Atoardas e velocidade

Estavas a sair do estádio de futebol, o Campo Estrela, e a multidão avançava muito lentamente. Perguntaste ao teu pai por que razão era preciso andar tão devagar. E a resposta fez-te ver que, entre as pessoas, seguiam novos, velhos e coxos e, portanto, havia que ter paciência. E tu tiveste muita pena de que a velocidade final tivesse que ser o resultado médio de várias velocidades. O ideal, pensaste, era não existir essa dependência. Uma única velocidade seria qualquer coisa semelhante a um presente igualmente único que não fosse, também ele, escravo de vários passados e futuros. Um presente em que nada se alterasse, em que nada envelhecesse, em que aquilo a que não chamarias ainda felicidade fosse uma forma de limpidez. 
 
Décadas depois, havia confinamento por causa de uma pandemia, e tu circulavas à volta do pátio a fazer exercício. Lembras-te do momento em que olhaste para as plantas e voltaste a perceber que existe tanta coisa no mundo de que não sabes o nome. E interrogaste: se ficasse aqui a viver para sempre sozinho e não precisasse de comunicar com mais ninguém, será que inventaria nomes para todas estas coisas? Certamente que sim, respondeste, mas não sob a forma de palavras, pois esses nomes invertebrados não teriam que ser ouvidos por outrem. Sem o sabor das palavras, esses nomes teriam um outro sabor que as palavras jamais atingiriam. Seriam nomes puros, concebidos apenas para nomear e não para terem que ser articulados, ouvidos, adequados ou até pensados. Seriam talvez os nomes com que Crátilo sonhou. 
 
Uma vida com uma única velocidade, com um único presente e com uma gramática pura seria a vida ideal. 
 
Paul Virilio foi um dos autores que mais acentuou o papel da velocidade no modo como edifica o nosso tempo, fazendo dela um misto de milagre e de parábola. No capítulo final de A velocidade da libertação, escreveu a seguinte nota sobre os impactos da energia cinética: “Desde há um quarto de século que a trajectografia substituiu a geografia. Há, a partir de agora, um trajeto independente de toda a localidade, mas sobretudo de toda a localização. Um trajecto inscrito apenas no tempo, um tempo astronómico que contamina progressivamente a multiplicidade de tempos locais” (…) “Da exocentração de um corpo em voo acima do solo, passamos de imediato à egocentração: o centro já não está situado no exterior, é ele próprio a sua referência, o seu eixo-motor”.
 
Kundera também glosou o tema da velocidade no romance A Lentidão, fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que contrastam, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Ao invés, Virilio tornou a velocidade na linha de força de todo o seu pensamento, recentrando-se nos mais diversos impactos suscitados pelas acelerações da “omniurbe” global. A deformação (efeito da velocidade), de que as fake news são hoje em dia uma ínfima parte, é uma das metáforas mais interessante para significar a ruptura no espaço que tende, hoje em dia, a ser a ilusão de um tempo irrevogavelmente constituído por sucessivas instantaneidades.

Escrevi sobre o tema há um quarto de século, em Anjos e Meteoros, tentando provar que a instantaneidade não é, de modo nenhum, uma questão actual. Ela começou por ser, nas escatologias e nas ideologias, um campo reivindicativo que exigia o cumprimento imediato e sem esperas das grandes promessas (os fraticelli, no início do século XV, e os militantes soviéticos de Kronstadt, no início do século XX, exigiam, no fundo, precisamente o mesmo). Na actualidade tecnológica, esta aspiração de cumprimento instantâneo deixou de ser uma reivindicação dirigida a um além (teológico ou ideológico, tanto faz) para passar a ser, no essencial, uma forma de vida fria e afastada das grandes causas. Carregar no ‘on’ e ver realizado um desejo imediato sublima e ilude esse cumprimento associado a devires superiores. É a felicidade da redenção a descer do céu à terra de modo inapercebido e invisível. 
 
E tu, muito antes de pensares nestas atoardas de domingo à tarde, o que realmente querias… era voar por cima do Campo Estrela, levar o teu pai pela mão com asas de Chagall, transformares-te numa nuvem que destroçasse todas as explicações e, depois, inventariar apenas os pássaros e velejar nas grandes enchentes (havia ainda tantas palavras no ar para fixar nos teus grandes rolos).
 
(texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: ‘Visão Aproximada’ e ‘Respiração Pensada’, títulos de obra de longo curso em trânsito)
 

15 Abr 2021

Ai Love Venezia  

No Outono de 1987 regressas a Veneza e, depois da leitura matinal do Il Gazzettino, fechas-te num pequeno hotel a escrever o teu terceiro romance. Dez anos depois, no prefácio à segunda edição, Luciana Stegagno Picchio escreveu: “É uma meta-Veneza apenas fruível de olhos fechados, tal como uma música que nos envolva e que nos absorva pelas suas volutas em espiral, ora esfumadas no enleio do sentido ora solidamente apegadas à realidade dos nossos dias, através da reprodução de factos e ambientes da actualidade”. 
 
É a mais pura verdade que um romance apenas cabe no (limite) que escapa à experiência, depois de se ter subido as escadas a correr. O esforço é essencial. O que nele se representa foge às referências que seriam óbvias, mesmo se a cidade e as suas águas e canais forem vistas de cima, a partir das águas-furtadas, em noite de trovoada. O que se passa num romance são as latas de conserva de Warhol. Elas existem para que se possa amar aquilo que passaria despercebido. Elas, as personagens, não quantificam objectos. Antes duvidam, quando não existem sequer questões para pôr em causa. Antes questionam, sem que haja sequer respostas possíveis à vista. Antes se dispõem a responder, ainda que não existam perguntas que atravessem a encenação criada. Sim: um romance tem a sua música própria ambulante que voa sobre o mundo e o captura como uma tautologia (por vezes torna-se numa máquina surda que sabe serrar todas as dunas e que adora falar de lenha como se fosse um navio a aprender o futuro).
 
Estás agora na esplanada do Carrossel e o Almeida Faria pergunta-te: “como estava este ano a nossa Veneza?”. Tinhas acabado de regressar, duas décadas depois da tua reclusão romanesca a poucos metros do Rialto, num pequeno hotel feito para transformar os ossos daquela cidade irreal numa cartografia de palavras e elipses com marés, maleitas e escolhos à flor da água. 
 
A literatura não representa nada que não a si mesma, nem conta histórias que ameacem ser fidedignas. Num romance, como o que escreveste em 1987, apenas interessa que na colheita haja aquilo que o olhar de qualquer mortal capta quando chega aos limites do Veneto: um batimento que se perca entre o sublime e a pulsão de morte. Um sentimento de perdição que saiba acender ou alcançar o íntimo de uma existência realizada. A Veneza literária é um intertexto vasto e cheio de história. Na língua portuguesa, Almeida Faria é certamente o criador mais apurado desse percurso. Sabendo isso, reagiste com algum alarido. 
 
Respondes, certamente com razão, que nas últimas décadas, Veneza se transformou em Venezilândia, isto é, numa espécie de nova Marbella onde os turistas (doze milhões por ano) – fardados para resistirem ao peso da viagem e do património – fazem a vez do peregrino sem missão nem destino. Já lá ia o tempo em que Veneza respirava com limpidez as heranças de Dante, Ruskin, Tiepolo, Goethe, Byron, Casanova, Henry James ou Marino Contarini. Hoje, os fantasmas digitais e as pizzas liofilizadas tornaram-se em anfitriões dos novos bárbaros que, há muitos séculos, tinham sido a causa da fundação da cidade em plena Laguna. Paradoxos.
 
Respondes que a farda vale pela missão e pela nova santidade: calções de fibra colorida enxameados de bolsos, ténis com sabor a marca, t-shirt´s com mensagens estilo Twitter (concebidas para a rapidez indiferente do olhar – Ay love you, Fuck yourself, Try just Once) e a invariável mochila que militariza o nomadismo de galgo insaciado; sem esquecer ainda o manancial de sacos, guias, telemóveis e garrafas de água que substituem o velho cantil; fitas no cabelo, pulseiras e lenços de pirata para absorver o suor da caminhada sem paragens, pois a finalidade do novo caminhante é transformar cada passo numa meta, esgotando aí o sentido e o maior desejo do século: o stress. Por fim, lucubraste sobre o ombro. Sim: um ombro sempre queimado pelo sol. O bronze em estado puro. 
 
Respondes que o ombro é o princípio e o fim de tudo, embora não passe de um pequeno dorso musculado, flácido, ossudo ou elegante. Tanto faz. O que fará do ombro uma âncora dos deuses é a fina correia de couro, ou de plástico, que nele se suspende. O ombro é assim o porto de abrigo de uma máquina que diz ao viajante que tudo o que está à sua volta pode ser reduplicado. Parado ou em corridinho, em fotografia ou em filme. Cada ombro seria, nesta óptica de realidade aumentada, o porta-estandarte de uma euforia mágica que faz do turista um ser com quatro braços, quatro pernas, quatro olhos, duas cabeças, dois pescoços e duas bocas. Tudo a dobrar. Ou duas S. Marcos com oito e não com quatro cavalinhos de ouro oferecidos por Bizâncio à Sereníssima. Ou sessenta e oito e não trinta e quatro arcos da Loggia do Palazzo Ducale virados para o Canale. Ou quatro e não dois mouros de pátina escura a baterem as horas na Torre dell´Orologio. Tudo a dobrar. Mas uma dobra que se multiplicará até ao infinito como Deleuze e sobretudo Leibniz adorariam. 
 
Almeida Faria bebe o café compassadamente e conhece há muito este divórcio. Como escreverias mais tarde, em ‘Anatomia’, já o ombro onde se suspendia o mundo fora substituído pelos dois polegares a alardear telemóveis: “A finitude ata-nos a pequenas coisas” (…) “compraz-se com os balidos longínquos/ e sabe coar como ninguém os degelos/ imprevistos” (talvez por fugir ao lugar desses balidos para nele afinal permanecer, tal como acontece aos viajantes que vivem apenas do fluxo das suas inúmeras e protegidas viagens). Somos todos peregrinos, afinal, e Veneza, essa beleza imaculada, creio que nunca realmente existiu à superfície da terra.
 
(texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’, título de obra de longo curso em trânsito)
 

9 Abr 2021

A minha poética de Aristóteles

O quebra-gelo foi o primeiro oásis que a vida te concedeu. Desçamos então do passado ao presente: na tua frente flui o rio Amstel e as casas flutuantes onde habitam pessoas feitas de água, tranquilas como o gelo que emagrece o olhar. Na outra margem os edifícios marcam a paridade de uma grande sala vazia. As bicicletas têm galochas que raspam o grão de brita, completamente alheias à acção da gravidade e aos remansos da esplanada. Sobre o estrado, as torres de aquecimento permitem unir os joelhos, fechar o sobretudo e ter a mão e o cachecol amarelo sobre as folhas de papel. 
 
As vidraças do café percorrem toda a longitude que sopra de lés a lés nos acordes do violoncelo. Atrás do balcão, onde a islandesa (que é uma nuvem de beleza) apoia toda a brancura do corpo, encontra-se a galeria de arte e a sala de concertos. De lá chegam as grandes colheitas que fazem circular a manhã. O quebra-gelo, “Ijsbreker” no original, é um tiro com silenciador e sem necessidade de pistola. Por vezes nem o violoncelo se escuta, nem os pneus das bicicletas, nem o suspiro da islandesa que serve cappuccinos com a palidez dos lustres reflectidos no rio. 
 
Ao fim da manhã, o teu amigo José M. Rodrigues chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, corria o ano de 1983, tinhas acabo de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste. 
 
A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que logo precedeu a feliz etapa de recolecção. 
 
Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá falado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura da moça que parecia afinal inabitada).
 
Passado um trimestre sobre esse acontecimento, vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera, de novo com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma. 
 
Depois foste a uma festa, era perto. A anfitriã, uma pintora e vídeo-artista, tinha o costume de colocar uma mangueira muito esticada por baixo do tecto sempre que as visitas lhe enchiam a sala. Quando as hostes aqueciam, toda a gente levantava os braços no ar com as mãos agarradas ao tubo, dando a sensação de que toda a humanidade viajava de metro. “Um metro que tem deus como última estação”, repetia ela num inglês que tinha as vogais assarapantadas por consoantes de faca cortante, coisa comum nas línguas semíticas.
 
A linguagem do metro infinito surgia como uma espécie de resolução desse problema que éramos nós. Nós, os humanos. Um problema que discorria em voz alta. Todas as pessoas riam furiosamente nessas noites, mesmo quando contavam histórias do holocausto envolvendo os pais, os tios ou os avós. Nessa altura, aprendeste a deixar de estranhar aquilo que cada um de nós não é. Tornaste-te, a pouco e pouco, no cisne que desaparecia e que reaparecia para desse modo receberes o sabor (e o saber) de seres sempre outro. A folha a menos do teu primeiro romance era afinal uma graça: uma estação de metro a menos no metro infinito desse luminoso e invulgar oásis que é a vida.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

25 Mar 2021

Nos alçapões da história

No início de 2004, por proposta de um cineasta, transpus o romance O Bolor de Augusto Abelaira em escrita de guião para um filme que nunca viria a realizar-se. Nem sempre a vida é um texto e nem sempre um texto emerge na vida. De qualquer modo, um texto desta natureza não passa de um cardápio morto, embora se dê a ver como oferenda a si próprio: espécie de antropofagia realizada numa ilha deserta. 
As frases, nuas por natureza da escrita guionista, atropelam-se como que a tentarem descobrir para si próprias um tom (ou, aqui e ali, até alguma possibilidade de sentido). No entanto, há passagens que parecem pedir que as leiamos um dia mais tarde. Como se acendessem uma memória que exigiria atenção:
 
“HUMBERTO continua a vestir-se e a remexer em papéis de processos, enquanto fala. ALFREDO segue a explicação com inusitada atenção.
HUMBERTO
De repente, ao vê-la morta estendida na cama, quando era ainda viva dez minutos antes, descobri uma vida nova à minha frente, uma vida velha acabava ali. Ou então: não era da Catarina que eu não tinha pena, era de mim, de uma época agora irremediavelmente para trás, morta e sepultada. Pois ao observar a Catarina com mais atenção, concluí ser a mim próprio que desejava ver morto.
ALFREDO
A sério?”
 
O efeito surpresa de um texto redigido de início com fins instrumentais não é algo assim tão incomum. Durante alguns anos estudei manuscritos que foram escondidos, no final do séc. XVI, dentro de paredes e poços de aldeias do levante aragonês. Apenas no final do século XIX e por força do acaso viriam a ser descobertos. Nesses textos coexistiam heranças, procurações, testamentos – passagens meramente instrumentais – e registos poéticos luminosos. Um misto que faz hoje arrepiar quem os consiga ler, pois são aljamiados e estão grafados em alfabeto árabe. Transcrevo aqui um brevíssimo excerto (hoje inscrito no Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris): 
 
“- Ainda se levantará (fol.302v), no dia do juízo, um homem da minha comunidade (alumma) na ilha da Andaluzia que fará guerra santa (aljihâd) no caminho de Deus (fí sabíli Allah)./ Não se especificará, nem se saberá (sabrán) quando se levantará o dia do juízo, daqui até que se vejam os montes que (entretanto já) se tenham aplanado (ke se abrán ap(a)lanado)./ Foi relatado pelo mensageiro de Allah, salla Allahu ‘alayhi wa sallam (Deus o abençoe e o salve), que disse:/ – Andaluzia tem quatro das portas do paraíso (aljannat). Uma porta a que chamam (fol.fol.303r) Faylonata e outra porta (chamada Lorca), e outra porta a que chamam Tortosa e uma outra porta a que chamam Guadalajara.”.
 
