O tempo dentro do tempo 

Em “Aves de Incêndio” (poética edições, 2016), de Raquel Serejo Martins, há dois tons a percorrer os poemas, que se interligam: a dor que se carrega no dia a dia, tentando ligar as horas umas às outras; e a memória que nos assalta, à nossa revelia, e contra a qual não podemos nada, acabando quase sempre por trazer mais dor. Veja-se apenas como exemplos estes versos: “(…) / tudo é uma dor pungente, / tudo é nada, / e o nada / finge-se em gente” (62) ou o poema 64 “Só quero dizer que sofro tanto / que até a dor me alivia”; e como exemplos do segundo tom, leiam-se “Um amor velho e seco / como uma giesta, / folha de ervário, / corolário de todos os que o seguiram, / porque o amor quando acaba, / no âmago do coração quieto, / fica sempre amargo.” (5. Primeiro Amor)

Neste livro fica-se a saber que o tempo foi. Aqui, o tempo nunca é, o tempo nunca será, o tempo sempre foi; nunca é e nem será, foi. É o mundo da memória que nos fustiga continuamente os dias, a memória dos dias bons, dos dias maduros, que caem da árvore e nos sabem bem ao comer. “E a cada Verão o amor acontecia, / sem palavras de preâmbulo, / nem palavras de adeus. / O amor acontecia (…)” (11.) Este pretérito imperfeito, “acontecia”, não acusa apenas o amor, acusa também a poeta que o escreve, o humano que se dá conta de que tudo acontecia, “eu acontecia” ou “o amor acontecia” partilham a mesma desinência imperfeita, a mesma desinência de um acontecido que já não volta, a não ser em forma de memória, para nos magoar, para nos mostrar que afinal não é só “eu” e “amor” que partilhamos a imperfeição pretérita, mas também a vida. A vida humana é um inteiro pretérito imperfeito. A vida humana, toda ela, a vida de cada um de nós, acontecia. A vida humana é “um coração que o tempo quase apagou. / Enquanto ao longe, / na melancolia do passado, / um violino gemia (…).” E como viver, se a vida está lá atrás? E como viver, se a vida ficou lá atrás, como se entrássemos no comboio e tivéssemos deixado na estação o amor da nossa vida e tivéssemos disso consciência? Como viver, se deixámos a vida de onde partimos? O amor, hoje, e adivinha-se que também assim seja a vida, é como o final do poema 17: “(…) um cardume de peixes dourados / a boiar sem vida no aquário / dos meus pensamentos, / todos teus / e nem percebes que existo.” Se eu vivo soterrado pelo passado, pela infância, pelos anos de fruta madura e farta da juventude, tenho de sentir a vida como se ela nem percebe que eu existo. Este escândalo de se existir e a vida nem saber disso é do que este livro trata. Ao passearmo-nos pelas páginas damo-nos conta de ser mortos-vivos, estamos numa vida que já não é, nem nossa nem de ninguém, onde só o passado poderia ser uma possibilidade de futuro, como o diz tão bem este verso do poema 99 “O futuro é a Primavera”, ou ainda os versos do poema 20: “Tu, um vendaval / que perdeu o ânimo / que envelheceu sem festejar. / Sabes, às vezes parece-me que sabes / que ainda podias ser feliz, / que há sempre tempo dentro do tempo, / mas há tanto tempo que não andas de bicicleta (…)”. Há sempre tempo dentro do tempo, mas esse tempo dentro do tempo é sempre um tempo dorido, um tempo de memória, um tempo que mede a distância entre o nada em que vamos ficando e o tudo que já fomos. A distância entre “tenho milhões de anos / de solidão dentro de mim” (58) e “todos os sonhos em embrião / a vida no princípio e cheia de tesão” (55). Por vezes sentimos o sopro de Pessanha, em alguns dos poemas, naquela sua exigência de delapidação do verso em torno do som e da dor, como no poema 21:

Corpo corroído pela saudade,

uma saudade que transpira lágrimas,

que se desfaz em dor,

que se acumula em pó,

que fermenta dia após dia,

que se multiplica ao segundo,

que quase abarca o mundo,

que nasce e morre no quarto do fundo.

