca de si, pois é exactamente do que se trata, só pode trazer também um valente arrepio pela existência acima. Por fim, as mulheres destas fotografias enfrentaram a câmara para enfrentar o mundo. Para mostrarem ao mundo que são maiores do que a beleza. Maiores do que a beleza que já foram (ou ainda são), maiores do que a expectativa de beleza que o mundo tem delas. Pode ser. Mas quem é que tem necessidade de se afirmar acima da beleza? Não é seguramente a mulher que nunca a teve, mas aquela que a teve ou que sente que está prestes a perdê-la. Afirmar-se diante do mundo (através da revelação) acima da beleza, só lembra a quem julga ser necessário essa afirmação. Uma mulher que nunca foi bela sabe que não precisa afirmar-se acima da beleza: ela é acima da beleza (pode-se também dar o caso de se sentir abaixo da beleza).

Mas então porque é que estas mulheres se expuseram ao medo? Pela beleza. A mesma razão por que nós nos expomos à vida. Vemos agora mais claramente porque é que estas fotografias, que parecem simples retratos, nos perturbam tanto. Mesmo que a beleza desapareça do rosto, do corpo de uma mulher, nunca desaparece totalmente. Por vezes, fica apenas uma suspeita; outras vezes, um desejo de que ela ainda não tenha acabado; outras, uma memória, um modo de vida antigo que ficou incrustado nesta mulher de agora e que, tal como um vestido, não lhe assenta bem. O modo como os deserdados se comportam em relação à fortuna perdida são muitos, mas em nenhum desses modos vamos encontrar o esquecimento da fortuna perdida (da fortuna que foi interrompida). Só quem doa aquilo que herda ou pode herdar (recusando a herança) é que não tem a memória povoada por esse bem. Em verdade, a beleza perdida nunca se perde, acabamos é por deixar de vê-la. Mas ela continua lá, nestas mulheres, a fazer-se sentir sem uma luz que a traga até nós. Precisamente este deixar de se ver ou poder vir a deixar de se ver (a beleza que continua na memória) é que causa o arrepio existencial que a câmara de FHU capta exemplarmente.

Como é possível não nos apaixonarmos por estas mulheres, pelos retratos que aqui mostram estas mulheres? Apaixonamo-nos pela beleza que julgamos perdida para sempre; apaixonamo-nos pela beleza que ainda resta; apaixonamo-nos pela dor que essas mulheres transportam, no receio de irem da luz às trevas; apaixonamo-nos por aquilo que fomos, por aquilo que somos ou por aquilo que seremos, consoante o caso, a idade e a sensibilidade de cada um dos observadores, ao reconhecermos a nossa vida na vida retratada dos nossos semelhantes, na vida retratada destas mulheres. Mas a paixão cai ainda mais longe: neste trabalho de FHU, apaixonamo-nos pela existência. Apaixonamo-nos pelo humano, comprimido pela totalidade do tempo de uma vida. Porque, como já vimos, este “exacto momento” só é exacto porque, para além dele mesmo, arremessa ainda a nossa compreensão para um antes e um depois do momento representado. Mas frente a estas fotografias, a nossa compreensão vai ainda mais longe: frente às retratadas, neste trabalho do fotógrafo, a compreensão arremessa-nos contra nós mesmos.

16 Mai 2017

Manual de terrorismo ontológico

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s dois rapazes entraram e sentaram-se. O autocarro estava estranhamente vazio, ao contrário do que seria expectável em hora de ponta. Esperaram por um momento de silêncio para começarem a falar: é fundamental repor a presença da morte no contexto da existência, disse um para o outro, não é por não falarmos do assunto que ele deixa de existir, completou, e em pouco tempo e à medida que a conversa prosseguia – dos pré-socráticos à Heidegger, da existência pragmática à existência enquanto doença – os restantes passageiros, cada vez mais desconfortáveis, iam divergindo o foco daquilo que os ocupara e, como acontece num acidente de trânsito, por mais incomodados que estivessem, não conseguiam deixar de prestar atenção àquela conversa. O mesmo acontecia no metro. Numa esplanada ensolarada do chiado. Na biblioteca nacional. Numa festa de aniversário na qual o momento de cantar os parabéns fazia lembrar um ensaio de um coro de coveiros. Na praia, até na praia.

No início era apenas uma piada. Uma daquelas ideias que surgem quando se esgotam as conversas e os assuntos possíveis: e se começássemos a falar disto em sítios públicos, em voz alta, simulando uma conversa? “Isto” era filosofia ou, mais especificamente, o tipo de filosofia e de questionamento filosófico que nasce e se propaga quando um homem tem tempo suficiente para fazer as perguntas que não deve e que podem travar o curso normal da existência: o que faço aqui? O que fazemos aqui? Porquê? Para quê?

Nunca pensaram que a brincadeira pudesse ter alguma consequência para lá de uma possível historieta para preencher o silêncio num futuro jantar de natal. E as primeiras experiências que fizeram, no autocarro, pareciam confirmar essa ideia. Para além de um silêncio breve que surgia sempre quando um deles mencionava morte, as pessoas pareciam imunes ao parasita filosófico que eles tentavam fazer crescer e multiplicar por meio da palavra. Foi quando um deles, numa epifania que atribuíram à cerveja, propôs aos restantes mudarem radicalmente a orientação da conversa – até àquele momento muito vocacionada para a produção de respostas, umas mais sofisticadas que outras – e passarem a tentar gerar, nos espectadores das conversas encenadas, perguntas, que tudo mudou.

As pessoas já não sorriam umas para as outras com condescendência quando eles começavam a falar daquelas estranhezas que fazem o assunto de quem tem demasiado tempo. Algumas, ao vê-los entrar, saíam. Uma ou outra pediam-lhes com gentileza para mudarem de tema, porque não tinham idade para aquilo, porque não tinham cabeça, porque não tinham disposição. Não podiam nem queriam serem surpreendidas naquele assalto pelo qual se viam desmunidas, subitamente, das certezas que fazem o chão da vida. Os autocarros foram progressivamente perdendo passageiros, assim como o metro e restantes transportes públicos. Ao entrar num táxi as pessoas detinham-se e dirigiam-se ao condutor: não vai falar daquilo, pois não? O Benfica sagrava-se pentacampeão português à penúltima jornada perante um estádio praticamente vazio. As pessoas saíam de casa apenas por absoluta necessidade. Evitavam a televisão, onde aquilo já grassava também. A pergunta do ano, no Google, era “como evitar falar daquilo?”

Alguns especialistas defendiam, em colunas de opinião, uma acção concertada e internacional para a produção de um documento, subscrito pelo maior número possível de países, através do qual se decretasse a ilegalidade e suspensão imediata daquelas conversas. “Uma espécie de convenção de Genebra da filosofia”, concluíam, incapazes de disfarçar o orgulho que a metáfora neles produzia, malgrado os tempos sombrios.

Um movimento de resistência auto-intitulado “porque não?” organizava, a espaços, marchas de protesto às quais acorriam algumas dezenas de pessoas. Infelizmente, bastava alguém distrair-se, mesmo que bem-intencionadamente, e fazer uma pergunta que pudesse sugerir aquilo para toda a gente dispersar e ficarem espalhados no chão, sublinhando a ironia e impotência do movimento, meia dúzia de cartazes apelando à fé e à confiança dos homens uns nos outros.

Alguns dos rapazes que haviam começado a brincadeira tinham-se suicidado. Outros, esmagados pela culpa, procuravam uma forma de reverter aquilo. Falava-se em antídotos, vacinas, alinhamento de chakras. Mas era tarde demais. Aquilo não ia passar.

16 Mai 2017

O trabalho de Pedro Alexandrino em Angola

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m 1834, após as batalhas de Almoster, em Fevereiro e de Asseiceira, em Maio, ainda nesse mês foi eleita uma Câmara Constitucional e logo uma semana depois, o monarca absolutista D. Miguel abdicou, tendo-se exilado em Itália. O Rei D. Pedro IV vencia o seu irmão e pela vitória liberal, a burguesia recupera o poder no Estado, quando se realizou em Junho eleições para formar as Cortes. Segundo refere Luís Filipe Torgal, “O sufrágio era masculino, indirecto e censitário: só os maiores de 25 anos ou de 21 anos, conforme o estado civil e o estatuto profissional, detentores de um rendimento anual líquido não inferior a cem mil réis, poderiam votar nas assembleias paroquiais. Os escolhidos nestas, possuidores de um rendimento a partir de duzentos mil réis, reuniam-se depois nas capitais de província e elegiam, por sua vez, os deputados.” D. Pedro IV reinou até Setembro de 1834, quando faleceu, subindo assim ao trono de Portugal a sua filha D. Maria II (1834-53).

Pedro Alexandrino da Cunha, comandando a Corveta D. Isabel Maria saiu de Lisboa a 9 de Dezembro de 1836 e após se dirigir para as Ilhas de Cabo Verde, dali seguiu viagem para Pernambuco, estacionando na Baía com o fim de prestar auxílio aos súbditos portugueses aí residentes. “Algum tempo depois passou ao Rio de Janeiro para tomar mantimentos, e continuar na sua comissão para a Costa de África Ocidental, para onde seguiu viagem”, segundo o Boletim Oficial de 1851, cujo redactor era então Carlos José Caldeira.
“Nas possessões portuguesas da África atlântica, a realidade evoluía de forma peculiar pois estava muito dependente do mercado brasileiro. O impulso que Sá da Bandeira imprimira aos negócios do ultramar a partir de 1835-1836 começava a ter os primeiros efeitos, sobretudo em Angola”, segundo Maria Manuela Lucas.
“Abolido o monopólio do comércio do marfim, em 1834, e autorizada a colheita da urzela, ensaiam-se novas plantações, que incluem a cana e o café, com base no trabalho escravo”, como refere Maria Manuela Lucas, que complementa, “Desenvolvia-se agora o comércio dito legítimo, ao mesmo tempo que persistia a prática do tráfico de escravos, ilegal desde 1836 e cada vez mais severamente ameaçado, não obstante a luta dos negreiros contra o poder central e contra os seus próprios concorrentes, que utilizavam localmente a referida mão-de-obra”.

Das mudanças

Pedro Alexandrino da Cunha, que chegara a Angola entre finais de 1836, ou início de 1837, aí esteve em comissão durante perto de cinco anos.
“As primeiras décadas do liberalismo português coincidiram, em Angola com um período de transição histórica, no fim do qual a maioria dos principais habitantes da colónia tinham sido forçados, finalmente, a abandonar o comércio de escravos para o Brasil e a entrar numa nova relação económica com Portugal, baseada na exportação de outros produtos. Esta mudança verificava-se principalmente através das pressões de interesses e acontecimentos internacionais, e só muito parcialmente através de esforços metropolitanos para racionalizar as relações coloniais com Angola a partir dos anos de 1820. As tentativas feitas por sucessivos governos nacionais entre 1820 e 1850, no sentido de acabar com o comércio de escravos e de aproximar a colónia de Angola à metrópole, criando uma dependência económica e política mais estreita, foram fortemente resistidas pelos vários grupos de interesses de que se compunha a sociedade colonial. A violência e os conflitos políticos que caracterizavam a história daquela colónia neste período derivavam, basicamente, de divergências socioeconómicas profundas entre Angola e Portugal, e de uma confrontação clássica entre grupos de interesse coloniais e metropolitanos”, segundo Jill R. Dias, em A Sociedade Colonial de Angola e o liberalismo português (c.1820-1850), que segue referindo, “O carácter e a estrutura da sociedade da colónia angolana nos anos de 1820 reflectiam o seu envolvimento de longa data com o comércio de escravos para a exportação. Desde o século XVII, o comércio externo de Angola tinha sido principalmente um comércio de escravos, canalizado quase exclusivamente para as plantações e minas do Brasil e das Américas. As exportações legais de escravos a partir de Luanda e Benguela para o Brasil tinham aumentado regularmente ao longo do século XVIII. Este fluxo de mão-de-obra de Angola e de outras partes da África colonial portuguesa formava a base produtiva de todo o sistema comercial luso-brasileiro e das suas relações com a Europa do Norte, das quais dependia a prosperidade de Portugal nos princípios de 1800. Contudo, os mercadores metropolitanos eram excluídos em grande parte da participação directa no comércio de escravos angolano nesta data. O controlo financeiro estava centralizado principalmente nas mãos dos mercadores estabelecidos no Brasil. Eram eles que tratavam da exportação para Angola dos produtos europeus e asiáticos usados para comprar escravos, derivando o seu domínio de circunstâncias históricas, reforçado pela proximidade geográfica e pelos favoráveis ventos e correntes do Atlântico Sul”.