O texto é ascendente: caminha da sombra mais profunda da gruta até à luz. Como se estivéssemos face a uma poética que nos transporta do subterrâneo da história até ao olhar do presente admirado que o lê. Trata-se de uma memória (e também de uma confissão involuntária) oriunda de uma comunidade ibérica – os “moriscos” – que sucumbiu e cuja autobiografia ficou espalhada dentro de alvenarias em fragmentos e retalhos anónimos como este.
 
Há discursos que nasceram para não encontrar os seus leitores. Um guião é escrito para morrer nas filmagens. E um texto clandestino de um “morisco” de Aragão (inserido por um copista numa miscelânea e colocado depois dentro de uma parede por um terceiro, antes de se pôr em fuga à inquisição) terá sido escrito para morrer consigo nos mais profundos alçapões da história. 
 
Quando sobre este tipo de textos se lança uma luz imprevista, eis que acordam de repente e nos dizem a gritar – e em plenos pulmões – que o passado nunca está escrito e que uma narrativa nunca está acabada. Como se a vista desejasse apenas encarar a obscuridade e adormecesse serenamente nessa fractura aberta. No derradeiros versos de Purgatório, mesmo antes do início do Paraíso, Beatriz confessa-o cristalinamente na Divina Comédia: “Talvez a maior cura,/ que muitas vezes a memória priva,/ lhe tenha posto a vista à mente obscura” (“fatt’ha la mente sua ne li occhi oscura”).
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

18 Mar 2021

Desenterrar o visível

O romance ‘Aparição’ de Vergílio Ferreira foi importante nos verdes anos, porque, quando o leste, em 1971, desenterrou a cidade que continuavas a ver diante dos teus olhos. Foi um verdadeiro pasmo. Sem dares por isso, na altura, aprendeste que desenterrar aquilo que é visível corresponde, afinal, a toda a história dos humanos. 
 
A “Ideia” de Platão, o delírio sobrelunar inventado por Aristóteles, o lektón dos estóicos (ou “significado”, a única coisa incorpórea que existiria no meio de uma visão da vida inteiramente materialista), a pré-concepção de Santo Agostinho e os mil experimentalismos modernos, tudo isso, eram formas diversas de desenterrar o visível. 
 
Além deste detalhe gigante, o romance incorporava o debate existencial que à época ainda não arrefecera. Independentemente de tudo o que se possa mencionar à primeira vista, o livro vivia – e vive – duma atemporalidade de fundo que nada tinha que ver com o espaço concreto onde as acções (e as reflexões) decorriam. Havia ali um tempo paralelo, uma espera sem termo, uma incerteza longínqua, um aceno comovente. 
 
A grande literatura vive destes mitemas e sussurros, tantas vezes invisíveis, mas que frisam o espanto e o salto que a leitura pode e deve provocar. Desenterrar o visível tornar-se-ia no rastrear de algo sempre maior. A perder de vista (na verdade, uma aparição pode cegar).
 
Alguns anos antes, estavas em Sintra e observaste o imperador da Etiópia, Hailé Selassié, a acenar dentro de um carro preto que tinha o tamanho de uma lança sem terminação. Uma lança que ainda hoje vês passar por ti tantas vezes. Foste ao encontro dos fungos que se instalam na memória e confirmaste que a visita teve lugar nos últimos dias de Julho de 1959, ano em que o romance ‘Aparição’ foi lançado.
 
Entre essa data e 1996, a bandeira da Etiópia mudou oito vezes. As listas horizontais vermelhas, verdes e amarelas mantiveram-se, mas o leão da Judá do tempo de Selassié transformou-se numa estrela de cinco pontas. Lembras-te ainda de que havia rendas junto à janela onde a mão do imperador se agitava. Nunca tinhas olhado para um imperador e toda aquela sobreinvestida fez-te pensar, suspender os séculos. 
 
No ano em que a bandeira da Etiópia inaugurou a sua última versão, cruzaste-te no funicular de Haifa com vários soldados etíopes. Eram judeus etíopes. À saída, um deles avançou na tua direcção e disse: “I´ve been there!”. E ali ficou com o dedo a apontar para o Mediterrâneo, na direcção do sol-pôr. E tu entendeste que o alvo era inevitavelmente Sintra. Concluirias, nesse instante, que o entendimento é uma teologia sem deus ou o fac-símile de uma primeira pessoa confusa (a olhar para o mar). E lá continuaste a jornada, sempre a subir, em direcção ao monte Carmelo. Nesse mesmo dia – era 1 de Março – morreu Vergílio Ferreira.
 
Alheio à morte, às metamorfoses das bandeiras e às taras do Selassié, Vergílio Ferreira continuou a sua tarefa de desenterrar o visível. 
 
Em certos dias, como hoje (fosse em 1986 ou em 1996, que interessam as tabuadas?), regressas aos mais altos cumes de Haifa e tentas seguir a direcção do dedo indicador do soldado etíope. Segue-lo como se espreitasses por um monóculo potente e, ao fundo, lá está o escritor na sua casa de Fontanelas (afinal era mesmo em Sintra) a escrever: “Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Sintra é o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça.”. O mar a perder de vista. E a desenterrar o visível.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

11 Mar 2021

O cinturão invisível de Pessoa

O som do violino vinha de longe. Como se estivesses noutro lugar a tocá-lo e não onde realmente te encontravas. Acontecia-te muitas vezes esse migrar dos pulmões para fora da respiração, ou esse migrar da expressão mais íntima para fora do rosto. Existias tanto do outro lado da praça, como no fio melódico das moscas que assaltavam o vidro da janela, junto à mesa onde os teus pais te tinham levado para almoçar. O restaurante Irmãos Unidos tinha dois pisos e, na parede da frente, o quadro de Almada Negreiros dominava os olhos fechados com que o tempo insistia em parar. 
 
A curva semelhante à de uma parábola definia o rosto de Fernando Pessoa e sugeria ser uma máscara colada à testa, por baixo do chapéu de abas. A luz alaranjada cobria todo o corpo por trás, ao mesmo tempo que transpunha o tampo da mesa em forma de traço descontínuo. O cenário geométrico desafiava tudo o resto a dançar: a caneta, a chávena de café, a revista Orfeu 2, o cigarro, o lenço, o papillon e o pequeno bigode. A recta directriz com que cingia o olhar através dos óculos, duas lentes elípticas embaciadas pelo torpor, quem sabe se pela flecha vazia de um dardo. 
 
Ficaste impressionado com a vulnerabilidade do mistério, era como se ele gravitasse à volta daquelas cores e parecia até fácil agarrá-lo com a ponta dos dedos. Coisa egípcia, pensaste, pois vagueavas ainda com o talismã dos faraós na tua memória, matéria recente das aulas de história no liceu. 
 
Três anos mais tarde, em Janeiro de 1970, o quadro, executado em Bicesse no mês e no ano em que tu nasceste, viria a ser vendido no leilão do recheio do café-restaurante por mil trezentos e cinquenta contos. Algum tempo depois, Sarah Affonso revelou que a obra fora pintada no quintal, num sítio onde a luz coada pela ramagem era quase perfeita. Após mais de um século de história, os Irmãos Unidos, presentes na literatura de Camilo ou de Fialho de Almeida, passaram tristemente o testemunho à Camisaria Moderna que teve assim a possibilidade de alargar as suas instalações no Rossio. Continuaste a lutar com o bife e com o ovo estrelado, enquanto afastavas as moscas do prato e sempre a escutar os sons agudos que provinham afinal do olhar do poeta que nunca mais te largou o cinturão invisível.
 
Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma. 
 
Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”. 
 
Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).
 
(texto extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)
 

4 Mar 2021

O Tango, Camus e as Gnossiennes 

Nos cinco anos que antecederam a Expo-98 fui hóspede assíduo do Hotel Americano. Não foi propriamente o espaço que escolhi para me alojar naqueles três dias por semana em que dava aulas em Lisboa. A escolha antecedera há muito a minha aparente decisão.

Em criança, os meus pais levaram-me uma vez a esse hotel e, na sala do pequeno-almoço, havia na altura uma pianista. Às torradas, às compotas e ao leite somavam-se as Gnossiennes de Eric Satie. Uma coisa tão rara pelo repertório e pela circunstância acabou por criar em mim uma espécie de cofre do tempo, razão por que me senti obrigado, mais tarde, a reentrar no hotel. Já estava bastante degradado, mas mantinha, na rua 1º de Dezembro, nº 73 (a dois passos do Rossio), a mesma secreta chama. Todos os dias de manhã percorria os velhos corredores à procura da pianista e das Gnossiennes. Só a tinha visto aquela única vez e de costas, a pele branca por cima do decote cavado, as madeixas escuras, um sinal no ombro direito, os braços e os dedos a brilharem.

Alguns anos passaram e houve uma noite em que sonhei que estava perdido nos corredores desse hotel, subitamente transformados num labirinto sem fim. Até que num desvão dei com uma enorme sala de arrumos. A um canto o velho piano ressurgiu aos meus olhos rodeado de teias de aranha, embora fosse clara a presença de um exemplar de ‘O Mito de Sísifo’ de Camus em cima do teclado. Aproximei-me e, por trás de uma espécie de biombo desdobrável, apareceu a mulher. O longo vestido azul escuro cintilou como se tudo se passasse no fundo do mar.

Ficámos frente a frente a retocar enigmas. Quando os primeiros acordes se ouviram vindos de muito longe, ela limitou-se a anunciar: “Sou eu que te vou, também a ti, ensinar a dançar o tango”.

Na primavera de 1999, passeava com o Urbano em Paris pelas bandas da Rive Gauche e contei-lhe este sonho e esta história. Estávamos a peregrinar pelos locais onde antes ele costumava deambular na companhia de Camus.

Falavam os dois muito de futebol. “A bola muda sempre de direcção”, bela metáfora para compreender que o pensamento se inicia num arrebatamento, ou numa compulsão que se divide, que inflama, que quase se perde. Camus falava depressa e a sua paixão pelo futebol alimentava-lhe a certeza de que pensar não é uma coisa inata; é antes um engendramento ou uma jogada que começa na lateral do relvado. E a sua missão é ampliar a dimensão do jogo, driblar e agarrar o fio do raciocínio apesar dos obstáculos (oferecidos pela outra equipa, pela vida). Por baixo da gramática e da lógica, esses tapetes pouco lascivos, existe um jogador elástico que explode e que não se submete a imagens, cria-as. O pensamento fulmina no golo, mas não sucumbe nessa metonímia (que arrasta consigo quer o gáudio de uns, quer a tristeza de outros, quer a diferença que afinal lhes alimenta o ser).

Antes da tuberculose, Camus tinha sido guarda-redes na Argélia. Falava menos na doença e mais nas grandes avançadas. “A bola muda sempre de direcção”, repetia o Urbano a sorrir e a lembrar-se da frase. Tal como aquele advogado, em A Queda, que não foi capaz de salvar a mulher de se afogar. E foi aí, devido à coincidência, que lhe li um poema, cuja versão inicial escrevera em Amesterdão uns anos antes: “Nunca soube por que cheguei tarde/ mas sei/ (na mesma prumada/ quase no mesmo catavento tornado em pedra)/ que assim foi./ Também apurei que Camus escreveu a queda/ no México City/ ficava ali no bairro vermelho/ nas ins-suspensas esplanadas cheias de neve / entre dois a sete parágrafos/ nesses fins de tarde passava por lá todos os dias/ e não havia tricot para distribuir/ aos amigos./ Porque os amigos são faunos.”.

A meados da década de noventa, eu passava todas as terças e quintas pela casa do Urbano na Tomás Ribeiro e dava-lhe boleia até à universidade onde ele acabaria por me apresentar o romance As Saudades do Mundo. Depois desse lançamento, durante o jantar, eu disse que existia uma “aragem saudosa no mundo que subtrai ao corpo a sua própria leveza” (foram mais ou menos estas as palavras). “É o que se sente, quando se sabe dançar bem o tango”, respondeu o Urbano a imaginar os deleites da pianista, de decote aberto, debruçada sobre Camus e a lucubrar acerca da magia das Gnossiennes que ainda hoje se continuam a ouvir nos passeios que envolvem o antigo Hotel Americano. Não apenas o imaginou como de tudo isto tomou nota para um livro que nunca viria a ser escrito, seguindo o que Marguerite Duras deixou dito numa entrevista a Benoît Jacquot em 1993: “Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos, se escrevêssemos”.

(texto transformado da segunda para a primeira pessoa e extraído de ‘Órbita-I/ Singular’ – título provisório de obra de longo curso ainda em trânsito)

26 Fev 2021

As duas águas: Orwell vs. Rorty   

Na última parte do livro Contingência, Ironia e Solidariedade de Richard Rorty (1989), num subcapítulo sobre Orwell, há uma interessante passagem em que a relação entre os degraus da história e a literatura é estabelecida.

Ora leia-se: “Orwell foi bem sucedido porque escreveu precisamente os livros certos no momento certo. A sua descrição de uma contingência histórica particular foi, assim se verificou, precisamente aquilo que era necessário para representar uma diferença para o futuro da política liberal. Quebrou o poder daquilo a que Nabokov gostava de chamar “propaganda bolchevique” sobre a mente dos intelectuais liberais em Inglaterra e na América. Com isso colocou-nos 20 anos adiante dos nossos correligionários franceses.”.

Em primeiro lugar, clarifique-se o facto de a palavra “liberal” ser aqui empregue na acepção de democracia, ou melhor, de “democracia liberal”, tal como a entendemos hoje. Em segundo lugar, Rorty quis significar por “degraus da história” esta visão subliminarmente axial que entende poder “estar-se adiante” ou “atrás” na compreensão de algo (como se a história tivesse um ‘plot’ que caminharia para uma redenção, fosse ela qual fosse). Em terceiro lugar, entendendo profundamente a razão de Rorty, quero crer que a alegoria de Orwell analisada tem um cariz trans-histórico que suplanta a época de enunciação e as suas mais imediatas referências.

