Elogio da embriaguez

Por estes últimos tempos os respigadores dos absurdos do quotidiano estão de barriga cheia, tal a carga que os dias lhes têm generosamente oferecido. Basta assistir a um noticiário ou apenas olhar à sua volta para poderem voltar para a casa com a sensação de dever cumprido.

Obrigado que estou a atravessar o que o mundo me está a oferecer tendo a esconder-me em trivialidades ou aparentes fogos-fátuos, bolas de sabão luzidias que rebentam sem fazer mal a ninguém. E por isso foi sem surpresa que a notícia em que mais me detive foi a da proibição dada à rainha Isabel II, em convalescença de uma pequena cirurgia, de poder beber o seu Dry Martini diário. Isto tem mais do que se lhe diga. Por um lado, aproxima o comum dos mortais de um ser humano que parece levitar sobre os demais; e para mim, que sou desde sempre um indefectível admirador da monarca e eu próprio apreciador dos doces prazeres do álcool, veio despertar um forte sentimento de solidariedade. A rainha, que assistiu a imensos grandes e pequenos estadistas da história da Humanidade irem e virem e que detém um dos mais exigentes empregos do mundo, bem precisa de um copo ao final do dia. Merece, diria.

Como de resto todos nós, há tanto tempo. Talvez quase desde o início. No admirável Drink: a social history, de Andrew Barr (1995), lê-se logo na introdução que o álcool desempenhou um papel fundamental nas sociedades humanas desde o sedentarismo, assumindo variadíssimas formas, desde lubrificante social a instrumento para rituais religiosos passando por meios de matar a sede sem contrair doenças, auxílio à digestão ou um alimento no sentido mais literal do termo. Mas, como lembrou um amigo há algumas noites e no lugar mais apropriado – um bar – existe outra pergunta que, aqui chegados, urge fazer: porque bebemos? Porque bebemos tanto?

A resposta a esta pergunta teve na devida altura o tom adequado: teorias fantásticas, risos e mais encomendas de rodadas. Só que analisada a frio e a sóbrio vemos que não se trata de questão despicienda. A verdade, receio, é esta: precisamos da embriaguez. Não serei o primeiro nem o último a escrevê-lo, estou certo. Mas as verdades atravessam o tempo e os pobres coleccionadores de palavras como eu.

Bebemos para nos transcendermos e para nos salvarmos uns dos outros. O famoso aforismo nietzcheano de que o homem é algo que tem de ser superado encontra aqui o seu verdadeiro sentido. A realidade é demasiado lúcida.

Temos necessidade dessa imperfeição que nos oferece a ilusão de que por breves instantes somos perfeitos. A alma e o corpo nunca irão entender-se já que a primeira pensa na imortalidade enquanto o segundo faz questão de nos atirar com a finitude. E é do corpo que nos escondemos nessas alturas, por mais que ele nos faça lembrar da sua existência no dia seguinte. Bogart dizia, e com alguma razão, que o mundo estava sempre com dois whiskies de atraso. Nós bebemos para empatar a partida, não para ganhá-la. Isso, já sabemos, é tarefa inútil. Mas andar em busca do empate mesmo por alguns momentos compensará.

Mas atenção: o álcool é apenas a forma mais primária de embriaguez, já que o ser humano a procura desesperadamente noutras formas – poder, riqueza, luxúria. Assim foi, assim é, assim será. Mas quem a quiser que a tome. Prefiro voltar aos conceitos primordiais da coisa. E tenho como respaldo o velho Chesterton que perorava que não é o álcool que degrada o homem mas sim o contrário.

Por isso escolhei o vosso excesso com moderação e consciência, amigos. O célebre apelo de Baudelaire à embriaguez reconhecia três modos de o fazer, de forma adversativa entre eles: de vinho, poesia ou virtude. Por mim fico com os dois primeiros. E alguém devolva o Dry Martini à rainha.

3 Nov 2021

É de lá

No dia quatro de Outubro de 2021 muito terá acontecido neste planeta. Muitas vidas, muitas mortes. Muito espanto, muita desilusão. Muita alegria, muita tristeza. E muito truísmo em diferido, como podeis agora mesmo comprovar por estas constatações que certamente o mundo aguardava com ansiedade.

Agora a sério, por uma vez. Permitam que volte a abusar da vossa generosidade para regressar às pequenas coisas que engrandecem mesmo à nossa frente, minério demasiado nobre para este modesto mas teimoso garimpeiro: esse foi o dia em que algo se terá passado com o servidor Google que alimenta as principais redes sociais deste mundo. De repente, tudo desapareceu. Angústia, horror, dúvida, impotência: o que terá acontecido, o que posso fazer, como manter o contacto com quem queremos e, ainda mais terrível, de que maneira poderão entrar em contacto comigo? Será do meu telemóvel? Será, para reabilitar uma antiga e patusca expressão dita sempre que a ainda púbere televisão portuguesa deixava subitamente de transmitir – será “de lá”?

A questão técnica pouco importa para o que me interessa. Menos ainda o prejuízo financeiro que terá custado ao pobre Zuckerberg – fala-se de seis mil milhões de dólares – a que, estou certo, conseguirá sobreviver. Não: foram as consequências desse hiato tecnológico que me levaram a escrever. Ou seja: de repente, de forma inesperada aconteceu isto: houve gente que ligou. Assim, de viva voz. Lembram-se do que isso era, amigos? Usava-se muito, anexado a outro costume em extinção a que se deu o nome de “conversar”.

Aqui chegado, importará dizer-vos ou repetir para os pobres que insistem em ler-me desde o início: não tenho nenhuma simpatia ou convicção pelo “antes é que era bom”. Nada. Agora é que é. Mas existem coisas que funcionam, que atravessam os dias e continuam a fazer a vida melhor. A voz de um amigo, por exemplo, é uma delas. Não um eco no WhatsApp, não uma fotografia no Instagram. A voz, alguém que vos telefona – ainda é assim que se diz? -, um outro ser humano como interlocutor nem que seja para oferecer as mais terríveis notícias. Ou as melhores.

Agora e graças à facilidade que as redes sociais nos oferecem os pêsames têm o mesmo valor do que as felicitações. Apenas mudam os desenhos escolhidos para significar emoções e as palavras, sejam elas quais forem, sacrificam a sua vida numa caixa de comentários para que possamos ficar de consciência tranquila e longe do que é humano – a dor e a alegria.

Por isso é que nunca irei esquecer aquele quatro de Outubro de 2021.Através de uma falha numa máquina abriu-se uma brecha que deixou entrar o anacronismo de uma voz humana que procura por nós. A humanidade regressou, por breves instantes. Mas, sem surpresa, foi “de lá”.

20 Out 2021

Traurig

Talvez pudesse ter avistado antes os sinais. Talvez. São estradas antigas, caminhos familiares, encruzilhadas já percorridas. Mas agora é tarde: o disco já toca, a canção de alerta que soa sempre que chego a este lugar: “This is the crisis I knew had to come / destroying the balance I kept”. Estranhamente é um mau presságio quase bem-vindo mas negro, negro. Gostaria que estas palavras que a custo aqui vou deixando não passassem de artifício, ilusão efémera para prender o leitor. Não é assim. É verdade que ninguém consegue escrever quando está muito triste ou muito contente: é preferível viver esses momentos e não entregá-los a estas convenções e regras que fazem a escrita e que, por definição, ao utilizá-la afastam-se da pureza do que se está a sentir.

Mas aqui o território é outro. Não se trata da grande dor, da grande tristeza. Apenas algo mais insidioso, ronceiro. Tem mil nomes e mil causas e ainda assim quem por aqui anda não as consegue identificar – só os sintomas. Recorro a uma carta escrita por um especialista neste mal estar, o poeta John Keats, que assim descrevia este ser ausente e presente em simultâneo: “Estou nesse estado em que se estivesse debaixo de água mal conseguiria chegar à superfície”. É isto, leitor. Reconhece? Reconhece-se?

Assim, eis-me aqui a tentar vestir de palavras este negro suave, este odor dulcíssimo de flores que definham. É um combate inútil mas uma catarse necessária. A resignação triste pode ser uma armadilha terrível ou até um pecado mortal – a acedia, uma renúncia à vida e a Deus – para quem como eu é crente.

Mas mesmo assim, que farei destas ruínas em que me encontro? Que outra coisa poderei fazer senão admirá-las, tentar descrevê-las? Um dia, espero, serão uma paisagem antiga. Agora são reais, o meu mundo. Chamemos-lhe melancolia, então. Mas não de afectação, não de bric-à-brac. O poeta, como o escritor, pode ser o tal fingidor. Com a verdade me enganas, lembra-me a minha inoportuna memória. E é a mesma memória que prontamente me aponta para três dos mais bonitos versos da língua portuguesa, escritos a propósito do amor mas que agora me assentam perfeitamente na alma: “Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde, /Vem não sei como e dói não sei porquê”.

O que fazem, leitores, quando esta “dor mansa e vegetal” vos invade? Digam-me, digam-me: alguma vez estiveram aqui? Por onde devo ir? O que devo evitar? Aguardo, aguardo qualquer luz. Mais não poderei fazer. O título desta crónica é a palavra alemã que significa tristeza, triste. E é também uma anotação musical utilizada para indicar o sentimento do andamento ou frase onde aparece colocada. Assim estamos, assim estou: um andamento da minha vida longo, sedutor, lento, traurig.

6 Out 2021

O homem que quis matar o tempo

Pouco haverá a fazer: vivemos todos, sem excepção, sob o domínio de Cronos, o Deus-Tempo. O velho Cronos é o mais igualitário dos deuses. Não é esquisito e exerce a sua autoridade, mais ou menos rigorosa, sem olhar a origem social ou geográfica, bens materiais ou qualidades morais. Nada nem ninguém lhe escapa e o que podemos fazer é conservar o que amamos e nos faz a vida melhor e passá-lo a outros para que o perpetuem como possam – a única ilusão que ainda o mistifica.

Tudo se torna ainda mais irónico porque Cronos é uma invenção nossa. Criámo-lo para dar nomes aos dias, para sabermos identificar saídas ou grades. E assim o fazemos, reconhecendo angústias, alegrias e dificuldades. A nossa reacção ao fim que nos é comum também dele deriva: quando alguém parte ainda jovem surpreendemo-nos e choramos mais a perda. “Foi antes do tempo”, lamentamos. Mas que tempo é este? Qual o tempo ideal para se ser, para viver? Ninguém o sabe nem nunca o saberá porque Cronos é flexível, veste cada um de nós de forma diferente e oferece-nos a nossa sentença irreversível de modo desigual e personalizado.

Por esta e outras razões não consigo imaginar nada tão poético e ao mesmo tempo tão utópico como querer matar o tempo, literalmente. A expressão que utilizamos é falsa porque considera o tempo associado a uma actividade; “mataríamos” o tempo pela negação dessa actividade por outra.

