Suspiro

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi depois da partida daquele amor que ela deu início ao seu jardim interior, que contemplava em momentos de maior aflição. Tornou-se vital criar raízes suplementares que a agarrassem ao chão sempre que este ameaçasse fugir-lhe debaixo dos pés. Acontecia a todo o momento. Ponderou, todavia, que não podia dar-se ao luxo de abrigar árvores de corpo inteiro, copas gigantes e ramos entroncados – teria de começar por plantas de pequeno porte e arbustos miúdos, raízes-penugem, de outra forma, como sustentar no tempo por vir o peso tomado entretanto para si? Além disso, as árvores acabariam por lhe exigir anos de pensamentos concêntricos antes que pudesse deixá-los fluir, e aos fragmentos dolorosos de si, através das ramadas finíssimas e das folhas quando chegasse a altura de se desprenderem, cansadas de se suportar, à medida das estações do ano.

Sentada no sofá da sala, o olhar preso do filme interior que discorria em câmara lenta para trás e para diante, sem nunca se cansar de o ver, balouçava o corpo num ritmo de quem queria só ir. Felizmente as raízes entretanto nascidas nas plantas dos pés puxavam-na de volta ao lugar em que, apesar de tudo, se obrigava a habitar. Pegava, assim, na chávena de porcelana, e sorvia um sopro de vida no chá quente.

O filme: certa vez tinham os dois viajado para um país de bosques e casas de madeira. Ansiavam por passear de mãos dadas, atentos aos sons e aos cheiros locais, por vogar nas águas do grande lago nas proximidades e, à noite, por assomar à vila, procurar os seus habitantes e talvez rir com eles. Inventaram tudo isso ao longo de três dias deliciosos, em que não abandonaram o quarto. No dia de regresso despediram-se do bosque encantado, do lago misterioso e das pessoas que tanto lhes haviam dado. Germinavam felicidade.

Àquelas lembranças o estômago contraía-se-lhe num aperto indizível. Dobrava-se então sobre as raízes ainda tenras e incapazes de sustentar tamanha perdição. Houve que lançar novas sementes dentro de si e conceder que botões de rosa minúsculos lhe despontassem no estômago. Suaves como a suavidade de que precisava para acalentar aquele lugar de dor recorrente. As rosas elevá-la-iam na justa medida das suas hastes trepadoras. Ténue, mas inexoravelmente, haviam de subir pelo avesso de si, redefinindo-lhe uma ossatura fibrosa sem a sobrecarregarem – e isso era importante. Os botõezinhos acomodaram-se, pois, àquele caramanchão quente e floresceram em rosas-púrpura. O seu estômago exalava um perfume maravilhoso e ela deu por si a ensaiar movimentos que não comandava, passos de dança inesperados e absurdos; estava longe dela pensar sequer em dançar. E ainda sem que conseguisse explicar porquê, sentiu que devia soltar o cabelo que trazia arranjado numa trança em redor da cabeça. E foi o que fez.