Richard Rorty refere-se, claro está, a Animal Farm (1945) e aos primeiros dois terços de 1984 (obra publicada em 1949 e cujo primeiro título foi sintomaticamente The Last Man in Europe), já que o último terço do romance, depois de Winston e Júlia irem para o apartamento de O’Brien, torna-se – tal como o autor enfatiza e bem – num livro sobre O’Brien, deixando de se constituir como alegoria exclusiva da tentação totalitária do século XX. Seja como for, o que se nota desta disposição crítica de Orwell é que o foco crítico acaba, ele mesmo, por depender, em grande parte, da época em que o juízo se explicita. Repare-se: as duas primeiras partes de Contingência, Ironia e Solidariedade foram escritas nos anos de 1986 e 1987 (na sua origem foram “Lectures”), tendo a última parte, onde surge a análise de Orwell, sido redigida posteriormente (mas seguramente antes de 1989, data da publicação da obra). O que nos aponta para uma redacção que terá tido lugar no final da década das grandes modificações, no centro e na iminência do xeque-mate mais importante do século passado: a queda do muro de Berlim e a emergência da nova era tecnológica, permeável ao fim dos dogmas e ao esvair da “História” como caminhada inelutável e de tectos inevitavelmente progressivos.

É apenas nesta postura de quem ‘pára’ e ‘olha para trás’, conseguindo definir uma esquadria de compreensão dos contracampos do século XX, que é possível entender a análise de Rorty. É, realmente, através de um dado sentido de finalidade – que historicamente se estava a esgotar no momento em que Rorty escreveu –, que os pontos de partida alegóricos de Orwell (do pós-guerra e do quase pré-guerra fria) podem ser descritos como foram em Contingência, Ironia e Solidariedade. O que significa que os “degraus da história” não passam de marcos volúveis, criados pragmaticamente em cada interpretação que se faz do tempo passado, enquanto aquilo que faz a (grande) literatura ser literatura vive justamente do contrário, isto é: da perenidade (por vezes tão transparente quanto ilegível) que acaba – ainda que tal seja uma ilusão deliciosa – por resistir ao tempo.

Por outras palavras: um presente que já foi (o de Orwell) só pode agir sobre o actual (o de Rorty), se receber deste, retrospectivamente, a sua própria eficácia manipuladora. Foi o que aconteceu. É deste modo que o livro de Rorty faz coexistir dois presentes bastante afastados, ainda que dependentes do jogo reflexivo que o texto leva a cabo. No caso da literatura, a coexistência entre muitos presentes pode acontecer como água que se mistura com a própria água sem a necessária dependência de correspondências forçadas (ao jeito das tradições de Joaquim de Flore, de Vico ou de Hegel, por exemplo), tal como aconteceu com Proust que juntou o antigo presente de Combray ao presente que na leitura se torna gradativamente ‘actual’, criando assim o jogo de espelhos que desencadeia e anima toda a irradiação narrativa.

18 Fev 2021

Um pioneiro chamado Blanchot

A ideia de fim – ou mesmo de fim último – fez uma alegre caminhada ao longo de milénios. Fosse nos “Livros” que se pretendiam revelatórios, fosse nos mais diversos domínios agnósticos. Na cultura contemporânea (divirto-me quando a intitulo por “mundo-pós-pós”), esse modelo linear, que liga as visões de uma origem única ao seu termo, parece hoje, no mínimo, encoberta por uma névoa bastante espessa.

Em primeiro lugar, porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede.

Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial.

A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano.

Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.

A reflexão de Blanchot é logo a seguir invadida por um vaticínio dramático, já que, com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” com a função de nos anunciar ‘a era da não palavra’ (“l´ère sans parole”). Este novo ruído passaria a ouvir-se para sempre, transformando-se num vazio que fala (“un vide qui parle”). Um vazio insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar os homens; capaz mesmo de separá-los de si mesmos e de os conduzir a labirintos ínvios e sem fim. Este “terrível” ruído, espécie de recriação da música com apelo disfórico, teria uma natureza estranha (“l´etrangeté de cette parole”) e basear-se-ia na mais pura simulação. Se parecia querer comunicar-nos qualquer coisa concreta, essa “palavra” estaria antes a convidar-nos ao nada, ou seja, ao paraíso da angústia pura, território desapossado de passado onde, como é natural, não há sequer lugar para um olhar melancólico.

Blanchot reviu nesta metáfora da ‘palavra-ruído’ algo que escaparia à intimidade e ao ânimo, como se tivesse sido criado expressamente para os operários-autómatos a que Fritz Lang deu corpo no seu magistral ‘Metropolis’. Uma “palavra” que, ao fim e ao cabo, subtrairia a humanidade ao essencial pois só sobreviveria se estivesse ligada a uma máquina. Uma “palavra” fantasmática e em forma de vírus – continuava Blanchot já no penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – que seria “essencialmente errante”, manipuladora e exterior (“toujours au-dehors”), ao contrário, por exemplo, do fulgor do monólogo interior que seria movido a partir de um centro irradiador.

Apesar de se poder hoje escarnecer desta metáfora de Blanchot, ela contém em si uma premonição interessantíssima do mundo da rede. Ao ‘actualizarmos por actualizar’, a todo o momento, removemos o que antes aconteceu e, a pouco e pouco, apagamos a memória sem sequer darmos por isso; ao entregarmo-nos minuto a minuto aos nossos terminais, prendemos a mente a esse gesto e o próprio rosto torna-se num diagrama que declina e que se assume em estado de dependência.

Relembro que este livro de Blanchot, baseado no mais puro questionamento metafórico-literário, saiu a público curiosamente na mesma altura em que, no campo da ciência, duas teorias – que viriam a ser importantes para uma história da internet – se tornaram conhecidas: a teoria dos grafos aleatórios de Paul Erdos e Alfréd Rényi e a teoria da interacção simbiótica homem-computador de Joseph Licklider. A coincidência fala por si.

Erdos, Paul e Rényi, Alfréd, ‘On Random Graphs’, Publicationes Mathematicae, Debrecen, N.6, pp. 290-297, 1959.
Licklider, Joseph, ‘Man-Computer Symbiosis’, IRE Transactions on Human Factors in Electronics, Piscataway – New Jersey, Vol.1 pp. 4-11, 1960.
11 Fev 2021

Anunciação de ‘Órbita’

No primeiro capítulo de Arbeit am Mythos (Trabalho sobre o Mito), intitulado “Depois do absolutismo da realidade”, Hans Blumenberg ilustra o modo como os humanos levaram a cabo uma primeira tematização do mundo, depois de uma longa fase primitiva sem qualquer domínio do mundo envolvente. Este estado de dependência ter-se-ia pautado, segundo o autor, pela “falta de previsão, de antecipação (do que está por vir) e da consequente falta de adaptação a tudo o que estivesse para além do horizonte”.

No centro desta fase pré-mitológica está aquilo que o autor designa por “Angst” – que se traduziria mais por ansiedade e menos por medo -, concebida como “um estado de antecipação particularmente indefinida” ou como “intencionalidade da consciência sem qualquer objecto”. A impotência generalizada que caracterizaria este estádio humano foi sendo superada à medida que as ocorrências particulares passaram, a pouco e pouco, de “não familiares a familiares”, de “não explicáveis” a “explicáveis” e de “não nomeadas” a “nomeadas”. A passagem da ansiedade originária (“angst”) a um estado de medo racionalizado (ou de consciência codificada do outro) é um dos momentos-chave desta superação, ou deste primeiro face a face com o desconhecido.

Nomear um relâmpago e atribuir-lhe factos significa inscrever essa ocorrência num âmbito familiar ou de proximidade, transpondo-a do desconhecido para a área do conhecido e criando, desta maneira, condições para um posterior uso de signos no contexto já do mágico, do ritual ou da adoração (projectando as ocorrências vividas em “poderes superiores” – “Ubermachten”).

O exemplo do olhar de Medusa que “mata convertendo em pedra” herda, naquilo que condensa e poderosamente afirma, esse primeiro momento em que a errância da ansiedade se transforma numa relação em que os termos em presença – um ‘eu’ e o ‘mundo’ – acabam por se significar (e, quando isso acontece, é o medo claramente e não já a ansiedade primordial que passa a mediar as relações entre os humanos e aquilo que os rodeia).

Este processo que Hans Blumenberg situa na “Vorverganggenheit” (“passado do passado”) alia sensação, percepção e afectos – entendidos como “condição de quem presta atenção” – a figuras, nomes, histórias e rituais vários que estão nos antípodas das actuais convicções de realismo, baseando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. A superação do “absolutismo da realidade” é encarada por Blumenberg como uma tarefa lenta e gradual que implicou necessariamente o confronto com obstáculos, e que evoluiu, a pouco e pouco, para uma noção encenada de conjunto.

É deste modo que a exegese humana se terá iniciado, conduzindo à prática das primeiras metáforas e a alegorias ininteligíveis e, portanto, aos primeiros processos de significação (sinais que assinalam a caça, sinais que assinalam a compreensão do corpo e da fisiognomia, etc, etc.) que avançam do singular para o universal, gerando entre ambas as esferas uma série de ligações funcionais. Richard Rorty designou este processo teatral como a passagem do “olho do corpo” para o “olho da mente” que, ao fim e ao cabo, se viria a tornar na futura querela dos universais.

A lenta passagem do domínio do terror/ansiedade para a relativa estabilidade do mito consistiu, sobretudo, em converter a indefinição inicial em definição nominal (atribuição de nomes) e em transformar o que era estranho e inexplicável em algo familiar e atribuível (ou minimamente referencial). É provável, como refere Hans Blumenberg a propósito da construção dos mitos, que a saturação de imagens e de figuras a que posteriormente se chegou (o labirinto dos deuses e das divindades nas primeiras mitologias) tenha sido uma condição que, inevitavelmente, conduziria a novos patamares, nomeadamente ao patamar do “Logos” tal como os gregos o haviam de caracterizar.

Tudo começou pela noite, o enigma sem a consciência ainda de ser um enigma. Seguiu-se o encantamento pelos reflexos (a água que cria imagens especulares) e o momento em que o terror do desconhecido se transformou em medo de objectos particulares. As narrativas orais celebraram os inícios, através de panegíricos da fundação do mundo e da espécie. Os humanos descobriram que têm visões e transformaram-nas em modos de perceber quer o cosmos, quer os episódios mais imediatos. De jangada saíram dos continentes e foram percorrer os mares e alguns rios, navegações costeiras que condensaram percursos e alteridades.

Os nomes terão evocado a realidade pela segunda vez e contribuíram para reconverter a experiência acumulada num jogo tão fracturante que as suas flutuações foram quase sempre imputadas às divindades. A passagem do tempo gerou as primeiras melancolias e com elas a invenção de idades do ouro. Há mais de dez milénios, o neolítico travou o nomadismo recolector e permitiu ao humano cantar as entranhas da natureza e entender, entre os muitos mitos da infinitude, modos concretos de sobrevivência e de organização terrenas. As hordas e os estados impuseram limites e as disputas jamais cessaram. Nunca haveriam de cessar. Em nome deste repto total, a guerra tornou-se no denominador comum apaixonado dos povos e conduziu à criação da figura simbólica dos grandes heróis inimitáves.

Eis, pois, em brevíssima síntese, o decantar do que farei constar no Canto I de ‘Órbita’, título genérico de um longo trabalho que iniciei há já vários meses e que será composto por dez cantos poéticos (que correspondem pitagoricamente a dez mil versos), precedidos por um romance e sucedido por um ensaio. O projecto faz contracenar uma biografia do mundo (parte poética) com uma biografia singular (romance), deixando para o ensaio o olhar que livremente averiguará a proliferação do sentido em todas estas construções. Não é a obra da vida, mas é a vida escancaradamente a penetrar e a olear os interstícios da obra. A embarcação dos dias precisa de apostas de grande fôlego.

4 Fev 2021

A outra doença

Para além da tragédia global que a todos nos consome, um dos aspectos mais nocivos do factor covid19 é a sua espectacularização. Ela é responsável em grande parte pela banalização das mensagens que dão a conhecer os dados diários da pandemia, pelo chamado “cansaço” das pessoas (como se fosse algo a normalizar e a legitimar) e, em primeiríssimo lugar, pela indiferença crescente face ao número de mortos e de infectados que se registam neste nosso país que passou a ser o pior de todo o planeta no combate à catástrofe sanitária. É como se a notícia de uma fatalidade terrível apenas pudesse ser veiculada, tendo por cima imagens dos canais do cabo que somam ao culto da velocidade a banalização da violência, do sexo e da morte. Diante deste estranhíssimo cenário, até mesmo as reportagens da campanha eleitoral tiveram, por vezes, um sabor provocatório e de mau gosto, como se fosse dúbio aquilo que realmente estava – ou deveria estar – em causa nestes tempos tão negros.

Mesmo que se parafraseie William Burroughs – “The theater is closed” –, sabemos bem, reatando a citação, que “não há́ lugar fora do teatro, que tudo ocorre no mundo, que não há lugar para onde escapar” neste ‘face a face’ com as encenações tecnológicas e telemáticas que nos envolvem (como se não existisse um lado de fora e um lado de dentro nesse envolvimento). Na verdade, o espectáculo sempre correspondeu ao mais profundo dos humanos porque condensa todas as histórias possíveis e todas as montagens imagináveis, para além de proporcionar, sem paralelo, a fruição de intensidades imediatas. O espectáculo pode imitar, truncar ou parodiar de formas muito diversas, condensando, divergindo e abrindo-se sempre a um leque muito grande de escolhas. Há 25 séculos, na ‘Poética’, Aristóteles disse-o de modo pleno, quando tornou clara a superioridade da tragédia face à epopeia: “A tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia” (…) “e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios.”

Sair deste aquário de imagens que quase o transbordam em intensidade, como dizia o filósofo (sem imaginar que o mundo se transformaria todo ele num vasto teatro), vai ser tão penoso quanto sair do próprio mal da pandemia. Se a vacina nos promete esta segunda saída, já a primeira arrastará consigo uma patologia de vivências e de memórias difícil de curar. Só daqui a uns meses – ou talvez anos – entenderemos que a saturação de imagens com que temos vindo a viver, durante este último ano, somou à tragédia real uma disrupção de óptica (e de objectividade) com origem em fantasias, negacionismos e ‘fake news’ da rede, na inflexibilidade dos calendários políticos (por que não se adiaram as presidenciais, por exemplo?), nas abjectas estratégias sacrificiais (o caso mais óbvio foi o de “salvar o natal”) e, também, claro, na obsessiva distopia televisiva.

A banalização resulta de uma repetição interiorizada que não dá sequer tempo para separar o fundamental do acessório ou mesmo, tantas vezes, do desprezível. É esta uma das consequências da instantaneidade tecnológica.

Neste tipo de processos que conduzem à vulgarização, as imagens não apenas fazem por encadear como têm vida própria. Razão tinha Adolfo Bioy Casares, no seu pioneiríssimo romance ‘A Invenção de Morel’ (prefaciado por Borges há oito décadas exactas), quando lá escreveu – “A hipótese de as imagens terem alma parece confirmada pelos efeitos da minha máquina sobre as pessoas, os animais e os vegetais”.

