A morte é um insulto

Horta Seca, 22 Janeiro 2018

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uvem andarilha em fundo azul de paisagem, certos escritores passam por nós riscando-nos com o mistério intemporal de contar, de nos pôr a viajar longe ao que não existe, perto ao miolo de personagens que talvez possamos ser, ter sido, vir a ser. A mecânica de fluidos da convenção literária faz com que escritores como Ursula K. Le Guin (1929-2018) pouco existam na espuma dos dias da autoritária novidade, instantânea e avassaladora. E contudo são correntes do grande oceano. Precisava ter extraído do caos arrumado o exemplar da Fragmentos de «Tão Longe de Sítio Nenhum» (a que tradutor atribuir tão belo título?) para confirmar que sobrevive além de incandescentes adolescências. «A Mão Esquerda das Trevas» ou «Os Despojados» também me pedem o prazer da releitura. Deixo-me ir por este rio tranquilo?

Horta Seca, 23 Janeiro 2018

Venceu muito mais que os cem anos, este Nicanor Parra (1914-2018). Desconfio até que dobrou os números à maneira dos versos, relâmpagos do pensamento. Conhece-se pouco, dolorosamente pouco, de Parra, o que erguia o dedo médio às entrevistas: «cada pergunta é uma impertinência, uma agressão». Há tanto para fazer no que a este continente diz respeito. Faltou-me partilhar um tinto com o velho, mas haverá sempre tempo amanhã para um Último brinde:

«Lo queramos o no/ Sólo tenemos tres alternativas:/ El ayer, el presente y el mañana.// Y ni siquiera tres/ Porque como dice el filósofo/ El ayer es ayer/ Nos pertenece sólo en el recuerdo:/ A la rosa que ya se deshojó/ No se le puede sacar otro pétalo.//
 
Las cartas por jugar/ Son solamente dos:/ El presente y el día de mañana.// Y ni siquiera dos/ Porque es un hecho bien establecido/ Que el presente no existe/ Sino en la medida en que se hace passado/ Y ya pasó…,/ como la juventud.// En resumidas cuentas/ Sólo nos va quedando el mañana:/ Yo levanto mi copa/ Por ese día que no llega nunca/ Pero que es lo único/ De lo que realmente disponemos.»

 

Horta Seca, Lisboa, 29 Janeiro 2018

Não tarda, todas as entradas se sublinharão com o marcador negro da necrologia e a página estender-se-á campo santo. Acontece. Tropeço na notícia que não lhe faz justiça, mas como poderia? Cruzei-me com o Ângelo Teixeira, que trabalhava para os lados do nuclear, por alturas de movimentações congregadoras em torno PSR e conservo a generosidade e a alegria que explicou ser, sem o dizer, a ossatura de uma cidadania activa. Resultou ainda ser a centelha de criatividade em qualquer gesto público, nas manifestações mais festivas como nas agrestes, distribuía mais sorrisos que folhetos, ergueu sempre a frase que desprezava o sound bite, por vezes de forma quase íntima, gritando baixinho, inventou farol com engenharias várias no capacete. Enfim, e suspiro, não deixou nunca de ser o indivíduo no meio da multidão. Viveu época em que a rua foi palco. Vivemos.