À medida dos dias, o espelho grande à entrada da casa devolvia-lhe a imagem de uma mulher a caminho de jardim. Nos cabelos dela despontavam brincos de princesa e lírios do campo e uma ou outra papoila bela como só as papoilas o sabem ser. Apeteceu-lhe tornar-se tão pequena que lhe fosse possível correr naquele abismo campestre que lhe tomara a cabeça, com a vantagem de o saber infinito, já que era redondo, como a Terra. Certo dia concentrou-se, olhos fechados, pensamento suspendido: começou por ouvir um zumbido de abelha, depois um bater de asas de cigarra nos dias em que o sol parece brotar directo do chão. Num sonho só de serenidade deixou-se ir através de um campo de espigas e, assim que viu uma papoila, correu a abraçá-la. A papoila também a apertou nos braços e depois estendeu-lhe um cestinho merendeiro, cheio de bolos de canela. Aquela proximidade revelou-lhe não ser a flor uma verdadeira papoila, mas a própria Capuchinho Vermelho. Então ela admirou os pézinhos leves daquela menina corada, um pouco parecidos com os seus, rodeados de uma penugem fina feita de raízes dançarinas. Deram-se as mãos e correram e saltaram pelo prado a imitar gazelas, rãs e andorinhas. E estavam entretidas nisto quando deram com um lobo cinzento a experimentar brincos de princesa nas orelhas felpudas. Convidaram-no logo a correr com elas e acabaram os três a saltar à corda. Passaram uma tarde deliciosa e foi só quando o sol mergulhou naquele mar doirado pontuado de flores, que ela viu os amigos desvanecerem-se a seu lado enquanto riam alto e lhe enviavam beijos de despedida ternurentos. A um tremor do corpo reencontrou-se na sua sala, ao lusco-fusco, o chá frio incapaz de lhe instilar vida. Levou as mãos à cabeça pensando que talvez recuperasse as criaturas sublimes para jantarem consigo. Mas nas mãos só grãos de terra, algumas sementes e sim, um pequeno caracol tão enfiado dentro de si que ou partira de vez ou se escondera como se para sempre.

Todavia, o encontro com o caracol deu-lhe o alento de que precisava para se levantar e caminhar até à cozinha obscurecida. Pousou o bichinho numa mesa junto à janela e dispôs-se a viver mais um pouco. E se preparasse um jantar para o caracol? Era uma ideia tão boa como outra qualquer. Prontificou-se a retirar de um louceiro de mogno polido um prato do serviço das visitas que não tinha, debruado a fio de ouro. Sorriu levemente ao pato real que voava no rebordo a que nunca escaparia. Tomou o peso ao prato e ocorreu-lhe que era pouco mais pesado que a casca do caracol. De uma gaveta do mesmo móvel escolheu um garfo, uma faca e uma colher de prata que não serviriam para nada, mas ajudariam a compôr a mesa que ela queria oferecer à sua visita. Noutra gaveta procurou um guardanapo de linho com rosas bordadas por ela num tempo de que não se lembrava. Finalmente, um copo de cristal onde habitavam veados minuciosamente cinzelados. Depois encaminhou-se para o quintal da casa.

O quintal era maior do que a sua casa de três divisões. Selvagem, verde, inebriante. Estava escuro e, assim que ultrapassou a porta de sacada da sala para o passeio de tijoleira, deu consigo a chapinhar. Apercebeu-se de que caía uma chuva miúda pelo que se apressou a enterrar-se na terra molhada e a deixar que as finas raízes nas plantas dos pés absorvessem a humidade que, pouco depois, lhe corria nas veias. A mistura de sangue e seiva conferiam-lhe um brilho especial à pele e ela sentiu-se crescer. Elevou os braços e tocou os ramos da magnólia a que normalmente não chegava. Depois lembrou-se de que ali fora em busca de tomilho fresco, que tencionava servir ao caracol. Isto se o caracol sempre existisse para além da casca.

Colheu algumas hastes da erva e logo lamentou estarem molhadas – não era natural que o seu visitante as fosse apreciar, imaginava-o a preferir iguarias transportadas em caravanas coloridas através de desertos inóspitos, em que tudo sabia garantidamente a seco. Pousou as hastes sobre o oleado de xadrez da mesa de cozinha e surpreendeu-se por distinguir tudo à volta como se tivesse acendido a luz. Que permanecia apagada. No entanto, ela via e deixava de entrever o vulto do caracol uma e outra vez – acabando por perceber ser ela própria a fonte de luz cadenciada, a partir do alto da sua cabeça-prado. Procurou o espelho à entrada de casa e fascinada, descobriu um rosto ainda de mulher mas em cujo cabelo, para além das flores, da erva, das espigas e lírios-violeta, cintilavam agora pequeninas estrelas: pirilampos. Eram eles quem desenhava os caminhos de intermitência que ora abriam ora fechavam círculos de luz à sua frente. Voltou à cozinha e sentou-se à mesa num banco de madeira, de frente para o caracol. Os pirilampos piscavam a sua coreografia natalícia e, a determinado momento, ela notou que a casca de caracol continha de facto um corpo minúsculo encolhido. Parecia um embrião. Chamou-o devagarinho, caracol caracolinho, muitas vezes, muitas vezes mesmo, experimentando tons de voz diferentes e até línguas desconhecidas. Deu por si a ensaiar uma cantiga de embalar a um embrião por nascer; então o seu corpo escolheu acompanhar o ritmo de vaivém da melodia e as raízes nas plantas dos pés flutuaram ligeiramente acima do soalho, as mais frágeis de entre elas feitas uma penugem que esvoaçava ao sabor de correntes de ar imperceptíveis. Finalmente, caiu num sono profundo.