Do trabalho

Regressando ao Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor de 1851, “Os importantes serviços que então [Pedro Alexandrino] prestou em Angola, já na repressão do tráfico da escravatura, e já no miúdo exame, que foi fazer à Costa do Sul de Benguela, são bem notórios, e se acham consignados, tanto nos seus Ofícios, dirigidos ao Ministério da Marina, como nas publicações que deles se fizeram nos Jornais Marítimos e Coloniais, e da Estatística das Possessões Ultramarinas, na parte que diz respeito a Moçâmedes, e que quase se pode dizer ele novamente descobriu, sendo causa da importância e impulso que hoje tem, e que por ventura virá a ter no futuro. Desta comissão de Angola, que durou perto de cinco anos, voltou ele ao Reino em 1841, sendo depois nomeado para Membro de diferentes Comissões. Eleito Deputado às Cortes pela Província de S. Tomé e Príncipe nelas tomou assento em 3 de Janeiro de 1843; mas sendo pedido à Câmara dos Deputados para uma nova comissão de serviço, saiu outra vez para Angola em 27 de Abril a bordo da Corveta Urunia que comandava. Chegando a Luanda, assumiu o comando de toda a Estação Naval, criando lá, (na Ilha chamada de Luanda) um pequeno Arsenal que no seu género podia servir de modelo a semelhantes estabelecimentos, e sem o qual não era possível manter a sobredita Estação. Durante este serviço foi promovido a Capitão-de-Fragata por Decreto de 14 de Fevereiro de 1844.
Em 31 de Maio do seguinte ano passou a Governador-Geral da Província de Angola, (lugar do que tomou posse aos 6 de Setembro), sendo então promovido a Capitão-de-Mar-e-Guerra. Pouco depois Sua Majestade o honrou com o título do seu Conselho, e a comutação da Comenda da Ordem de Cristo para a de Aviz”.

12 Mai 2017

Karadenis: “Na minha actividade não há meio-termo”

 

[dropcap style≠’circle’](c[/dropcap]ontinuação)

E quem é que o quis matar à bomba?

A CIA! Foi depois de um trabalho que fiz para eles. Depois quiseram acabar de vez com os rastos que poderiam levar até eles. Encomendaram-me um trabalho fazendo-se passar por uma corporação financeira da Suíça. Aliás, fizeram a encomenda precisamente através dessa corporação. O plano era simples: davam-me todos os dados e só tinham de esperar que eu cumprisse o contrato: que eu cumprisse ir morrer.

E como é que o Boris Solomatin soube de tudo isso e o avisou?

A KGB sabia sempre dos movimentos da CIA, e vice-versa. O que a CIA não estava à espera é que o chefe da KGB tivesse escrúpulos, que me avisasse, que tomasse partido pela minha vida. Pois não tenho dúvidas de que eles sabiam ter sido eu a destruir as informações e a eliminar o dissidente soviético em Burgas! Só poderia ter sido eu! Só poderia ter sido um profissional turco, que passasse a fronteira sem levantar suspeita. Mas eles não sabiam duas coisas: que esse trabalho tinha sido uma encomenda pessoal do Boris, e não da KGB, uma espécie de favor pessoal, e que por isso mesmo ele me respeitava. E não se fica de braços cruzados a ver morrer um homem que se respeita.

O seu profissionalismo acabou por lhe salvar a vida…

É a única coisa que nos pode salvar a vida, Paulo! Ser-se o mais profissional possível na actividade que se faz. Não é assim também na escrita?

Não estou certo disso!… Embora se passe o tempo todo a dizer o contrário, o talento é fundamental na escrita.

E julgas que para se viver de matar não é preciso igualmente talento? É sempre preciso talento para se ser profissional! E, quando digo que nos salva, digo-o porque é a única certeza que se tem na vida: sabemos fazer bem aquilo que fazemos, independentemente de tudo o resto.

E como é que sabemos isso? Como é que sabemos que fazemos bem aquilo que fazemos, que fazemos bem a nossa actividade profissional?

Porque perguntamos sempre! Para além do talento que nos impele a fazer, a fazer continuamente melhor, há a contínua interrogação: será que não estou a cometer nenhum erro? Será que não seria melhor fazê-lo de outra maneira? Será que não devia parar? Enquanto continuares a exercer a tua actividade e a interrogares-te pela tua capacidade diante dela, poderás dizer que fazes bem aquilo que fazes.

Mas essa interrogação pode muito bem ser uma interrogação retórica! Um mau assassino profissional pode ser assaltado pela pergunta: estarei a fazer bem; não deveria fazer de outra maneira? Ele pode fazer estas perguntas e ser efectivamente mau profissional, por isso essa pergunta acaba por ser uma pergunta que cabe a todos quantos fazem e não a quem faz bem. Por outro lado, bastava saber-se disto para se ser bom, isto é, quem fosse mau bastava saber que a pergunta o salvava e passava a ser bom. Isto parece-me muito retórico, não concorda?

Não sei, Paulo, porque nunca morri. E nunca cheguei a conhecer aqueles que tinham a mesma profissão que eu e morreram. Sempre tomei por certo que o sentido crítico apurado era um efeito do talento. Mas talvez não seja assim. Talvez tu estejas certo e eu esteja errado. Certo, certo, é que não morri. E desejo o mesmo para ti. Desejo que não morras na escrita, como eu não morri na morte dos outros. Desejo, portanto, que sejas conhecido inversamente ao meu desconhecimento. Aquilo que faz o teu sucesso, seria o meu fracasso, como já sabes, mas na minha actividade não há meio-termo, como parece existir na tua. Não há um homem meio-vivo ou meio-morto, por outro lado parece-me que é possível ser-se meio-escritor. Tornar-me conhecido era morrer. Mas um escritor pode não ser muito conhecido e ser um bom escritor. Pode também ser muito conhecido e ser um bom escritor. E pode ser pouco conhecido e mau e muito conhecido e igualmente mau. O que pretendo dizer, Paulo, é que na minha actividade a verdade vem logo ao de cima; ou, melhor, a verdade nunca vem ao de cima, pois aquele que é bom nunca se deixa reconhecer.

12 Mai 2017

Sisterhood, de Tracy Choi, aplaudido no Indie Lisboa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o catálogo do Festival o filme é apresentado desta forma : “Duas massagistas (Seiya e Kay), na Macau dos anos 1990, tornam-se melhores amigas e criam juntas o bebé de Kay, como uma família. Até que, no dia da entrega do território à China, as duas discutem violentamente e nunca mais se falam. Anos mais tarde, Seiya regressa a Macau, mas apenas encontra o filho da amiga, já adulto, e uma cidade completamente diferente: os casinos e as luzes de néon transformaram a pacata localidade na Las Vegas do Oriente. Sisterhood, da macaense Tracy Choi, é um filme que olha com saudade aquilo que Macau foi e já não é.”

O filme é isso, mas bastante mais.  O filme de 2017, realizado e montado por Tracy Choi com argumento Kin Yee Au, que resulta do primeiro concurso do programa de apoio às longas metragens do Instituto Cultural em 2013, é uma obra cinematográfica fluida, aberta, onde pulsa  a vida contemporânea.

O filme transporta-nos à centralidade do amor na vida das protagonistas,  dá a ver uma cartografia  da construção dos afectos e como, a vida banal dos quotidianos vividos, tem sempre qualquer coisa de heróico, de grandioso, quando o amor acontece.

Fala de outras possibilidades de famílias contemporâneas quando duas jovens mulheres decidem juntas, serem ambas mãe, de um filho que vai nascer da gravidez de uma delas que aconteceu em resultado de um modo de vida, a forma encontrada para pagar as contas, e não de desejo e afecto partilhado. É uma ousadia radical, uma manifestação de amor sem condicionamentos, sejam estes de género, sociais, ou económicos. Ambas sabem, na cidade do jogo e das massagens, as dificuldades da decisão, mas não as temem. Sabem que o corpo grávido se transforma e se afasta dos padrões do das profissionais da massagem, e facilmente uma barriga que cresce é uma condenação a ficar sem o local de trabalho.

E conhecem também o olhar estigmatizado do instituído. Uma coisa são duas jovens mulheres que partilham um apartamento, outra uma família monoparental de duas jovens mulheres e um bebé partilhado. A sabedoria do filme, resulta de, numa história vivida na contingência do quotidiano, a alegria e a espontaneidade dos afectos irromperam exactamente como na vida, sem aviso prévio. Resulta dos pequenos gestos visíveis, como quando um carro de bebé é empurrado pelas protagonistas em que as mãos felizes na partilha da acção se sobrepõem como num abraço, e tem de afastar-se por defesa, na ocultação da visibilidade da expressão afectiva em resultado da fobia social perante o não igual.

O tempo é outro elemento de trabalho na narrativa,  o tempo que muda a cidade, o tempo que muda as protagonistas. Metáfora e símbolo, é o momento da transição da soberania a 20 de Dezembro 1999, o momento de rotura na relação afectiva entre as duas mães do mesmo filho.

Uma fica, outra parte. Mas, para a protagonista, a dor da separação, apesar da saída do território ser sobre a protecção serena e dedicada de um homem rendido e amante, pode ser atenuada, mas não varrida da memória do corpo. O regresso ao território é uma inevitabilidade. O regresso à cidade de pertença onde a memória e também a materialidade do que a define e identifica permanece, bem como um filho, nascido do corpo de outra mulher, agora ele, em crise de adolescência.  Só o regresso a Macau permite o ponto final da dor da rotura pela separação. A cidade mudou, mas é nela que pode ser feliz.

Ficção, 2016, 97, DCP

Argumento: Kin Yee Au

Fotografia: Cheong Sin Mei

Música: Ellison Lau

Som: Nip Kei Wing

Montagem: Tracy Choi

Com: Gigi Leung, Fish Liew, Jennifer Yu

Produtor: Wai But Tang, Yuin Shan Ding, Jacqueline Liu

Produção: One Cool Film ProductIon

Países: República Popular da China/ Macao, Hong Kong

11 Mai 2017

Intervalos

05/05/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a Mongólia, o sonhador pode sonhar por um outro, ou até sonhar por numerosas outras pessoas. Leio e pasmo.

Aí estava um negócio – fosse eu um xamã de igual qualidade.

De qualquer dos modos esta é a única explicação que encontro para um sonho que me perseguiu durante anos, ao ponto de se ter cunhado como uma recordação que eu reportava ao vivido. Durante uma década estive convencido de que quando me casei com a minha primeira mulher tínhamos ido viver para uma casa emprestada, na Avenida Todi, em Setúbal, até a nossa, oferecida pelos pais da noiva, estar pronta.

Era um apartamento, num primeiro andar de grandes janelas rasgadas – a casa fora em tempo adaptada a loja –, um T-0 com kitchnet. O facto é que aí vivi – seis meses – o único período de pacificação do casamento, ternos, unidos, degradando-se tudo quando nos mudámos para a nossa casa.

Anos depois, sempre que voltava a Setúbal, palmilhava a avenida, procurando a casa, em vão. Todavia, eu tinha presente cada pormenor do seu interior, a mesa redonda de mogno com flores de marfim embutido, os cadeirões com almofadas vermelhas, a estante de boa madeira que em noites ímpares acordava em mim sonhos de larápio, a Clara no balcão da cozinha a rechear as beringelas, o tapete com dois peixes em 69… A avenida é que teimava em desmentir-me.

Quando eu e a minha ex-esposa nos pudemos reaproximar sem dano ou atribulações, perguntei-lhe pela casa, e jurou-me que fôramos para a casa nova no próprio dia do casamento.

Ainda não estou convencido, apesar de a partir de hoje ter por certo que um sonho de outrem me visitou e que não passamos do atelier de alguém.

07/05/17

Bom, só estão volvidas duas semanas sobre o 25 de Abril e por isso aproveito para contar uma das suas engasgadelas ocultas menos conhecidas.

Nessa madrugada os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e – ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa – paravam nos semáforos.

Foi uma Revolução em que os tanques – o respeitinho é muito bonito! -, estacavam nos semáforos.

Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se res-peita escrupulosamente a lei.

Parece-me que os portugueses eram na generalidade, e supinamente, norte-coreanos.

O extraordinário e incomodativo filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, que passei esta semana aos alunos, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo. Os portugueses moviam-se como espectros sequiosos de alegria.

Há uma geometria suplicante, invariável, naqueles olhares de júbilo que associo à esquadria sem falhas com que se marcha nos dias de desfile na Coreia. É inimitável o que consegue a cegueira das massas, sendo por isso inesquecível.

No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados.

Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide, ou a serem afeiçoados pela sílabas amendoadas da catequese, deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, os pides nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.

09/05/17

Vagueio, intervalado pelo mundo, acácias vermelhas, libelinhas, por um “tô a pedi” tatuado nas costas, e pelo ronrom das viaturas, plácidas como a tarde. E seguindo-me o passo abranda um jipe, novo, enquanto se baixa um vidro.

– Doutor… – Uma jovem bonita, que apesar de familiar me escapa à lembrança.

Sorri e rebola os olhos – Sou eu…

Gaguejo – Foste minha aluna?

Sim. Diz-me o nome. Faz-se-me luz, mas conhecera-a de cabelo rapado e não com umas extensões à Beyoncé… e sem aparelho nos dentes.

– Já sei. Foste minha aluna de…

Adianta-se: – Do corpo e quê, quê, quê e tal e tal…

O tal e tal é da sua autoria, o quê, quê, quê… é um bordão de linguagem das gentes da Beira. – Estás muito diferente… – Observo, e provoco – E vê-se que estás bem na vida.

– Não é? – Concorda ela, e justifica – Sou doutora!

– Também eu, mas não ando num carrão destes…

– O profe? O profe só gosta de ler…

– E tu… – gracejo – continuas a aprofundar o quê quê quê quê, ou deixaste-te de leituras?

– Xii, professor, não tenho tempo para me coçar e tenho um niño

– Falamos espanhol?

– Não é? É do trabalho, trabalho numa empresa espanhola…

– Boa. E qual é a área da empresa?

– Consultoria e quê, quê, quê, quê… Repete, accionando a ignição: – Então vai lá à tua vida…- Rebolo os olhos para o interior do carro, para que ela perceba que aprovo o fausto de um consultor – Gostei de te ver… Olha, já agora, que achaste das eleições em França?

– Xiii! França é maningue longe. Aquilo tem alguma coisa a ver com a nossa realidade, profe?