Há pouco tempo – cá está – contaram-me a história de Martial Bourdin, um anarquista francês do século XIX. Até aqui, nada de extraordinário, nem mesmo o seu fim trágico, comum a outros como ele por toda a Europa: terá morrido quando os químicos explosivos que transportava para um atentado explodiram prematuramente. Morreu 30 minutos depois da detonação, sem nunca ter revelado o objectivo do atentado. Mas sabemos que Bourdin se dirigia para o Real Observatório de Greenwich, em Londres – lugar onde, desde 1852, se encontra o relógio que determina o chamado Greenwich Mean Time (GMT). A ideia de que este relógio tenha sido o verdadeiro alvo de Bordin é demasiado boa para ser descartada. E é possível: em 1880 o governo britânico declarou que a hora oficial do país seria determinada a partir do GMT – o que, na óptica de um anarquista libertário, seria mais uma prova inaceitável do controlo do governo sobre os cidadãos. Fazer o relógio ir pelos ares seria assim um acto com um fortíssimo simbolismo. O grande escritor Joseph Conrad aproveitou de resto a história de Bourdin para a incluir num dos seus últimos romances, The Secret Agent (1907).

Esta história fascinou-me. Deploro o uso de violência como forma de luta e legitimação política e ideológica, sem excepção; prefiro ficar assim com a ideia de que Bourdin quis matar o tempo, numa tentativa desesperada mas urgente, e dar vida àquelas palavras do Henry IV, de Shakespeare e que já várias vezes por aqui apareceram: “: “But thoughts the slave of life, and life, Time’s fool, /And Time, that takes survey of all the world,/
Must have a stop.”
Escravos de Cronos, sabemos que estamos condenados. Mas como Bourdin façamos com que isso seja uma injustiça.

23 Set 2021

Elogio da insónia

“I haven’t been to sleep for over a year. That’s why I go to bed early. One needs more rest if one doesn’t sleep.”
 Evelyn Waugh

 

Escreverei assim: aqui estou a meio da madrugada, 4.55 AM para os mais picuinhas, e não tenho mais do que esta vontade de dizer que não tenho sono. Noutra vida, há mais anos do que o pudor me impede de confessar, seria consequência previsível de uma de duas coisas: ou diversão ou véspera de teste para o qual não tinha estudado.

Agora já não é verdade: a diversão continuará mas a dada altura cede felizmente a Morfeu; e a angústia dos testes da educação formal desapareceram há muito, para o bem e para o mal. Mas um legado terão deixado: a insónia.

Antes de receber a vossa compaixão e solidariedade por esta condição devo avisar: francamente não sei ainda se a insónia crónica é um flagelo ou uma bênção. A sério. Sei que, naturalmente, estar privado de sono tem consequências físicas e psicológicas a que se deve estar atento; sei também que a ciência farmacêutica se esmerou em encontrar indutores de sono que ajudam, pelo menos no momento. Mas no que diz respeito a esses amiguinhos, dou-me mal. A minha morfologia – diagnosticada pelos melhores especialistas com a classificação científica de “flor de estufa” – faz com que meio comprimido destes soporíferos químicos me transforme no dia seguinte num potencial protagonista de The Walking Dead. E isso não é bom. Prefiro a solução preconizada pelo grande W.C . Fields: “A melhor cura para a insónia é dormir muito”.

Então resta o primeiro dilema: flagelo ou bênção. E amigos, optei pela segunda. Enfrento a vigília forçada não como um castigo mas como uma oportunidade, mesmo que às vezes cruel. A insónia é uma lupa errática, imprevisível.

Mais do que uma ausência de sono é um excesso daquilo que está adormecido. Somos nós e o que sentimos no meio de uma casa de espelhos que nos reflectem com todas as distorções. É uma batalha terrível mas necessária com o monstro que está escondido nas horas em que estamos despertos e funcionais: a lucidez, resultado da suspensão da suspensão da vida que é o sono. No limite o que a insónia nos dá, à bruta e de forma contraditória, é ao mesmo tempo a consciência da nossa condição humana e, infelizmente, a consciência da nossa condição humana.

O que realmente pode assustar ou fascinar é a impossibilidade de a cartografar. Se a causa próxima são angústias reais que nos assolam e com que teremos de lidar no dia a dia, elas aparecem, aumentadas e assustadoras. Só o optimismo rotineiro do nascer do sol (“The sun shone, having no alternative, on the nothing new”, e tal) pode apaziguar os monstros com que a noite nos brindou. Mas a insónia é tudo menos monotemática: é um caleidoscópio das memórias, onde aparece gente, lugares e tempos em permanente non sequitur. Se estivermos atentos e dispostos a acolhê-la ficaremos fascinados com o que guardamos na alma sem o sabermos. Mesmo as coisas más: parafraseando uma frase de Ian McEwan, ninguém consegue prever qual dos vexames que a vida nos oferece a insónia irá privilegiar.

Portanto, amigos, e tudo considerado: aproveitem quando acontecer. Acolham a lucidez e o bom e o mau como Alice no País das Maravilhas. Às vezes pode até oferecer soluções. No pior dos casos pode obrigar a escrever crónicas como esta. “To sleep, to sleep, perchance to dream”? Está bem, Hamlet, mas daqui a bocado.

15 Set 2021

Uma ocasião

Por vezes uma pessoa procura refúgio no que leu, viu, ouviu. Sobretudo se essa pessoa for eu. Mas eis a maravilha e o terror: nada disso nos serve para coisa alguma. Estamos vulneráveis ao que somos (deixai-me saborear a língua portuguesa por uma vez e esquecer a ontologia) e o que somos tem a tendência de nos surpreender na proporção directa das nossas certezas, se tudo correr bem. Ou seja: quanto mais vida (idade, tempo, o eufemismo que o leitor preferir) mais tapete temos para alguém o puxar de forma inesperada e devida e deixar-nos estendidos no chão. Se esse alguém coincidir connosco a coisa torna-se tão misteriosa como bem-vinda.

Foi certamente a visita dessa força que agora mesmo guia os meus dedos no teclado. Prometi, quando esta casa me foi gentilmente aberta, dedicar-me às pequenas coisas, até porque o mundo me aborrece. Mas fiz um pacto comigo em que a minha vida seria privada de escrita porque é privada de interesse para os outros. Até agora. Não sei o que terá acontecido nem sequer me faltava assunto para vos infligir; mas nunca sobre mim, a minha vida, os meus. Só que hoje, sem razão aparente, o tapete terá sido puxado com gosto e sadismo pela única pessoa com que não consigo lidar: eu.

Não sei porquê. Sei que nesta altura – e são onze da manhã, desperto, descansado e sem desculpas – preciso falar do meu Avô Nabais. Melhor: porquê já sei mas só o direi no fim. Para já, descubro a causa neste paradoxo: quanto mais velhos mais remotas as memórias. Ou seja: não sei qual foi o meu pequeno-almoço mas lembro-me vividamente das cores e imagens dos meus doze anos. E aqui vou percebendo, à medida que escrevo. O meu Avô Nabais foi a primeira perda próxima que tive, o primeiro choque verdadeiro com a mortalidade a que me fizeram o favor de me poupar.

Só que, lá está: se existe condição exclusivamente humana que nos redime ao mesmo tempo que nos condena é a memória. Neste caso pouco me importa o desfecho. De repente vejo-me num pequeno jardim de Inverno, numa varanda da Rua Passos Manuel, em Lisboa. A minha Avó cultivava nessa varanda toda a espécie de plantas e era aí que o meu Avô gostava da minha companhia. “Zé, senta-te aqui”. O porquê de me chamar “Zé” não sei; nunca, que me lembre, terá pronunciado o meu nome próprio. Mas pouco me importava: ia e ouvia, deliciado, as suas histórias.

Raiano, nascido e criado na aldeia de Vale de Espinho, na Beira Baixa, veio para Lisboa porque era um dos destinos que lhe ofereciam – o seminário ou a cidade. Preferiu migrar para servir como marçano e a partir daí chegar ao que nunca mostrou ambição de ultrapassar: empregado de escritório. Mas com ele vieram as histórias fantásticas de caçadas de javali, o contrabando, o trânsito clandestino de voluntários para a Guerra Civil de Espanha (e, coisa inadequada aos nossos dias: o Avô era monárquico via franquista, coisa que só muito mais tarde vim a saber), as descrições das casas graníticas e tantas outras aventuras que invariavelmente começavam assim: “Uma ocasião…”.

Foram tardes quentes que, percebo agora, terei desperdiçado até este preciso momento em que as lembro e celebro. E tantos outros instantes e características que testemunhei e que precisei de crescer para as identificar. O profundo introvertido, à beira da misantropia, que se fechava no quarto se chegassem visitas não anunciadas – filhas, genro, fosse quem fosse. A excepção era eu, neto único na altura. Os rituais escrupulosamente mantidos, como o de sair mais cedo antes de ir trabalhar para poder apanhar o eléctrico certo e ter tempo de ir ao café falar com os amigos sobre o seu amado Belenenses – a única religião que lhe conheci.

Um dia regressei do liceu para almoçar em casa dos meus avós, como era habitual. Encontrei a casa cheia de gente alvoroçada, o telefone a tocar, a minha Mãe a falar-me com extremo cuidado. O Avô estava no hospital, de onde não voltaria. Tinha doze anos; por precioso conselho dos meus pais não fui nem a velório nem ao funeral. Fiquei em casa sozinho, televisão ligada mas ausente. Não verti uma única lágrima.

Até hoje. Até agora mesmo. E essas lágrimas preciosas são a tinta destas palavras, a sua razão maior e a que estou grato. Um dia talvez venha a dizer aos meus netos “Uma ocasião…”. Somos todos os outros que viveram e vivem em nós e se houver sentido para esta coisa da vida que seja este: passar essa vida a quem mais amamos.

8 Set 2021

O vizinho

Fazemos os nossos amigos, fazemos os nossos inimigos, mas Deus faz o nosso vizinho.
G. K. Chesterton

 

Por vezes, para apaziguar o pessimismo que sob temperaturas estivais passa a um nível efervescente detenho-me a considerar o tanto que o ser humano conseguiu para elevar-se na lama. A arte. A literatura. A arquitectura. A música. O cinema. As formas de organização social, geridas por um Estado de Direito e que permitem liberdade individual e possibilidade de escrutínio aos que detêm o poder. Os grandes filósofos, que nos ensinam a pensar. E mais haverá que seria ocioso aqui enumerar. Tudo conquistas dignas, extraordinárias, contra todas as possibilidades e que tendem a engrandecer a natureza humana. Mas depois lembro-me dos vizinhos.

O leitor sabe, que eu sei que sabe. Vamos lá ver: um vizinho em si não é coisa má. É necessária e é uma forma orgânica de comunidade que muitas vezes nos ajuda e até salva. Naturalmente esse tipo de altruísmo aparece ao mais alto nível e sem surpresa nas grandes tragédias: lembrai-vos do início da pandemia e do confinamento, quando saltitavam os vídeos de vizinhos confinados cantando e acenando para outros vizinhos. Que comovente maravilha. E agora que já vamos no segundo ano desta situação, a coisa continua solidária, alegre, com manifestações espontâneas de amizade entre vizinhança e…ah, espera.