O sonho: uma infinidade de beijos, a soma de todos os que haviam dado com a dos que não tinham chegado a dar. Ela procurava reter o cheiro da pele dele e cumprir o número infinito de vezes com que prometera saudá-la, docemente. Ele ria: de felicidade, das cócegas, do mundo lá fora tão sério quando tudo era tão engraçado. A caminho do infinito ela adormeceu de bruços para um sonho dentro do sonho e foi a vez dele pousar os lábios sobre o corpo dela, professando o desejo dos dois rumo ao número impossível. Ao longo do dia chegaram a ser um único beijo planetário, capaz de encher a casa onde moravam e até de tocar cada erva do jardim que a abraçava. Foram dormindo e acordando, observando-se num silêncio cúmplice. No único momento em que ela desviou o olhar para o ramo de flores silvestres à cabeceira da cama surpreendeu um pequeno caracol sobre um galho seco. Pensou que havia de levá-lo para junto do tanque no jardim, antes que a noite caísse.

Acordou anos depois, curvada sobre a mesa da cozinha, desperta pelo frenesim matinal dos pássaros excitados com o festival de orvalho que sucedia à chuva da noite anterior.  Deveriam estar a tomar banho, a beber e a tratar de dar de beber água aos filhos. Era uma situação que noutro tempo lhe teria dado vontade de rir e apreciar ao vivo: os pássaros pareciam perder o juízo, atropelavam-se, chamavam-se nomes, namoriscavam as penas lavadas machas e fêmeas, nada no mundo seria capaz de os desiludir em tais alturas. Mas agora a sua gritaria alegre era-lhe quase insuportável aos ouvidos. Desviou a atenção para as próprias mãos e julgou ver raízes – mas ainda não, era só impressão, as suas veias é que palpitavam animadas com a seiva fecundada pela chuva. Quando levantou a cabeça deparou com o caracol à sua frente, no exacto sítio onde o tinha deixado. Olhava para ela e, no cimo dos pauzinhos, os seus olhos sorriam.

Ela procurou as hastes de tomilho, que encontrou intocadas. Perguntou ao caracol se queria que ela o servisse, mas ele disse que não apreciava tomilho fresco, preferia de longe bolinhos de canela. Ela ficou logo angustiada, há meses que não fazia bolinhos de canela, a Capuchinho Vermelho é que agora andava com eles no cesto merendeiro, mas sabia lá quando a ia encontrar de novo. Levou as mãos à cabeça mas só conseguiu despentear-se muito, tanto que o caracol se encolheu para a casca um tanto perplexo – afinal só queria bolinhos de canela. Ele não sabia que ela deixara de fazer compras. Há muito tempo que a sua despensa não tinha canela ou tão-pouco farinha, muito menos manteiga fresca… a ideia de sair de casa apavorava-a embora parecesse quase boa quando comparada à de ter que entrar na mercearia. Talvez pudesse encomendar os bolinhos de canela? Como, se não tinha telefone e não comunicava com ninguém desde não se lembrava quando? Ela e o caracol trocaram um olhar prolongado e face ao óbvio desespero estampado no rosto dela, ele acabou por anuir que talvez um chá de tomilho…