Salgadeiras, Lisboa, 30 Janeiro 2018

Em comentário aos massacres de Sabra e Chatila, nos idos de 1982, António [Antunes] publicou, no seu Expresso de sempre, cartoon polémico, como deviam ser todos (algures nesta página). Pegou em fotografia tristemente célebre do gueto de Varsóvia, na qual uma criança levantava os braços e trocava para sempre a inocência pelo medo face às espingardas nazis, e espelhou-a. As vítimas da barbárie de então apontavam agora as armas e o miúdo era palestino de kefiah. O estilo do António tornou a cena ainda mais soturna. Tantas décadas depois, a imagem mantém-se tragicamente actual e o Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente, dirigido pela Maria do Céu Guerra, editou-a em serigrafia e, a pretexto, chamou-me para conversa. Além do concreto da situação, ainda de chumbo, o assunto interessa por causa das imagens, do que muda quando o argumento se faz ilustrado, em força mas não necessariamente em clareza. Está disseminada a ideia falsa de não que precisamos aprender a ler as imagens, que estas são objectivas, transparentes. Este tema suscitou, no pós 25 de Abril, mais debate do qualquer outro (além deste caso, também no jornal Combate, com João Fonte Santa, e no Diário de Notícias, com André Carrilho), muito pela obscena vitimização que confunde os que sofreram a Shoah com o estado e a política israelita. Quem critica Israel não está a defender o nazismo ou a cometer pecado de anti-semitismo. Ainda assim, na sanha proibitiva que nos assalta, alguns estados prepararam-se para proibir em letra de lei qualquer crítica ao estado de Israel. A prazo, humidade no ferro, isso minará a estrutura das sociedades dita democráticas. O tema será sensível e complexo, mas o papel do cartoonista reside numa simplificação que tantas vezes detecta o essencial. O lugar libertado da opinião, e da opinião desenhada, foi árdua conquista que se encontra hoje ameaçada com vigilâncias de tipo variado, do mais subtil ao directo, e dos mais dispersos quadrantes, da esquerda bem pensante à direita trauliteira e vice-versa. Abdicar da sensibilidade pessoal, até íntima, para discutir o que nos divide, sem a tentação dos argumentos censórios ou violentos, só ajudaria ao entendimento do… essencial. E se determinada perspectiva aguenta a corrosão do riso, para mim, estará mais próxima de uma qualquer verdade – chamemos-lhe assim, por falta de tempo para encontrar melhor. Entendo que alguém se possa sentir insultado com determinada representação, que até pode pisar o risco do estereótipo, mas diz-nos a História que se respira melhor quando, por exemplo, no humor desenhado, a liberdade chega à ofensa. A infância ensina-nos a enfrentar os muitos matizes do ultraje e do vilipêndio. E depois, o chão do medo será sempre movediço.

Vão de Escada, Cossoul, 1 de Fevereiro 2018

O Vasco [Gato], de conluio com outros cidadãos, anda a alimentar a alma da [Guilherme] Cossoul e pede-me para me sentar nos degraus da devoluta casa de Santos. O frio empurra-nos para o bar, o que não me desconforta. Podia lá ser de outro modo? Horas antes varri os livros à mão de semear e cheguei a uma escolha das mais heteróclitas, pondo-me a ler em voz alta banda desenhada e até cartoon. Hei-de repetir. Fugi dos autores da casa, mas nem tanto. Tentei de mim escapar, mas lá mostrei restos de Má Raça. Fui à Itália do António [Mega Ferreira] e às sombras de Zagajewski. Visitei Pessanha, por sermos próximos e ter versão de bolso. Por falar em sonetos, e para minha surpresa, a rede pescou do passado, «Mecânico de Ovnis», uns 20 do Fernando Grade que celebram «Portugal em «p», pequeno país de puritanos»: «Gaivotas que desceis pro sobre a polpa/de um beijo feito de água e neblina/ quando a tarde é um tango ou uma polca/ e os dedos são aranhas nos sobre até à boca.» A noite, que foi de tango, subiu-nos à boca, com mágoas a que voltarei, talvez. Só a dong hai-sopa ácido picante do Dim Sum Macau, a melhor de Lisboa, nos confortou.

7 Fev 2018

Peças soltas

 