Não se julgue que o vizinho é uma tipologia moderna, no entanto. Não, amigos: há milhares de páginas da nossa literatura que tentam caracterizar ou defender o sujeito ali do lado ou do andar de baixo. Por mim bastaria uma reunião de condóminos, mas isso sou eu. Chesterton, que ali está em epígrafe, concordaria comigo, como aliás George Bernard Shaw que deixou esta lapidar verdade: «Se ofenderes o teu vizinho é melhor não o fazeres pela metade». O romântico Schiller lembra a categoria de “mau vizinho” para lembrar que nem o homem mais bondoso consegue a paz se isso não agradar ao dito cujo. O Código Civil está cheio de artigos que visam justamente regular e confirmar a existência desta espécie. Por outro lado também existem as apologias mas normalmente são feitas por homens de enorme estatura moral e bondade, como Martin Luther King,Jr que confundem o amor ao vizinho com o amor ao próximo. Percebo mas a prática muitas vezes torna-se difícil.

Por mim, prefiro o anonimato discreto, o cumprimento cortês mas lacónico e o silêncio angustiante do elevador partilhado. Mais a mais agora, em que registo uma guerra surda com um desses cavalheiros acima descritos que me atormentam a paz e o sossego com queixas injustificadas. Como uma que ficará nos anais: na última passagem do ano, com duas pessoas a jantarem na sala, confinados que estávamos, ouviu-se gritos do andar de baixo e a tradicional vassourada no tecto, reclamando contra o barulho. Estava a televisão ligada, imagine-se. E eram 21 horas numa passagem de ano.

Enfim. Percebeis agora o motor desta crónica. Só devemos escrever sobre o que sabemos, ensinaram-me os mestres. E sobre este tema tinha muito mis para dizer, só que quero que esta coluna continue acessível a todas as idades. Mas sempre vos direi, parafraseando um célebre slogan: poderíamos viver sem vizinhos? Poderíamos, mas não seria a mesma coisa. Seria melhor.

28 Jul 2021

A amigologia

“Which of all my important nothings shall I tell you first?”
― Jane Austen

 

Ah, leitores. Se de facto ainda têm a benevolência de entregar um pedaço da vossa vida às palavras que por aqui vão saltitando, eu louvo e agradeço. E derivada dessa que para mim é uma inexplicável atenção (mas que, pronto, da qual vou dependendo) saberão quase ad nauseam que entre mim e o mundo existe uma relação – para usar um adjectivo científico – “complicada”. Estamos a dar um tempo, eu e o mundo. O fenómeno, devo confessar, é pessoal e cíclico; mas pela idade, tédio, inadequação, falta de pachorra ou tudo junto a coisa tem vindo a agravar-se. Há muitas, muitas luas, sentindo a mesma angústia, cheguei a tentar ingressar – espaço para gargalhada do público – numa ordem religiosa que, pensava eu, me iria garantir tudo: oração, silêncio, leitura e beleza. Sem surpresa não me aceitaram. Percebo: eu teria feito o mesmo e sem a pedagogia e doçura.

Mas agora, mas agora? Tudo me cansa, amigos. Se ouso abandonar por um instante os meus refúgios solitários – a literatura, a filosofia, a música, a fé – sou atropelado pelo que existe. E o que existe é aquilo que o profeta Nelson Rodrigues há muito vaticinou: o triunfo do idiota. Num clima tão extremado como o que vivemos em que a ideia de debate ou da possibilidade do outro começa a ser um ramo de arqueologia é natural que isso possa acontecer.

Mas irrita. Agarradas às circunstâncias sanitárias que vivemos começam a medrar e a ter eco as linhas chalupistas que sempre estiveram latentes: curas através de calhaus judiciosamente esfregados nas costas; desaparecimento de doenças terminais através da meditação ou da convocação de “energias positivas”; diagnósticos através da “aura”; a certeza de que a “Mãe Terra”, bem invocadinha, irá substituir a ciência. E por aí fora.

Cautela: eu não acho que por mais obnóxias que pareçam – e serão – muitas destas “teorias” devam ser dispensadas sem sequer serem ouvidas. Eu tenho o meu Against The Current de Isaiah Berlin aqui ao meu lado e sei bem o que implica a ausência de voz e de resposta. Mas ainda assim.

Então para vos dizer o quê? Que não sou imune. Que também tenho direito às minhas teorias e proclamá-las com a vantagem de não querer discípulos. E num mundo em que se prefere a Humanidade ao humano, a massa ao indivíduo, eis o que vosso oferecer: a amigologia.

Não se trata de uma ciência – se o fosse seria a mais inexacta; não se trata de uma ideologia porque os dogmas não são universais; não se trata de uma arte, porque existe muito para lá do prazer estético. E no entanto é tudo isso e ainda mais baseada no maior risco e privilégio que nos é atribuído: a possibilidade da escolha. A mesma maravilha que nos salva todos os dias é a que nos condena e fere quando as coisas correm mal. E no entanto, e no entanto.

Reparai o pouco que nos custa: quando a amizade é natural não exige assiduidade: os anos de ausência são transformados em segundos no momento do reencontro. Não há perguntas nem julgamentos a não ser esta: «Estás bem? E se não, o que posso fazer?».

Exige trabalho, certamente. Dói, tantas vezes, quando a perdemos. Talvez mais do que o amor. Mas nesta altura é provável que possa ser santuário e redenção. A amigologia apenas observa, não ensina. Mas a sua mera presença lembra-nos do tanto que ganhamos num pequeno ou grande gesto que não exige reciprocidade, apenas reconhecimento.

De forma que é isto. Num mundo em que toda a gente parece mobilizada para salvar prefiro refugiar-me e esforçar-me por aqueles que estimo, que posso ajudar e me ajudam. Que se danem as grandes causas, desculpem: prefiro dois minutos de trivialidades com amigos. Prefiro as pessoas ao que as pessoas são. E estou disposto a embarcar nesse risco e, como o estou a fazer agora e contra a minha natureza, exortar a que o façam. O resto, com sorte, virá depois. Ou então não e não faz mal.

22 Jul 2021

Elogio da imperfeição

Forget your perfect offering / There is a crack, a crack in everything / That’s how the light gets in.
Anthem, Leonard Cohen

 

Arrisco a tese, amigos, com a vossa benevolência: o mundo de agora está formatado para os grandes gestos. Há uma lupa imensa sobre tudo o que acontece e, pior ainda, sobre tudo o que deve acontecer. Alguém deixou a porta aberta e entraram todos os que se indignam, exigem, sabem, oferecem soluções generosas desde o conforto do seu teclado.

O clima é de dedos em riste e de discursos em cima de caixotes. Nada escapa: até o que antes era arte ou desporto tem de incluir uma componente de comício para ter credibilidade. As mentes sequiosas de virtude assim o exigem e na sua ausência assim o condenam. Nestes dias não se pede menos do que salvar o mundo – mesmo que exista muita gente que não queira ser salva. Esses, como eu, estão semi-clandestinos, fugitivos da ordem do dia e da polémica de micro-ondas. E sem surpresa refugiam-se nas pequenas coisas, nos pequenos gestos onde de resto sempre estiveram. Um olhar, um dito, um riso, uma imperfeição.

Lembram-se da imperfeição, amigos? Lembram-se quando a fragilidade era algo com que toda a gente convivia de forma natural? Uma lágrima vertida, uma piada infeliz, um comentário inoportuno mas possível? Lembram-se do que era a maravilhosa possibilidade de errar? Acarinhem essas memórias, então. Nos dias da ditadura sanitária temos mesmo que andar munidos de um documento que prova que estamos vivos da melhor maneira possível. E, em todas as áreas, somos obrigados a viver da melhor maneira possível tal como é entendida pelo espírito do tempo: militantes, interessados, activistas, especialistas, cavaleiros de armadura sempre reluzente e alma impoluta.

Vejo na minha mesa de trabalho duas fotografias que adoro e, apesar de terem sido tiradas na segunda metade do século XX, considero-as como relíquias arqueológicas de outras estações onde a fragilidade era bem-vinda. Uma delas mostra o Papa João Paulo II, personalidade fortíssima, chefe da igreja carismático e decisivo para o processo de desmoronamento da então União Soviética. E que faz Karol Wojtyla, esse sim praticante de grandes gestos? Boceja. E nesse momento banal reconhecemo-nos, somos nós que poderíamos ser aquele homem já quebrado pelo tempo e incapaz de suster o que é comum a todos os mortais. Noutra o fotógrafo estava presente na cerimónia de coroação de Isabel II, no dia 2 de Junho de 1953. A fotografia é tirada dentro da catedral de Westminster, com os protagonistas devidamente vestidos e preparados para a pompa e circunstância da ocasião. E o que vemos, então?

Uma jovem rainha, de manto e coroa segurando a orbe numa das mãos e sorrindo, quase corando. Percebemos a causa de tudo quando olhamos para quem está em segundo plano: o marido, príncipe Filipe com um sorriso maroto de um moço que terá soltado um piropo à sua amada que conseguiu atravessar a mais formal das cerimónias. Como sempre deveria ser.

Assusta-me uma ideia de sociedade perfeita e clínica, onde a imperfeição é pré-definida por decreto ou sentença popular. Aterroriza-me a imposição das “boas causas” que espezinham o factor humano enquanto cantam loas a mundos quem sabe desejáveis mas impossíveis de serem impostos.

Quero a imperfeição. Quero a fragilidade. Quero que o erro seja um direito. Até lá, e enquanto não chegar a carta de mobilização, fico-me com estes vestígios não de um tempo melhor mas certamente mais imperfeito.

7 Jul 2021

O factor lupicínio

Um dia glorioso de sol e azul numa das mais bonitas cidades que conheço, a minha. Há cheiro a Verão, vestidos leves e disposição soalheira. As máscaras não conseguem esconder o sorriso que se adivinha pronto a soltar. Tudo do melhor no melhor dos mundos. Dia perfeito, portanto, para vos escrever sobre a solidão e a dor de cotovelo.

Não vou mentir: já não é a primeira vez nem será a última que me sirvo das palavras para tentar traduzir este fascínio que o falhanço e o perdedor tem sobre este que vos escreve. Muitas vezes nem precisei de pretexto, a coisa saiu naturalmente porque convive comigo desde que me conheço. Desta vez, porém, aproveitei a boleia de um pequeno-grande espectáculo feito por três amigos – os poetas Júlia Zuza e Viton Araújo e a cantoríssima-cumplicíssima Luanda Cozetti – e o qual se intitula, sem medo, “Dor de Cotovelo”.

O conteúdo vai buscar letras e poemas da música popular brasileira que tratam do destino de quem fica a chorar sozinho no fundo do balcão, feito sem preconceitos de gosto ou género musical – apenas o tema interessava e interessou para quem assistiu. Celebrar a dor com alegria enquanto se canta e bebe uma caipirinha é possível e desejável. Eu próprio, que acalento uns planos secretos para algo muito semelhante há alguns anos fiquei finalmente a perceber o caminho. E quando voltarem, quem puder não perca.

Só que no meio de tantos autores de canções há alguém que se agiganta de forma irremediável nestas funções. Aqui, como na vida, venceu o factor Lupicínio. O leitor desconhece o grande Lupicínio Rodrigues? O leitor faz mal mas estou aqui para ajudar.

Fiquem comigo, então. O falhanço amoroso pode ser uma coisa boa. Na maior parte das vezes, é. E não falo de lições de vida mas de oportunidades de auto-conhecimento. De reconhecimento, até. Como dizia Vinicius, «Ai de quem não rasga um coração/ Esse não vai ter perdão».