Aliviada ela pegou nas hastes e preparou-as para uma infusão. Deixou a água ferver, mergulhou o tomilho dentro do tacho a tremer sobre o lume forte e aguardou por que o líquido ganhasse cor. Não cheirava a chá que ela pudesse gostar de beber mas faria companhia ao simpático caracol. Entretanto meditava que não estava a ser uma boa anfitriã, e isso afligia-a, na verdade era tão raro ter visitas… acabou por se dirigir ao roupeiro do quarto e de lá puxou um capote. Vestiu-o de frente para o espelho, à entrada de casa. Puxou o capuz sobre os olhos. Teria de servir. Preocupavam-na mais os pés. Era preciso encontrar as suas velhas socas de jardinagem. Desapareceu para a arrecadação no exterior e veio de lá com um par de socas vermelhas e tachas de latão, cobertas de teias de aranha. Lamentou destruir assim o maravilhoso trabalho de uma tecedeira mas livrou as socas das teias e conseguiu enfiá-las nos pés com as raízes aconchegadas entre a sua pele e a pele do calçado. O caracol estava animado e agradeceu a chávena de chá comentando que era uma bebida muito agradável. Ela sorveu uns goles fugidios da sua própria chávena e, muitíssimo inquieta, desapareceu para a rua atirando com a porta de casa.

Seguiu pela calçada empedrada rente ao muro exterior da casa, depois da casa seguinte, e da seguinte, e da seguinte ainda. Não se cruzou com ninguém excepto duas borboletas que passaram a segui-la numa alegria inexplicável. Pareceu-lhe distinguir muito ao fundo, sob o capuz, uma vozinha conhecida. A Capuchinho Vermelho?! Pois claro, ela adorava borboletas, pela certa estaria a tentar convencê-las a saltar à corda… que pena, que pena tremenda faltar a tal encontro. Teve de atravessar uma rua e fugir apressada de um cão que felizmente caminhava com o dono pela trela, de contrário teria vindo a correr ter com ela. Olhava-a com o maior espanto, o focinhito no ar, baralhado com a mulher-jardim. Se o cão alimentava um sonho, era o de ter uma dona assim. A certa altura, dois pardalitos pousaram-lhe no ombro, depois foi a vez de joaninhas e de uma abelha a adoptarem; a todos estes pequenos seres fascinava o jardim com pernas – felizmente a mercearia era ao virar da esquina. Farinha, ovos, manteiga e canela. Pagou e saiu tão depressa quanto entrara, ouvindo ainda o comentário a respeito do maravilhoso perfume a rosas daquela senhora estranha.

Que prova, caracol caracolinho. Que desconcerto íntimo, que avalanche de emoções. Era como se caminhasse sobre arame. Se alguma vantagem havia a retirar daquela saída sofrida era a de esclarecê-la definitivamente sobre o futuro próximo. Claramente, o seu lugar já não era ali. De resto, se quisesse ser honesta consigo própria, sabia-se agora mais jardim que mulher. Estava na altura de partir, partir apenas. Escreveu mentalmente o anúncio que haveria de afixar na montra da mercearia por causa da sua casa: oferece-se bom jardim com casa, seguindo-se uma descrição minuciosa das árvores de fruto e das floribundas, da horta e ervas de cheiro e dos canteiros carregados de bolbos, roseiras bravas, malmequeres, cravinhos, sardinheiras, alecrim e alfazema. A propósito da casa indicaria as três pequenas divisões: a sala e o quarto aconchegados, a cozinha minúscula e a casa de banho exígua, alertando para o facto do telhado deixar entrar água, o que tornava a cultura de cogumelos profícua e especialmente bela de apreciar no outono – ainda que o seu consumo fosse desadequado ela decidiu que era uma mais-valia a enumerar. Podia ainda referir a arrecadação exterior e oferecer todo o recheio da casa. Com certeza alguém se interessaria.