– Talvez quê, quê, quê…- Replico, pensando – Estamos tramados Senghor, para eles não há nem a mosca nem teia…

Ela mete a mudança e acena, feliz.

– Sucessos… – desejo-lhe. Um txopela segue-a, em tosses. Quê, quê, quê, tropeça ele, como quem diz.

11 Mai 2017

Obsessão pela transparência

REALIZAR:poesia, 23 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem houve conversa sobre música e poesia com devido apontar de raízes aos gregos, a que se seguiu estroina devidamente acompanhada à viola e sarcasmo pelo irrequieto Manuel João [Vieira] e muito mais do que foi parecendo solto, do que nos vai parecendo fragmento perdido de quotidiano, ganha sentido lendo os clássicos. Por exemplo, a Jessica Augusto acaba de ganhar a maratona de Hamburgo, minutos antes da apresentação desta tradução ágil e elegante do mano António [Caeiro], das «Odes Olímpicas», de Píndaro. A María José Velasco não lhe fica atrás no enquadramento justo e completíssimo, com a ligeireza de uma brisa. A poesia, dizem, resulta de Píndaro e os deuses a percutirem as cordas do tempo. A nós resta-nos saltar. Ou correr. Tornarmo-nos heróis. «Em ocasiões diferentes,/correntes de prazer de canseiras/atingem os homens.»

Logo depois chega-se à frente João Rios, companheiro de íntimas viagens neste festival, para nos puxar ao terra-a-terra de «Os Heróis Transformados em Floreiras» (ed. Douda Correria), em jogo de parada e resposta. «manda o poema/à guerra e às feras/não lhes prometas caldos/e opíparos despojos// se à potência do veneno/sobreviver/força-lo de novo a cair/até perder a mania/de quem guarda o mistério/de um Deus maior».

REALIZAR:poesia, 24 Abril

Neste festival, ideia forte do Isaque [Ferreira], que doou o corpo à ciência, quer dizer, a voz ao verso, a vida à poesia, as mesas viram-se, de facto, em conversas. O fulcro, nesta moderada pela Ana Cristina Leonardo, foi a filosofia. O Fernando Echevarría colocou-se em modo teatral e definitivo, o Fernando Guimarães atirou para a frente as suas lições, a Leonor Barata dançou e o mano António [de Castro Caeiro] iluminou ao deixar claro que a filosofia se faz istmo, itinerário por onde passar quando tudo está contra. Ressoa ainda a sua contra-definição do conceito: filosofia enquanto obsessão pela transparência.

REALIZAR:poesia, 25 Abril

Não encontro melhor maneira de celebrar Abril. Gargalhadas e ideias trocadas ao longo do dia, sobre sol, silêncio e importâncias, tão natural como sombra de respeitável pinheiro na Senhora da Pena. O riacho desagua ao fim da tarde na apresentação do tocante trabalho do André da Loba e da Dulce Cruz interpretando em imagens e livro o disco-concerto inaugural como estas manhãs de «No Precipício Era O Verbo» (projecto que visitará Macau no início de Junho). O livro, sobretudo aqui em Coura, seu primeiro palco, encerra e relança ciclo de múltiplos caminhos, criativos, mas não apenas. Voltaremos ao livro, que apuro destes merece leituras e releituras. Até para sublinhar o que tende a ser esquecido, pois este filho de urgências não estaria aqui sem o esforço do Vasco Malheiro, da Rainho & Neves. Ouvir agora o mano [José] Anjos contar das cronologias, o André [da Loba] expor as suas minuciosas atenções, a vibração do Carlos [Barretto] com os encontros ou os comentários do António [Caeiro] que penduram sempre o banal no panorama de um destino, tudo me grita que o risco compensa. Momento píndaro? O concerto arrepiou-me, inquietou-me, comoveu-me, disse-me. Antes, à laia de primeira parte, algo que só podia acontecer em Coura. Conversa de peito aberto sobre as poesias de cada um, moderada pelo Isaque, com Vitor Paulo Ferreira, o sempre imprevisível e já querido Presidente da Câmara, e Tiago Brandão Rodrigues, Ministro da Educação, que tinha no colo o «Sérgio Godinho e as 40 ilustrações». Após com intensa leitura do «Poema do Menino Jesus», do Caeiro-Pessoa, a propósito de fronteiras dos géneros e dos sotaques, e portanto de territórios, notável foi o ministro ter posto a sala a dizer trava-línguas: o rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia. O logótipo do REALIZAR:poesia, que arrisca tornar-se dos mais interessantes festivais, faz de um serrote o poiso de um pássaro (de António Pinto, na ilustração). Esta conciliação de improváveis traz-me estranho consolo.

Horta Seca, 27 Abril

Talvez seja apenas mais uma história de marinheiros e sereias. Talvez, mas para a Arranha-céus, este «Desenhar em Cima da Conserva» será registo memorável de viagem ímpar, tida e a ter. Por ser o primeiro título em banda desenhada, de qualidade superior e toque surrealista, mas sobretudo por nascer da amizade. Durante um ano, a convite do mano Tiago [Cabral Ferreira], da Conserveira de Lisboa, artistas como Pierre Pratt, Cristina Sampaio ou João Maio Pinto desenharam ao vivo na loja do Mercado da Ribeira, no que se tornou festa mensal. Em paralelo, cada autor contribuía para o cadáver esquisito, reunido agora em volume, e cuja edição especial conterá ainda duas latas das incríveis conservas deste lugar clássico que sabe embalar o mar com mil cuidados. A delirante narrativa, desde o Nuno Saraiva, que a lançou como rede ao mar, ao André Carrilho, que a fechou com gráfica espectacularidade, narra os avanços e recuos, as possibilidades desdobradas de amor impossível e contudo sempre renovado. Nesta história de corpos que se reinventam, alguns detalhes interpelam-me: a passagem do Pedro Lourenço para o Alberto Faria, de homem que grita para baleia que desliza. Conseguirei ainda atravessar a vida com a naturalidade de uma qualquer natureza?

Horta Seca, 30 Abril

Estou com os gatos: uma porta, qualquer que seja, tem na sua matéria, além do alumínio ou da madeira, do ferro ou do papelão, a surpresa. Vencia as duas, de bela e velha madeira, que me separam do lugar de desarrumo onde cultivo estas palavras, quando um estardalhaço de fuga me pôs em guarda. Ainda fui a tempo de ver dois pés a escapulirem-se pelo alçapão. Não consegui marcar emergência nenhuma no telemóvel, limitei-me a trazer a desorientação para a rua. Esqueci mesmo que podia dar-se o caso de haver mais pés. Abriu-se então uma das guardas da galeria e vi o meliante de luvas amarelo gritante a expor-se à janela, tosca instalação, mas vivíssima no esforço de fuga. Terá sido mais a impossibilidade física de abrir para si a janela do que os meus gritos e fúria a afugentarem-no pela mesma escapatória do parceiro. Depois foi polícia e indícios e formalidades. Ficou o estranho cheiro da devassa, deveras organizada em montes de utilidades e putativos valores, que a surpresa da minha rotina impediu que desaparecessem. Escusado será dizer que não iam levar livros.

10 Mai 2017

Dez frases sobre a China 随时翻翻《红楼梦(第一部分)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi sempre ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A “Vermelhologia” é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao, tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Trata-se de literatura, mas também de política (chinesa). Pode servir igualmente como uma Bíblia dos negócios.

Sê um louco no meio dos loucos 入乡随俗

A história: Quando a nossa jovem heroína Daiyu chega ao palácio dinástico da família Jia, é recebida pela matriarca que lhe pergunta se sabe ler. Daiyu responde-lhe que aprendeu a ler com os Quatro Clássicos de Confúcio. Quis saber se as raparigas da família Jia também tinham aprendido. A matriarca respondeu que as suas raparigas poderiam não ser tão avançadas na leitura, mas que sabiam o suficiente para não serem cegas! Na cena seguinte, o nosso jovem herói Baoyu entra e quer saber quais foram os clássicos que Daiyu leu. Daiyu aceita o desafio e responde prontamente: “Eu não sei ler. Só sei reconhecer algumas palavras.”

O Poder é algo que não deve (não queres) mudar. Por isso esconde os teus talentos.

Que sejas um excelente situacionista 伺机而动

Um situacionista é basicamente um oportunista, embora no contexto chinês tenha uma conotação menos negativa.

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng acena do alto da colina a uma serviçal, de seu nome Hongyu. Hongyu abandona prontamente a multidão e corre ao encontro de Wang Xifeng. Toda ela é obediência e sorrisos.  A Dama diz: “Hoje a minha criada não me acompanhou. Preciso de alguém que me faça um serviço. Mas como posso saber se estás à altura da missão?” Hongyu responde: “Senhora, estou completamente à sua disposição. Se a desiludir, castigue-me como bem entender!”

As oportunidades são raras. Agarra todas as hipóteses que se te apresentam com prontidão E, com toda a tua alma e as tuas garras.

Quando mentir é uma qualidade desejável避实就虚

A história: A concubina Zhao está a fazer os preparativos para o funeral do irmão e apercebe-se que uma das criadas não tem as roupas apropriadas. Além disso, a rua onde ela queria ir comprar o fato está toda suja. Então pede a Xueyan, uma serviçal com um cargo elevado, que lhe empreste os trajes adequados. Xueyan recusa-se com estas palavras: “Claro que era óptimo que as suas criadas usassem as minhas roupas, Tia Zhao! Mas as minhas roupas são guardadas por Zijuan (o meu superior), que também precisa da autorização da minha patroa. Não é que eu receie vir a ter problemas. É que a minha patroa está de cama, doente, e não é altura para a preocupar com esse tipo de coisas. Além disso, tenho medo que, se for andar para a frente e para trás para pedir autorização, a vá atrasar quando tem tanta pressa.”    

Aprender a recusar é uma via sinuosa. Aparentemente, os chineses apreciam quem sabe contar uma boa mentira.

Fica para sempre junto à cerca (e evita as colisões) 不偏不倚

A poderosa Dama Wang Xifeng está doente. Uma jovem senhora ficou a dirigir a morada dinástica em seu lugar e quer fazer algumas mudanças. Ping Er, a criada de Wang, ficou numa posição desagradável, porque não quer ofender a jovem senhora, mas também não quer ser desleal à sua poderosa patroa.   

A estratégia que adoptou foi a de louvar a jovem senhora pelas suas iniciativas. No entanto, ao mesmo tempo foi-lhe dizendo que a sua patroa também já em tempos as queria ter realizado, mas que ficou com dúvidas por razões de muito peso. Desta forma, elogiava a jovem senhora e louvava a sua dama. Voilá, já está bem lançada para a próxima promoção. Quando um dia chegar a chefe, ninguém espere dela uma opinião, porque ela conseguiu lá chegar precisamente por nunca expressou nenhuma.

(continua)

10 Mai 2017

Vontade de cinema: 14º Indie Lisboa, de 3 a 14 de Maio

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a competição nacional estão seis longas metragens e dezoito curtas, a maior presença de sempre na competição nacional do Indie Lisboa. No total, são perto de quarenta filmes portugueses, na sua maioria em estreia mundial ou nacional, nas diferentes secções do festival.

Macau tem presença nesta edição do Indie Lisboa, num olhar sobre o que está a acontecer na cinematografia da território, com a colaboração do Instituto de Turismo de Macau.

Dia 1

Ficção, 2017, 135, DCP

Argumento: Teresa Villaverde

Fotografia: Acácio de Almeida

Som: Vasco Pimentel

Montagem: Rodolphe Molla

Com: João Pedro Vaz, Alice Albergaria Borges, Beatriz Batarda

Produtor: Teresa Villaverde

Produção: Alce Filmes

Países: Portugal, França

COLO, de Teresa Villaverde – Um filme que nos fala da falência

Foi o filme da sessão de abertura e esgotou os 830 lugares da sala Manuel de Oliveira . Na projecção, para além do público cinéfilo, realizadores, actrizes, actores, produtores, técnicos, esteve o primeiro ministro António Costa. Em registo de piada com a irreverência usual em cerimónias de abertura de festivais de cinema, foi apresentada a edição e dadas as boas vindas ao público e aos participantes e, aproveitando a presença do primeiro-ministro, foi sugerido que uma geringonça oleada e funcionar, sabe seguramente que investir 2% do orçamento geral do estado na cultura, é a condição necessária para  tornar efectivamente activo e dinâmica o sector, para ultrapassar a percepção geral das políticas públicas da cultura como um exercício sobre o supérfluo,  o não necessário,  os foguetes que se estoiram no calendário das festas ou eleitorais, mas sim actividade necessária para a continuidade da afirmação do capital simbólico e imaterial de Portugal no mundo. No caso do cinema, é a possibilidade de muitos e talentosos profissionais trabalharem, afirmando o papel central do cinema no diálogo do mundo contemporâneo, no desenvolvimento das cidades como espaços criativos, alavancar esta arte/indústria para patamares com maior desenvolvimento e retorno, também financeiro.