O encadeamento espectacularizado de imagens, gerado no espaço público em toda a sua extensão, tem permitido à santa aliança entre o virtual e a idiotice mais chã pressionar os efeitos do real (bem como a imagem que dele temos e que no-lo permitem ajuizar). Este encadeamento, com forte recepção nos ‘mainstreams’ sociais, é uma segunda doença de que pouco ainda se fala. Geralmente tem-se dado mais importância aos sintomas exteriores do que a ela mesma. Venturas e Trumps são efígies criadas por esta terrível névoa que faz do delírio, das temáticas franco-atiradoras e da violência gratuita o seu jogo sem finalidade alguma. Por vezes, ridicularizando e minorando a pandemia. Lama que cai em cima da lama e que paralisa a própria lama.

Seja como for, apesar de ser possível prever que existem males crónicos que irão persistir por muito e longo tempo, creio que, dentro de um ano, ou talvez antes, nos iremos admirar por poder livremente voltar a olhar o mar e subir as dunas lado a lado com todas as outras pessoas sem necessidade de máscara. Há-de chegar esse dia. O dia para amar e desarmar as névoas perigosas. O dia que visto daqui de longe – seja lá quando for – nos garante, afinal e desde já, alguma da nossa sanidade. É nesse ponto do futuro que nos devemos colocar a observar com lucidez o tumulto, o desacerto e a cegueira que estão neste momento a dominar o presente.

28 Jan 2021

Natal: uma calamidade desejada

Muito se escreveu já sobre a possibilidade de as baleias se suicidarem. Parece que é mesmo pura ilusão desta nossa espécie que é, ao mesmo tempo, a maior predadora do planeta e a única com real vocação suicidária. Antonio Petri, professor da universidade de Cagliari, analisou mais de um milhar de estudos de caso publicados ao longo de quatro décadas e não encontrou quaisquer provas de que os animais, baleias incluídas, praticassem suicídio de um modo consciente.

O fenómeno do suicídio colectivo ou, mais exactamente, da arte da entrega ao suicídio colectivo, é exclusivamente humano e não faltam seitas religiosas e narrativas mitológicas para o documentar. É evidente que a vastíssima genealogia das guerras é uma parte seminal deste escol. A ‘Ilíada’ é porventura o texto em que o corpo a corpo na guerra é mais delirantemente colocado a nu, mas sempre com um pano de fundo encantatório. A entrega ao sangue surge naqueles combates de centenas e mais centenas de páginas como o supra-sumo de uma glória maior.

Até ao início do século passado, mais concretamente até ao simbólico ano de 1914, era ainda normal a população vir para as ruas saudar e festejar a partida dos soldados para as frentes de guerra. As guerras sempre aconteceram em nome duma aura colectiva, fosse o filtro a graça divina, o que aconteceu durante séculos no mundo pré-moderno, fosse o filtro uma nuvem nacionalista ou ideológica, já no alvor do ocidente moderno. Logo no início de ‘Viagem ao fim da noite’, Céline, com aquela sua ironia e escárnio habituais, focava este ambiente: “Era um nunca mais acabar de ruas e ruas, e dentro delas ainda os civis e as suas mulheres que nos gritavam encorajamentos, que atiravam flores nas esplanadas, em frente das estações de igrejas repletas. Quantos patriotas ali havia!”.

Em Portugal, antes de a primeira grande guerra mundial se iniciar, Jaime Cortesão também apelou profeticamente à grande batalha com argumentos “civilizacionais” a par da “livre e democrática” Inglaterra e em nome da “grande, bela e generosa” França e contra a Alemanha “imperialista e militarista” e a Áustria “católica e déspota”. Apontando no mesmo sentido, Augusto Casimiro evocava “dois princípios hostis: a liberdade generosa e a força tirânica”. Teixeira de Pascoaes, referindo a antiga aliança anglo-portuguesa, escrevia que o “passado vela pelo futuro” e concluía que a sorte da Inglaterra e da França seria sempre a sorte de Portugal. Teófilo Braga temia, pelo seu lado, a perda da “ocidentalidade”, enquanto alicerce do equilíbrio europeu. Raul Proença apelou mesmo à “mobilização moral dos portugueses” com o objectivo de se criar um “nexo patriótico” que sustentasse a campanha portuguesa na guerra. Por fim, Leonardo Coimbra via a guerra como o “esforço transcendente das forças espirituais” contra “a vertigem materialista do mundo moderno”*.

Enfim, a intelectualidade portuguesa estabelecida teria a consciência dos efeitos de todos estes apelos e sentava-se tranquilamente no palanque que Céline descreveu no seu mítico romance, mas, apesar disso, a história acabou por falar mais alto. E sabe-se bem como. Esta tendência de entrega generalizada ao sacrifício (ou mesmo ao suicídio) nem sempre se revestiu de uma aura bélica. Há uma longuíssima história sobretudo de rituais que fazem jus a esta atracção colectiva pelo que diríamos ser de calamidade própria. Joana Guimarães, num ensaio sobre suicídios colectivos, referiu a abundância do tema na mitologia grega (é o caso, entre outros, de Praxítea, Aglauro, Alciónidas, Cicno, Híades, das filhas de Erecteu e de Cécrops ou das companheiras de Erígone)*. Poderíamos juntar a este caudal, entre muitíssimos outros e com a devida diversidade, as tradições dos sacrifícios astekas, o haraquiri nipónico ou mesmo os estranhos acontecimentos de Jonestown em 1978.

Se todos estes casos surgem como exóticos, datados ou próprios de um alhures (situados no território do ‘outro’, isto é, fazendo parte daquilo que nós ‘não’ somos), pode crer, caro leitor, que existem casos deste teor que se passam connosco, mesmo na nossa frente e com um golpe de asa tão translúcido – e tido como normal – que quase passam incólumes ou invisíveis. Foi o caso da estratégia do governo português para a pandemia, tal como foi delineada no início do outono passado e que foi secundada por todos (repito: todos) os partidos políticos existentes no país.

Fiquei estupefacto, quando, em Outubro passado, o PM e o ministro da economia, cada um à sua maneira, apareceram nas televisões a dizer que a estratégia anti-pandémica do governo passava por “salvar o natal”, sabendo-se que estávamos à distância de pouco mais de um semestre para que o processo de vacinação começasse a produzir alguns efeitos. Cálculos matemáticos publicados pouco depois disso referiam um desmedido número de mortos e um grande número de infectados, caso se optasse por não anunciar medidas restritivas no natal. Unânimes e conscientes do sacrifício colectivo, a medida de ‘liberalização’ avançou. É evidente que tudo o que agora está a acontecer em Portugal tem essa estranhíssima decisão como fonte primeira.

Em vez de se convidar o povo a festejar (criativamente) o natal em Junho ou em Julho de 2021, o peso pesado do ritual foi de tal monta que agora bastar-nos-á infelizmente contar os mortos, fazer um confinamento redobrado – que meio mundo está a levar a brincar – e observar as misérias e as falências em série e em catadupa que se esperam. Tudo podia ter sido evitado, se não fosse essa bizarra obsessão chamada natal. Talvez seja exagerado dizer que se tratou de um verdadeiro crime, pois os humanos, como se viu, estão talhados para este tipo de arte da entrega ao sacrifício colectivo. Valha-nos, pois, o ouro muito escuro – escuríssimo – desse saber que dá pelo nome de antropologia.

*Castro Leal, E. ‘Narrativas e Imaginários da 1º grande guerra – O Soldado-Saudade português nos nevoeiros de morte’ em ‘Revista de História das Ideias’, Coimbra, 2000, p. 445.
*Guimarães, Joana. Suicídio mítico: uma luz sobre a antiguidade clássica. Publicado por: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos; Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/2325 (acesso: 14-Jan-2021 18:42:12)
21 Jan 2021

A liberdade problemática

Lembro-me sempre de Sebald, quando se fala da necessidade de esquecer a história de um modo intencional e compulsivo. Foi o que a Alemanha fez após a segunda grande guerra mundial. No fundo, é o que todas as narrativas fazem ao deixarem de lado o que não interessa a cada presente que as lê. Os nacionalismos e os colonialismos de todo o tipo – e de todos os tempos – sempre trabalharam desse modo. Se o esquecimento compulsivo pode atrair a ordem e uma coerência artificial dos factos, não deixa de ser verdade que o oposto – o esquecimento não compulsivo – atrai muitas vezes o acaso. A razão é simples: se o esquecimento não compulsivo está relacionado com uma quebra de continuidade e de controlo, o acaso, por seu lado, dá-se bem com saltos improváveis a que a realidade por vezes se reduz assim que a bússola e a mão de comando se dissipam.

O par ‘esquecimento não compulsivo’ vs. ‘acaso’ é um tema maior do nosso tempo e pode ser verificado todos os dias na actualidade política, na expressão da guerra (não necessariamente clássica), nos media, nas crises financeiras, na prolixidade dos comentadores, na redundância das campanhas eleitorais e até na estética publicitária.

As obras de Paul Auster reflectem estas realidades de um modo particularmente incisivo. Em quase todos os seus livros se prenuncia uma catástrofe. É assim no desfecho suicidário de Música do Acaso (1990), quando Nashe leva ao extremo a intriga em que se deixa envolver; e é assim quando o mestre Yehudi de Mr. Vertigo (1994), o caderno vermelho de Quinn (da Trilogia de Nova Iorque) e o livrinho preto dos telefones (achado por Maria Turner, em Leviathan – 1992) desencadeiam, cada um a seu modo, sucessivos movimentos de dominó nos destinos das personagens. O desconcerto assenta sempre em lapsos de memória, ou melhor, em descontinuidades entre o presente imediato e aquilo que o antecede, e apresenta-se ao leitor, por vezes explicitamente, sob a forma do acaso.

Para além disso, Paul Auster sempre explorou as semelhanças entre os acontecimentos mais diferenciados entre si. Este ponto de partida, baseado na equivalência do improvável, parece por vezes sobrepor-se a qualquer tipo de lógica. É o caso, no romance Música do Acaso, dos paralelismos entre as infâncias de Pozzi e de Nashe e entre os destinos de Flower e de Willie. É também o caso do paralelismo formal que se desenha entre os desaparecimentos de Sachs e de Dimaggio, em Leviathan, e, por outro lado, do tipo de simulação praticado por Quinn/Auster na Trilogia de Nova Iorque e por Maria/Lilian em Leviathan. É ainda o caso das semelhanças que são propostas entre o ponto de partida da própria vida de Nashe (em Música do Acaso) e o que acontece na vida de Walter, no final da segunda parte de Mr. Vertigo.

Vale a pena seguir estas pistas exemplares. As semelhanças – que atravessam a superfície lisa ou enrugada dos acontecimentos – narradas por Paul Auster não andam muito longe da interpretação que os media e os governos contemporâneos levam a cabo em situações limite. A tentação de relacionar o ‘não relacionável’ faz parte de um modo de entender o mundo, no qual o desejo adoraria transformar-se em profecia. De alguma maneira, encontramos materializado em Paul Auster aquilo que Gianni Vattimo designou por “liberdade problemática”. Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada pelo escritor, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação acaba por se esgotar, enclausurada que se sente por obsessões tão profundas que não cabem na cartografia das explicações.

A questão do terrorismo coloca-se igualmente neste tipo de parábolas actuais que disputam toda uma possível história do sentido. O mundo metaforizado por Paul Auster é, afinal, um mundo muito real, dominado por disjunções inexplicáveis e por ameaças maiores que, no entanto, nunca se tornam inteligíveis. O que acontece supera quase sempre a sua significação. É um facto que sempre existiu uma relação particularmente difícil entre a ética (o ‘dever ser’ interior) e as práticas do terror ou do mal. Susan Neiman afirmou que, desde o Iluminismo até ao presente, sempre existiram dois pontos de vista antagónicos a este respeito. O primeiro, que vai de Rousseau a Hannah Arendt, insiste que a moral nos obriga a tornar o mal inteligível. O outro, que vai de Voltaire a Jean Améry, insiste que a moralidade nos obriga a não o fazer. Esta ambiguidade traduz um campo fértil para a entrada em cena da personagem mais espessa do nosso espectáculo actual: a crise.

É difícil ter visto os arruaceiros que invadiram o Capitólio em Washington DC (e a complacência da polícia que os recebeu) e esquecer as incongruências anunciadas, anos antes, pelo mundo literário de Paul Auster. O incompreensível atrai sempre o sabor de uma impossibilidade que, de repente, já está a acontecer diante dos nossos olhos. É no movimento dessa atracção que reside justamente o que se entende por crise. Só que na realidade o acaso parece sempre premeditado como se fizesse parte de uma conjura maior, enquanto na ficção literária ele consegue ter um brilho próprio que se assemelha a uma promessa ou a uma velada predição.

Em ambos os casos é a “liberdade problemática” que age com as suas obsessões perigosas e irracionais, de que Trump será por estes dias a imagem mais evidente, mas também a figura que eu irei para sempre tratar ao nível do esquecimento compulsivo. Outra coisa não merece esse diabo.

14 Jan 2021

A real vertigem

Nunca se está preparado. Seja para uma época com acontecimentos absolutamente imprevistos, seja para o abandono daquilo que mais estimamos e amamos. Seja ainda para prevermos o que aí vem, sempre que os números nos surgem a baptizar um ano que se diz novo.

Há duas décadas, a então editora Difel publicou um volume intitulado ‘Predições’, organizado por Sian Griffiths, no qual trinta autores, entre os quais Stephen Gould, Umberto Eco, Arthur Clarcke e Francis Fukuyama, foram convidados a antever o que iria acontecer no século em que já nos habituámos a viver.

Nenhum deles focou, naturalmente, o 09/11, a invasão do Iraque, a crise Lehman Brothers e das dívidas públicas ou a pandemia Covid de 2019-2021. Os textos centraram-se sobretudo em três direcções: visões (apocalípticas ou utópicas), amplificações inteligentes e (já bastante menos) relativações.

No primeiro caso, cabem tanto Arthur Clarcke como Stephen Gould. O primeiro ao ter acentuado que, “depois de 2020, quando a inteligência artificial atingir os níveis da inteligência humana, haverá no planeta Terra duas espécies inteligentes, uma das quais evoluirá muito mais rapidamente do que a biologia humana poderá alguma vez evoluir”. E o segundo ao ter referido que a “discordância entre o avanço tecnológico e o avanço moral actua como um factor desestabilizador. Nunca saberemos como, e de que modo, estes episódios de destruição irão ter lugar” (…) “exigindo um verdadeiro renascer de cinzas de velhos sistemas, como aliás tantas vezes a vida fez – de um modo maravilhosamente imprevisível – após episódios de destruição em massa”.

O segundo caso é o de Fukuyama, cuja previsão parte da observação do mundo imediato para depois passar a valorizar o factor demográfico em articulação com a questão do género: “Daqui a uns cinquenta anos, os países desenvolvidos do mundo terão populações com idades medianas na ordem dos cinquenta. A combinação do maior impacto das mulheres no sistema político com a alteração na idade mediana, a deslocar-se para cima, irá conduzir a um tipo de política muito diferente. Admitamos, a maior parte da confusão no mundo é provocada por homens jovens, ou então por gente tipo Saddam Hussein que pretende conduzir os jovens (homens) a entrarem em vários tipos de aventura”.