Mas ninguém se interessou. Volvidas duas semanas não houvera quem tivesse manifestado estar disposto a aceitar a sua oferta generosa. Talvez achassem que o anúncio era uma brincadeira? Entendeu que não valia a pena pensar muito no assunto e que tudo se resolveria por si só, num acordo tácito superior aos desejos banais dos homens, das mulheres e até dos animais. Passou a fazer bolos de canela dia sim, dia não. Partilhava-os com o caracol e os pássaros, desde que acordassem em silenciar o turbilhão de pius que se gritavam a toda a hora, como se o cansaço não existisse. Um casal de pombas brancas habituou-se também a lanchar com ela e a partilhar daquele silêncio comovido. Dentro de si o jardim crescia e, à flor da pele, ela passou a trazer o perfume das ervas de cheiro que rodeavam o tanque de água: manjerico, hortelã, coentros, salsa e rosmaninho. Sentia agora uma hera tenra envolver-lhe os ossos dos braços e só podia estar agradecida aos seus caules maleáveis mas firmes, que embora a afastassem sempre mais do mundo de pessoas que um dia fora o seu, lhe amparavam os gestos a que emprestavam graciosidade e onirismo. Passava a maior parte das horas no jardim da casa, prolongando-se pela terra em que se enterrava, bebendo a água da chuva e da atmosfera, acolhendo o sol, o vento, a geada. De vez em quando procurava a Capuchinho Vermelho para um passeio campestre e esses eram os momentos em que deixava de se preocupar porque se esquecia. Andavam tanto, tanto que era o lobo quem acabava por carregá-las às costas, geralmente ao pôr do sol. Despediam-se uns dos outros a cantar, trocando abraços carinhosos e recordações gulosas para o caracol – que preferia recordar a esquecer e dispensava acompanhar aquelas excursões que só adiavam o inevitável. As horas seguintes eram sempre extraordinariamente difíceis para ela porque já não podia esquecer o esquecimento e era então tolhida por uma mágoa que parecia abrir buracos dentro de si, nomeadamente por não ter como partilhar e usufruir mais da felicidade que a preenchera até há menos de nada. O caracol fazia os possíveis por lhe dar alento, nunca se cansando de lhe fazer festas com os pauzinhos – de resto, remetia-se ao silêncio. Pouco a pouco ela acabava por dar de si, pouco a pouco ela era outra vez um pouco, mesmo que um pouco menos. O caracol só não queria que ela deixasse de ser ao menos um pouco.

E isso não aconteceu. Quando estava prestes a abismar-se no vácuo do esquecimento, quando se contavam já três dias desde que ela se pegara à terra, decidida a ser só mais uma planta no seu jardim, os poros perfumados da sua pele gotejaram algum orvalho ao raiar da madrugada e depois germinaram em nada de concreto e em tudo o que se possa imaginar. Fragilizada, incapaz de concentração e até de entender o que poderia estar a acontecer-lhe começou, através deles, a dar à luz uma e outra vez. Num ciclo de gestações curtíssimas, ela fazia nascer filhos e filhas de cores, texturas e formas variadas, alimentados da sua seiva e do seu sangue e, felizmente, ao contrário dela, vigorosos e dispostos a uma vida longa. Horas mais tarde ela acabaria por ceder ao cansaço, exausta mas também muito feliz por ser uma mãe-natureza, perplexa com a beleza das plantas, flores e até dos pequenos arbustos que se lhe colavam ao corpo, como que a pedir-lhe colo e amor. E ela sim, sempre que despertava do seu torpor abraçava-os e transbordava a seiva que alimentava aqueles filhos que a preenchiam como a um duplo que ganhava forma e corpo a seu lado. A noite chegou e ela não resistiu ao sono mais profundo. O caracol velava por ela, só mais um pouco.