A vida é triste, “ tal como uma lágrima / sentindo saudade” ( versos finais do poema 22, que parece querer continuar o 21, e que encontra eco no último verso do 35: “pois não há mal que não me venha.” Mas, e como já ficou claro, a vida não é triste pelo que é, pelo que acontece, a vida é triste porque ela revelou-se-nos como sendo um pretérito imperfeito, esse tempo dentro do tempo: acontecia, era, vinha. “O amor era o avô / a descascar uma romã / para a avó.” Esta consciência acaba por trazer sabedoria, ou pelo menos alguma, em forma de pragmatismo e versos belos, como no caso do poema 24: “Difícil é ser feliz, / quando tudo se perde por um triz. (…) e come todo o amor antes que o amor acabe.” Ou ainda a consciência de que mesmo quando a vida parece estar a ser, e não ter sido, ainda assim ela é só aparência, como viver num hotel: “Pensei, que metade do amor é isso, pensar / e que é fácil ser feliz num quarto de hotel, / a cama sempre feita, as garrafinhas no minibar / um pequeno arco-íris particular / no fim do qual quase uma esperança, / um quadradinho de chocolate em cada almofada / de penas de pato depois do foie gras, / um sossego, allegro, andante, fugaz / como se a vida pudesse ser menos voraz.”

A dor que percorre este livro, que na nossa cartografia poética nos remete a António Nobre, advém de se entender a vida não apenas, como já se disse atrás, uma espécie de sermos mortos-vivos, pois a vida ficou lá atrás, mas também de a memória estar continuamente a lembrar-nos disso. O livro faz-nos ver a vida segundo o ponto de vista daquilo a que usualmente chamamos de “saudosista” – e realmente a palavra saudade aparece inúmeras vezes ao longo do livro –, com uma diferença, que parece ser substancial: a da consciência. De modo geral o saudosista sente saudades do “tempo em que tudo era bom”; aqui, neste livro, pelo contrário, há a consciência de que não era o tempo que era bom, mas a poeta é que era boa. Todos os tempos são bons, porque em todos os tempos há quem esteja a estender as asas, esteja a abrir sonhos pela primeira vez, esteja de pés bem firmes na alegria dos beijos frescos como as primeiras manhãs de Natal. Raquel Serejo Martins, pelo contrário, não sente saudades do tempo, sente saudades de si mesma, como fica bem vincado no poema 67:

Às vezes ando à minha procura

como uma mãe à procura de um filho desaparecido.

Esta consciência, e que muda tudo, de que não era antes que tudo era bom, éramos nós que antes éramos bons, éramos nós lá, onde nada ainda se tinha partido de importante, nem a confiança, nem a esperança, nem corações, só braços, cabeças e uma ou outra perna, faz deste livro um espécie de escarro na cara da vida. Vida essa, que também é mostrada nos seus momentos escatológicos e quotidianos, e sempre ligados à solidão da vida, à irrecuperabilidade da verdadeira vida, a que antes acontecia, como nos versos finais do poema 70: “A série da BBC. / A leitura de uma revista na latrina. / A higiene íntima da vagina. / A solidão / ou Napoleão no exílio sem Josefina.” Antes de deixarmos um poema da poeta, resta dizer que o livro, alem dos poemas de Raquel Serejo Martins, traz ainda desenhos de Ana Cristina Dias.

9. Aves de incêndio

Era Verão

e as tardes infinitas,

duas garrafas de Sumol,

um pacote de batatas fritas,

e os dois na esplanada

na sombra-aquário do guarda-sol.

Eu um peixe,

a tua boca isco no anzol.

Lábios que não sabiam beijar,

que aprendiam a beijar

que beijavam por tudo e por nada,

sofregamente, por tudo e por nada.

O corpo a arder,

os pés descalços,

o chão em chamas,

vá lá, diz que me amas.

Era Verão,

a estação dos incêndios,

das flores na pele a queimar,

dos corpos em brasa,

do grão na asa,

do na minha ou na tua casa.

Era verão,

as noites tão vivas como os dias.

Nos céus luas, estrelas,

foguetes a explodir em flores coloridas,

sobre o som da banda a tocar no coreto.

No chão o bulício de cigarras em cantatas de Bach

e tu a dançar.

A dançar comigo,

até ao romper da aurora.

Dizias sempre bela aurora,

como a canção

e não gostavas de dançar, mentias,

fingias que eu te pisava e rias.

E a dançar

chegou a tarde do nosso adeus,

uma tarde igual a todas as tardes

sem nuvens no céu ou ameaças de chuva,

apenas levemente mais fria,

porque já Outono

e nós aves de uma só estação,

aves de incêndio.

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