Por fim, o terceiro caso enquadra-se na interessante relativação que Eco levou a cabo: “Quando os primeiros dirigíveis apareceram, as pessoas pensaram que se seguiria uma progressão linear” (…) Mas tal não aconteceu. Em vez disso, a certa altura, deu-se um desenvolvimento lateral. Depois de o Hindenberg se ter desfeito em chamas em 1937 (matando 35 pessoas), as coisas começaram a ir numa direcção diferente. Em certo momento, parecia mais lógico que se teria de ser mais leve do que o ar para poder cruzar os céus – mas depois descobriu-se que se teria de ser mais pesado do que o ar para se voar mais eficientemente”.

Tal como acontece desde os alvores do humano, as previsões oscilam quase sempre entre o plano da visão (disfórica ou eufórica), a consciência de uma possível derrapagem (talvez o sinal de alerta mais lúcido) e o aspecto mais simples e elementar de todos: a ampliação do já observável.

Os diálogos de ‘A República’ de Platão e da ‘Utopia’ de Thomas More a par das distopias (sobretudo as do séc. XX, casos de Aldous Huxley, Adolfo Casares ou de Fritz Lang, entre muitos outros) encaixam-se no plano das visões. A amplificação – onde cabe também o “vaticinium ex‐eventum” praticado no A.T. por ‘Daniel’ ou em textos como ‘Similitudes de Enoch’ ou ‘Apocalipse de Baruch’ – é um conhecido processo de textos de cariz utópico e contíguos como os de Louis-Sébastien Mercier (‘L’An 2240’) ou mesmo de Maquiavel. Já a antevisão não linear, ponderando falhas e súbitas mudanças, é menos frequente, mas não deixa de ser o modo mais intenso por convocar a evidência do factor surpresa e do imponderável (é na grande literatura e na poesia que encontramos vias fulgurantes que permitem sinalizar o indeterminado).

No final do “círculo nono” do longo “inferno” (últimos versos do canto XXXIV), Dante, o protagonista, e o seu guia, Virgílio, depois de terem descido ao centro da terra saem abruptamente pelo outro lado. Um e outro apercebem-se, a certa altura, do lugar onde se senta o demónio: “Há um lugar a Belzebu remoto/ tanto quanto esta gruta já se estende,/ que, não por vista, mas por som é noto de um regato que por ali descende/ na boca de um rebordo pedregoso”. Nesta linha de súbitas inversões, Dante acaba por encarar o diabo de pernas para o ar: “alçando os olhos cri que ia avistar/Lúcifer como eu o tinha imaginado/ e então o vi de gâmbias para o ar”.

Não haverá melhor metáfora para indiciar o modo como o conhecido é amiúde um efeito metafórico do desconhecido (moldado e devidamente retrabalhado). Nas antevisões, nunca estamos preparados para o que é legível e tangível, porque somos invadidos pela inquietação daquilo que não conhecemos. Esse lapso – que valoriza mais o ‘não dito’ do que aquilo que o pensamento e a linguagem autorizam a dizer – é muito convidativo às visões e às projecções (a partir daquilo que nos rodeia). Ter em conta o ‘senão narrativo’ da história já é bem mais difícil. De facto, as ideologias e as escatologias nunca ou raramente tiveram em conta as falhas, as incertezas, a sorte ou os acasos. Havia sempre lugar nesses receituários a um espírito santo ou a um leninezinho para ‘nos’ salvar. E muito facilmente varriam esses arrojos “cépticos”, por vezes com singular violência nas arenas da inquisição ou dos gulags.

Não estar preparado e, ao mesmo tempo, ser capaz de antecipar são dons próprios do humano. Este paradoxo das nossas aptidões faz com que estejamos sempre a descer as escadas do futuro em direcção ao presente para medir a pulsação dos “estados de coisas” e dos “corpos”, como diriam os estóicos no seu tempo. Com a vertigem de tanta descida, mal temos disponibilidade para perceber quais são as muitas viagens que, em cada momento, nos chegam do passado. Essa (ainda que relativa) cegueira talvez possa receber o – não menos paradoxal – nome de realidade.

7 Jan 2021

A tristeza

Há tristeza quando não há como responder ao mundo. O que a origina pode ou não ser concreto. Na maior parte dos casos, não existem causas para a tristeza que sejam definitivas, embora a perda seja a grande excepção.

A perda não é referencial e dificilmente se centra num objecto claro. E quando parece tê-lo, logo o foco se reparte por diversos outros universos sem que haja controlo sobre esse travelling existencial sempre em movimento. A perda é uma viagem ou uma queda interior que vê o mundo da mesma forma que os periscópios dos submarinos pressentem o perigo. A perda tem as suas paisagens próprias. São paisagens lentas, paisagens que comprimem, paisagens que por vezes sabem conter a respiração. Não há espaço fora de si na tristeza que advém da perda.

A perda não tem conteúdo e geralmente avança como uma água gelada que se distribui de modo desigual e que não permite avaliar, se o que está em causa é remediável ou não. A perda não é, no entanto, desgarrada ou susceptível de ser vivida num vórtice. Paradoxalmente, interpela-nos de modo tranquilo, paciente e introspectivo, acenando-nos até com uma espécie de amor próprio.

A perda, o elo mais cristalino da tristeza, tem sobretudo como base a incompreensão. Desde logo dela mesma. Por isso se pode perguntar: o que se perde com a perda de um ente querido? o que se perde com a perda de uma pessoa amada? O que se perde com a perda de um objecto único? Ou o que se perde com a perda de uma cidade que já ardeu? A resposta será sempre vaga, deslizante, centrípeta. A perda é, por isso mesmo, irrespondível. Tal como um bom poema.

Para além da perda, a tristeza pode ter na sua origem algo que nos aparece com brusquidão pela frente e que traz consigo um efeito de desalento (ou mesmo de desilusão) movido por uma alteridade negativa. Trata-se de qualquer coisa que não se espera, porque quem no-la faz aparecer demonstra uma ausência de empatia e de verossimilhança que seria desejada e sobretudo esperada. Este tipo de alteridade implica o desamarrar abrupto de laços, quando se tinha em conta que eles estariam firmemente ligados. A confiança quebra-se como o gelo e a tristeza estará na evidência surpreendida desse abatimento.

Apesar da perda e da alteridade negativa, a tristeza sustenta-se fora de causas. Existe por si e com um combustível próprio que preenche a incompletude. Só quando é nomeada, ou tida em conta no território semântico das palavras, é que nos aparece como se fosse o oposto da alegria. Mas nada pode ser mais falso. Não é por haver menos alegria que há mais tristeza, nem é por haver mais alegria que há menos tristeza. A tristeza é rigorosamente autónoma, desenvolve atmosferas próprias e não cria fronteiras rígidas com nada; ela própria sabe muito bem como contemplar o nada (que é próprio da angústia) com toda a parcimónia.

A tristeza é a certeza vivida de muitas mortes sem as antecipar, ou sem estar na crista do acto em que elas tiveram ou terão lugar. A tristeza não é uma reacção seja ao que for, mas antes o viver intensamente imerso nesse território a que imaginariamente se reagiria de fora para dentro. A tristeza respira dentro do inconcebível, o que significa estar mergulhada num aquário que roda sobre si; um aquário reflexivo, mas desprendido de ferramentas técnicas de reflexão. O que encara na sua frente, desaba logo, mas sem qualquer rasgo, pois a poética da tristeza é um céu brando de que não se sai (um céu virado ao contrário onde os movimentos mundanos e correntes da vida continuam à nossa volta como se fossem um mero espectáculo).

Por ser centrípeta, autónoma e não ter conteúdo, a tristeza não tem sequer linguagem. Tal como a perda ou a alteridade negativa também não têm linguagem. O glossário da tristeza é um glossário abstracto, sensorial e intraduzível. Um glossário poético e, ao mesmo tempo, um glossário que é um manual para a grande arte da sobrevivência, de que se poderão extrair dois ensinamentos essenciais: (1) estar triste fora da tristeza é saber viver com sageza e (2) estar triste dentro da tristeza é – no que corresponde à finalidade de toda a filosofia – uma forma (serena) de aprender a morrer.

31 Dez 2020

Media zero

Hans Enzensberger defendeu há mais de trinta anos que a televisão é o “media zero” por excelência. Isto significa que ela se limita a indicar-nos se o aparelho está ligado ou desligado. Estando ligado, haverá imagens a percorrer o ecrã, sons que explodem ao mesmo tempo, cores e vozes a coroar o folclore tele-transmitido. Se se desliga a televisão, essa ‘coisa’ não se produz. O “media zero” gera a indiferença à distância e é criado todos os dias para que esse efeito se materialize. 
 
O que o “media zero” leva a cabo é preencher o tédio, simular apogeus sensoriais e oferecer uma companhia fantasmática a quem tem a televisão sempre ligada em casa. Trata-se de uma espécie de filme de terror disfarçado de pombinha branca magnética dentro do qual a larga maioria da população vive diariamente. Imaginar que se vence a doença contemporânea do stress implica, hoje em dia, sofá e “media zero”, ou seja: pretender o mais possível desistir de ser e anestesiar-se diante deste novo altar composto por pixels (a santidade dos dias de hoje).
 
O “media zero” cria essa ‘coisa’ (que liga os humanos à máquina) como se fosse uma penumbra que nos empresta graciosamente um estado de coma suportável. E não é apenas um apanágio da televisão. Uma boa parte das marcas e dos registos do nosso tempo são ritualizados em modo de “media zero” (a maioria das músicas que ocasionalmente se escutam – e não é apenas nos aeroportos ou nos centros comerciais – limita-se a informar-nos de que há música no ar – geralmente percussão e batida sem silêncio – ou de que, ao invés, não há qualquer música no ar).
 
Na era dos grandes clímax, a relação com a transcendência permitia perceber o humano como parte indiscutível de uma entidade superior. O natal, a páscoa e o pentecostes eram, por isso mesmo, fontes de comunhão partilhadas socialmente com avidez e entrega. O mesmo se dirá de outro tipo de clímax históricos (muitos deles ideológicos e com origem no século XIX), na medida em que fomentaram o mesmo enlevo de partilha com algo absoluto, ideal e indiscutível. Muitos vestígios rituais que continuam presentes na nossa cronologia anual decorrem destas fantasias de apogeu (são vários os feriados nacionais que as reflectem).
 
Na sociedade em que vivemos, entregue ao fluxo hipnótico dos zappings e à cegueira do consumo de bens (sobretudo tecnológicos) em desfavor de um ‘ethos’ social, todos estes rituais, sejam de origem religiosa, ideológica ou outra – caso do chamado dia dos namorados, por exemplo -, surgem perante nós à moda do “media zero”. Passamos por eles como um comboio que pára em estações que são sempre iguais e que terão sido mais sonhadas do que reais. E o fundamental – em todas essas estações – é fazer uma ‘selfie’ (individual ou da tribo) e aspirar fundo o tempo com mímicas digitais como se fosse um ‘shot’ que convida a um estado de êxtase instantâneo e imediato para logo de seguida se apagar. 
 
Ao fim e ao cabo, o significado do natal, do 5 de Outubro, da páscoa ou do primeiro de maio é praticamente nulo, pois o que povoa esses dias não é nada que alimente uma sede intrínseca de apogeu ou de realização interiormente motivada, mas tão-só o fluxo da pombinha magnética que entra e sai do shopping, tal como se entra e sai do ecrã televisivo. A diferença entre haver natal e não haver natal é apenas térmica e memorial, ou seja: mero espasmo do que passámos, há poucas décadas, a designar por “férias”; um agosto mais pequeno e mais frio com prendinhas, iluminação eléctrica nas cidades e chatices nos casais, nos pais e nos avós – e outros velhos – friamente atirados para a prateleira dos lares (é até explicável como estes tempos paradoxalmente “livres” correspondem a um cume de violência dentro das famílias). 
 
O calendário é, nesta nossa época acelerada, um recheio de companhias fantasmáticas. As datas e as “celebrações” são parte de um pano de fundo tendencialmente indiferente. Ninguém hoje pensa no futuro de ouro da humanidade, nem nada hoje atrai mais as ‘massas populares’ do que uma saudável amnésia colectiva (e da própria história). O presente e o imediato tornaram-se rei, o agora-aqui sem continuidade impera por toda a parte e a instantaneidade tecnológica veio para dar corpo a esta saga que é a nossa. Acresça-se à urgência deste ‘já-patológico’ a simulação anestesiada da eterna juventude (que passa pelo fluxo dos ginásios e das próteses ciber-estéticas). Fora deste presente eterno, tudo o que venha de longe é inevitavelmente vivido ao jeito de um filme igual a si mesmo e que repete sempre as mesmas figuras, “tipos” e imagens.
 
Tal como nos dizia Enzensberger, basta-nos saber se esse filme está agora a acontecer ou não. E esse saber – que é uma filosofia de nulidade branca sobre o branco – constitui o mais elevado e assumido culto do “media zero”. Por isso mesmo, desejo-vos a todos um bom natal!
 
*Em Português de Portugal, ao contrário do Português do Brasil (que usa “mídia” numa adaptação fonética do Inglês), a palavra “media” não tem o acento agudo que é, normalmente, próprio de uma falsa esdrúxula (como acontece com “média” no sentido de “média aritmética”, “média de vida”, “média harmónica” ou de “fazer/tirar a média”, etc.). Por diferenciação, “media”, enquanto substantivo masculino e plural (do lat. media ‘meios’), surge em Português como uma excepção e deve ser sempre assim registado – apenas “media” –, embora a sílaba tónica recaia, tal como em “média” (no sentido de “média aritmética”), na primeira sílaba.