A verdade: Na manhã seguinte os pássaros respeitaram o silêncio do jardim. Quem quis desdizer piares e coisas do dia-a-dia foi mandado para outras paragens, com patos e flamingos em debandada. As pombas anicharam-se sob as flores das ervilhas de cheiro ao redor do tanque e o caracolinho preparou-se para saudar a sua amiga. A mulher-jardim demorou a acordar. Sentia-se bem, mas deu por si deitada sobre a erva húmida, até um bocadinho fria. À medida que tomava consciência do corpo, entrou inicialmente em pânico… estava deitada no solo porque as plantas se tinham ido de dentro de si e não tinha mais como contrabalançar o peso do mundo à sua volta – caíra desamparada. Os seus filhos! Apalpou em volta e procurou a medo pelos recém-nascidos formosos. Ao seu olhar revelou-se, no entanto, colada ao seu corpo muito esguio, uma forma dupla de si. Tocou-a e entrelaçou os dedos por ela, o coração a bater acelerado, a respiração primeiro ofegante, depois desaustinada: filhos e filhas eram agora um só, um pouco maior que ela, esguio também, nu. Quem era? Ela olhou em volta e deu com o caracol assente num raminho seco ao pé de si. E então lembrou-se do sonho: da aragem levíssima, dos corpos quentes, do beijo cósmico… e desenhou um sorriso interior. Compreendeu que lhe cumpria uma tarefa infinita: tantos beijos por dar… o seu duplo adormecido não tardaria a abrir os olhos. Foi assim que apertou num abraço o seu amor maior e pousou os lábios sobre a sua pele docemente perfumada, tal como a recordava desde sempre.

8 Fev 2018

Andorinha

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão era tudo negro, nem pensar. E não era tudo claro, também. Mesmo quando eu abria muito os olhos, sempre que despertava ou era intempestivamente despertado do meu ciclo de sono, não via senão o que sentia: uma intermitência de farolim que se pode ou não tocar.

Lembro, pois, cambiantes de luz. Nada de cores, nada de definido, só impressões de claridade – ou de menor obscuridade –, bolsas luminescentes no microcosmos líquido que me sustinha. Deixei que o farolim me indicasse um lugar.

No início é assim: pressentimos estrelas e planetas como fogachos numa noite de breu. Podemos escolher caminhar ao seu lado sem ter nada a ver com eles ou permitir que se entranhem fundo em nós. De resto, ainda aquém de mim nascido, aprendi que ver não era o mais importante.

Ver o quê… para quê, ouvindo e sentindo, pouco mais que embrião fecundado num de entre muitos acasos de desamor, a perdição da minha Mãe e a brutalidade lasciva do Monstro? Como conseguiu ela amar-me tanto ainda assim, que me dispôs à lua e ao sol?

Nasci do abrupto, como não podia deixar de ter sido. Não tive tempo de me preparar, talvez não tenha chegado mesmo a ser acabado, os pulmões, sobretudo, suspiravam mais que respiravam… no entanto, aceitei seguir o rastro de luz.

Não nasci aflito porque não estava em mim afligir-me a não ser com a hipótese remota de um dia não poder palmilhar descaminhos e neles encontrar-me, perdido para sempre dos que me tinham gerado.

De resto, foi tudo muito rápido: os pontapés dele na barriga dela, a queda, as contracções fantásticas, o coro de gritos das mulheres e eu a ser empurrado por uma força sobre-humana para um mundo novo.

Tomei apenas algum do líquido morno de que me despedi para sempre e despedi-me ainda da Mãe, que senti partir num último fôlego cansado. Retirado do seu mar quente, optei por só pousar a terra brevemente e logo escolhi o ar.

Não sou um menino, sou uma andorinha.

Depois de reconfigurado em corpo desligado desse outro corpo que me acolhera, houve quem me desse colo e alimento. Ninguém em especial, nessa altura. Vizinhas velhas e uma tia que a partir de um dado momento,  desapareceu de vez.