Colo é um filme que continua o universo cinematográfico da realizadora, onde o tempo da adolescência é central, e os movimentos de autónoma e aproximação ao real normativo são de confronto, incompatibilidade, sofrimento, mágoa, desencanto, revolta. No filme Colo, que teve estreia mundial na competição oficial do último Festival de Berlim, a trama narrativa desenrola-se seguindo o quotidiano de uma família jovem e suburbana da baixa classe média em desintegração em resultado da fragilidade e ausência de emprego. Mas cinematografia de Teresa Villaverde tem a sua vitalidade no não abdicar do habitar do poético, do trabalho pictórico na composição das linhas e mise-en-céne dos planos,  nas relação das personagens com o espaço e com o tempo em que movem.  No texto de apresentação, é escrito “ … filme, sempre à beira de explodir, que nos recorda do direito fundamental à felicidade.” A felicidade é uma coisa estranha, mas quando nem dinheiro há para a conta da electricidade, mesmo que a capacidade de fantasiar jantares à luz de velas e imaginar quotidianos em séculos anteriores à sua invenção seja activada, ser feliz começa a ser coisa muito distante, um exercício condenado ao insucesso.

O encanto cinematográfico deste filme irrompe da sua construção no fio da navalha. Embora seja visível a construção narrativa dos três actos, é anulado o conforto narrativo de seguir uma personagem principal, sim é filha adolescente, sim é a amiga adolescente da filha, sim é o pai, sim é a mãe.  Ou seja, temos quatro personagens principais. É possível, dar centralidade à figura da mulher que também é mãe, que também é esposa, que também trabalha, que é quem cuida, que é quem ousa sobreviver e organizar um universo que desaba. Mas se ser mulher neste tempo e neste contexto é tudo isto; ser o eixo, o lugar ómega e alfa, é humanamente impossível ser super-mulher,  e o colapso é inevitável. Colo é um filme lento, que se anuncia no plano inicial do beijo e separação da filha adolescente e namorado, instalasse e ganha singularidade estética cinematográfica quando se abre a roturas na racionalidade narrativa, se liberta e abre à errância e falência dos personagens num mundo em perda, mas que ainda assim sobrevivem e, talvez, venham a ganhar novas possibilidades de vida.

Dia 2

Cião Cião, filme de Song Chuan

Competição Internacional

Ficção, 2017, 83, DCP

Argumento: Song Chuan

Fotografia: Li Xuejun

Som: Gao Yuan

Montagem: Jean-Marie Lengellé, Song Chuan

Com: Liang Xueqin, Zhang Yu, Hong Chang

Produtor: Guillaume de la Boulaye

Produção: Zorba Production

Países: França, China

Verde, vermelho, castanho, dourado, é impossível ficar-se indiferente à beleza formal deste drama, à la Tennessee Wiliams, que se joga na força plástica entre a grande escala e beleza imensa das montanhas, céus  e vales da terra mãe, e os planos aproximados aos corpos e grandes planos do rosto da sensual e bela protagonista.

Mas é a vida de homens e mulheres, novos e velhos, neste tempo contemporâneo, que o filme partilha e constrói com cada um na experiência emocional de cada projecção.

Cião Cião, fala-nos do desejo de mundo, da visão da liberdade e possibilidades em aberto que cidade oferece nos sonhos e vontade dos jovens adultos a viver numa aldeia no interior da grande China. E também do receio dos mais velhos por este deslumbramento por um mundo onde, como afirma a mãe da protagonista logo num diálogo inicial, — um mundo onde tudo o que conta é o dinheiro.

A tensão entre o antigo e o moderno, o ancestral e a vanguarda, é vivido nas dinâmicas da construção social do real na aldeia, onde a imagem perante o outro, a tradição e a hierarquia, são as forças nucleares que laçam e seguram uma cultura milenar onde os filhos devem respeito aos pais. Ter presente esse tempo que chegará, em que a sua função social é a de cuidadores, aqueles que zelam para que uma velhice tranquila, serena, em paz, seja vivida por aqueles que os antecederam.

A aldeia não está isolada do mundo, as redes de satélite asseguram o sinal de antena nos telemóveis, e nos diferentes ecrãs fixos ou móveis, como resistir à pulsão do desejo, à liberdade e anonimato dos corpos que a grande cidade oferece, é isso possível? E no grande vale o comboio aproxima e afasta o distante.

O filme começa com Cião Cião a protagonista, jovem mulher moderna que está a chegar a casa dos pais vinda da grande metrópole de Cantão. Faz-se acompanhar pela sua mala e sapatos Louis Vuitton e lenço Hermès. A sua presença agita  o quotidiano da pequena comunidade onde pouco acontece; os homens jovens jogam , bebem, e frequentam mulheres que vendem sexo. As mulheres asseguram que os homens se mantenham nos afazeres que dão estabilidade às rotinas do quotidiano

Cião Cião, deseja voltar à cidade, os seus pais têm um plano diferente: o casamento com o filho de um homem rico que mantém relações de negócio. Na deslumbrante paisagem rural chinesa os rostos e os corpos dá-nos a interioridade da vida. O desejo e a contenção, os códigos  sociais de um mundo onde sangue, honra, hierarquia, não são conceitos vagos mas práticas que facilmente podem conduzir ao abismo da morte. De notar a banda sonora coadjuvante para esta mistura de corpos, paisagem, desejo, transgressão e convenção, neste filme que se aproxima do perfeito, onde o fora de campo tem uma presença permanente, nesta fala no contemporâneo que opõe os desejos de duas Chinas; a rural e a urbana.

9 Mai 2017

A grande invenção

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iego Moraes, nascido em 1982 em Manaus (onde ainda vive), publicou 4 livros, dois em Portugal e dois no Brasil: A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013), ambos pela editora Barteblee; Um bar fecha dentro da gente (2015) e Dentro do meu peito você pode cultivar a solidão o ano inteiro (2017) ambos pela Douda Correria. E é este último que será pretexto para falarmos do autor. O livro divide-se em duas partes: contos e poemas. Mas vamos tratar como se tudo fosse poesia. Porque talvez tudo seja poesia. Aliás, é o próprio autor que, no texto que faz parte dos contos, ao descrever uma curta história, termina deste modo o seu conto: “Ela apertou a minha mão e fez um pedido: ‘já que você não quer ficar comigo, promete uma coisa? Escreve um poema ou um conto bem bonito para mim?’ ela entrou no táxi. Deu um tchauzinho triste e respondi para meus demónios mais líricos: ‘já virou poesia’.” Aquilo que virou poesia foi o conto.

O filósofo colombiano, Danilo Cruz Vélez, escreve em El Mistério del Languaje (Universidad de Los Andes, 2015), que Paul Valery disse que “a poesia é o paraíso da linguagem”, provavelmente porque ela tem à sua disposição todas as possibilidades, à imagem do que acontecia com Adão antes da queda. Pois, digo eu, antes da queda tudo era possível, antes de nos cair em cima o que temos de ser, aquilo que temos de fazer. É quando aquela célebre pergunta da infância “o que queremos ser quando formos grandes?” se torna uma resposta sem volta, que deixamos o paraíso. E a poesia é antes disso. A poesia é o que acontece antes de sermos alguma coisa, antes de fecharmos as possibilidades numa definição que carregamos ao longo da vida e que iremos responder sempre que nos perguntarem “o que é que faz na vida?”. Mesmo quando já se é alguma coisa, e não possibilidade pura, liberdade antes da liberdade – pois esta define-se precisamente por ser sempre o ter de escolher –, a poesia quando aparece é uma suspensão naquilo que se é. Por conseguinte, a palavra que talvez melhor dê a mão à palavra poesia seja “invenção”. A poesia inventa tudo. E, como Fernando Pessoa viu muito bem, inventa até o sentimento que não tem. A poesia só não inventa a linguagem, o resto inventa tudo. A poesia é a expressão de linguagem que mais inventa dentro da própria linguagem. Não se trata somente da invenção de conteúdos, mas também da invenção da gramática. Aqui e ali, inventa também novas palavras. A poesia chega mesmo a inventar-se a si própria, a inventar aquilo que é. Chega a ser prosa, a ser diálogo, teatro, aforismo; chega mesmo a ser o que não é, porque também há poesia que, embora pareça ser, não é. O paraíso – não ser nada ainda e poder vir a ser tudo – não comporta definições. A poesia viaja facilmente entre a metafísica e o mercado da ribeira (neste caso, entre a metafísica e os arrabaldes de Manaus), entre a ironia e a edificação religiosa. O paraíso não tem tempo. É invenção pura, ainda que tenha lá um homem e uma mulher e isso esteja condenado a, mais cedo ou mais tarde, não dar certo. Inventar, na poesia, não é escrever o que não existe, o que nunca foi, mas o que nos sufoca de tal modo que, mesmo que não seja a nós que nos acontece, acaba por acontecer cá dentro, num espaço sem tempo, no paraíso que todos temos, que todos somos quando inventamos.

E esta noção de invenção é, parece-me, uma das condições fundamentais na escrita de Moraes. Neste poeta, a vida e a escrita confundem-se propositadamente, isto é, o autor deixa o leitor próximo da sua vida, devido a um tom ostensivamente confessional, para ao mesmo tempo inventar melhor aquilo que é, aquilo que foi e aquilo que será. Ele mesmo escreve no conto “Buraco”: “Não gosto de escrever coisas verdadeiras. Sinto-me jornalista. Escritor é escritor que inventa coisas.”

Os factos, como sendo da sua vida ou do que ele descreve como sendo da vida dos outros, importam na medida em que são um jogo intencional, como no texto “11 de Setembro”, em que o narrador fala da Dona Lígia, de quando ele era mais jovem e do reencontro de ambos 15 anos depois. Mas muitos outros exemplos poderiam ser aqui citados. O que mais importa nesta escrita, de Diego Moraes, não é a possibilidade de rastrear uma biografia, mas a de deixar-se levar pela invenção. A de podermos ser o que não somos, porque, na realidade, ninguém é o que é. Acima de tudo é isto que o autor nos diz, ao ir-se desfazendo página a página. E esta condição de deslocamento de cada um em relação a si próprio – ou porque anos atrás deixou de fazer o que queria ter feito, ou porque mesmo agora não é aquilo que julga ser, ou porque falha continuamente no que tinha prometido a si mesmo e aos outros fazer – é o que mais aparece a cada esquina da escrita de Moraes. A humanidade, descrita ao longo das páginas, bem poderia definir-se pela última frase do conto “11 de Setembro”: “Um cheiro meio brega de perfume barato e esperança.” Porque em comparação com um vida humana, com o que uma vida humana deveria ser, com o património de sonhos que carrega, tudo é barato. Nada é tão luxuoso, tão caro como uma vida humana. É este ensinamento que percorre a escrita de Moraes. E o maior problema não é a vida acabar-se, a vida de cada um perder-se, mas que a alegria se acabe e continuemos a viver; que a amizade acabe e continuemos a viver, que o amor acabe e continuemos a viver, que as madrugadas belas de tudo parecer ser possível acabem e continuemos a viver, que o querer bem a alguém se acabe. E que melhor modo de enunciar tudo isto, que uma grande invenção, como se, todos nós de cada vez que lemos, ainda cheirássemos a paraíso? Terminemos com um poema de Diego Moraes, 14, que diz melhor tudo isto, como só a beleza pode fazê-lo:

Sinto muito ter invadido sua casa

Estava bêbado e amanhecido e com aquela camiseta preta

da banda Joy Division que odeia tanto

Desespero

Saudade

Sinto muito por ter comido sua melhor amiga

e estragado o dia dos namorados no rio de janeiro

Sinto muito por ter quebrado os dentes e abandoná-la naquele hotel do centro

Aqui dentro está tão frio

Não para de ventar e uivar teu nome

Sinto muito por não ter comprado os azulejos
e a pia do banheiro

Por ter gastado tudo com drogas e cancelado o sonho

de morarmos juntos nos fundos da casa da minha mãe

Às vezes acordo e choro pensando como poderia
ter sido bom

Sinto muito por ter gozado dentro naquele sábado

que dormimos abraçados vendo um filme do van damme

e você disse “um filho agora foderia tudo, di”

E sua menstruação atrasou como o brilho da lua

Juro que queria ter um filho contigo

Um filho negro com nome bíblico

Que jogasse futebol e fosse artilheiro do Vasco da Gama

Sinto muito por não ter dinheiro
para levá-la para Florianópolis

Cidade que só conhece por cartão-postal

Sinto muito por teu pai ter me visto com o nariz sujo de pó

no estofado da sala e não ter falado nada

quando ele disse que o amor não enche barriga

Devia ter dito que o amor escreveu os melhores livros

e que ainda existe mundo por causa da brasa

que nos esquenta por dentro

Sinto muito por não ter comprado “crime e castigo”

na saraiva e empurrado sua cabeça por ciúmes

Aqui dentro está tão frio

As ruas de Manaus parecem de Moscou

Agora deixo mensagens no teu Samsung como se fosse

Nostradamus prevendo o pior

A tua indiferença seca os tumores no fígado do mendigo

do outro lado da rua e não tem poema que console a dor

de tê-la trocado por cerveja e cocaína

Sinto muito não ser o melhor pra você e seus filhos

Ele deve ser um homem digno que acorda cedo

e te leva para o trabalho falando sobre jurisprudência

e direitos do consumidor

O direito não pesa na balança

O que pesa é teu rancor por eu não ser o que sonhavas

Minhas promessas não cumpridas

Eu nunca poderia te fazer feliz com a minha literatura suja

e meu sonho de vencer o mundo com lirismo

Sinto muito por não ter emagrecido e me matriculado no
CCAA

Nunca quis falar inglês

A minha língua é morta como as cartas
que a tua empregada jogou fora

Aqui dentro está tão frio

Meu peito parece a Antártida e tudo que mais queria era

que você botasse um par de patins e patinasse em mim

sorrindo como se fosse uma criança no natal.