20 Dez 2020

América

América

Cada um de nós tem a sua América. Será um misto de fascínio, cinema, pragmatismo e universo de possibilidades, mas também de selvajaria, isolamento, ensimesmamento, rudeza e grandeza suicidária. O que tornou possível um Watergate, também tornou possível quatro anos de patologia Trump (sempre a mentir e a efabular), codificada, no entanto, como se se estivesse a viver num aquário da mais perfeita normalidade. O que fez a Europa sair do jugo nazi e das ameaças do gulag foi também o que tornou possível as chacinas da guerra fria no Vietname. Respirando fundo: a América de cada um de nós é, como toda a realidade, uma incongruência. Mas uma incongruência que nos permitiu muitas vezes poder respirar acima da linha de água. Sem a América, hoje não haveria democracia, tal como a entendemos.
Há imensas abordagens sobre a América e nenhuma delas será a última e a perfeita. A maior parte delas provém dos americanos que não têm medo de levar a cabo a sua própria catarse quase em tempo real. Pouco tempo depois da guerra da Coreia, da questão cubana, da guerra do golfo, do 09/11 ou da invasão do Iraque, logo apareceram os filmes, as narrativas e um sem fim de diagnósticos que se auto-celebravam e sobretudo denunciavam. Sob este ponto de vista a América é única.
Tenho sobre a mesa dois livros de autores europeus que analisaram a América em visita. Um e outro têm em comum um olhar em que o deslumbre se funde com a negação. O ‘América’ de Jean Baudrillard foi publicado em 1985 e o livro da Natália Correia, ‘Descobri que era Europeia’, desdobrou-se em três tempos (1950, 1978 e 1983). Ao fim e ao cabo, estamos perante duas visões que aterram no início dos anos oitenta e que tentam olhar em frente. É isso que faz um livro não ser estritamente actual e poder, por isso mesmo, merecer por parte do editor um aval que não corresponderá apenas à fome da liquidez imediata e efémera.
Há três aspectos comuns nestes dois livros, provenientes, como se sabe, de sensibilidades muitíssimo diferentes: (a) selvajaria e utopia de mãos dadas, (b) paraíso e distopia e (c) uma inevitável colisão ‘Eu – Outro’ (que recairá ou na revelação ou numa estética da alienação).
O primeiro aspecto levou Natália a sublinhar que os EUA nasceram “com o racismo”, “desenvolveram-se no racismo” e “vivem no racismo”. Este pano de fundo convive com um outro traduzido pela “descartabilidade do indivíduo” e ainda pelo contraste gritante entre a “submersão na racionalidade” e a cegueira primária, a solidão urbana ou a marginalização dos imigrantes vencidos e dos idosos. Por outras palavras: um vulcão por arrefecer que propõe fertilidade nas pradarias circundantes. Já Baudrillard preferiu referir-se a “uma imensa utopia realizada”, mas essencialmente paradoxal e que terá chegado a um ponto em que se tornou legítimo interrogar: “…e o que fazer depois da orgia?”.
O segundo aspecto circunscreveu-se para Natália ao “pragmatismo da felicidade”, embora associado, “à mais completa morte da individualidade e à mais completa morte da diferença física, emocional, intelectual e cultural”. Baudrillard foi menos impetuoso, mas alertou para o facto de o paraíso americano ser “fúnebre, monótono e superficial”. Tal como em Paris, Texas de Wenders, a metáfora do deserto envolve todos os interstícios profundos da América e permite aos americanos aceitar a sua insignificância diante da (ininterrupta) simulação de paraíso em que vivem (os “malls” são iguais em todas as Américas do mundo, convenhamos).
O terceiro aspecto é o que incide na alteridade e na comparação. No caso de Natália, o efeito da visita foi decisivo. Leia-se: “Foi na América que tive a grande revelação. Levara comigo as minhas raízes europeias. Mas uma visão de contrastes e de agressivos antagonismos trouxe-me à consciência os ramos gerados na profundidade das minhas raízes. Descobri então com deslumbramento a minha posição no mundo: era europeia. E os laços temperamentais que me prendiam à família europeia, deixaram de ser líricas aspirações para se fundirem no aço dum deliberado amor.” A óptica de Baudrillard foi menos inocente e, à boa moda francesa, resgatou a “estrutura” da história como argumento: “Sem passado ou verdade fundadora, por não ter conhecido uma acumulação primitiva de tempo, a América vive numa atualidade perpétua” e numa “simulação perpétua”, pois “não experimentou uma acumulação lenta e secular”. Contudo, no final, Baudrillard colocou o dedo na ferida: “É esse o problema da América e, através dele, tornou-se do mundo inteiro”. Ou seja: “nós, europeus, não fazemos outra coisa senão imitá-los, parodiá-los com cinquenta anos de atraso, e sem sucesso, aliás. Falta-nos a alma e audácia do que se poderia chamar o grau zero de uma cultura, a potência da incultura”.
Este indefinível território chamado América é parte de todos nós, contemporâneos do que, daqui a um milénio, se dirá ter sido a rápida transição entre a primeira e a segunda dezena de séculos dC.
A América de cada um de nós, porventura à imagem da herança que Alexandre-o-Magno deixou nos povos por onde passou, corresponde a uma poética necessariamente de ignição violenta, mas que, para o bem ou para o mal, nos fornece também aquele êxtase próprio das drogas fortes. Assim é, quer por ingénua admiração, quer por preconceituosa (e ignorante) rejeição.
A abrir as portas à fantástica “Beat Generation”, Allen Ginsberg, no seu poema ‘Uivo’, publicado em 1956, parece ter dito tudo. E fê-lo com o nitrato da explosão verbal que tudo absorve e absolve, seja a selvajaria, a utopia, o paraíso, a distopia e todas as indescortináveis colisões com o ‘Outro’ que podem, por sua vez, revelar, alienar, matar ou até reinventar o mundo inteiro de raiz. Termino com uma pequena parte desse poema memorável – ao jeito de uma torrente de lava – que fala realmente por si (tradução da Margarida Vale de Gato):
“…um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando o gradeado das escadas de incêndio dos parapeitos de janelas do Empire State além da Lua, patati‐patateando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e tripes oculares e choques elétricos dos hospitais das cadeias das guerras intelectos inteiros regurgitados em recordação total durante sete dias e noites de olhos brilhantes, carne para a Sinagoga atirada à calçada, que desapareciam para a Terra do Nunca da Nova Jérsia Zen deixando um rasto de ambíguos postais ilustrados da Assembleia Municipal de Atlantic City sujeitando‐se aos suores orientais e aos ossos triturados em Tânger e às enxaquecas na China sob uma ressaca de droga no quarto desmobilado de Newark…”. Etc, etc, etc.

Baudrillard, Jean. ‘América’. Verso, Paris, 1988.
Correia, Natália. ‘Descobri que era Europeia: impressões duma viagem à América’. Editorial Notícias, Mem Martins, 2002.
Vale de Gato, Maria (Ed., intro, trans. and notes) de Allen Ginsberg, ‘O Uivo e Outros Poemas’ (The Howl and Other Poems). Relógio d’Água, Lisboa, 2014.
17 Dez 2020

Pessoa nu

Há muitos anos que sei que Fernando Pessoa foi a Portalegre comprar uma tipografia. Sempre achei curiosíssimo por muitas razões, mas sobretudo porque Pessoa não gostava de viajar, ou seja, de cruzar o território físico (não outros, é claro). Numa das sessões recentes que tiveram lugar na EC.ON-Escola de Escritas, o Jerónimo Pizarro acentuou muito este facto e confirmou que o território de eleição do poeta era sobretudo a geometria da Baixa lisboeta. Todos os destinos do mundo, mesmo aqueles africanos de onde pela segunda vez regressou em 1905, se circunscreviam, na realidade, à pátria braquiana que liga, na capital, o Rossio ao cais das colunas.

Esta semana, por acasos de um projecto de escrita em que ando envolvido, dei com uma carta escrita por Pessoa a Armando Teixeira Rebelo no dia 2 de Agosto de 1907, estando alojado precisamente em Portalegre no então “Hotel Brito”*. Relembremos que o poeta tinha na altura 19 anos (feitos em Junho, no dia de santo António e de Lisboa). O calor e o “nada” extremos vividos nessa viagem – não o “nada que é mito”, mas apenas o da mera carambolagem, como diria o dadaísta Tzara – tocaram de tal modo Pessoa que a carta acaba por roçar, cito, o “hiperaborrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo num sítio destes”.

Raramente vi um documento em que a exaustão de uma atmosfera e de uma cidade fosse tão radical. Nada parece compensar Pessoa neste seu logro. Nem mesmo o poema que faz de ‘post-scriptum’ à epístola, intitulado “O Alentejo visto do comboio”, e que é uma verdadeira ‘quête’ do inferno. Reza assim: “Nada com nada em sua volta/ E algumas árvores no meio,/ Nenhuma das quais claramente verde,/ Onde não há vista de rio ou de flor./ Se há um inferno, eu encontrei-o,/ Pois se não está aqui, onde Diabo estará?”.

Logo nas primeiras linhas da carta, Pessoa explica a Armando Teixeira Rebelo a razão que o terá levado a escrever: “a minha alma sentiu, como um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado e tendências a um cérebro amigável como o teu”. Depois torna claro quais as “circunstâncias angustiosas” que estava a viver e que lhe deram a “ideia de que talvez o processo desta composição epistolar” pudesse “ser subjectivamente conducente a um alívio do meu fardo terreno neste momento”.

Segue-se a este passo da carta a caracterização possível da cidade que teve nesses dias diante dos seus olhos: “Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semiesPãholismo e nada. O vinho é bom (embora não daqui, creio), mas é decididamente alcoólico, especialmente quando a jarra de água está na outra extremidade da mesa e tu te esqueces (quer dizer, eu me esqueço) de o pedir.”

Só quase no final é que a escrita acaba por dar conta da finalidade prática da ida de Pessoa a Portalegre: “A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado — poeticamente falando, é claro. Apesar disso, os homens têm trabalhado bastante depressa e tenho os olhado e observado com a maior das energias.”. E pouco depois surge aquela que é talvez a confissão decisiva: “Acredito sinceramente que, se tivesse que aqui ficar um mês, teria de ir para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda”.

O que é extraordinário neste texto é verificar a auto-imagem de uma pessoa comum que se aborrece infinitamente com a viagem e com local visitado, chegando ao ponto de definir – com alguma ironia – uma certa distância entre si e a loucura, como se tudo fosse uno, unívoco e irreversível. Ou seja: a reversibilidade própria das heteronímias, o olhar oblíquo e transmutado ou ainda a coexistência entre o actual e o eu-atemporal estão completamente de fora deste jovem Pessoa que aqui escreve e se descreve no seu imenso fastio de Portalegre, ele que havia criado o primeiro heterónimo aos seis anos de idade (baptizado com o curioso nome de Chevalier de Pas).

O homem aqui retratado chama a si o vinho e a linguagem para diluir a existência, queixando-se da pequenez, mas fazendo-se, de algum modo, refém dela ao espelhá-la através duma assimetria previsível e até lógica. Esperar-se-ia antes um fastio que fosse alvo de desmontagem (tal como os cubistas sabiam fazer) e que tivesse sido projectado num daqueles ecrãs interiores – afinal tão pessoanos – em que o sentido e o não sentido ou em que a realidade e a irrealidade andassem de mãos dadas.  Mas não. O que irradia desta carta é sobretudo um “basta”, embora literária e engenhosamente ‘dito a arder’.

O que vem provar que Fernando Pessoa tinha direito a ser uma pessoa como qualquer um de nós – como porventura o terá sido na larguíssima maior parte das suas vivências e misérias – e não o mago-mágico que amiúde comparece em muita da emoldurada mitografia lusitana. A sacralização da poesia (e do poeta absoluto) tem os seus reversos, um deles é esquecer que todos limpam o rabo seja em que papel for e seja em que partida e destino for.

10 Dez 2020

As origens não se escolhem

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 24 de Novembro, li este breve texto do poeta Jaime Rocha ilustrado com uma fotografia do mar da Nazaré: “Aqui estou na terra onde nasci, a agradecer ao mar, não o peixe, mas as palavras. Silenciosamente, como um velho lobo do mar, grato por ele lhe ter adiado a morte. Faço-o sempre que termino ou publico um livro. Um ritual que dura há mais de cinquenta anos.”

Este impressivo texto fez-me pensar, pois há quase quarenta anos que escrevo livros e jamais desenvolvi este tipo de devoção face às minhas origens. Nasci em Évora no verão de 1954 e aí vivi até aos 15 anos de idade. Sairia depois para regressar até ir viver na Holanda, o que aconteceu nos anos oitenta. A partir da década seguinte, passei a trabalhar sempre em Lisboa, mas nunca deixei de ter casa na cidade onde fabulei muito do meu tempo. Na última meia dúzia de anos a minha vida organizou-se de vez em Lisboa. Contudo, na passada primavera, a pandemia e uma inundação obrigaram-me a regressar à cidade durante quatro penosos meses e essa estadia fez-me reflectir sobre as relações difíceis que sempre mantive (interiormente) com Évora.

Na realidade, quando termino um livro, jamais me passaria pela cabeça ir a Évora e ao seu mar – que é de planície e brancura – ritualizar um agradecimento demiúrgico como o do Jaime Rocha que, confesso, admiro profundamente.

Comecemos por uma primeira (e dupla) pergunta: o que são as origens e o que é uma cidade? A resposta parece-me simples: uma cidade é uma confluência de memórias (físicas e imateriais) em ininterrupto atrito com os actos que fazem e desenrolam o presente, enquanto as origens se podem definir como tudo aquilo que não se escolhe. Podemos enraizar-nos no mundo, ou seja, criar raízes e estabilizá-las em geografias de diferentes qualidades, o que, para mim, foi sempre uma urgência; no entanto, das origens somos todos escravos. Ficam para sempre.

Este talvez seja o primeiro grande entrave, muito parecido, afinal, com o da família. As origens dão-nos sempre uma família, seja de que natureza for, embora, com o tempo, pelo menos no meu caso, a família se tenha vindo a tornar cada vez mais num pequeno grupo de pessoas de quem gosto e com quem me identifico (e não nas pessoas com quem tenho “ligações de sangue”). Isto significa que só mesmo as origens estão fora de um horizonte de escolha e de radical autonomia pessoal. Posso esquecer raízes, riscá-las, fazê-las desaparecer; mas as origens não.

Nas primeiras duas décadas de vida fui eterno como todos os jovens. Tive sorte em alguns aspectos, pois a vida social era particularmente dura naquele tempo. Quando percebi que não era eterno, comecei a escrever, tinha pouco mais de vinte anos. Apesar de ter desenvolvido mil e uma actividades ao longo de toda a vida, escrever foi sempre o meu fulcral ‘fio de prumo’, título, aliás, do primeiro livro que publiquei (corria o ano de 1981).

Existirá um segundo entrave que me afasta das origens. Chamar-lhe-ia desolação. É evidente que existe um apelo existencial nesta metáfora que, sendo breve, implica subtrair à idealidade aquilo que lhe sobra em estado bruto. De facto, durante parte substancial da minha vida adulta, vivendo fora ou dentro da cidade, sempre imaginei o que a cidade podia não ser, projectando-a numa espécie de utopia íntima dificilmente traduzível. Talvez tenha sido essa exegese interior que me levou a desenhar cidades, algo que faço há já várias décadas (e é mesmo uma das minhas poéticas mais preferidas). O resultado desta involuntária operação figurativa é que, sempre que reentro em Évora, tudo aquilo me parece uma ruína adiada, espécie de meio termo entre um amuralhado de lápides sublimes e um universo de fantasmas que se move em círculo fechado, repetindo sempre os mesmos (e cansativos) pregões.

Um terceiro entrave terá uma dimensão mais simbólica e humana. Conheci diversos escritores que mantiveram com Évora relações especiais. É o caso de Vergílio Ferreira, Mário Ventura ou Almeida Faria.

Todos eles, para além do fascínio estético, me revelavam a ideia de que a cidade tem – terá sempre tido – as suas “gavetas fechadas” (cito de memória Vergílio Ferreira numa conversa que tivemos os dois há precisamente trinta anos na sua casa da Av. dos Estados Unidos da América). Pode, pois, viver-se durante meio século em Évora, mas nunca se sai realmente da aridez do tampo e do pó da secretária. As gavetas – sejam elas o que forem – serão sempre território vedado. Esta falta de respiração, ou, se se preferir, esta ausência de saudade ou de nostalgia do cosmopolitismo (que a cidade viveu há inúmeras gerações) torna o seu ambiente – e o efeito aqui parece-me francamente atemporal e não apenas “da era da outra senhora” – numa escultura algo estática, sem ânimo e sem projecto. Não será caso único na sua imobilidade poética (ou protésica), é claro, mas a própria morfologia da cidade, atada por muralhas, torna a alegoria demasiado plausível.