Nesse aspecto, urge conhecer Lupicínio Rodrigues. Ele é nosso cúmplice. Ele é nosso parceiro. Ele é nosso camarada de armas, o que se rende ao nosso lado e que depois da rendição continua a sonhar com a batalha. No amor, Lupicínio é um tirocínio.

As suas canções são hinos, gloriosos na sua ostentação da modéstia e sumptuosos na singeleza dos afectos: há raiva, há ciúme, há sacanice, há abandono. A força destes sentimentos em bruto abalam-nos porque crescemos a evitá-los.

Temos pudor do que nos é primevo. Lupicínio não tem pudor nem vergonha. Minto: na sua imortal Vingança, canção que fala disso mesmo, há estes versos desesperados do amante traído mas que nunca mais se irá libertar da sua traidora: “Me fazer passar essa vergonha com um companheiro / E a vergonha é a herança maior / Que meu pai me deixou”. É isso: Lupicínio é um Shakespeare dos pobres, que privado de metáforas e vocabulário, trata as coisas exactamente como elas são.

Lupicínio é dos que perde.

Há muito, muito tempo, passando por mais uma desilusão amorosa, foi quase sem surpresa que descobri a origem da expressão “dor de cotovelo”. Tem um sentido diferente daquele em que a usamos, que é o da inveja ou o do ciúme. «Dor de cotovelo» foi cunhado por Lupicínio para designar o excesso de tempo passado ao balcão do boteco, sozinho a pensar no que foi e no que podia ter sido. É o retrato infalível do tipo que fica até o bar fechar, a beber o desgosto e a segurar a cara e o coração.

Podemos encontrar algo semelhante em Sinatra, que de resto transformou este estado de vida numa arte maior. Mas Sinatra é especialista em passar-nos a sua vida (o que está a cantar), de tal forma que nos confundimos com ele.

Quando ouvimos Lupicínio estamos perante um tipo que sofre – exactamente naquele momento. E o que reconhecemos é o seu sofrimento.

O cancioneiro de Lupicínio Rodrigues é a wikipedia do falhanço. E é por isso que ele nos é tão urgente: para nos dar a possibilidade de falhar outra vez e nem sempre melhor. E isto é preciso e precioso, amigos. As lágrimas são um preço justo pelo tanto que nos ensina.

30 Jun 2021

A arte de viajar sem sair do lugar

Roda de amigos, conversa mansa e sem destino como é sempre a melhor conversa. Alguém que diz, falando dos tempos que correm: “O que sinto mais falta é de viajar”.

Curioso, pensei e disse na altura, repetindo agora para supremo benefício do leitor benévolo. A mim não me faz falta nenhuma. Na verdade, nunca fui grande adepto de viagens e mesmo que fosse atraído por algum romantismo inerente ao viajante profissional isso estaria destruído pela burocracia sanitária que nesta altura nos infligem. Pode parecer triste para alguns ou até mesmo algo cínico e limitado – e isto garanto que na altura não terei dito – mas a verdade é que a noção de descobrir povos, lugares e costumes tendo de me deslocar nunca me foi atraente.

Para minha magra defesa sempre direi que tive a sorte de viajar e conhecer algum mundo e na devida altura. Aprendi, como sempre se aprende, com a diferença ou as semelhanças inesperadas. Em alguns lugares, como a minha amada Irlanda, terei sido “feliz”, para usar uma formulação utilitária. Mas mesmo assim. Ao procurar razões para este sedentarismo convicto deparei-me sem surpresas com o passar do tempo: as coisas perdem novidade, o entusiasmo decresce, o tédio avança e o gosto pelo familiar domina naturalmente à vontade. Para o nómada voluntário e ansioso de se misturar com outras “culturas”, isto seria desastroso e compreendo. Para quem sempre esteve e está habituado a viajar sem sair do lugar é apenas um transtorno menor e quase bem-vindo.

Explico, sob o risco assumido de parecer pretensioso: gosto de viajar nos livros. Em pequeno, ao colo de Stevenson, Verne ou Salgari. Fui a todo o lado sem sair da sala – de resto como o próprio criador de Sandokan ou Corsário Negro, que sempre terá visto a Malásia ou o mar das Caraíbas sem a maçada de se ter de levantar da secretária.

Depois, mais tarde, a descoberta de um género literário pouco ou nada cultivado por estas bandas: a literatura de viagens. Como em tanta coisa, a cultura anglo-saxónica tratou de mostrar o caminho. E o caminho é este espelho, às vezes distorcido, que nos devolve o outro, a sua cumplicidade ou estranheza. Por exemplo, os relatos dos ingleses em Portugal durante os séculos XVIII e XIX sempre me fascinaram. E não falo das hipérboles sintrenses de Beckford ou Byron. No magnífico Retratos de Portugal – Sociedade e Costumes, escrito pelo capitão de infantaria escocês Arthur William Costigan entre 1778 e 1779 e que é uma recolha das cartas dirigidas ao irmão encontramos uma descrição notável e obviamente parcial do Portugal daquele tempo. Gosto muito de uma carta em particular em que o oficial se encontra em Faro na companhia de um adido militar britânico e um jovem padre português. Falam da biblioteca do Vice-Rei dos Algarves e o adido nota a escassez de livros interessantes, com a excepção de dois ou três sobre estratégia militar e uma Bíblia. Depois isto, que cito: “À palavra Bíblia, pronunciada pelo senhor Bagot, o jovem padre mostrou grande desejo de a ler, dizendo tratar-se de um livro que nunca lhe chegara às mãos”.

Portugal, país de viajantes por necessidade, engenho e terna cupidez, também tem os seus relatos. Mas o género, infelizmente, nunca se consagrou como no Reino Unido ou, de forma mais discreta mas nem por isso menos interessante, noutros países. Embarco de memória nos extraordinários livros de Peter Fleming (o irmão mais velho de Ian, o do James Bond, mas igualmente um sucesso editorial) ou abandono-me ao extraordinário On A Chinese Screen, livro de viagens de Somerset Maugham com capítulos quase impressionistas mas em que se consegue perceber a génese dos seus melhores contos. Aqui mesmo ao meu lado espera-me a primeira edição (1946) de When The Going Was Good, do meu ídolo Evelyn Waugh. Escrito entre 1929 e 1936 é uma jóia de humor, snobeira e descrição. Não resisto à citação de algumas linhas no original, escritas em Addis Abbeba na véspera da invasão de Mussolini e perfeitas na fotografia dos personagens: “ There was an American who claimed to be a French viscount and represented a league, founded in Monte Carlo, for the provision of an Ethiopian Disperata Squadron for the bombardment of Assab. There was a completely unambiguous British adventurer, who claimed to have been one of Al Capone’s bodyguard and wanted a job; and an ex-officer of the R.A.F. who started to live in some style with a pair of horses, a bull terrier and a cavalry moustache – he wanted a job too.”

Que galeria, que de matéria literária e de sonhos! Mesmo leituras de viagem que nos dão conta de sombras mais negras são necessárias: recomendo vivamente o que ando a ler de forma voraz: Travellers In The Third Reich, de Julia Boyd (2017). A autora serve-se de cartas e testemunhos de turistas, diplomatas, celebridades e anónimos locais para traçar um retrato assustador e ao mesmo tempo cândido dos anos de ascensão do nazismo – onde o visitante, no limite, apenas poderia suspeitar o que se iria passar. Por outro lado, através dos testemunhos dos alemães pós- Tratado de Versalhes compreendemos como medrou depressa e de forma horrenda o terror subsequente.

Ah, viajar, viajar. Pois sim. Destinos exóticos? Trocava-os todos por um bilhete de regresso à Irlanda ou aos Açores, o único lugar que realmente desejo conhecer. Até lá fico-me bem com estas palavras-espelhos. Que as cultivem, que não me sejam negadas, para bem da minha preguiça e necessidade de viagens inesquecíveis.

25 Jun 2021

Capitão da vida

Um dia, mais um 12 de Junho na vida de Simon Skjaer. Nessa manhã de sábado o dinamarquês acordou com um sorriso nos lábios. Estava calmo apesar de excitado; concentrado apesar de ansioso. Eram sensações contraditórias que lhe eram familiares mas, mais importante, desejadas. É provável – nunca o saberemos – que Skjaer tenha reservado uns segundos para agradecer a vida que lhe era oferecida: aos 32 anos o seu trabalho foi um sonho realizado: futebolista profissional e como se isso não bastasse, um defesa-central considerado e que jogava num dos clubes de topo europeu, o A.C. Milan. Melhor ainda: era capitão da sua selecção nacional, uma honra e responsabilidade atribuída a muito poucos.

Terá feito alguns exercícios ligeiros com os colegas, trocado piadas, ouvido a última palestra do treinador antes do jogo que se avizinhava: a estreia da Dinamarca frente à Finlândia para um campeonato europeu que por circunstâncias do universo se iria realizar em diferido, um atraso de um ano em relação à data marcada. Pouco importava: a ansiedade, a vontade, os silêncios eram os mesmos das grandes competições, dos jogos em que tudo tem de ser entregue.

No túnel de entrada do estádio, o nervosismo de Skjaer era o mesmo dos colegas: uma emoção presente mas discreta, quase anónima. Um capitão é um líder e o seu rosto tem de o mostrar em permanência. Assim foi na tradicional moeda ao ar, no sorriso amável que trocou com o árbitro e com o capitão adversário, “bom jogo” talvez tenha dito.

Um 12 de Junho, capitão. Mais um 12 de Junho e o som de um apito e uma bola a rolar e milhões a ver, e corpos, e olhares e velocidade, não os deixar passar e retomar a posse de bola, liderar, dar ordens para os colegas se posicionarem melhor, gritar, não falhar, não falhar, não falhar, este jogo é a nossa vida.

Aos 42 minutos de jogo o capitão da selecção dinamarquesa de futebol profissional percebeu o que era a vida. E não era o jogo, nunca é o jogo. Ao longe, do lado esquerdo, o número 10 da sua equipa cai desamparado, sem razão nem remédio. Não há tempo para pensar, para nada. Isto é a vida, isto é a morte, poderá ter lembrado Skjaer enquanto corria como um louco da sua posição habitual até ao companheiro entregue aos caprichos dos deuses perante um estádio de Copenhaga em choque, perante os colegas e adversários petrificados, perante todos os que viam e estavam arrasados pela violência da fragilidade de flor que é a vida humana.

Simon Skjaer aproximou-se do companheiro Christian Eriksen, reconheceu a situação e agiu, a única forma de existir naquele momento. Protegeu o pescoço do jogador caído, colocando-o de lado e abrindo a sua boca de forma a libertar as vias respiratórias caso viesse a sofrer de convulsões. Passaram 23 segundos até que a equipa médica da selecção adversária, mais próxima do acidente, pudesse chegar e tomar conta da situação. Vinte. E. Três. Segundos.

«Que tempo é este que não é o meu, que não é o de Christian, que não é o da sua namorada Sabrina que vejo daqui em lágrimas? Que segundos eternos me oferecem a mim, a nós, ao meu amigo a um segundo de distância de todos os segundos finais ? De que nos vale?», não terá pensado Simon Skjaer.