9 Mai 2017

Da desmesurada importância dada à informação

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvi há pouco tempo, para a Revista Ler, um ensaio sobre livros de auto-ajuda. Como em qualquer texto que se escreve, subsiste quase sempre a sensação de que o mais importante se perdeu de alguma forma, de que por inabilidade técnica ou defeito de óptica o ponto arquimédico do texto ficou de fora deste, tornando o resultado da escrita um exercício de malabarismo desapoiado e destinado a tornar-se ruína sem nunca chegar a ter sido edifício.

No caso em apreço, sinto que fiquei aquém na exposição de um conceito fundamental para compreender como os “manuais da vida” entraram de forma tão decisiva e transversal na vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Falo do conceito de informação. A fé que temos actualmente na informação radica, por um lado, no facto de esta ser um pilar das sociedades democráticas como actualmente as concebemos. Sem os meios de informação que temos a nosso dispor, a democracia não sobreviveria. Os vários escândalos, ao longo da história e um pouco por todo o lado, pelo quais se fecham e abrem ciclos políticos, mostram-nos isso de forma muito clara. Por outra parte, dá-se à informação um papel preponderante na transmissão de uma imagem do mundo e na perpetuação de uma ideia – ainda que difusa – da “cultura ocidental”. Estes dois aspectos, que em muitas ocasiões se sobrepõem, fazem com que tenhamos uma ideia altamente inflacionada do papel e dos poderes da informação.

A informação tem, por definição, um carácter neutro. Enquadra os factos, explica-os, mas escusa-se a tomar partido. É tendencialmente imparcial. Por isso, a mesma notícia, para diferentes pessoas – já para não falar em diferentes povos – espoleta diferentes reacções. A relação que cada sujeito estabelece com os factos que tem a seu dispor radica em mecanismos que ultrapassam largamente o âmbito deste texto. O mundo não é “tudo quanto é o facto”, como sustinha o Wittgenstein do Tratactus. O mundo é a forma como o sujeito se relaciona com tudo quanto há. Porque o facto corresponde à objectividade e o sujeito, passe o pleonasmo evidente, tem como forma de acontecimento fundamental a subjectividade.

Vemos isso claramente nas mais diversas escolhas que fazemos ao longo da nossa vida. Os maços de cigarros têm escrito “Fumar mata”, por exemplo. Alguém ficou surpreendido com a notícia que as embalagens veiculam? Alguém terá deixado de fumar por causa desse aforismo absolutamente anónimo inscrito em formato lápide? Estou em crer que não, e o facto de a informação escrita estar a ser substituídas por imagens – mais ou menos asquerosas, mais ou menos ridículas – parece suportar essa evidência. No livro “A Morte de Ivan Illitch”, o protagonista diz, a certa altura, lembrar-se de um silogismo lógico aprendido na escola “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Caio, que até então sempre fora uma entidade abstracta e destituída de qualquer poder, malgrado o alcance aparentemente universal do silogismo, torna-se, para um Ivan Illitch moribundo, um espelho, onde Caio é doravante um reflexo do malogrado Ivan Illitch. A mesma informação, em tempos radicalmente diferentes, tem efeitos radicalmente diversos.

Com os livros de auto-ajuda, laboramos no mesmo erro: o de atribuir à informação uma propriedade que ela não tem, a de ser uma espécie de toque de Midas pela qual o sujeito, em contacto com ela, muda. Não funciona assim e, por um lado, ainda bem, porque acaso a informação fosse de facto alguma coisa de semelhante a código de programação capaz de nos transformar por sermos expostos a ela, qualquer sujeito poderia ser reprogramado para qualquer efeito.

Na Grécia antiga, lugar do primeiro pensamento sistematizado sobre a natureza e forma de “uma vida boa”, a informação era apenas uma forma de veicular o pensamento e não, de todo, a componente fundamental de um programa – muito mais vasto e ambicioso – de reeducação do ponto de vista natural. Os epicuristas propunham, aliás, pouquíssimas orientações axiológicas mas muito treino. Não bastava ler um livro para um sujeito se tornar epicurista. Era preciso treinar. Praticar o epicurismo. Tornar-se epicurista era frequentar a escola de Epicuro, viver à maneira de Epicuro e morrer como Epicuro.

O que um livro de auto-ajuda propõe, pelo contrário, é uma solução rápida baseada na ilusão de que as fórmulas podem agir no sujeito como as rotinas informáticas agem nas máquinas. E isto equivale a alguém pretender conseguir ensinar karaté por meio de um livro. Não é assim que funciona. E mais cedo ou mais tarde, percebemos isso.

8 Mai 2017

Pedro Alexandrino da Cunha na Ilha Terceira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Junta Provisória do Porto, que tinha criado um governo revolucionário contra o regresso à monarquia absolutista instaurada em Março por D. Miguel, declarara em 18 de Maio de 1828 lealdade a D. Pedro, à sua filha D. Maria II e à Carta Constitucional, outorgada a 29 de Abril de 1826. O autoproclamado Rei D. Miguel conseguiu o desmancho da Junta e reprimir essas rebeliões liberais, que se tinham estendido a outras cidades e alastravam pelo país numa guerra civil, levando à prisão milhares de liberais, muitos condenados à morte, tendo outros escapado para Espanha e Inglaterra. “A instauração miguelista não ocorre sem reacções de vulto ao nível de personalidades e de dados estratos sociais urbanos (Belfastada, 1828), que se traduziu pela primeira grande vaga de expatriamento político”, segundo Joel Serrão. O decidido partidário das doutrinas liberais Pedro Alexandrino da Cunha foi para Inglaterra a bordo do Paquete.

No Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor de 1851 lê-se, “A emigração apresentava-se com o sombrio carácter de larga duração era portanto necessário manter a Ilha Terceira para que seguros pudessem os emigrados nela recolher-se, e com estas vistas saiu de Inglaterra a Fragata brasileira Isabel, que em fins de Setembro de 1828 deitou na referida Ilha a primeira porção de Oficiais, entre os quais se contava o Sr. Pedro Alexandrino. Apenas desembarcado passou a ser incumbido da reparação das baterias e fortificações do Castelo de S. João Baptista do Monte Brasil, emprego a que a respectiva Junta Provisória juntou depois as funções de Director de uma Imprensa, que ele próprio montou, e pôs em acção; Imprensa que o Marquês de Palmela para ali mandara para as Publicações Oficiais do Governo”.

A 29 de Março de 1829, os exilados liberais desembarcaram na Ilha Terceira e venceram os miguelistas na Batalha da Praia, sendo no ano seguinte aí constituído o Conselho da Regência Liberal, presidido pelo marquês de Palmela.

“A Regência da Terceira abalançara-se à temerária empresa da expedição às Ilhas de Oeste, muito dificultada pela extrema necessidade que havia de Oficiais de Marinha. Foi então que a aptidão, que para tudo se tinha sempre encontrado no Sr. Pedro Alexandrino, e a regularidade dos seus estudos, o fizeram lembrado a um seu íntimo e particular amigo, que junto da Regência servia na qualidade de seu Secretário. As repetidas instâncias que este alto Empregado em nome do Governo lhe fez, reunidas aos rogos e empenhos de amizade, que também lhe apresentara e sobre tudo a sua natural dedicação ao serviço do país, puderam finalmente vencer a repugnância que mostrara em passar do exército de terra para a força do mar, passagem que desinteressadamente aceitou no Posto de Segundo Tenente que se lhe conferiu por Decreto de 25 de Fevereiro de 1831, mais pela ideia de servir a causa constitucional, que abraçara, e de ser útil à pátria, cujo amor ninguém nutria com intenções mais puras, nem no mais alto grau possuía, do que por motivo de engrandecimento próprio, ou de preterir qualquer dos Oficiais da Armada, como tão injustamente alguém tem pensado, e bem claramente se mostra ainda hoje pelo pequeno Posto que se lhe concedera”, segundo o Boletim do Governo de 1851.

Rápida promoção na carreira

Em 7 de Abril de 1831, o Imperador D. Pedro I abdicou da coroa do Brasil em favor do seu filho D. Pedro II, na altura com cinco anos e veio para a Europa, a fim de assumir a regência de Portugal em nome de sua filha D. Maria II, então com treze anos. Aportando em Inglaterra, apesar de não ser muito bem recebido pelos liberais mais radicais, organizou uma expedição militar destinada a desembarcar em Portugal e dirigiu-se para os Açores, onde no exílio se encontrava o governo liberal.

A esquadra liberal com cinquenta navios e oito mil homens partia da Ilha Terceira a 27 Junho de 1832 e para apanhar desprevenidas as forças miguelistas desembarcou um pouco a Norte do Porto, na Praia do Mindelo a 8 de Julho. Quinze dias depois, a 23, os miguelistas cercaram o Porto.

Em Julho de 1832 foi Pedro Alexandrino da Cunha “mandado servir a bordo do Brigue Conde de Vila Flor, donde em 4 de Setembro desembarcou para tomar o comando interino da Corveta Vila da Praia, fundeada no Rio Douro, achando-se já neste tempo na patente de Primeiro-Tenente, a que fora promovido por Decreto de 28 de Agosto do mesmo ano 1832. Em 25 de Outubro seguinte foi no Porto mandado servir às ordens do Ministro da Marinha, donde passou a Comandante Geral das praças de marinhagem, destacadas nas diversas baterias daquela Cidade, tornando a ser depois nomeado para servir às ordens do Ministro da Marinha, em 28 de Fevereiro de 1833. Em 18 de Julho deste mesmo ano passou a comandar a Charrua Maia Cardoso, que D. Miguel armara em Fragata, e que por essa causa foi apresada pela Esquadra Libertadora na famosa acção naval de 5 de Julho, tendo cruzado com ela na costa do Algarve, veio a entrar em Lisboa três dias depois da morte de sua mãe, que falecera de um fulminante ataque de cólera-morbus. Em Outubro de 1833 foi de guarnição para a Fragata D. Pedro, que de Lisboa saiu para Inglaterra”, levando “informações ao Capitão Elliot sobre os sucessos do movimento liberal em Portugal. De regresso ao reino participou na tomada de algumas cidades”, segundo o referido no livro Os Governadores de Macau, da Editora Livros do Oriente. E voltando ao Boletim do Governo de 1851, “Na sua volta se conservou sobre a Costa de Portugal para cooperar na tomada de Caminha, Viana, Praça de Valença e Figueira. A bordo desta Fragata tornou a sair para o bloqueio da Madeira, onde fora encarregado do governo da Fortaleza do Pico, e regressando a Lisboa em Agosto de 1834, foi por Decreto de 22 de Outubro deste mesmo ano promovido a Capitão Tenente com a antiguidade de 5 de Julho do ano anterior”. [De salientar que D. Miguel fora derrotado no regresso a Lisboa, após perder a esperança de conquistar o Porto e a paz foi declarada em Maio de 1834, sendo D. Miguel expulso de Portugal, restaurando D. Pedro a Carta Constitucional.]

Pedro Alexandrino tornou a Inglaterra “em Janeiro de 1835 para se unir às forças que se mandaram pôr às ordens do Príncipe D. Augusto, primeiro Esposo de Sua Majestade, e de lá voltou acompanhando o Vapor Monarch, que para este Reino transportou o referido Príncipe [D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha, que em 1835 casou com a Rainha D. Maria II]. Como imediato ao Comandante da Fragata Duquesa de Bragança seguiu nela viagem para o Mediterrâneo, tocando nos diversos portos da Espanha até à Costa da Itália onde cruzou por algum tempo com o fim especial de vigiar e prevenir quaisquer intentos hostis, que contra Portugal houvesse por parte de D. Miguel, e tendo estado em Spezia e Liorne, novamente regressou ao Reino. Por este tempo o Governo o encarregou de várias comissões, sendo uma delas a de visitar e examinar os diferentes Arsenais de Inglaterra. Comandando a Corveta D. Isabel Maria, de Lisboa saiu a 9 de Dezembro de 1836, dirigindo-se às Ilhas de Cabo Verde”, segundo o que refere sobre a vida de Pedro Alexandrino da Cunha o Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor de 1851.

5 Mai 2017

Karadeniz (continuação): “Cheguei a ter de matar para não morrer”

2. O terraço

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] luz ao fim da tarde. O palácio Topkapi, a mesquita Suleyman e Hagia Sofia do outro lado do Corno de Ouro e, muito mais perto de nós, a torre de Gálata: tudo isto se avistava do enorme terraço da casa de Karadeniz. Podia-se ainda ver os inícios do mar de Mármara e do Bósforo. Mais do que uma paisagem esmagadora, era um lugar estratégico por excelência. Estratégico desde os remotos tempos do início desta cidade, então Bizantina. O som que se podia ouvir em todo o terraço era o de John Coltrane e a cor do líquido no copo que trazia na mão denunciava o seu whisky preferido: Lagavulin 21 anos; uma cor e um sabor tão raros, somente igualados pela raridade com que se encontra esse precioso líquido.

Isto não é uma casa, K., é o ponto da cidade mais estratégico a seguir à torre de Gálata! Este observatório teve a ver com a sua antiga profissão?

De facto, já tenho esta casa desde os tempos em que trabalhava! Comprei-a em 1964… Mas comprei-a realmente pela vista fantástica e não pela localização estratégica. Aliás, a estratégia foi tê-la comprado (risos).

Alguma vez o tentaram matar?

Várias vezes! Não matei só em trabalho, cheguei a ter de matar para não morrer. Embora as tentativas que fizeram para me matar tivessem que ver com a minha profissão.

Tentaram matá-lo como e onde?