O meu prazer de regressar às origens faz-se a levitar por cima destas atmosferas alterosas. Talvez seja por isso que sou totalmente avesso a bairrismos, a regionalismos e a regionalizações. Claro que haverá sempre um fim de tarde com ‘antigos amigos’ para desenganar a cegueira. Mas não encontro, nem creio que alguma vez encontrarei em Évora um oceano aprazível que me permita o tipo de devoção demiúrgica que o meu querido amigo Jaime Rocha pratica.

Num romance escrito há quase década e meia, já este tipo de decantação surgia de modo particularmente nítido: “Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.”.

Frequentar as origens, apenas porque são as origens, tem sempre qualquer coisa de romagem ao túmulo desconhecido de nós próprios. Declino para já esse poema.

2 Dez 2020

Elogio da embriaguez

[dropcap]N[/dropcap]ietzsche nasceu em 1844, um ano depois da morte de Holderlin. A sucessão pode parecer inócua mas não o é, pois 44 anos depois – os números têm por vezes o seu quê de mágico – a penúltima obra do autor a ser impressa, ‘O Crepúsculo dos Ídolos’ (1888), destruiu com alguma ferocidade o que restava do mito da inspiração que, de uma maneira ou de outra, chegou até aos nossos dias com aquela patine e rasgo próprios das estações de caminho de ferro abandonadas.

Timothy Clark, autor de um livro que há uns anos me marcou, ‘The Theory of Inspiration’ (1997), referiu-se ao mito de Holderlin como o “de um jovem poeta destituído de si e do mundo, dolorosamente apaixonado e angustiado e que perdia literalmente a cabeça por causa dos contactos imediatos com a linguagem dos deuses.”. Nos antípodas destes relâmpagos de incandescência platónica, Nietzsche defendeu neste seu livro que, “para que haja arte” e “para que haja alguma acção e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez”.

Esta embriaguez não é uma metáfora. Quando muito é um género que se divide em várias espécies. Lendo as passagens 8 e 9 do capítulo “Incursões de um intempestivo”, poderíamos dividir a embriaguez em quatro tipos (as designações são minhas): a vital, a extrema, a estimulada e a arrojada.

a) A embriaguez vital corresponde à excitação sexual (a mais antiga e originária de todas), mas também à embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, como por exemplo a “embriaguez primaveril”. Juntemos a estas doses luminosas a embriaguez que se segue a todos os “grandes apetites” e “afectos fortes”.

b) A embriaguez extrema diz respeito a todo o “movimento” que inclua “festa”, “rivalidade”, “feito temerário” ou “vitória”, mas também a embriaguez que resulte da “crueldade” e da “destruição”.

c) A embriaguez estimulada advém, por sua vez, do “influxo dos narcóticos”. Das drogas ao álcool vale tudo nesta secção que sorri a muitos e bons poetas de todas as eras ‘in saecula saeculorum’.

d) Por fim a embriaguez arrojada é a “embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada.”, ou seja, talvez a única que brota de dentro para fora como se cada ser humano fosse a nascente do poderoso Ganges.

Depois desta categorização, Nietzsche explica a razão de ser da embriaguez enquanto condição da criação artística, dividindo o argumento em três passos. O primeiro prende-se com a excitação (“A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma.”), o segundo prende-se com a procura de um sentimento de plenitude e sobretudo com a intensificação das forças; por fim o terceiro passo – e o mais importante de todos – é o que mistura no limite o cosmomorfismo com o antropomorfismo: “deste sentimento fazemos partícipes as coisas, contragemo-las a que participem de nós, violentamo-las, — idealizar é o nome que se dá a esse processo”.

Neste seu curiosíssimo diagnóstico, Nietzsche refere ainda que o embriagado apolíneo mantém excitado sobretudo o olhar, enquanto o embriagado dionisíaco, ao invés, intensifica e excita todo o sistema emotivo.

Um e outro irão agir e entregar-se-ão à metamorfose que os fará ser sempre um outro, ou então o próprio mas com capacidade para redesenhar as coisas do mundo de um modo ilimitado.

É evidente que, depois de ter aqui colocado a par a patologia inspirativa e a etiologia da embriaguez, só me apetece regressar a Al berto com quem, infelizmente, apenas falei por uma única vez. Neste trecho, a teoria de Nietzsche parece ganhar todo o seu fogo: “Mal começo a escrever sou eu que decido do caos e da ordem do mundo. Nada existe fora de mim, nem se entrechocam corpos etéreos, nem flutuam frutos minerais sobre o deserto da alma. A paixão extraviou-se. Não há contacto entre a realidade e aquilo que escrevo neste momento. Há muito que deixei de sentir, de ver, de estar, por isso mesmo escrevo”*.

Este ‘deixar de ser’ em Al berto funciona, na realidade, como um lugar já ‘depois da embriaguez’ que, no extravio da sua paixão, acaba também por parodiar a respiração inspirada. Ficamos KO, desapegados a um canto do ringue, sem teorias para coser os brocados que ainda restam. Diria que é o melhor estado de coisas que existe na vida. Funciona como se fosse um tempo ainda sem começo. É nesse oásis desprovido de deserto e de miragens que tudo afinal se inicia ou reinicia. Todos os dias. Holderlin de porcelana a lançar o disco e Nietzsche também de porcelana a lançar o dardo. E eu a vê-los a tragar uma IPA (Indian Pale Ale de apreciável amargor e sem ídolos) e a contemplar o movimento livre dos patos que voam entre o Jardim da Estrela e os baixios húmidos da Pampulha.

*Al berto, O Medo, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, pg. 26.

25 Nov 2020

Cidades, Escher e o demónio

[dropcap]D[/dropcap]esde criança que desenho cidades. O meu pai construía-as em cartolina e iluminava-as com luz eléctrica num sótão de Santarém que nunca conheci. O meu irmão sempre as desenhou geométricas, bastante ensimesmadas e a três dimensões muito antes de se falar em 3D. No meio desta genealogia familiar, as minhas cidades são as mais selvagens em toda a linha: traços desordenados, proporções sem cabimento, perímetros desconsabidos. No entanto, vistas como quem observa arte informalista, reconheço que há nelas um certo jogo de volumes, linhas de força apreciáveis e uma poética que rasga os planos da lógica. No fundo, não são cidades; serão vincos fundados por uma qualquer civilização invisível.

Chego assim de modo rápido à minha definição preferida: uma cidade é um vinco. Sim, um vinco cavado e escavado num território particularmente desejado onde os humanos decidiram um dia viver. Vincar é uma forma de ênfase que remete para sublinhar, acentuar ou adensar. É isso precisamente que uma cidade faz à paisagem que a rodeia: enruga-a, marca-a, dobra-a, numa palavra – perdoe-se-me a insistência – vinca-a.

Este vinco está sempre em mutação, razão pela qual o citadino sente um inevitável desfasamento entre a cidade da sua infância, a da velhice e a que o sucederá no futuro. “Esta já não é a minha cidade” ou “não chegarei nunca a ver a minha cidade tal como a imaginei” são frases que traduzem a ocupação da urbe pelo seu habitante. Este imaginário existencial de um continuado estaleiro que, ao fim e ao cabo, se confunde com a própria essência da cidade, foi levado ao extremo por Baudelaire. Toda a sua poética reflecte a perda e a perdição da Paris que o viu nascer face aos projectos de Haussmann que, como se sabe, demoliu e redesenhou toda a cidade no terceiro quartel do século XIX. O “spleen” e figuras como o “dandy” ou o “flâneur” – todas elas fruto desta impiedosa metamorfose – fazem parte de uma cidade que Baudelaire nunca, de facto, viria a conhecer.

O habitante do campo não vê projectado no seu exterior este tipo de descaminho, pois a erosão da natureza é muito mais lenta. O “spleen” campestre é cíclico e sazonal, por isso mesmo previsível. De algum modo, o despovoamento sublima a violência da cidade mas não a cura. É-lhe indiferente.

Por outro lado, dentro da cidade, aquilo que é incurável torna-se amiúde em matéria de fascínio. Logo no início do ‘Livro do Desassossego’, Pessoa fala-nos do restaurante localizado numa sobreloja que frequentou durante um certo período da sua vida. Passei por lá há algum tempo e constatei que o edifício fica estrategicamente virado para um dos cruzamentos da baixa. Todo o encadeamento geométrico daquela parcela de Lisboa parece avistar-se das vidraças da sobreloja. E vi-me intuitivamente a concluir que todos os mais de cem heterónimos de Pessoa serão afinal esquinas da baixa de Lisboa, imaginadas como um profuso labirinto pintado ao jeito de Maurits Escher. A visão plural do poeta está de facto ali vincada, acentuada, marcada. Eis como a cidade pode ser uma redoma capaz de encerrar – e ampliar – os limites do humano e das suas visões. O ócio dos personagens de Eça também só tem sentido dentro desta mesma área da cidade. Quando o horizonte de Eça se centra em Leiria, no norte ou no Alentejo, este ‘fastio de dandy acaciano’ esvai-se de imediato. Só a cidade, na verdade, o vinca e lhe concede um milagre que não é, de modo nenhum, apenas literário.

No reverso, a cidade – na sua longa história – também se atreve a excluir. Se lermos a parte final da ‘República’ de Platão, compreendemos que as excitações dos bardos e poetas são um perigo para a cidade perfeita. A um território reduzido, compacto e tão habitado deverá, pois, corresponder tão-só elevação e racionalidade. Se lermos a biografia de Aristóteles, ficamos a saber que, logo após a morte de Alexandre o Magno, teve que fugir de Atenas para a ilha de Eubeia – onde viveria só mais um ano de vida – não fosse perseguido pela caça às bruxas aos macedónios. Se lermos a ‘Cidade de Deus’ de Santo Agostinho e, embora saibamos que se trata de uma poderosa metáfora, não deixa esta obra de ser a apologia de um mundo que desaloja e abjura um outro. Uma cidade vinca e existe para vincar em todo o sentido do verbo, sejamos claros. Todas as muralhas construídas – em pedra ou não – se viraram sempre contra um qualquer demónio.

Ser cidade é, pois, uma forma de organismo sobrevivente que se fecha e que, ao mesmo tempo, deseja a sua própria mutação e depuração. Ora é centrípeta, ora é centrífuga. Ora se refugia no umbigo e inspira, ora escapa de si através de linhas de fuga e expira. Cesário disse-o através de metáforas chãs, mas muito lúcidas: “O tecto fundo de oxigénio, d´ar/ Estende-se ao comprido, ao meio das trepadeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,/ Enleva-me a quimera azul de transmigrar”. Porventura é na arte informalista e também nas abstrações líricas de um Kandinsky ou de um Pierre Soulages – ou, ao invés, nos geometrismos patológicos como o do já citado Escher – que a poética da cidade melhor se entenderá. Onde haja uma folha de paisagem vincada com pessoas reunidas a pensar o vento, então haverá cidade. Continuarei, por isso mesmo, a reinventá-las. Até porque é o tipo de poesia que mais me fascina.

18 Nov 2020

As trovas ficcionais do ciúme

[dropcap]N[/dropcap]o primeiro número da revista ‘Orpheu’, corria o ano de 1915, Almada Negreiros fez publicar a breve narrativa “O Echo”. Deixo aqui o texto com a ortografia original:

“Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!/ Talvez que fosse à caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta./ Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras./ Foi chamar ao cimo dos/ rochedos, e uma voz de mulher tambem chamou Adão./ Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem chamou Adão./Foi-se triste para a tenda./ Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma! E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe./ – Outra que não Ella chamára tambem por Elle”*.

O tema de fundo é o ciúme. A partir de um estigma solitário, constrói-se uma história inteira com personagens, paisagens, chamamentos, tudo composto numa narrativa em vária vias, permeável a metamorfoses tal como nos sonhos, mas, ao mesmo tempo, dotada de verossimilhança a fim de que a ficção se possa inserir na ordem das coisas plausíveis. Veja-se o que aconteceu a Semira, raptada por ciúmes de Zadig, um e outro conhecidos heróis de Voltaire.

Quando Adão e Eva são protagonistas, a alegoria e a economia dão facilmente corpo a todos estes aspectos. Não sendo esse o caso, o crédito ficcional torna-se fundamental para conquistar o público, embora, no caso do ciúme, o público seja apenas e tão-só o próprio ciumento solitário que, encerrado na sua redoma, aprende a vibrar e a excitar-se com as imagens do enredo que conjectura e imagina. Trata-se de uma trama em efabulação ininterrupta como se decorresse da interacção entre criador, encenador, actores e público, reunindo o ciumento, no seu sofrimento silencioso, todos esses papéis afinal irreais e virtuais.

O único momento em que o ciumento é capaz de comunicar parte do seu conjurado ‘plot’ é na frente da/o amada/o, embora a tradução que leve a cabo se baseie em instantâneos frenéticos e eufóricos ou em elementares pontos de fuga.  E isso acontece porque o ciumento centra a atenção num único objeto e congela aí a toda a sua capacidade de inferência, sendo incapaz de selecionar o que é essencial ou possível e o que é secundário ou inconcebível, perdendo-se assim na errância delirante dos detalhes.

De qualquer maneira, é nos detalhes que o ciúme admite a tragédia que visiona, do mesmo modo que terá sido a partir de um pormenor inicial que toda a marcha ficcional começou inapelavelmente a ser produzida.

Este caminhar paralelo à realidade faz adoecer os próprios sentidos do que se crê ser a realidade. O narrador de ‘O Vestido Cor de Fogo’ de José Régio foi claro a este respeito: “Tudo isto o fui vendo fechado no meu gabinete, quando, tendo-se-me revelado a torva disposição ao ciúme” (…) “naturalmente me recurvei sobre mim mesmo, a interrogar a minha própria personalidade e a minha própria vida”.*

Nos ‘Fragmentos de um discurso amoroso’, Barthes, na sua escrita elíptica e fugidia, cita a exclusividade de Freud (“quando amo sou exclusivista”), o que significa que opor-se ao ciúme seria quase transgredir uma lei.

No mesmo passo, o autor admite que o ciúme recusa a perfeição e que a perfeição implica sobretudo saber repartir (e os românticos deram corpo pleno a esse tormento: Mélita reparte e Hiperion sofre com isso, do mesmo modo que Carlota reparte e Werther sofre com isso).

Se a paixão nasce em boa parte de uma distorção óptica (a imagem da/o amada/o é sempre a figuração de um modelo ideal e único), a narrativa do ciúme associa causas e efeitos voláteis a conclusões aleatórias que se propagam e ampliam através de uma distorção do mesmo tipo. Tal como Rousseau referiu, descartando o ciúme – com alguma inocência – de um “estado de natureza”, terá sido nos labirintos da complexidade social moderna que o “furor impetuoso” e os “sacrifícios de sangue” rasgaram a expressão do que seria um “sentimento doce e original”.