Com os médicos já a prestarem a assistência necessária, o capitão teve tempo para fazer o ainda mais belo: ordenar uma cortina humana de pudor. Porque a vida não pode ser escancarada mesmo quando existe a possibilidade iminente de chegar ao fim. Em lágrimas, os companheiros obedeceram.

O resto sabemos. O resto ganhámos. O capitão mostrou-nos como podemos enfrentar a brisa que é a nossa vida. Nenhum 12 de Junho será igual a um 12 de Junho. Assim nos preparemos.

16 Jun 2021

Crónica hospitalar

O olhar em contra-picado, um travelling veloz sobre tectos abobadados, o frio que me envolve, um misto de insegurança e alívio. Plano lateral, os azulejos, que extraordinários azulejos, serão século XVII ou XVIII, uma voz que me interrompe

– Está tudo bem, Nuno? Estamos quase a chegar, diz-me um simpático rapaz de bata verde, o responsável por empurrar o charriot que permite este travelling e sobre o qual estou deitado e o mistério permanece enquanto os corredores se vão desfazendo, os azulejos, aqueles azulejos de que século são, isso é que importa saber, ninguém me responde.

Depositam-me num sarcófago electrónico, mais sorrisos e gentileza cuidadosa, “feche os olhos”, com certeza que fecho os olhos mas acordem-me, foi por ter fechado os olhos de repente que vim aqui parar, não me levem a mal.

Não chego a ver os misteriosos raios que invadem o meu cérebro, só espero que não estejam programados para desvendar algumas coisas que lá tenho alojadas, não seria bom para ninguém e lá se ia a minha parca credibilidade.

Pouco tempo depois o travelling em sentido inverso e para sempre o mistério dos azulejos ficará por desvendar. Estacionam-me enfim numa sala ao lado de outros como eu, camas perfiladas numa simetria que me pareceu inusitada, azáfama silenciosa e diligente de mais batas verdes. Mesmo ao meu lado está um idoso africano, talvez angolano pelo sotaque. Fala muito com as enfermeiras e médicas, sempre rematando da mesma forma

– Vamos todos morrer!, “Vamos sim, senhor Pedro”, diz uma das enfermeiras com o sorriso cansado mas gentil de quem reconhece um freguês habitual. O senhor Pedro continua a insistir no seu discurso apocalíptico e eu penso que me puseram ao lado de uma espécie de alma gémea, talvez tenha a ver com o que o sarcófago electrónico descobriu nas circunvalações do meu cérebro. Vamos todos morrer mas agora não, tenho coisas combinadas. E mesmo sabendo que dificilmente o meu fim está próximo olho para o lado e vejo os meus companheiros de enfermaria num sofrimento manso, expectante e não consigo pensar que ali cada drama é único, ali é o meu drama, um egoísmo inesperado mas real, reduzido que estou a um monte de carne e ossos, despido de todas as minhas afectações, qualidades e defeitos que nada me servem. E talvez por ter sido apanhado em flagrante com estes pensamentos uma enfermeira pede-me que me dispa para vestir o pijama do hospital. A minha resposta veio num tom de indignação circense “senhora enfermeira, um casaco às bolinhas e calças aos quadrados? Recuso, tenha paciência, apesar de tudo tenho uma reputação a manter” e recebo um piropo amável para me acalmar “sim, percebi que o senhor Nuno gosta de estar elegante”, o que sendo simpático é difícil de acreditar para quem naquele momento está com a cabeça ligada. Nessa altura o magnífico senhor Pedro diz a frase do dia

– Vocês aqui só falam de doenças! e eu não contenho a gargalhada, gosto deste humor do náufrago do Titanic que agarrado à bóia tem tempo para indagar o que teria acontecido ao icebergue. O meu companheiro repara enfim em mim, sorri comigo e reconhece um cúmplice para depois voltar ao seu mantra preferido, “Vamos todos morrer”.

Mas desta vez, desta vez olha para mim e mais baixo diz-me “Vamos todos morrer mas eu estou feliz”.
E pela primeira vez a minha exagerada consciência da mortalidade levou-me a desejar a vida, a infelicidade que seja, a dizer obrigado e a já ter saudades e inveja do senhor Pedro.

2 Jun 2021

Elogio da canção

Para quem sinta satisfação em semelhantes exercícios é relativamente fácil contabilizar as pequenas e grandes tragédias que assolam a nossa passagem por este mundo. Falando aqui e agora daquelas que só a cada um de nós diz respeito talvez o maior segredo seja reconhecê-las a tempo e lidar com elas da melhor forma. Uma delas, talvez não a maior, mas certamente bem real e quotidiana, é a nossa permanente desatenção sobre aquilo que torna a vida mais suportável. Não porque o façamos intencionalmente, mas apenas porque o tomamos como garantido.

Fujo dos grandes temas e proponho para este capítulo a existência das canções. Não me parece que exagero quando digo – e digo muitas vezes, acreditem – que se trata da mais perfeita forma de arte popular. Para começar porque se imiscui na nossa vida a ponto de por vezes confundirmos as duas. Todos passámos por isso, amigos: aquele “tema” que soava quando conhecemos o amor da nossa vida, aquela voz e palavras quando perdemos o amor da nossa vida.

Tenho uma teoria que não pretendo tornar universal, mas que certamente tem a sua prova viva neste vosso criado: a nossa vida é um musical de que nós somos protagonistas involuntários. Numa das mais extraordinárias canções da década de 90 do século XX – Songs Of Love, dos The Divine Comedy e escrita pelo insuperável Neil Hannon – conta-se a história de um fazedor de canções que da sua água-furtada vê passar casais felizes proclamando o seu amor à custa das canções que ele, pobre solitário, constrói. É uma canção de um doce cinismo mas nem por isso deixa de ser verdade. É graças a esses trabalhadores-artistas que tantas vezes vamos balizando os nossos sentimentos sem termos a preocupação de lhes agradecer.

Depois há isto: as canções vivem tão dentro de nós que as podemos usar em qualquer ocasião: no carro, na rua, no chuveiro. E têm a capacidade de despertarem emoções mesmo quando estamos distraídos. Conto: há uns dias resolvi ver um filme preguiçoso, ideal para uma matiné caseira preguiçosa. Um filme rasteiro, de “acção” (chama-se The Equalizer, já que não perguntam) e perfeito para manter neurónios e coração em sossego. Assim foi: até que nos minutos finais do filme surge uma banda sonora que a princípio não reconheci por se tratar de uma versão; mas os versos “distant colors, different shade/over with mistake were made/ I took the blame” apanharam-me como um soco no estômago: tratava-se de New Dawn Fades, dos Joy Division, banda com que vivi e vivo e coloco – com alguns discos de Leonard Cohen, Amália e Sinatra – sob o rótulo “manter afastado do alcance das crianças”. E eis o que aconteceu, amigos: subitamente as lágrimas caíram. Não por causa de nostalgias de juventude, que não as tenho – mas pelo imenso poder da canção, capaz de me virar do avesso num ápice.

As canções são animais furtivos mas predadores e, melhor ainda, sem dono. Podem provocar uma espécie de síndroma de Stendhal no dia a dia ou simplesmente fazer com que soltemos um sorriso. E são um permanente e maravilhoso mistério. Uma das primeiras canções que decorei foi Ticket To Ride, dos The Beatles. Adoro-a até hoje e por uma miríade de razões. Mas foi só há pouco tempo que soube o verdadeiro significado do título, mais uma brincadeira marota dos rapazes de Liverpool. A expressão “Ticket To Ride” refere-se ao boletim sanitário que as prostitutas de Hamburgo eram obrigadas a ter em dia para poder exercer a sua profissão. E como os moços floresceram em Hamburgo… bom, é fazer as contas. Subitamente uma canção que lamenta o abandono de uma moça que não aguenta viver com o narrador ganha uma dimensão completamente inesperada sem perder um milímetro da integridade. E isso é tão bom.

Sobre canções tenho tanto a dizer, tanto a agradecer. Revejo o monólogo de abertura de High Fidelity, a partir do livro homónimo de Nick Hornby (“What came first ? Music or the misery ?”) e é um espelho bem-vindo. Saibamos reconhecer essas dádivas efémeras e eternas ao mesmo tempo. Por mim, estaria perdido sem elas. Agora mesmo não sei qual a banda sonora que irá ocupar este meu dia e estas emoções. Mas ela está lá, eu sei disso. Até ao fim de mim, de nós.

26 Mai 2021

Não sermos o que fazemos

You know the nearer your destination The more you’re slip slidin’ away
Paul Simon

 

Faltam menos de dez minutos para o concerto da Lisbon Poetry Orchestra, um colectivo poético-musical que tem a caridade de me albergar como um dos seus. O camarim onde estou, partilhado com músicos e outros que como eu irão dizer poemas ficou miraculosamente vazio, com a excepção da minha presença. Percebo a vozearia nos corredores vinda dos meus colegas e amigos que naturalmente denuncia a excitação que antecede a entrada num palco. Deveria estar também assim, e estou. Mas um ínfimo instante, não mais do que um nanosegundo, foi o suficiente para me deixar assombrar por uma pergunta: “Como é que eu vim aqui parar? “

Na altura não tive tempo para responder. Agora tento, à medida que os dedos se movem pelo teclado com uma autonomia veloz que só me lembra as famosas descrições das experiências “fora do corpo”. A pergunta não se refere apenas à situação em que me encontrava: tem a ver com uma questão maior, quase existencial. Ou seja: nada da minha vida me preparou para entrar num palco e enfrentar plateias. Mas gosto e, ao que parece, não me safo mal.

Por outro lado, também escrevo, sou jornalista e tenho uma série de outras actividades em que me regozijo, muitas vezes díspares entre si.

Como é que vim aqui parar, então? Não sei, ou melhor, suspeito. Mas este frenesim quase renascentista ainda é mal compreendido pela maior parte das pessoas. Percebo: estamos habituados a rótulos que nos apaziguam, a pistas e a uma estranha lógica que me parece perversa e que poderia ser traduzida pelo postulado “diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és”. E quando se faz muitas coisas quem aparentamos que somos é incompreensível para quase toda a gente.

Há pouco tempo um amigo contou-me uma história divertida mas que é exemplar a este respeito. Numa promoção televisiva para apresentação de um júri que iria presidir às escolhas de uma famosa gala da estação, apareciam as fotos dos ilustres jurados acompanhadas de uma legenda: fulano de tal, cantor; fulana de tal, actriz e assim por diante. Acontece que um dos elementos do júri era Vasco Graça Moura – poeta, escritor, político, tradutor, gestor, letrista…enfim, muitas coisas. O responsável da legenda, perante esta dificuldade, não hesitou e saiu-se com esta hilariante amenidade: “Vasco Graça Moura, intelectual de múltiplos talentos”.

Esta ontologia da profissão – és o que fazes, mais uma vez – é limitadora e para mim contrária à ideia de liberdade que possuo e persigo. A vida não é planeada e à medida que nela avançamos as surpresas e descobertas são ainda mais gratificantes. Já aqui escrevi uma vez que o diletantismo é seriamente subestimado. O diletante é o verdadeiro amador, o que ama aquilo em que está empenhado em amar. Que isso confunda os outros é apenas reflexo de uma cultura em que a especialização parece ser o garante de responsabilidade. Não é.