Sempre no estrangeiro! Nunca se aventuravam a entrar na Turquia, nesses tempos. O país era muito militarizado e controlava muitíssimo bem as suas fronteiras. E também não havia necessidade de vir aqui, porque quando me tentavam matar sabiam qual o trabalho e onde o ia executar. Por isso, era mais fácil fazê-lo aí. Tentaram umas duas ou três vezes nos hotéis onde estava, a tiro, e uma vez com uma bomba no local onde previamente seria suposto eu estar para atirar no alvo a eliminar. A da bomba, só não me matou, porque alguém da KGB me informou a tempo.

Um amigo de profissão?

Antes de mais, Paulo, nesta profissão não se faz amigos, só inimigos. No fundo, não é muito diferente do que é na vida em geral, quando se é bom no que se faz. Não se faz amigos, mas ganha-se respeito. E isso sim, o Boris Solomatin já tinha por mim muito respeito quando interferiu para sempre na minha vida.

Estamos a falar de quem?

Tu não sabes mesmo nada, pois não? (risos) Estamos a falar do extraordinário Boris Solomatin. Um senhor da minha idade e que se reformou em 1991. Foi chefe da KGB até 1988. Foi militar na Segunda Guerra Mundial, voluntário e muito jovem, ainda não tinha 18 anos, segundo consta, mas depois nos Serviços de Inteligência nunca chegou a executar trabalhos de eliminação. Nunca foi um operacional. Ainda no meu tempo, chegou a chefe da KGB, com quarenta e poucos anos, um feito inigualável. Impressionante, não é?

Sem dúvida! Como é que se conheceram e porque é que ele lhe salvou a vida?

Em finais de 50, houve um espião cujo nome não me lembro que tentou escapar para o ocidente com valiosíssimas informações dos sistemas de segurança militar soviético. O objectivo dele era chegar a contactar com as forças da NATO, estacionárias no Mar Negro, nas águas territoriais turcas, de modo a receber uma grande soma de dinheiro e uma identidade nova. Em suma, mudar de vida, privilegiadamente, à custa do que conseguira saber na KGB. Esse senhor dissidente encontrava-se numa casa perto da cidade de Burgas, na Bulgária. Uma cidade do Mar Negro, muito perto da fronteira turca. Nesse tempo, ficava a uma hora e meia de carro da fronteira, hoje não deve ser mais de meia-hora. Quando Boris Solomatin soube da traição, já não havia tempo de lá chegar, senão pela Turquia. Não podia arriscar nos Serviços de Inteligência da Bulgária, pois não sabia até que ponto eles podiam ou não estar envolvidos ou quem é que estava envolvido. Havia apenas uma hipótese de destruição das informações e de eliminação do dissidente: alguém que viesse directamente da Turquia, sem levantar suspeita, isto é, um turco; simultaneamente, um profissional, que estivesse interessado no dinheiro e em mais nada. Como acabei por executar o trabalho na perfeição, não deixando sequer rastos de ter sido a KGB e destruindo tudo, pegando fogo à casa onde o homem se encontrava, ficou até a pensar-se que poderia ter sido a CIA, Solomatin ficou-me bastante grato. Em 1964, quando tudo isto se passou, ele já era chefe da KGB. Ele admirava dois tipos de pessoas: as que morriam pelo seu país e as que morriam por dinheiro; no fundo, ele admirava quem dizia a verdade e morria pelo que acreditava.

Chegou a fazer mais algum trabalho para ele?

Vamos a ver uma coisa: este trabalho que fiz foi um trabalho pessoal, embora tenha tido reflexos em toda a defesa soviética, foi um trabalho para o Solomatin; um trabalho para ele. Mas antes já havia feito um trabalho para a KGB. Depois, acabou! Como já te disse, eles não repetem os free lancers, pelo menos nesse tempo da guerra-fria não repetiam. O Solomatin acabou por me contactar porque não tinha outra saída, não havia tempo para mais nada.

(continua)

5 Mai 2017

O mocassin servia a Cinderela? 水晶鞋与男人花

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s versões francesa e alemã da história de Phyllis a montar o grande Aristóteles remontam ao séc. XIII, mas foi a versão em latim de John Herold – séc. XIV- que a celebrizou. Herold foi um monge dominicano que costumava coleccionar histórias para usar nos seus sermões como exemplos. De acordo com a sua versão, Aristóteles tinha avisado o seu discípulo Alexandre Magno para evitar contactos íntimos com a sua mulher Phyllis. Em vez disso, Alexandre deveria concentrar-se no estudo da Filosofia. Phyllis ficou muito perturbada por se sentir ignorada pelo marido. Ficou ainda mais zangada com Aristóteles e com as “orientações” do “velho sábio”.  Para se vingar, Phyllis começou a namoriscar o Filósofo e conseguiu seduzi-lo ao ponto de um dia o ter montado como a um cavalo, enquanto Alexandre os observava escondido atrás de uma porta. A cultura ocidental está inundada de histórias que revelam o medo da Mulher. Esse medo produziu inúmeros e inesquecíveis ícones femininos, revisitados incessantemente pela Arte e pela Poesia, como Eva, Dalila, Salomé, Medeia, entre muitas outras. As imagens destas mulheres resultam do “olhar masculino”, e Phyllis acabou por ser representada nua. A exigência do mercado de uma imagética profusa foi um motivo determinante para a repetição do tema, se não da ideologia.      

A série de fotografias experimentais da artista chinesa Pixy Yijun Liao, intitulada “Relações Experimentais”, acompanha a sua relação sentimental com o namorado japonês, cinco anos mais novo do que ela. Liao levou algum tempo a acostumar-se à ideia. A maior parte das mulheres chinesas cresce com certos pensamentos 1. Devem casar. 2. Devem casar com um homem mais velho, mais sensato e mais maduro, que as possa proteger e ser o seu guia. “Marido”, no chinês moderno e popular, escreve-se先生,que quer dizer “aquele que nasceu antes de mim”, “mestre”.  Depois de pesquisar uns sites chineses de encontros, deparei-me com umas instruções super aborrecidas sobre como encontrar um marido de elite.  Uma mulher de carreira com uma certa idade 剩女, é, não só um rótulo, como contém um estigma social e pode ser usado como um insulto.

Phyllis não foi a inspiração de Liao, tenho a certeza disso. Relações Experimentais subverte as expectativas do género e os papéis de poder no seu próprio contexto social, o que é muito significativo. Em poses estudadas, come papaia que colocou em cima do corpo nu do namorado, ou, completamente vestida, torce-lhe o mamilo, enquanto ele tem apenas vestidas umas cuecas. Também aparece montada às suas cavalitas, como uma criança nos ombros do pai. Fotografa-o a usar um vestido e ainda como um pedaço de sushi humano… A fotografia é uma arte visual e, para mim, o que importa é o visual. Será que a fotógrafa quis afirmar um “olhar feminino heterossexual”? Terá sido bem-sucedida?

PS: Ao pesquisar a história de Phyllis, deparei-me com uns posters feitos no início do séc. XX pela Donaldson Lithography Company, para serem usados por hipnotizadores e artistas de teatro nos seus espectáculos.

4 Mai 2017

Uma ética para naúfragos

30/04/17

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]deias que valem ouro, que quebram o ciclo do mimetismo, do qual estamos reféns. Como a que sustenta o plot do filme Arrival, de Denis Villeneuve, o mais interessante filme de ficção cientifica da última década: a soma que não dá resto zero.

Tentemos explicá-la. Comecemos por definir que um jogador de somas a zero é alguém comprometido até ao tutano com a tese maniqueísta de que em todas as situações da vida só há duas possibilidades: ganhar ou perder, não existindo uma terceira hipótese.

Na maior parte dos desportos é assim e a dinâmica político-militar da história do mundo pautou-se pelas somas a zero. Até Hiroshima, a guerra era um jogo de somas a zero, pois o estado que perdia cedia territórios ou ficava sob tutela, sujeito à “ganância” do vencedor.

A ameaça nuclear mudou tudo, é um jogo em que todos perdem. E toda a diplomacia democrática valida o princípio de que vale a pena fazer concessões, (o que um jogador de somas a zero consideraria uma derrota) – estabelecem-se assim compromissos estáveis, em vez de soluções insidiosas e finais.

Ao tentar uma ilustração do conceito da soma que não dá zeros (explicitamente referido num diálogo) o filme é pertinentíssimo na actual contingência político-militar.

Uma pequena sinopse: uma frota de discos voadores chega à terra, posiciona-se em lugares estratégicos do planeta – mas por que não agem? Por todo o lado se procuram intérpretes, cada potência reage da sua maneira. O filme segue o que se passa do lado americano. E aí, à beira de ser ordenada a nível global uma agressão aos alienígenas, os dois cientistas lá decifram a linguagem e as intenções daqueles.

Os alienígenas afinal só trazem uma mensagem. Propõem uma ética para náufragos: a humanidade só sobreviverá se romper com a lógica da soma a zero e os homens interiorizarem, a) só unidos produzirão vantagens, b) só pela generosidade o conhecimento se esclarece. Dizem os alienígenas com as mãos em forma de estrela: abandonar o orgulho da força e de se «querer ter mais razão» é a via, só pelo «impoder» nos salvamos.   

Sem ser militante de nada, não me parece uma má ideia.

01/05/17

Para que serve afinal a arte? Recordemos Bruno Munari, o que ele contava sobre o comportamento das limalhas de ferro quando sensibilizadas por uma vibração sonora:

«Use-se uma chapa de zinco quadrada, com cerca de trinta centímetros de lado, com limalha de ferro espalhada na superfície, passe-se um arco de violino contra um dos lados da chapa, como se se tocasse violino (em lugar de passar o arco nas cordas passa-se num dos lados da chapa) e veremos que a limalha de ferro se disporá em desenhos geométricos provocados pelas vibrações sonoras. A própria matéria da textura forma imagens adensando-se ou deixando mais a descoberta o que nós consideramos o fundo».

Espantosa esta propensão da matéria se organizar em padrões anti-entrópicos se sensibilizada por uma vibração sonora. O caos foi irradiado por um sentido.

Mais espantoso ainda que a matéria inanimada se auto-organize em padrões se estimulada por uma onda sonora não aleatória é que os homens de comum não dediquem atenção ao facto de que uma especial arrumações das palavras, como na poesia, que um particular ângulo de luz numa fotografia, ou a combinação feliz de duas cores na composição de um quadro que pulsa à nossa frente, possam despertar em nós níveis diferentes da realidade e uma lente nova para a leitura do mundo, fazendo com que a nossa percepção realize uma dobra.

Portanto, respondendo à pergunta de para que é que serve a arte, penso que servirá para afastar de nós a ideia do desencanto do mundo.

Ideia que Calasso corrobora: «O mundo – já é o momento de dizê-lo – ainda que seja do desagrado de muita gente – não tem a menor intenção de desencantar-se de todo, ainda que só o fosse porque, se o fizesse, cairia num extremo aborrecimento.».

Talvez e unicamente para lutarem contra o seu próprio aborrecimento, dão-nos o universo e a natureza a melhor das razões para sermos optimistas: o universo não era obrigado a ser belo e no entanto é-o. Sim, a beleza do mundo constitui mais um enigma. Um enigma que, a avaliar pelo que acontece com os fósseis, nos é favorável: a espiral nos fósseis dos búzios foi-se aperfeiçoando de era para era, o que confirma que as mulheres, no futuro, serão ainda mais bonitas.

Entretanto, não nos iludamos, apreender o belo depende do gosto, que consideramos kantianamente como a faculdade de julgar desinteressadamente um objecto ou uma representação mediante um prazer ou uma repulsa. E o gosto  adquire-se, não é um dado imediato à consciência face ao qual se reaja. Para que se entenda o que aqui se joga lembro uma história deliciosa do Picasso.

Certa vez um soldado olhou pela montra a vernissage de uma exposição de Picasso e pensou, Que bodega, vou já denunciar este gajo. E acotovelou convidados dentro, até encontrar o pintor, com a sua boina basca e o seu copito de vinho. E interpelou o pintor, Você é uma farsa, por que pinta as pessoas de frente e de perfil ao mesmo tempo, as pessoas não são assim?

O Picasso, impassível, replicou, Você tem noiva,

Tenho sim, respondeu o soldado, com muito orgulho!

Tem uma fotografia dela?

O soldado tirou da carteira uma fotografia da rapariga e mostrou-a, ufano.

Picasso olhou fixamente a fotografia, fingiu um assomo de espanto e observou:

É muito bonita… pena é ser tão pequenina!

Ou seja, o que pensamos em geral da arte e da vida depende em grande parte da convenção, dos códigos que aprendemos como particulares à sua linguagem – mas temos de os adquirir, reconhecer e aceitá-los.

O mundo não está desencantado, mas temos de aprender a reconhecê-lo.