Embora a mitologia esteja repleta de altercações sanguinárias que contrariam esta ingénua bonomia, não deixa de ser interessante que, na tradição literária medieval e renascentista, o ciumento tivesse surgido amiúde associado ao risível ou ao desprezível. Na poesia trovadoresca, por exemplo, o lamento é visto como um aceno nobre (quando a correspondência amorosa parece esvair-se) que evita, no entanto, atravessar a fronteira em direcção ao ciúme, pois isso seria entendido como primário, ridículo, coisa de vilão. O amante cortês jamais se isola no seu ciúme primário, pois isso rebaixá-lo-ia.

Regressando ao ‘Echo’ de Almada, os sinais da narrativa tornam-se evidentes em três patamares distintos: “a cáça era nenhuma!” / “Elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe” e “Outra que não Ella chamára tambem por Elle”. Por outras palavras: o corte ou a fuga à normalidade aparece como ponto de partida (a ausência de caça), a desordem toma depois o seu lugar (ameaça e fuga), dando, por fim, entrada na trama o chamamento (ou o emergir das vozes que se multiplicam no delírio da narrativa que se imagina).

O ciúme é, pois, um vórtice ficcional que navega a partir de uma situação pontual e sobretudo imponderável. Não é caso único na sua morfologia, não fosse ele um devanear dos humanos ao encontro da sua própria fragilidade. O processo – que no dizer poético de Cecília Meireles acontece ao “mundo que circula no vento” – associa os três patamares já referidos (momento do corte – desconcerto – imaginação em desvario) e é reconhecível, por exemplo, no ‘Génesis’ bíblico (deus cria o homem – maçã/babel – culpa/desconcerto), na pandemia que se descontrola (contágio – alteração – propagação) ou até na patologia das recentes eleições americanas (anúncio inusitado de vitória – complicação – geração do caos). Em última análise, estaremos perante uma metáfora da nossa própria vida sempre prestes a desencadear singularidades que rompem o plano corrente dos dias e que originam – dando outra vez a palavra a Rousseau – os conhecidos “devaneios do caminhante solitário”.

Negreiros, A. ‘Frizos (prosas)’ em ‘Revista Orpheu’, Lisboa, Ano I, 1915, N.º 1.
Régio, J. ‘O Vestido Cor de Fogo e outras histórias’. Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 29.
Rousseau, ‘Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes’ em ‘Oeuvres Complètes’, Vol. 2, Paris, Seuil, 1971, pp. 225-226.

11 Nov 2020

Cláudia dá uma lição a Kant

[dropcap]C[/dropcap]láudia R. Sampaio é uma artista florescente. O trabalho visual que vem criando nos últimos anos é uma ascese que acasala tradições de luz e visão (ou de utopia e apocalipse), através de figuras aparentemente sem território, mas que, apesar disso, voam, vogam e vagueiam habitando assim essa ausência como se cumprissem uma promessa antiga.

No campo da poesia, a Cláudia é autora de vários livros, editados entre a Douda Correria, a Tinta da China e, já este ano, na Elogio da Sombra/ Porto Editora (nomeadamente ‘Os dias da Corja’, ‘A primeira urina da manhã’, ‘Ver no escuro’, ‘1025 mg’, ‘Outro nome para a solidão’ e Já não me deito em pose de morrer’).

Acompanhei esta rica produção poética com proximidade e recordo – agora que a pandemia nos estoura as têmporas – os fins de tarde luminosos no Irreal, na Mymosa e naquele amplo bar-salão ao pé da Sé onde a Cláudia sonhou construir um recife de ouro.

A Cláudia é uma das artistas residentes do projecto ‘Manicónio’, um espaço no Beato onde artistas com doença mental trabalham. No seu segundo livro, as atmosferas e memórias deste padecimento – nem sempre socialmente entendido – ressurgiram com cristalina clareza: “as miúdas poéticas contemplam o suicídio/ mesmo depois de uma taça de Corn Flake/ olham/ os telhados laranja de Lisboa/ e pensam noutro sítio qualquer/ semeiam flores para terem perfume/ matam-nas, por amá-las de mais”. Como ela própria referiu, numa entrevista à revista Sábado, “Com as palavras, tudo é possível, fazem-me sentir infinita”.

Vem toda esta evocação – que paradoxalmente me surge com apertada nostalgia – a propósito de um texto de Kant, datado de 1764, que eu desconhecia completamente, e que foi traduzido, há uma década, por Pedro M. Panarra na ‘Revista Filosófica de Coimbra’. Intitulado ‘Ensaio sobre as doenças da cabeça’ e publicado numa revista da sua cidade (a ‘Königsbergischen Gelehrten und politischen Zeitungen’, de que era editor e fundador o seu ex-aluno Johann Hamman), o texto terá sido motivado por um acontecimento concreto.

No ano anterior, no início do Outono de 1763, apareceu nos arredores de Königsberg um polaco chamado Jan Komarnicki com “aspecto esfarrapado” e atitudes de fanático religioso a que chamavam “profeta das cabras”, por responder a qualquer solicitação que lhe fosse dirigida através de versículos bíblicos que sabia de cor. O homem convivia com perturbações alucinatórias e a sua presença deverá ter sido muito marcante na altura, ao ponto de lhe ter sido dedicado, na mesma revista, um artigo de Hamman em jeito de reportagem. O artigo de Kant, muito racional e geométrico na sua organização, surgiria poucos meses depois.

O texto, após uma curta introdução, é particularmente assertivo. Escreve o autor: “As deficiências da cabeça perturbada dividem-se numa multiplicidade de categorias”, mas “julgo que podem ser ordenadas segundo as três divisões seguintes: (1) a inversão dos conceitos empíricos no desarranjo (Verrückung), (2) a faculdade de julgar posta em desordem por esta experiência empírica, no delírio (Wahnsinn) e (3) “a insânia (Wahnwitz) em que a razão é invertida no que concerne a juízos mais universais.”. E continuava: “todas as demais manifestações do cérebro doente podem ser entendidas, no meu parecer” (…) “de maneira que as podemos subordinar à classificação anterior.”.

Os exemplos destes três “males” assim categorizados surgem depois ao longo do artigo.
O primeiro, relativo à inversão e ao desarranjo, decorreria do facto de nós humanos estarmos quase sempre “ocupados a pintar imagens de coisas que não estão presentes ou a completar as semelhanças imperfeitas entre as coisas presentes na representação, através de um ou outro traço quimérico próprio da nossa faculdade poética criadora (schöpferische Dichtungsfähigkeit)”, facto que pode, de um momento para o outro, passar a dominar e a impor-se à nossa vida dita “normal”.

O segundo, relativo ao delírio, remeteria – com algum desdém bem visível no tom – para a soberba e para uma certa forma de melancolia: “um soberbo é um delirante que escarnece da conduta dos que o fitam” e “o melancólico é um delirante devido às suas suposições tristes ou ultrajantes”.

O terceiro, relativo à insânia, incluiria as “inumeráveis intuições subtis que se enxameiam no cérebro em ebulição: o comprimento dos mares, a decifração de certas profecias, e sabe-se lá que outras misturas de quebra-cabeças fúteis.”. A esta capacidade de ultra-imaginação soma o autor a perdição, digamos, total: “Quando o infeliz perdeu simultaneamente a capacidade de formular juízos sobre a experiência, então chama-se vesânico (Aberwitzig)”.

As três categorias, como Kant se lhes refere, fazem pactuar, ao fim e ao cabo, um ‘excesso’ de disposição poética (aquele que “sonha acordado”) com o delírio (seja dirigida para o exterior, a soberba; ou a si próprio, a melancolia) e, por fim, com a fuga imaginativa face a quem navega sempre ‘com os pés na terra’. Para um autor que, três décadas e meia depois, escreverá um texto fundamental sobre a estética, o génio, o belo e o sublime (‘Crítica da Faculdade do Juízo’), é estranho que nunca tivesse reparado como a loucura e o ‘fazer poético’ são campos afinal tão íntimos, tão envolvido e tão próximos.

Para reparar essa estranheza, Cláudia R. Sampaio dá agora a devida lição a Kant, a bordo do seu ‘1025 mg’, de que ainda me lembro tão bem do lançamento: “O tecto está rente à minha cabeça./ Quero deixar a alma cosida aos hemisférios nocturnos./ Tenho de me parir lenta./ Tenho de me cobrir como um ramo de crisálidas luzentes/ à espera do céu./ Agora tenho tudo porque já vi cair as falésias./ Não sei do ar, não sei dos pais, não sei dos médicos./ Guio-me à existência calafetada de um dente em proa./A minha casa inexiste com o cheiro das praias. (…)”. A genialidade à solta de Jan Komarnicki, o “profeta das cabras”, entenderia bem estas palavras. E eu também. E até mesmo Kant as entenderia, se tivesse conhecido e lido devidamente a poeta. Obrigado, Cláudia.

Panarra, Pedro M. ‘Immanuel Kant – Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764’ (Trad. e introd. de Panarra, Pedro M.) em ‘Revista Filosófica de Coimbra’, Coimbra, Nº 37, 2010, pp. 201-224.

4 Nov 2020

O girassol depois do cataclismo

[dropcap]V[/dropcap]iver sob a pandemia faz inexoravelmente pensar no pós-pandemia. Os humanos têm os pés a levitar no futuro, mas são escravos do presente – território onde sobrevivem ou sucumbem. A literatura é um filtro extraordinário para se compreender o pós-cataclismo. Nesse tipo de vórtice, que se tenta sempre antecipar com alguma ansiedade, o que fica à vista não é tanto o que somos, mas sobretudo aquilo que facilmente abandonamos ou que somos fria e activamente levados a despovoar.

Antes de se iniciar a narrativa parisiense que ocupa ‘Devoção’ (2017) de Patti Smith, logo no início do livro, a protagonista encontra por acaso o trailer de um filme sobre a deportação, em 1941, de milhares de estónios que as tropas de Estaline cercaram e transportaram em camiões para a Sibéria como se fossem gado. Depois, na segunda página do romance, é evocado o tempo que sucede a esta voragem terrível:

“Um roupão azul serve de cortina para uma janela pela qual ninguém olhará mais. Há sangue por todo o lado, mas já sem a cor do sangue, e um cão a ladrar, e estrelas a riscar os céus perdidos./ Um bezerro moribundo. Uma tala na pata – manchas, buracos. A noite cai, escondendo o membro contorcido do último ser vivo./ Um cenário no tempo. Ferramentas, pequenas mãos suspensas no meio do gelo. Pássaros já sem a curiosidade própria dos pássaros deixam de voar. A dança acabou e o rosto do amor não é mais do que uma saia larga e uns tacões lustrosos de inverno”.

Mudando a atmosfera, o ponto de partida do romance ‘O Deus das Moscas’ (1954) de William Golding centra-se num desastre aéreo causado por um conflito planetário. A acção inicia-se numa ilha deserta onde um grupo de rapazes resiste sem qualquer presença de adultos. Recomeçar após a catástrofe é, mais uma vez, o tema. No final do primeiro capítulo, o verniz possível rasga-se e a violência torna a aflorar o mundo como se fosse uma água indomável:

“- Eu ia matá-lo -, continuou Jack. Seguia à frente e eles não lhe podiam ver o rosto. – Estava à procura do sítio. Para a próxima…!/ Arrancou o facão da bainha e arremessou-o contra o tronco de uma árvore. Para a próxima vez não haveria piedade. Olhou à roda com ferocidade, ousando contradizê-los. Depois separaram-se na claridade rija do sol, e, durante algum tempo, ocuparam-se em buscar e procurar comida…”.

Saltemos, por fim, para o derradeiro volume do ‘Quarteto de Alexandria’ de Lawrence Durrell, ‘Clea’ (1960) onde a paisagem das proximidades do deserto surge retratada no pós-guerra com uma fidelidade crua, quase táctil. Também aqui a visão do retomar da “normalidade” (cito a voz do vulgo) ocupa algumas das páginas deste maravilhoso livro:

“Ao retirar-se como uma inundação (a guerra), abandonava os seus estranhos troféus coprolíticos ao longo das praias que outrora frequentávamos e que fomos encontrar brancas e desertas sob o voo das gaivotas. A guerra impedira-nos de frequentá-las durante muito tempo, e agora descobríamo-las pejadas de tanques esventrados, canhões torcidos” (…) “Sentíamos uma melancolia estranhamente serena tomando banhos ali, como se o fizéssemos no meio dos vestígios petrificados de um mundo pré-histórico” (…) “Um dia, em que ia guiando, Clea deu uma forte guinada – a estrada estava bloqueada pelo cadáver despedaçado de um camelo vítima da explosão de uma mina”.

No trecho de P. Smith os últimos vestígios de vida contracenam com uma suspensão do tempo, como se as palavras tivessem que ocupar outra estratégia que não a da narração. Narrar tornara-se impraticável e a imagem do bezerro a arrastar-se fala por si acerca deste aspecto disfórico. No romance de W. Golding, depois de o relato se focar numa espécie de oásis existencial, ou até ideal, a ferocidade reencontra caminhos e a sua natureza reaparece a sós e à solta, a par da guerra pela sobrevivência. Finalmente, na passagem assinada por L. Durrell, a “melancolia estranhamente serena” dá entrada no texto como se não se fosse possível acreditar no novo estado de coisas e a incredulidade até acaba por ser ampliada com a iminência de um acidente (curiosamente, os animais surgem nas narrativas – repetidamente – como uma alegoria da nossa própria infelicidade).

Com excepção do excerto de ‘O Deus das Moscas’, centrado na constância de fundo das coisas, e por isso mesmo, para o bem ou para o mal, acusando um realismo mais agudo, tudo aquilo que se desata e desprende do mundo é feito através do estranhamento ou da inércia do recomeço. Nessa enigmática terra de ninguém (sempre por percorrer), a necessidade de voltar a impermeabilizar o vivido e as suas imagens sobrepõe-se ao foco da retrospectiva, ou seja, à ferida exposta da memória. Primo Levi em ‘Se Isto é um Homem’ (1947) levou este tópico até aos seus limites, de tal modo que a existência da própria arte (mesmo a da escrita) se poderia – e pôde realmente – pôr em causa.

Voltemos à solaridade de Durrell e ao momento que creio ser ‘o da verdade’, isto é, o de agir “como se o fizéssemos no meio dos vestígios petrificados de um mundo pré-histórico”. Jogar é recriar uma situação irreal como se fosse a real, mas neste caso estamos perante um jogo dentro do jogo: é a realidade que se levanta e recria sobre os escombros da mais pestilenta das irrealidades. Já Fernando Pessoa o referira, curiosamente num poema de amor: “Todo eu sou qualquer força que me abandona./ Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio”.

 

Pessoa, Fernando. ‘O Pastor Amoroso’ (poema assinado a 19/07/1930) em ‘Poemas de Alberto Caeiro.’ (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

28 Out 2020