Mas havia as Mimis – não recordo os seus nomes individuais e elas não me levarão a mal. As Mimis eram as meninas da aldeia que pegavam em mim e me levantavam no ar como se eu fosse o boneco animado que não tinham.

Entre si rodavam-me até à vertigem, delas e minha, bem no alto dos seus braços abertos ao céu. Riam e eu talvez risse também. Chorar não chorava. Lá em cima, reconhecia a minha natureza de pássaro.

No entanto, à medida que o negro se adensava à minha volta, as luminosas Mimis foram aparecendo cada vez menos, assustadas com o Monstro que as queria levantar no ar também. E depois deitar por terra.

Sobrou só a minha Mimi, uma menina mais crescida, protegida por uma cara feia e um corpo anão, a única que recordo olhar-me nos olhos e sorrir com eles para mim, instilando-me alegria e vontade de viver.

A Mimi visitava-me muitas vezes, não todos os dias mas sempre que conseguia encher o garrafão de plástico com vinho, pelo menos vinho, que pousava à entrada da casa para adormecer o Monstro.

Trazia-me um ovo cozido que partia em bocadinhos e me dava à boca, a sorrir meiguice. No inverno dava-me uma laranja, no verão amoras silvestres. Fazia-me festas e dizia que me ia ensinar a voar.

Era uma boa ideia, eu tardava em aprender a andar. Balançava incerto do chão debaixo dos pés e tinha tendência para me desequilibrar e cair. Passei, por isso, a erguer os braços e a movimentá-los numa cadência de pássaro.

A Mimi levava-me para o terreno em volta da casa térrea minúscula onde eu vivia e os dois ensaiávamos corridas breves, a bater as nossas asas, o corpo atirado para a frente e o rosto ligeiramente erguido.

Quando eu era uma andorinha, nunca caía.

A Mimi teve ainda outra boa ideia: como o Monstro nunca se lembrava de me dar de comer nem cuidar que eu tivesse um sítio onde dormir, aprendi com ela a fazer ninhos. Por segurança, escolhemos erguê-los sobre o chão.

Só os outros pássaros sabiam que pelo terreno afora havia ninhos escondidos feitos de erva ressequida e de toda a espécie de palhas e raminhos onde me encolhia como no microcosmos do início de mim.

Sob esses ninhos cavei buracos, alguns muito fundos, serpentes direitas ao centro da Terra, tão largos que eu cabia lá dentro. Abrigava aí amêndoas, nozes, pinhões e relíquias que coleccionava, como as palhinhas de plástico que segurava à vez entre os lábios, a fazer de bico.

Ao correr do tempo fui compreendendo os sinais do Monstro. Captava-os no ar, trazidos por uma energia negativa poderosa: sabia quando ele ia desaparecer, quando estava para chegar, se me devia esconder, se ia ser fechado no buraco.

Se ficava fechado no buraco era pior. Nenhum pássaro, menos ainda uma andorinha, suporta gaiolas, douradas que sejam. Quando ali era trancado voltava a mim antes de mim e, na semi-obscuridade, relembrava a mãe-placenta e resistia.

Todos os outros estados do Monstro me permitiam mais ou menos acolher-me aos ninhos ou treinar o bater de asas em corridas desajeitadas e bambas. E tecer na imaginação as rampas de vôo de que me lançaria, um dia.

Olha o Andorinha! – ouvia, sempre que me aventurava pelos caminhos da aldeia. – Ainda não partiu, pobre dele. Quando regressas para junto dos teus? Os bandos debandam! – gritavam pessoas.

Eu calava o bico, os lábios cerrados esticados para a frente e lançava-me numa corrida demonstrativa, as pernas atiradas ao deus-dará mas os braços firmes, acima abaixo, acima abaixo. Ouvia rir e sabia que partiria dali. Iria voar.

1 Fev 2018