Como é que eu vim aqui parar a pouco mais de meio do caminho da minha vida, para parafrasear o padroeiro desta coluna? Não sei, amigos e esse não saber é bom. Mas sei isto: quando numa ocasião social me dirigem a pergunta da praxe, “Então o que fazes?” já consigo responder sem medo ou hesitações: faço o que gosto. E isso, amigos, é o meu humilde troféu que é só meu. E é por essa possibilidade que vim aqui parar.

12 Mai 2021

O silêncio de Deus

A infância é, para cada um de nós e à medida que a vamos abandonando, um lugar estranho e distante. Por muitos, um lugar desejado, mitológico, idílico, um paraíso perdido de que fomos expulsos sem remédio nem perdão. A tal “land of lost content” de que escreve o poeta AE Housman.

Para outros, em que me incluo, é diferente. Nem paradisíaca nem infernal, apenas uma etapa numa corrida que inevitavelmente irá terminar da pior maneira. Para aqueles que tiveram a sorte de a ter, a infância pode apenas ser – e agora chamo em minha defesa o meu poeta Larkin – um lugar de “forgotten boredom”. As mitificações da infância nunca me interessaram muito porque na verdade a minha utopia foi desde sempre a de ser velho, a de saber mais e poder fazer o que queria à beira da inimputabilidade. Não me levem a mal: adoro crianças e tenho gosto em ouvi-las e vê-las na sua bondade e crueldade em bruto. Mas prefiro ser o que sou agora mesmo.

No entanto, e como aconteceu a muita gente, não sou exactamente quem queria ser. Ou o que queria fazer. O leitor conhece a pergunta porque ainda está a ecoar na sua memória: “O que queres ser quando fores grande?”, perguntaram-nos tantas vezes nessa altura em que mal conseguíamos sustentar a nossa personalidade titubeante. E nós respondíamos, encostados aos nossos ídolos do momento ou às profissões que julgávamos mais aventureiras.

Pela minha parte, a escolha é sortida e foi evoluindo com a idade: piloto de Spitfire pela Royal Air Force em 1940 (sim, eu sei, não digam nada, obrigado), detective privado como o Philip Marlowe, vocalista de banda rock, realizador de cinema, diplomata, jornalista (esta lá consegui), escritor, dandy diletante (esta também, mais ou menos).

Mas reparava que muitos dos meus amigos tinham um fascínio comum: queriam todos ser astronautas. O como e o porquê não interessavam: apenas viajar pelo espaço. Tinha cinco anos quando vi a chegada do homem à Lua e também eu fiquei siderado por aquela extraordinária conquista. Mas não me chegava.

Até que há poucos anos descobri que também gostaria de ser astronauta. Corrijo: um astronauta chamado Michael Collins. Este homem, que morreu a passada semana aos 90 anos, foi para mim um exemplo e motivo de inveja. Integrado na missão Apolo XI – aquela que foi pela primeira vez à Lua – na companhia de “Buzz”Aldrin e Neil Armstrong, Collins foi o homem que ficou no Módulo de Comando orbitando a Lua enquanto os seus companheiros davam os pequenos passos para os homens e imensos para a Humanidade. Um trabalho essencial, rigoroso e discreto. Mas o que para mim é o mais sedutor: de cada vez que o Módulo de Comando orbitava a Lua o astronauta perdia o contacto com o controlo de missão em Houston durante mais de 40 minutos. Por causa disto chamaram-lhe “o homem mais solitário de sempre”, embora Collins não concordasse: ouvia música, bebia café, fazia o que queria durante aqueles minutos de “paz e sossego”, para citá-lo.

Nem terá sido esquecido. A cultura popular encarregou-se disso, às vezes com uma maldade injustificada como foi ter um tema dos Jethro Tull com o seu nome; outras de forma mais digna, como aconteceu na série The Crown.

Mas a questão mais bonita é esta: quantos de nós, quantos de nós experimentaram o silêncio puro, lá onde o som não se pode propagar? Mais: quantos de nós o suportariam, ainda por cima agora, em que o ruído é a divindade que se louva e pratica? O silêncio de Collins é o exemplo maior: um silêncio desejado, aceitado e perfeito para estar em condições de ouvirmos o outro e a nós próprios enquanto pairamos docemente sobre a cacofonia do nosso planeta.

Concordem comigo, amigos: poucos ou nenhum de nós serão astronautas. O silêncio, aquele silêncio, é inalcançável. Um lugar onde não existem respostas porque não existem perguntas. O silêncio de Deus.

5 Mai 2021

Quero é conversa

Todos os reencontros são bons. Mas aqueles que o acaso nos oferece podem ter o sabor do mais doce fruto. Nestes dias reclusos, a sensação de alegria parece ainda ser maior.
Foi o que me aconteceu quando uma destas manhãs deparei com a menina Marina numa carruagem de metro. A menina Marina, para quem não sabe, é uma sábia de bairro que durante algum tempo viveu também nesta página. Depois as vidas mudaram e perdemos o contacto. Mas nesse dia feliz, vislumbrei-a ao longe, o olhar vivo e inquisitivo realçado pela máscara sanitária. Fui sentar-me ao pé dela e ambos estávamos felizes por mais uma certeza do acaso. Conseguimos falar da vida e dos dias entre estações, trocar sentenças e piadas sobre tudo o que nos rodeia, sonhar com tempos melhores e mais livres. Mas uma vez sábio, sempre sábio. E à sua maneira a menina Marina voltou a apontar-me o caminho:
«Olhe, senhor Nuno, mesmo com estas desgraças todas sabe o que mais me falta ? Isto.»
«Isto?»
«Isto. Conversar. Já ninguém conversa, senhor Nuno. E isso não foi causado pela praga. Já ninguém conversa há muito tempo.»
Abençoada menina Marina: mais uma vez tinha razão, o melhor tipo de razão que se pode ter: vivida, sentida e não apenas proclamada ou, pior, imposta. Infelizmente é uma razão triste mas em que não estará sozinha.
A conversação tem desaparecido das nossas vidas a um ritmo alucinante e invisível. Aquilo que, de forma justa e natural, já foi considerado uma arte diluiu-se na instantaneidade do presente. Mas reparai, amigos: já nem falo das épocas em que a conversa era uma das qualidades dos mais prósperos ou educados. Já nem falo, insisto, em que era uma prática bem-vinda, necessária. Em que as mesas de jantar eram campos de batalha onde a única munição permitida eram ideias e aforismos cintilantes. Não, não estou sequer a falar desse tempo dourado onde a própria conversação era alvo de ensaios, análises e entusiasmos. Não, amigos: eu e a menina Marina estamos a falar de agora mesmo.
O prazer da conversa pela conversa tende a desparecer. Não há tempo nem vontade. A conversa vive do diálogo, o que antes de mais significa saber e querer ouvir, algo impossível se permanecermos em trincheiras. “O silêncio é uma grande arte da conversação”, já escrevia William Hazlitt na altura em que isso era possível. Agora não: quem quer ouvir o outro quando há uma caixa de comentários ali ao lado?
Se pensam que esta angústia é anacrónica talvez tenham razão, amigos. Mas de repente deparo com um texto do grande David Brooks – colunista do New York Times e que já aqui incensei chamado Nine Nonobvious Ways To Have Deeper Conversations e que sugere maneiras práticas e bonitas das pessoas conversarem umas com as outras.A data: 19 de Novembro deste ano desgraçado.
Isto entristece tanto quanto é necessário. Brooks sentiu a urgência de ajudar as pessoas a falarem entre si pouco antes da maior festa familiar dos Estados Unidos da América, o Dia de Acção de Graças. É um texto prático, nada paternalista mas melancólico pela própria existência. Entre episódios e anedotas somos lembrados de que conversar é precioso porque, entre outras coisas, nos liberta de nós mesmos para dar lugar ao outro. A conversa, para além de troca humana, obriga no seu melhor a colocar o interlocutor em primeiro lugar. Como exemplo maravilhoso do que agora afirmei repito o que Brooks foi buscar a Lady Randolph Churchill (mãe de Winston) e que resumiu na perfeição este sentimento ao dizer sobre dois primeiros –ministros ingleses que quando ouvia falar Gladstone sentia que o homem era o mais inteligente de Inglaterra; mas quando conversava com Disraeli era ela que se sentia a pessoa mais inteligente que alguma vez existiu.
Conversar é também isto: uma arte de sedução. Mas fundamentalmente é sempre um câmbio de opiniões sobre seja o que for. Ao perdermos esta possibilidade deixamos fugir mais do que pensamos – a própria ideia de liberdade. Por isso conversai, amigos. Seduzam-se, contrariem-se, concordem, discordem, riam, chorem. Estamos a ficar sem rosto e sem voz. Façam isso, nem que seja pela menina Marina.

16 Dez 2020

Os cometas da amizade

[dropcap]A[/dropcap]té ao momento em que escrevo estas linhas não existe, ao que eu saiba, uma bolsa financeira das palavras. Nenhuma delas, numa lógica meramente materialista, estará mais bem cotada do que outra qualquer. E bem, até porque mesmo para isso seria difícil encontrar um critério objectivo que ajudasse a valorizar cada vocábulo. Por exemplo, para mim um belíssimo palavrão dito na ocasião certa vale um milhão de vezes mais do que a palavra “implementar”. Ou de outra forma, pagaria muito mais por ver escrita a palavra “dependência” em vez do que agora passa pelo seu sinónimo – “adição” -, que para mim se resume a uma operação aritmética. Mas enfim, é por esta e por outras que não tenho um gabinete em Wall Street.

O que é verdade é que na nossa língua existe uma expressão idiomática, em regra aplicada em tom depreciativo, e que é “palavras caras”. Significa, como todos sabemos e mesmo assim aqui estou a explicá-la, um conjunto de vocábulos utlizados de forma rebuscada, eruditos ou não, mas que normalmente não ajudam à compreensão da mensagem. A expressão foi muito popular aquando dos discursos do antigo Presidente Jorge Sampaio ou, para quem gosta e se interessa pelo futebol português, sempre que o treinador Manuel Machado resolve dizer seja o que for.

É de facto um mal menor, trivial, assunto evanescente. Mas, e agora se me permitem, abandono por um momento a leviandade para tentar dizer ao que venho. Se de facto não vejo uma hierarquia das palavras percebo nesta expressão outro sentido e provavelmente mais próximo da origem: aquele em que o adjectivo “caras” não se refere a um valor material mas sim àquilo que ao início queria dizer: algo querido, estimado, único. Algo que ainda sobrevive, apesar de tudo, nas formas epistolares de cortesia: “caro senhor, caro senhora”. Já dizê-la em conversação hoje em dia pode denotar arrogância: “Meu caro, não é bem assim” não demonstra a estima pelo interlocutor mas geralmente um prelúdio de massacre.

Fiquemos então pelas palavras queridas. E uma há, que aqui utilizo como artificio de escrita e convite para o leitor se sentar à mesa que é “amigo”. Como “amizade”, é-me de facto uma palavra cara e que utilizo com parcimónia nos meus dias. Nem sempre terá sido assim e ainda bem: a idade é um filtro. Isto para dizer que já não me é fácil chamar “amigo” a um mero conhecido: a palavra ganhou gravitas, sentido e raridade.