4 Mai 2017

Leitta para a Universidade dos Andes – acerca do riso e do livro La Enfermidad Feliz

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Do Sentimento Trágico da Vida, Miguel de Unamumo escreve, logo nas primeiras páginas: “O homem, dizem, é um animal racional. Não sei porque não se diz que é um animal afectivo ou sentimental. Pois talvez o que nos diference dos outros animais seja muito mais o sentimento do que a razão. Já vi mais vezes um gato a raciocinar do que a rir ou a chorar. Talvez chore ou ria para dentro, mas para dentro talvez também o caranguejo resolva equações de segundo grau.” Estamos perante um definição de humano através do sentimento. Mas não é de um sentimento ou de sentimentos quaisquer que Unamuno fala. Pois ele não teria dificuldade em admitir que os animais sofrem ou sentem alguma espécie de contentamento. Os animais têm sentimentos, sem dúvida, mas aquilo que define o humano, segundo Unamuno, são as sensações ou sentimentos limite: o riso e o choro. Independentemente, e é aqui o que menos importa, da definição de humano, tentemos reflectir acerca do riso. Talvez o choro não seja tão difícil de definir, pois embora por vezes se possa rir de alegria ou de emoção por algo ou por alguém, a maioria das vezes o choro tem origem no sofrimento mais intenso, quer seja da perda de alguém até às nossas próprias dores físicas. E, por conseguinte, talvez também não nos seja difícil atribuir choro, ou alguma forma de choro, a alguns animais em sofrimento intenso. Mas o riso é mais difícil de entender e de explicar. Dito de outro modo: o choro tem quase sempre uma causa, o riso não. Em qualquer parte do planeta, um homem com uma bala no estômago chora, mas não podemos dizer que em qualquer parte do planeta nos rimos de uma anedota ou de um comentário engraçado. Luigi Pirandello, no seu ensaio Humorismo, escreve: “(…) é inegável que cada povo tem o seu humor; o erro começa quando este humor, naturalmente mutável em suas manifestações segundo os momentos e os ambientes, é considerado como humorismo (…)” A dor é universal, ou tende à universalidade, o riso não. Aliás, qualquer um de nós sabe bem que as relações pessoais ganham muito ao desenvolverem a sua própria linguagem de riso. As chamadas “private jokes” são do que melhor acontece entre os humanos, aquilo que mais liga os humanos. Isso e a partilha de sacrifícios. E uma vez mais temos como motor das ligações humanas o riso e o choro. Mas o riso, embora possa ser universal – no sentido em que todos se riem – tende para o particular. Muita amizade nasce no riso, na partilha do riso. Por outro lado, contrariamente ao choro, não sabemos de onde nasce o riso. De onde vem essa nossa necessidade de rir.

E reparem noutra coisa interessante: raramente nos rimos sozinhos; as vezes em que o fazemos, relembramos episódios passados, vemos filmes ou peças de teatro ou assistimos a um acontecimento; e em todos estes exemplos há sempre o outro (já o filosofo francês, Henri Bergson, nos alertara para a necessidade de eco do riso, o riso é sempre o riso de um grupo). No choro, não. A maioria das vezes choramos sozinhos. Aliás, quantas vezes não nos afastamos dos outros, precisamente para chorar, para chorarmos sozinhos. A relação entre riso e choro é estranha, e não poucas vezes nos leva a ficar diante do contraditório. Por exemplo, choramos sós, rimo-nos acompanhados, mas há mais metafísica no riso do que no choro. E é aqui que iremos lembrar Henri Bergson, que contrariamente ao filósofo espanhol, com que iniciámos esta leitura, diz que o riso é inteligência pura. Para o filósofo francês, para que o riso aconteça teríamos que anestesiar momentaneamente o coração. Para se rir há que não ter coração, por instantes, apenas inteligência (ainda que haja risos que nasçam sem qualquer migalha de inteligência, como se sabe). Independentemente de concordarmos ou discordarmos desta posição de corte entre riso e emoção, por parte de Bergson, o que parece não causar dúvidas é a ligação necessária entre inteligência e riso. E não se veja aqui em inteligência uma medida do uso do cérebro, mas tão somente a capacidade de separar o que se conta (ou que assistimos) da nossa vida. A inteligência, num primeiro momento, separa. E para rir temos de separar a anedota da nossa vida. Quando nos rimos de alguém bêbado, estamos a conseguir separar o que está acontecer da vida. Não só da minha vida, como se isso não me acontecesse, mas também como se quem faz aquelas figuras não fosse uma pessoa, mas apenas um personagem. A empatia acaba com o riso. Se, ao nos rirmos de alguém que está bêbado e faz figuras caricatas, nos lembrarmos que podíamos ser nós, ou que essa pessoa tem filhos e mulher e que eles sofreriam se o vissem assim, paramos de rir.

Ainda no seu ensaio Humorismo, Luigi Pirandello escreve: “Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untados não se sabe de qual pomada horrível, e depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela velha senhora é o contrário do que uma velha e respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cómica. O cómico é precisamente um advertimento do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha senhora não sente nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor do marido, muito mais jovem do que ela, eis que já não posso mais rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me fez passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre cómico e humorístico.” Contrariamente ao que Unamuno escreveu, o riso realmente não é sentimento. O riso é muito mais uma reacção contra o sentimento do que um sentimento em si. O riso nasce da nossa consciência de sentirmos demasiado. O riso nasce da nossa necessidade de esquecimento da vida, ainda que através do humor se possa alcançar uma consciência ainda mais elevada da consciência da nossa situação no mundo. Richter escreveu que aquilo que leva ao riso é “a melancolia de um espírito superior que chega até a divertir-se com aquilo que o entristece.” Como, por exemplo, naquela célebre tira de Quino, em que um homem está perdido no deserto, diante de uma placa que diz: “Agora, você está precisamente aqui.” [“En este momento usted se encuentra exactamente aquí”.] Imediatamente nos rimos. Mas se pensarmos que essa é a nossa situação na vida, o riso vai esmorecendo, como no exemplo dado atrás por Pirandello. Pois acerca do nossa vida, que sabemos nós, além de que “agora, estamos exactamente aqui”? E é agora, com a ajuda de Quino, que passamos a falar do absurdo. E de como o absurdo está inequivocamente ligado ao riso. No livro Sobre o Riso e a Loucura, do célebre médico da Grécia Antiga, é narrada uma suposta viagem de Hipócrates à cidade de Abdera para curar o filósofo Demócrito, que, rindo de tudo e de todos, é considerado louco pela população da cidade. Demócrito, no diálogo com Hipócrates, zomba da condição humana de seu tempo, especialmente da ganância e dos grandes vícios. Condição humana que continua igual, passados quase três milénios. O que estava em causa no riso de Demócrito era o sem sentido do mundo e da existência. Esse sem sentido levava-o a viver com o único propósito de estar bem disposto. Tudo o fazia rir, porque ele sabia que tudo era nada, que tudo conduzia a nada. Para Demócrito, a existência é um absurdo. E absurdo, como a palavra mesmo diz em latim, ab surdo, é algo que não se consegue escutar. É algo que está para além do entendimento, algo que não faz sentido. Mas o absurdo não é a existência, é antes que ela exista e nós não saibamos nada acerca dela, a não ser que se nasce e que se morre. Da existência, sabemos o mesmo que o homem perdido no deserto sabe, na tira do Quino: agora, estamos precisamente aqui. Este estar vivo e não saber nem porquê e nem para quê é que fez nascer o riso. O riso é filho da ignorância e do saber. Da ignorância, porque nós realmente não sabemos o que se passa; do saber, porque é a tomada de consciência desse não saber. E é daqui que nasce o riso.

Chegados aqui, entramos na minha novela. A Doença da Felicidade é uma alegoria acerca de um dos conceitos que menos sabemos e de que mais falamos: a felicidade. Assim, e para levar a ironia, porque é de ironia que se trata, a ironia é o veículo que transporta as palavras desta novela, ao extremo, fiz da felicidade um objecto de estudo das chamadas ciências exactas, criando inclusivamente toda uma história dessa ciência, a eudaimonologia. Eudaimonologia, ciência que na novela estuda a felicidade, deriva da palavra Grega Antiga “eudaimonia”, que quer dizer, um “bom deus”, “um bom daimon”, isto é, que alguém tinha um bom deus a interceder por ele, ou simplesmente ele tinha “felicidade”. Neste contexto, crio também a palavra “eudaimonina”, que deriva de “eudaimonia” e da partícula “ina”, que no Grego Antigo é indicativo de toxicidade, como por exemplo nas palavras “caféina”, “cocaína”, “heroína” e “nicotina”.  E a eudaimonina é a substância responsável por querer ser feliz ou ser feliz. E querer ser feliz é muito pior do que ser feliz, como se pode ver no livro. Toda esta alegoria pretende alertar-nos para o absurdo da existência e para o absurdo de se traçar uma vida segundo valores que não sabemos de todo em todo o que são, o que querem dizer. Que quer dizer ser feliz? O que é ser feliz? São muitas as tentativas filosóficas ao longo do tempo, de dizer o que é a felicidade, e algumas contraditórias. E são ainda mais as tentativas burlescas, teorias de trazer por casa e pelas mesas de café, que só a rir, se pode falar disso. Só com ironia se pode falar disso. A Doença da Felicidade, além de ser um livro irónico, é um livro que nasce da noção de que o absurdo é estar vivo, não saber nada sobre a existência, ainda que se saiba como fazer uma jangada para ir à Lua, e estar continuamente a viver segundo mandamentos, regras que são tão válidas como esta, que o narrador de A Doença da Felicidade escreve às páginas 51-2: “CANTAR PODER PREJUDICIAL? [a quem contraiu a doença] A actividade de cantar deve ser administrada com muito cuidado. E, tal como com fazer amor, muda de caso para caso. Se uma pessoa canta muito mal, cantar não prejudica o tratamento. Se canta muito bem, tal pode ser um entrave ao tratamento. No fundo, o mesmo se aplica para qualquer actividade artística. De modo geral, meu pai proibia aos seus pacientes envolverem-se nessas actividades durante o tratamento.” E eu, para terminar, diria: se está vivo, evite seguir regras, pois elas foram feitas por alguém que muito provavelmente não sabe mais acerca da existência do que você.

2 Mai 2017

Pedro Alexandrino da Cunha preso pelos miguelistas

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada, deixamos o nosso biografado Pedro Alexandrino da Cunha, nascido em Outubro de 1801, já como alferes do Exército a trabalhar no Arquivo Militar, então com vinte anos. Encontrava-se o Rei D. João VI ainda refugiado no Brasil, quando em Portugal o movimento revolucionário de 1820 instalou as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa a 26 de Janeiro de 1821, que veio suspender a Monarquia Absolutista, entrando o regime numa Monarquia Constitucional. Esse parlamento liberal tinha como principal tarefa elaborar uma Constituição escrita.

“A revolução de 1820 aconteceu numa Europa onde a memória da Revolução Francesa de 1789 e o revivalismo religioso tinham criado um ambiente pouco propício a revoluções. As grandes potências prometiam intervir em qualquer país onde fosse ameaçado o poder das dinastias (era o princípio da legitimidade). Por isso, no seu manifesto à Europa, os novos governantes em Lisboa tiveram o cuidado de adoptar um ponto de vista tradicionalista, semelhante ao dos liberais espanhóis. Explicaram assim que não os movia um filosofismo absurdo, desorganizador da humanidade, nem sequer o amor de uma liberdade ilimitada, inconciliável com a verdadeira felicidade do homem. O seu único objectivo era melhorar a forma do governo em Portugal através da restituição das suas antigas e salutares instituições, embora, claro está, corrigidas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado. Desejavam o poder limitado por leis sábias, e repudiavam a tirania, fosse ela exercida por um ou por muitos. Daí a revolução não ter vertido uma só gota de sangue”, como refere Rui Ramos.

Com a chegada de D. João VI a Lisboa, logo nesse dia 4 de Julho de 1821 o Rei jurou as bases da Constituição e substituiu a regência por um novo ministério. “E assim começou em Portugal o exercício efectivo da monarquia constitucional, onde o rei é chamado a desempenhar um novo papel e os cidadãos passam a poder intervir mais activamente, através dos seus representantes nas cortes”, segundo Isabel Nobre Vargues.

Com a monarquia em França restaurada desde 1814, após Napoleão Bonaparte (com o título de Imperador Napoleão I, 1804-1814) ser derrotado por uma força aliada de ingleses, russos, austríacos e prussianos, subiu ao trono o monarca Louis XVIII, da dinastia de Bourbon e preparou-se uma intervenção militar para restabelecer em Espanha o governo de Fernando VII, o que ocorreu a 7 de Abril de 1823 e a ocupação sem resistência de Madrid em 23 de Maio. Os liberais em Lisboa enviaram um regimento de Infantaria para a fronteira, mas este revoltou-se e logo em Vila Franca de Xira o infante D. Miguel a ele se juntou, incitando os portugueses a libertar o rei de umas Cortes que <em lugar dos primitivos direitos nacionais, deram-vos a sua ruína>. A 31 de Maio, o Rei D. João VI chegou a Vila Franca e demarcou-se do regime que segundo ele <tinha despedaçado o Brasil, provocado uma guerra civil e com o envio de tropas para Espanha iria levar o reino a ser invadido>. Segundo Joel Serrão, “Em 1823, a Vila-Francada põe termo, com surpreendente facilidade, à primeira fase do liberalismo português, ou seja, impede que a prática da Constituição de 1822 vá além de um breve estertor de moribundo. Regressa-se, oficialmente, ao Antigo Regime, que, aliás, não chegara a ser abalado nos seus sólidos fundamentos, mas pensa-se, pela primeira vez, na hipótese de uma carta constitucional capaz de apaziguar tensões e de evitar o pior, mediante um compromisso entre a tradição e a inovação considerada possível”. Foi então D. Miguel (1802-1866) promovido a comandante-chefe do exército.