Necessita de tempo e constante cultivo para que se substantive em alguém. O que não precisa é de assiduidade. Existem amigos que infelizmente só os notamos quando desaparecem, deixando uma espécie de rasto luminoso. Nessa altura, quando a perda nos abre os olhos e o coração, percebemos o cometa que passou pelas nossas vidas, tantas vezes de forma discreta e quase sempre nunca devidamente apreciada.

Uma conversa breve, uma palavra no tempo certo, uma disponibilidade imediata aquando de uma crise qualquer: isso, parece-me, cabe na amizade. E depois, quando enfim e de repente a noite os leva para sempre, fica-se apenas com uma mão-cheia de palavras por dizer e quase todas soam a obrigado. Eu sei: passou-se comigo há pouco tempo. A única redenção e gratidão possível é fazer que isso nunca mais aconteça e apanhemos estes cometas ainda em pleno voo, a tempo de os abraçar.

16 Set 2020

O Tédio sempre existiu

«- Don’t tell me Venice has no lure!
– Just a town without a sewer!»
It ’s a bore!, canção de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe para o filme Gigi.

 

[dropcap]N[/dropcap]o musical Gigi, retirado do romance maravilhosamente amoral de Colette e transportado para cinema por Vincent Minelli, o protagonista masculino sofre de uma enfermidade que não vê maneira de curar. Bonito, jovem e rico, um dândi ocioso que tem Paris aos seus pés, reuniria todas as condições para uma existência tranquila e livre. Mas não: sofre de um tédio profundo. Tudo: desde cidades, pessoas, amores, beleza,… – tudo o aborrece de morte. E de facto, atacado por esse mal, é a vida que desaparece.

Lembrei-me dele (e para variar na canção que sei de cor) quando estava a ler um magnífico artigo-ensaio de Margaret Talbot, publicado na revista The New Yorker com o título What Does Boredom To Us – And For Us ?

A própria escolha do tema deixou-me curioso e com algumas perguntas. Será possível existir tédio nos nossos dias? Quando a velocidade de informação é tanta, os acontecimentos parecem chegar em catadupa, o ritmo de obrigações quotidianas nos obriga a não estar quieto por um segundo que seja? Catástrofes sortidas, ditadores em flor, identitarismos de faca na liga, praga em acção. Haverá tempo para estar maçado?

Um conceito tão novecentista, tão fin-de-siécle… Ou não? Nas últimas duas décadas houve um surto de estudos e ensaios sobre o tédio, vistos de uma perspectiva psicológica, clínica e até política. É evidente que o assunto não é novo – a filosofia e a literatura têm-no sob observação há milénios. Mas é o advento da modernidade que dá sentido e palco a este inefável sentimento, «um desejo por desejos», como o definiu Tolstoi. Heidegger, por exemplo, dedicou-lhe bastante atenção e chegou a classificá-lo em três géneros: o tédio mundano, que acontece por exemplo quando se está à espera de um comboio; um mal-estar mais profundo que associa à condição humana; e o estado mais grave e incompreensível que resulta da falta de algo que não conseguimos nomear mas que nos é familiar. Mais sisudo e ainda menos solar, Schopenhauer já tinha antes avisado que a vida não era mais do que um movimento pendular entre o desejo e o tédio. E por aí fora: até o punk usou o tédio como arma de arremesso (os Clash, por exemplo) e, noutro nível, são famosas as considerações de Adorno sobre a estreita ligação entre o tédio e o capitalismo moderno, que oferece teoricamente mais ócio mas não o resolve.

O tédio não tem o chique da melancolia e muito menos do ennui. É um sentimento cinzento, de uma ausência qualquer que se percebe mas não se lamenta. E em resposta às perguntas que fiz no início da crónica existe ainda em plena pandemia, como uma força e uma permanência inesperada. Vários estudos feitos em países muito afectados pela COVID-19, como a Itália, demonstraram que o tédio segue-se logo à angústia da incerteza sobre o que irá acontecer com a doença.

Não irei aqui arriscar nenhuma explicação , preferindo remeter para a já vasta bibliografia sobre o tema. Mas para não entediar mais o leitor, termino com uma nota sobre o que o tédio pode fazer por nós. Reclamar e praticar o direito à resmunguice, à queixa. Parece pouco em tempos trágicos e difíceis como só de agora mas devolve-nos a familiaridade e variedade da vida. E de facto, muitas vezes é o resmungar que nos ajuda a sobreviver.

9 Set 2020

A obsessão da solidão

[dropcap]U[/dropcap]m dos meus ídolos – Nelson Rodrigues – celebraria o seu aniversário no passado dia 23 de Agosto. Fui lê-lo. E lembrou-me que só os imbecis não são obsessivos. O génio, o santo, o pulha, o herói: segundo ele terá de sempre haver obsessão na vida. Ele sabia e quem leu as suas magníficas crónicas – e vamos deixar de fora o resto – percebe a mesma nota que ecoa nos mais variados acordes. A escrita é formulaica na forma, livre e convicta no conteúdo. Um génio de várias notas só.

Todas as semanas, caso não exista um acontecimento extraordinário que justifique uma epifania e a legitimidade de maçar os leitores há para quem vos escreve um exercício que não pode passar da cortina: o tema, os artigos, a disposição – isso é com quem está deste lado. Mas e quando acontece que o assunto aparece fluido, natural, com tanto para dizer que as palavras encolhem ainda mais? Bom, isso é porque nessa altura quem escreve choca de frente com a vida ou no mínimo com algo que há muito tempo acha que a vida é ou necessita. Não se trata de urgências confessionais – o que provavelmente não seria mau para a conta bancária mas péssimo para o estilo e para vós – mas sim de algo que nunca nos deixou e só quando nos desafiam a regressar às cavernas da alma pode aparecer. Uma obsessão, uma ideia fixa. Como isto da solidão.

Por questões profissionais fui levado a escarafunchar a definição de soidão, algo que para mim seria tão pacífico. Mas não é e nunca foi. Apenas um visionamento da pomposa France Culture ajudou – por uma vez que seja – a discernir em modo contemporâneo algumas nuances do que aqui não queria saber. Num pequeno clip tantas conjugações. O grande Omar Sharif, como belíssimo jogador de bridge que foi, esconde o jogo com uma quase tautolgia : “Não sei se gosto se não gosto – mas sei que quando não a tenho me faz falta”

Juliette Gréco, musa existencialista do seu tempo e com a força da flor da idade faz o que qualquer musa existencialista francesa na flor da idade faria: tergiversa e não diz nada, contando com as pestanas filosóficas para falarem por ela, o que nessa altura, sim, a deixam sozinha.

Nesta antologia de pretensiosismo só Renoir e Cocteau escapam. Renoir : a nossa época tem inconvenientes- a solidão é uma delas. E a forma de lutar contra isso é a arte – o que não deixa de ser contraditório, já que a criação é uma actividade solitária.

Cocteau prefere os aforismos, território que lhe é mais familiar e que domina com prazer e razão. “A falsa solidão é a torre de marfim”, para a logo a seguir completar: “A torre de marfim é sempre um desejo de espectáculo”. Tudo não passaria de exercícios de paradoxos elegantes se não rematasse com um lugar-comum – logo, verdadeiro: “A verdadeira solidão está no meio de muita gente”.

De facto: a solidão é não estar sozinho. Muitas vezes nem sequer é ser solitário, porque esta ontologia da solidão pode existir derivada a uma escolha do individuo. Melhor ainda: a sua ostentação é muito sedutora.

Como descobri por mim próprio e de forma involuntária, o tipo sozinho no fundo do balcão desperta mais curiosidade do que o rei da pista de dança. Mas não quero falar outra vez de Sinatra.

Está tudo registado, felizmente. Desde os tempos bíblicos até agora são tantas as declinações que é impossível aferir uma definição – e por extensão, uma qualquer pureza – do que é a solidão. Eu e o leitor temos sorte. A nossa solidão, qualquer ela que seja, é feita de costas quentes, de família, amizades, escolhas. Mesmo quando confundimos estar só com ser livre – e agora falo por mim – sabemos balizar a geografia da ausência do Outro, isso sim comum a todas solidões. Estes dias pandémicos ofereceram-nos violentamente a verdade desta proposição. E também a forma como fugimos desse espelho como o diabo da cruz.

Gosto de estar sozinho mas a verdadeira solidão, para mim, parte de uma vocação mística, desejada. Ou ainda mais difícil, aceitada. Escrevo não só pela obsessão, que a tenho – nascemos sós, morremos sós etc – mas que é uma afectação trivial quando comparada com a vida que nos atiram à cara. Explico: li a história de um cidadão nonagenário que perdeu a mulher que amou e com quem partilhou os dias até ao fim. Agora não tem nada. Arrasta-se pelos lugares que lhe são familiares com um vazio irreversível. Quando perguntado diz que já nada lhe interessa, mesmo rodeado de quem o estima. À excepção de um momento ritual e ansiado: aqueles instantes diários em que com um ramo de flores se dirige à campa da mulher e com ela fala. Sem ninguém a rodeá-lo, absolutamente sozinho e sim, repito: todos os dias.

É uma história que parece triste mas não conheço uma solidão que desejasse tanto, que tanto me obceca. Esta vontade de estar perto da ausência do Outro que amamos ou louvamos, sem ruído, sem mundo. Saber enfim que a solidão nunca estará sozinha.

2 Set 2020

Brevíssimo ensaio sobre o ciúme

Este fogo
Que só com fogo
Se pode apagar
Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu

 

[dropcap]H[/dropcap]á pouco tempo aconteceu isto: um jantar de amigos a decorrer segundo todas as normas de segurança, pelo menos aparentemente. No essencial, que é a amizade e a alegria, as normas foram mandadas às urtigas que não há máscara que sustenha este contágio benigno. Mas divago. Um jantar, dizia. A dada altura aproxima-se da nossa mesa um cavalheiro que saúda todos mas em particular a mulher de um dos amigos que jantava à minha frente. Trocaram meia dúzia de palavras, um sorriso e o homem despediu-se e foi à sua vida. Mas eu, que estava à frente do casal vi: a face em chamas do meu amigo, o olhar rútilo em direcção ao estranho, dardejante, violento. Espantei-me, nunca o tinha visto assim. Perguntei a quem estava a meu lado se tinha reparado naquela extraordinária reacção de um indivíduo que eu tinha como pacato e fleumático. «O tipo que veio aqui dizer olá foi namorado da mulher dele. Aquilo que viste são ciúmes».

Ciúme! Que emoção injustamente esquecida, filtrada como podemos pelas nossas convenções e educação. Algo que parece anacrónico e remoto. Mas existe, oh se existe. E toca a todos, direi. A minha amaldiçoada memória musical atacou de imediato, lembrando uns versos de Cruel dos Prefab Sprout, talvez uma das melhores canções sobre essa inquietação em labareda e a forma como lhe tentamos fugir sem êxito. Diz o narrador: “I’m a liberal guy, too cool for the macho ache” e daí segue para a afirmação de que apesar disso não suporta a visão da mulher que ama a dar atenção a outros.

Há uma longa herança de anatomias do ciúme. O que não existe é muitas formas magnificas de o confessar. Othello de Shakespeare leva a coisa ao limite e pelo caminho é um aviso ao que somos como humanos – mas esta conclusão é a que podeis esperar deste nem por isso solar cronista.