Abrilada

“D. João VI desconfiava de D. Carlota Joaquina [sua esposa] e de D. Miguel, muito chegado à mãe. Por isso, em Maio de 1823, tentara inicialmente manter as Cortes, e só as abandonou quando isso lhe pareceu o único meio de retirar a iniciativa ao infante. Para a Inglaterra, que não queria ver Portugal outra vez na órbita de Madrid, e também para a França, desgostada com a dureza de Fernando VII, o infante e a sua mãe pareciam demasiado sintonizados com a corte espanhola. Finalmente, era preciso contar com todos aqueles que esperavam ainda uma reconciliação com o Brasil. Sendo o Brasil uma monarquia <liberal>, um Portugal <absolutista> poria fim a essa esperança”, segundo refere Rui Ramos.

Quando D. Miguel, como comandante-chefe do exército, a 30 de Abril de 1824 levantou os regimentos de Lisboa e tomou o poder, sequestrando o pai, o Rei D. João VI, num golpe que ficou conhecido por Abrilada, encontrava-se Pedro Alexandrino da Cunha a estudar na Academia da Marinha. Por ser um convicto liberal foi nesse mesmo dia preso com outros oficiais no Forte de Peniche.

Pela acção dos embaixadores, inglês e francês, foi o D. João VI, O Clemente, libertado e a bordo de um navio inglês, em 9 de Maio demitiu D. Miguel do comando do exército. Após esses nove dias na prisão, devido à perseguição miguelista, Pedro Alexandrino foi libertado e voltando à Academia, terminou o curso de Matemáticas, inscrevendo-se logo de seguida na Academia de Fortificação. Aí se encontrava quando em Julho de 1827 foi promovido a Tenente para o Regimento 13 de Infantaria.

Tinha já D. João VI falecido, o que ocorrera a 10 de Março de 1826 e o sucessor, seu filho D. Pedro, no Brasil outorgou a 29 de Abril desse ano a Carta Constitucional, que seguia o modelo francês de Luís XVIII. O então Imperador do Brasil D. Pedro I abdicou do trono de Portugal a favor da sua filha D. Maria II, mas, como esta ainda só tinha oito anos, numa tentativa de reconciliação entre absolutistas e liberais, nomeou D. Miguel para lugar-tenente e Regente do Reino. No entanto, para tal acontecer teria D. Miguel de aderir ao regime constitucional, o que aceitou e assim, pôde regressar da Áustria onde se encontrava exilado. Chegou a Lisboa em 26 de Fevereiro de 1828 e teve uma estrondosa recepção, com muito povo e sobretudo pelos seus partidários. De referir que, os absolutistas controlavam as áreas rurais, sendo apoiados pela aristocracia e camponeses, enquanto os liberais tinham a sua base numa parte significativa dos militares e na classe média a viver nas cidades, sobretudo no Porto e Lisboa.

D. Miguel, segundo filho de D. João VI, logo a 13 de Março de 1828 dissolveu a Câmara dos Deputados e a 3 de Maio convocou os três Estados, declarando nulo o juramento da Carta Constitucional. A eleição em Santarém dos Procuradores às Cortes ocorreu a 16 desse mês e estas, a 11 de Julho reconheciam D. Miguel como rei absoluto. A violência do regime contra os liberais levou por razões políticas a milhares de portugueses emigrarem.

Segundo Joel Serrão, “De 1828 a 1832, dentro e fora do País, tudo se encaminha para a guerra civil, e ela eclode com a instalação no Porto de um pequeno exército de exilados e soldados açorianos. É então que Mouzinho da Silveira lança na fogueira da confrontação nacional os seus decretos destinados a desmontar a estrutura do Antigo Regime e a alicerçar o Portugal renovado com que sonhavam os liberais moderados que se reuniam em torno de D. Pedro: um país europeizado mediante as práticas de deixai produzir, deixai circular”.

1 Mai 2017

Karadeniz | “A democracia também chegou ao assassínio por encomenda!”

(continuação)

Não sei como é que se consegue viver bem consigo mesmo depois de se fazer mal a alguém?! Eu arrasto a culpa por males que fiz, e nada que se compare com isso…

Tu não vives bem contigo, não é pelo mal que fizeste ou deixaste de fazer, Paulo! Tu não vives bem contigo, porque é essa a tua natureza. Tu e as pessoas como tu vivem num mundo paralelo: um mundo onde se julgam responsáveis pelo que acontece.

E não somos todos responsáveis pelo que acontece?

Não! O facto de eu ter sido um assassino profissional, aconteceu apenas porque era uma possibilidade de profissão como outra qualquer. Se ninguém pagasse tanto dinheiro pelos meus serviços, eu não teria tido a vida que tive. É o mesmo que hoje se passa com os cantores pop, as top model e os jogadores de futebol. Ainda muito antes das crianças saberem quem são, já querem vir a ser cantores ou jogadores de futebol, porque ganham muito dinheiro e são reconhecidos por toda a gente.

Porque é que nunca se falou de si, como por exemplo se falou do Chacal?

Muito simplesmente porque nunca cometi um erro sequer! Nunca cheguei a ser procurado, porque nunca cheguei a pisar os calos de quem não devia. O mesmo já não se pode dizer do Chacal, como sabemos. O problema dele, e que acabou por derrotá-lo, era a sua vaidade. Quando se anda nesta profissão, tem de se ter a consciência de que o mundo não pode saber de nós. Era como se tu escrevesses um livro magnífico, mas que ninguém o fosse ler; ou então um grande cantor que nunca quisesse cantar para ninguém.

É portanto uma profissão ao contrário deste nosso tempo, em que toda a gente quer ser reconhecida pelo mundo, nem que seja por cantar pior do que todos os outros!

Exactamente! (risos)

Nessa profissão em que se tem necessariamente de ser o melhor e de não se ser reconhecido (e quanto melhor, menos reconhecido), o Karadeniz conheceu ou soube de alguns colegas seus, cujos nomes não tenham chegado a público, ao contrário do Chacal?

Claro! O melhor de todos nós era provavelmente o Jesuíta! Um belga que havia passado pela Legião Estrangeira, na sua juventude, e que falava na perfeição imensas línguas. Teve, tal como eu, uma educação privilegiada. E há que ver uma coisa, Paulo: o Chacal não era um assassino profissional, mas um terrorista, e nunca foi meu contemporâneo. Abandonei a actividade em meados dos anos 60 e ele começou no início ou em meados de 70. De qualquer modo, repito, o Chacal era um terrorista, não um profissional.

Mas então qual é realmente a diferença? O que é que faz com que o Chacal tenha sido um terrorista e não um assassino profissional?!

Já te disse que o terrorista mata indiscriminadamente e, também, muitas das vezes por convicções, sejam elas políticas, religiosas ou nacionalistas. O assassino profissional mata apenas aquele por que foi pago, embora as coisas hoje já estejam muito diferentes do meu tempo!

Diferentes, como?

Para além de toda a tecnologia que existe e que não existia no meu tempo, hoje também há muita gente a matar por cinco tostões. Hoje já qualquer um é assassino profissional, tem trabalhos encomendados por dá cá aquela palha! A democracia também chegou ao assassínio por encomenda! Toda a gente, hoje, à menor dificuldade com alguém, paga para que se mate. Dantes não era assim, só se mandava matar gente importante! E isto faz com que seja muito difícil distinguir entre terroristas, arruaceiros e assassinos profissionais.

Mas continua a haver os verdadeiros assassinos profissionais, como o Karadeniz?

Julgo que sim! Até porque a queda do comunismo pôs muita gente especializada no desemprego, e nem todos se devem ter dedicado aos tráficos e às máfias. Por outro lado, continua a haver pessoas importantes que têm de ser mortas, sem que se corra o menor risco de ficar implicado, e não tenhamos quaisquer dúvidas que estes trabalhos só podem ser levados a cabo por quem saiba ser eficiente e discreto.

(continua)

1 Mai 2017

A beleza e o mal

21/04/17

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, a ideia dominante no mundo desenvolvido, que devora e regula tudo, já o dizia Zygmunt Bauman, é a segurança. Mas promover a segurança não tem sido ir à raiz dos problemas, preferindo-se tomar os sintomas pelas causas.

Nada de tranquilo nos pode chegar por este método, pois tentar forçar a segurança a todo o transe é o equivalente a acreditar que o elefante se esconderá atrás da palmeira – uma obstinação insensata. A segurança absoluta reside na certeza de que o perigo que se quer evitar não existe. Como a probabilidade disto é ínfima, inventamos o artifício de desenhar mapas sem território, com a mesma objectividade e convicção com que farejamos a malária na Gronelândia. Ébrios pela idêntica eficácia com que os médicos em Moliére esclareciam que o ópio dava sonolência por ter «faculdades dormitivas».

A necessidade de segurança, estranhamente, não se tem aliado à prevenção dos conflitos ou à negociação de concessões, pendendo antes para a intransigência de pensar que a simples existência de outros sistemas é irreconciliável com a nossa segurança. É esta a atitude de Trump.

Neste mundo supostamente globalizado e onde a vigência dos Direitos Humanos se tornou a últimas das ideologias universalmente aceites, emerge, contraditoriamente, uma agónica alergia ao Outro e uma crença enternecedora de que a «verdade» só a mim assiste. Voltámos de novo a desejar identidades monolíticas, alheias ao contágio e ao dialógico. Daí que já não se estabeleçam compromissos, exerce-se de novo a chantagem da força, num inglório retrocesso civilizacional.

E eis que, distraidamente, abro um livrinho de Paul Watzlawick – um dos “filhos” mais produtivos de Gregory Bateson – O mal do bom ou as soluções de Hécate, de 1986 – ,e descubro isto: «O lógico austro-canadiense Anatol Rapoport, em 1960, no seu livro Fights, Games and Debates recomendava uma técnica interessante para solucionar problemas. No caso de um conflito em vez de pedir que cada partido dê a sua própria definição do problema, Rapoport propõe que o partido A exponha a opinião do partido B em presença deste, e que o faça de um modo exacto e detalhado até ao ponto em que o partido B aceite esta exposição e a declare correcta. Depois toca ao partido B definir a posição do partido A e de um modo satisfatório para aquele. Rapoport supõe que esta técnica de negociações conseguirá em grande parte atenuar a acrimónia e o problema entre as duas partes, antes que se ponha sobre a mesa a discussão do problema propriamente dito. A sua suposição é exacta; aplicando esta técnica sucede não poucas vezes que uma das partes em litígio diga, com assombro, à outra, “nunca tinha imaginado que você pensasse que é assim que eu penso”, o que supõe ter-se dado um passo para além da convicção ingénua: “Sei exactamente…”.»

Tão simples, tão simpaticamente racional este modo de fazer da empatia um dispositivo de relação. E por que me parece lamentável que esta técnica de negociação não tenha vingado, implantada por exemplo como regra primeira nas Nações Unidas e no palco da política?

O homem, quando quer, ainda é capaz de inventar umas soluções que não sejam finais – devíamos estar mais atentos, ao invés de nos entregarmos às delícias de uma ‘

automoribundia” que hipnoticamente nos desilude a possibilidade de enxergarmos outras saídas.

23/04/17

Ouço o resultado das eleições em França e viro as costas ao ecrã, prefiro deliciar-me na net com as obras de Bernini, escultor e arquitecto, e um dos mais brilhantes artistas do barroco italiano; alguém que na escultura rivaliza sem favor com Miguel Ângelo.

Talvez porque creia, com o sino-francês François Cheng, que o mal e a beleza são os dois pólos contrastantes do universo vivo, isto é do real. Defende Cheng: “Compreendo por instinto que sem a beleza, provavelmente, não vale a pena a vida ser vivida e que, por outro lado, uma certa forma de mal chega-nos justamente do uso terrivelmente pervertido da beleza”.

O Belo foi uma categoria abandonada pelos caminhos da arte do século XX e é um náufrago mais solitário que Robinson Crusoé. Mas vivendo numa cidade que se degrada a olhos vistos e onde se descuram quaisquer mínimas regras de planificação urbanística, ao ver a urbe transformar-se em monstro apocalíptico de cimento, lixo e zinco, confesso que tenho saudades do Belo, de um banho de horizontes onde, salvaguardadas as proporções e a harmonia, os elementos sensíveis e sensoriais tomem uma orientação precisa.

E então refugio-me nesse armazém da arte que é a net. Detenho-me nas obras de  Bernini, nos seus detalhes, enquanto ouço os meandros da política francesa.

E descubro duas coisas fantásticas.

A primeira é que para além do pormenor da pressão dos dedos de Plutão na coxa de Proserpina (no momento de a agarrar, para raptá-la), numa fabulosa transfiguração da textura da pedra em carne macia, os dedos de Plutão – um estuprador de deusas, e no oposto do seu rosto hirsuto e brutal – são finos, graciosos e espantosamente femininos. Também para Bernini, só a beleza, a tangível delicadeza das suas formas, pode ser um antídoto (brotado de dentro, da sua própria natureza) contra o mal que a figura de Plutão representa?

A segunda está no gesto de outra mão, igualmente talhada em mármore pelo escultor, desta vez no inesperado anelo da mão da beata Ludovica Albertoni, a qual – nesse êxtase que supostamente seria o estado da alma numa união mística com Deus e pela suspensão do exercício dos sentidos – afinal não prescinde de tocar o seu seio, que se adivinha excitado, tal como inclusive parece estar todo o drapejado da santa, encantado, ondulante, e vibrátil de gozo. Nem no transporte da morte Bernini deixa de homenagear a alegria do corpo, o que me faz evocar outro barroco, o Francisco de Quevedo, que fechava um soneto dizendo «Pó se tornarão, mas pó enamorado».

Ah, pois, as eleições francesas. Que comentar?

Por que não continuar com Bernini?

27 Abr 2017