Vou talvez dizer algo que não vos importa mas que cabe aqui: o amor não é livre, caramba. Implica desejo, amizade, toque, proximidade e sim – posse. Posse recíproca, acordada, enfim não sei. Tudo menos livre no sentido de “vai e faz o que te apetecer”. Quando esta formulação aparece quem já viveu um bocadinho sabe que não é um convite mas sim um desafio.

Querer que alguém que amamos nos dedique toda a atenção é parvo e pode ser perigoso. Se realmente amarmos esse alguém o que nos pode confortar e envaidecer é justamente o contrário: que os outros se encantem com o nosso ser amado, que o deixemos ser o que sempre foi e – eis o milagre! – que depois dos olhares regresse para o pouco e tudo que somos. Se é fácil? Não. O ciúme é um exercício de insegurança e de vaidade que afecta todos os que amam com variados graus de intensidade. Mas é um instinto primevo e o desgraçado do bardo inglês percebeu-o: o monstro de olhos verdes. Não faz distinções nem poupa ninguém, mesmo o que lhes querem fugir, por mais eruditos e ponderados que sejam. Vede como a história do grupo literário de Bloomsbury correu. Ou a patetice do “amor livre” da contracultura beat e hippie. Ou todas as tentativas civilizadas e cultas que o mesmo tentaram professar. Nem Byron, nem Casanova nem os libertinos nem mesmo os Cínicos de Diógenes conseguiram escapar a esta jaula gentil que o amor traz. Só que não é a jaula que importa mas sim lidar com as chaves.

A ilusão da fronteira do amor é desenhada pela forma que se ama. Não há melhor nem pior e nem sequer aquela que parece mais descontraída é a menos possessiva. Por mais vividos, urbanos e mais coisas que sejamos o que tememos sempre é a perda, neste caso de alguém que amamos muito. Ou seja: muito parecido com o provável sentido da vida.

26 Ago 2020

A arte do reencontro

[dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos: agora mesmo e enquanto escrevo esta crónica atipicamente não tenho mais nada que dizer que não seja o que me esforço por fazer passar. Não tenho episódios veraneantes, explicações da ausência, citações pretensiosas, indignações sortidas, confissões de estados de espírito ou, como é o estilo desta coluna, tudo isso misturado. Irá acontecer, não duvido. Mas por agora só esta vontade única e irreversível de me sentar convosco para conversar. A minha ambição como cronista é esta: olhar toda a gente nos olhos e conversar e ouvir. Talvez seja pouco mas sinceramente esta atitude tende a ser menos praticada. Seja por escrito seja na chamada “vida real”.

Então, pela primeira vez desde que aqui estou não tive dúvidas: isto é um regresso e já aqui falei de como prefiro regressos a partidas e de como a segunda é essencial à primeira. É certo que o conceito não terá sido bem tratado pela literatura clássica e que Ulisses não teria necessidade de chacinar 42 pretendentes de Penélope (aceito correcções sobre o número de baixas, escrevo de cor) quando voltou a Ítaca. Mas quem sou eu? Respondo: sou o tipo que prometeu não fazer alusões pretensiosas no primeiro parágrafo. Enfim.

Ao que interessa, então. Numa destas crónicas tentei sinceramente partilhar o que é uma perda de amizade. Coisa dolorosa, maléfica e que tantas vezes deixa mais mazelas do que a perda romântica. Ainda continuo a acreditar no que escrevi. Mas e o reencontro com a amizade perdida, amigos? Esse momento extraordinário em que depois de tanto tempo e de argumentos de que já nem nos lembramos somos devolvidos de forma bruta mas ao mesmo tempo familiar ao que nunca nos terá deixado? Isso é precioso e feliz e quando acontece deparamos com uma estranha mistura de sentimentos, resumidos em duas frases: “O que aconteceu?” e “Agora quero lá saber”.

A amizade é livre, mais livre do que o amor. Isso não a torna moral ou eticamente melhor, até porque seria falácia a comparação. No amor conseguimos perceber quando acaba ou falha; na amizade – e falo da grande amizade – não é assim: a menos que de permeio exista pulhice à séria de uma das partes, fica-se num limbo de perguntas e respostas. E os dias, e as horas e os minutos vão passando. Nós vamos passando, passando como podemos com um vazio qualquer que nos chama nos momentos mais inoportunos e que são todos.

Depois, se tivermos sorte, existe um instante mágico – esse do recomeço. E estranhamente tudo parece familiar, como se todo o tempo que passou tivesse sido congelado num frame da nossa vida e finalmente libertado por um demiurgo benigno. Sim, amigos: o regresso da amizade contém todos os regressos. Vinicius dizia, provavelmente com razão, que a vida é a arte do encontro. Eu acho que é a arte do reencontro. E apetece escrever ou reescrever o mundo. Ou mais simplesmente frases ditas no cinema, como agora o faço: acho que este é o reinício de uma bela amizade.

19 Ago 2020

Não sabe, não responde

[dropcap]É[/dropcap] preciso não ter medo de o dizer: todos temos um pequeno livro de embirrações, algo inofensivo, mas nem por isso menos verdadeiro. Nesse inventário do quotidiano que nos aborrece podem caber pessoas, lugares, gestos ou, como é o episódio do que aqui se dá conta, comportamentos que atrapalham os dias. No meu caso nem é preciso ir mais longe: este já é o segundo texto em que falo destes parasitas pessoais, sendo que o outro, escrito num tempo e galáxia distante, ainda está válido. Se isso faz de mim um rezingão insuportável? Talvez, e com tendência a piorar. Mas ao que interessa por agora.

Primeiro pensei que fosse mania, afectação, maneirismo, sei lá. A coisa não deixava de me perturbar, mas nunca a tal ponto que merecesse que pensasse e escrevesse sobre o fenómeno, como agora mesmo.

Mas a verdade é que ao longo dos anos e apesar da facilidade das tecnologias de comunicação a irritação manteve-se. Pior: graças exactamente a isso foi perdendo desculpas e razão. E assim o mistério do porquê desta tradição foi-se adensando, adaptando-se aos tempos hodiernos e sem perder um ínfimo de irritação.

Desvendo, antes que a vossa paciência escasseie tanto quanto a minha quando isto acontece: trata-se da não resposta, a ausência de resposta a um pedido ou a uma pergunta directa e profissional. Nem sim nem não: nada, népia, nihil. Na minha vida profissional isso acontece há muito e agora – apesar do correio electrónico ou WhatsApp ou as mil e uma formas que temos para nos iludir de proximidade -, agora, escrevia eu, tornou-se pior. Uma pessoa escreve: “Gostaria de o convidar para tal e tal. Aguardo notícias”. Depois, e durante dias, o silêncio. E a minha irritação. O mesmo para entrevistas ou combinações simples e informais:

“O que achas de etc etc? “. Dias, semanas com o vento soprando na planície e as proverbiais plantas do deserto rebolando à minha frente.

A sério, não percebo. Eu estava habituado a isto com namoradas: o silêncio é igual a rejeição. Com isso lido eu bem, a ponto de o ter feito o meu fato de domingo. Mas uma pergunta simples com resposta simples? Vai não vai, sabe não sabe, gosta não gosta? Um mistério e uma profunda embirração.

Não quero passar a pedir respostas como se tivesse uma doença terminal e esse fosse o meu último desejo. Isso é estúpido. Francamente, trata-se apenas da ausência de uma coisa básica: boas maneiras. O que é mais simples, democrático, transversal e ao alcance de um teclado. Não me lixem.

Dado a minha pouca mas significativa experiência com contactos internacionais estou inclinado a pensar que este padrão de comportamento seja mais um atavismo nacional. Pois que o seja, e que isso seja decretado e proclamado. Se é uma coisa portuguesa, as Finanças irão perceber a minha ausência de resposta. É um costume, por Deus. Esperem aí que já vos atendo. Ou então não.

22 Jul 2020

A cidade, esta cidade

[dropcap]O[/dropcap] restaurante de bairro onde por vezes me albergo é igual a tantos outros: simples, pequeno, ecrã gigante com a emissão que varia entre noticiários e jogos de futebol. É o proprietário que cozinha (sempre sem dispensar o seu boné) enquanto a mulher serve as poucas mesas que agora podem ser servidas. A comida é barata, oito pratos por dia e pouco dados a aventuras ou exotismos.

Mas não é a excelência culinária que ali me traz nem sequer o facto de ficar a dez passos de onde moro. É porque ali há gente que reconheço serem da minha cidade. Na mesa em frente à minha sentam-se sempre os mesmos clientes, prontos a discutir animadamente tudo e alguma coisa. Usam expressões como “o problema é o COVIDIS [sic]” ou interjeições de origem misteriosa como “Eu sei mais do que a Amália!”. É gente modesta, moradora de um bairro popular que me devolve sem saber a cidade que estou em risco de perder.

Entendam-me, amigos: a cidade de que vos falo e a sua autenticidade não tem nada a ver com aspectos mais folclóricos ou a noção falaciosa (e perigosa) de que o “povo” é que é verdade. De resto, este conceito zoológico do que é o “povo” remete-me logo para os versos de Cesariny: “Vamos ver o povo. /Que lindo é. Vamos ver o povo./ Dá cá o pé. // Vamos ver o povo. / Hop-lá! Vamos ver o povo. / Já está.”

Não: a minha cidade ainda vive em todo o lado, escondida mas resistente. Eu cresci num bairro de classe média, fiz amigos e cúmplices numa zona também burguesa da cidade. Isso torna-nos menos verdadeiros, menos genuínos ? Não. A minha cidade é feita do engraxador à beata emperiquitada que leva para a missa casaco de pele em Agosto.

Porque – e agora sentavam-se aqui por um momento, amigos – porque a cidade é feita de gente, o que quer dizer que carrega com todas as imperfeições do mundo. Mas são essas imperfeições que muitas vezes formam a raiz do que nós somos, do lugar onde vivemos.

Agora não. Talvez já tenha estado pior, antes do “Covidis”, como insiste o meu vizinho. Só que uma pandemia é só isso: uma praga, um perigo. Não é uma força bíblica e moralizadora, destinada a tornar-nos pessoas melhores ou a fazermos actos de contrição. É uma doença que mata e que nos obriga a proteger e quero lá saber se por causa disso os brontossauros voltaram às ruas. Sei que há gente que morre e gente que se esfalfa para que isso não aconteça.

Sei que, pior do que a minha cidade estar de máscara, é que a querem mascarada. Cores garridas nas ruas, conceitos balofos e multiusos como o de “mobilidade” e uma lógica mercantilista feroz tende a destruir o coração simples de qualquer cidade, que toma várias formas ao longo dos séculos. E esse coração chama-se comunidade e não tem fronteiras, apenas um sentimento de pertença que pode ser sentido por qualquer um.

Não, não se trata de turismo ou da discussão da gentrificação. Para mim, neste cenário, tudo se tornou mais simples: ou ficamos com coração ou optamos por um aglomerado urbano. Sou lisboeta, sei o que quero e o que quero que não me tirem. Há muito que me apaixonei por esta senhora, umas vezes marquesa outras puta mas sempre com o melhor vestido puído nas fímbrias do rio que a namora tanto como eu.

15 Jul 2020