Tivoli, Lisboa, 22 Janeiro 2018

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]avia por onde celebrar e de copo na mão: os milhares de páginas, os milhões de leitores, a persistência em voos outros, em distintas paisagens, na atenção ao que por cá se faz e a quem o cria, enfim, a aceleração de motores que a revista UP foi suscitando na última década. Os aviões da TAP aumentaram o número de vigias, que deram a ver mais mundo com esta experiência nascida da paixão. Ergui o copo com a equipagem, não apenas a das ideias, palavras ou imagens, mas também com alguns mecânicos do fazer acontecer ou do papel e da impressão. Abracei de fugida a Paula [Ribeiro], alinhavei meia dúzia de afazeres, fatalidade dos dias, acertei compromissos que teimam em escapar das irrequietas agendas, troquei piadas e duas reflexões além do que me esqueci, ainda me diverti com a pequena Leonor, a mais nova da Sari [Veiga] e do Jorge [Silva], antes de aguentar a rudeza de um triste. Prometi, enfim, percorrer com o Rui [Cardoso Martins] a rota do melhor frango assado do mundo, que, como é sabido, se instalou na Praça do Chile e zonas adjacentes. Não concordamos no primeiro lugar, mas buscaremos consenso, sendo o mais provável que nos percamos antes de nos reencontrarmos em Cardoso Pires.

 

Anjos, Lisboa, 23 Janeiro 2018

Mão querida, teimosa na partilha dos versos com que forra os seus dias com admirável disciplina, oferece-me «Sombras de Sombras», de Adam Zagajewski (ed. Tinta da China), ao qual há anos não regressava. Este livro e não outro podia ilustrar o cenário destas horas sombrias e ofegantes, de que serve de exemplo este Lá Onde a Respiração. «Está só em cena/e não tem nenhum instrumento.// Coloca as mãos sobre o peito,/lá, onde nasce a respiração/ e onde se extingue.// Não são as mãos a cantarem/nem o peito.// Canta o que está calado.»

 

  1. Luiz, Lisboa, 24 Janeiro 2018

Outro grande momento de reflexão sobre o teatro, em palco e em corpo, no que parece configurar tendência. O pressuposto de Marco Martins ao encenar «Actores», de tão simples e radical, resultou fulgurante: Bruno Nogueira, Carolina Amaral, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço a fazerem de si próprios no corpo e alma de personagens (com a Carolina a desdobrar-se ainda em Luísa Cruz). O palco disforma, pelo que nunca seriam exactamente eles, apesar do muito de cada um ali desvelado, em narrativa e interpretação, mas o jogo de espelhos ergue-se infinito e fascinante. Entramos em pleno avesso, na carpintaria que sustenta o enorme cenário do humano a fingir sê-lo mas de um modo tal que se faz mais carne e osso que o real. Esta nudez travestida, como em documentário encenado, até por usar câmara para ampliar rostos e efeitos, mise en abîme também da sala, pôs a matutar, ensinou, ridicularizou e comoveu. Logo a princípio, em cena de nada, o Nuno e Rita encheram a sala com a expressão de sentimentos avulsos, anunciando o que confirmariam: são gigantes. Na composição da matéria desta peça, que aproveita fragmentos de trabalhos antigos, no trabalho de voz e corpo, nas figuras que compõem, na extrema generosidade. A Rita Cabaço… Habita nela um sopro que a tornará, para mim e por muito tempo, a imagem da graça. O drama parte da memória de cada um para alcançar manifesto colectivo acerca da essência da representação, invocando os medos, as fragilidades, bem como conseguimentos, sucessos e pesadelos, em sequência de montanha russa que não pára nem durante o intervalo. Que sobrará do deus ex machina encenador depois disto, para onde o empurram os actores a fazer de si em roda (quase) livre? O Gonçalo [M. Tavares], na sua habitual brincadeira a reflectir com o espelho, também ilumina, na folha de sala, fragmentos do sucedido e toca, às tantas, o problema do público médio, alvo da intensidade do actor, sendo que, para ele, «o encenador ocupa a sua cadeira». Não sei, não. A inteligência dramatúrgica do Marco Martins tocou-me e a estupidez média do público não deixou de me irritar. Andamos precisados de rir, mas, que diabo, o Bruno Nogueira merece mais do que gargalhadas só por estar.

 

Horta Seca, Lisboa, 25 Janeiro 2018

Carga melancólica, estou agarrado pela expressão aplicada ao bom gigante do boxe, José Santa «Camarão» (1902-1967), que o Xavier Almeida em boa hora e mão segura resgatou do esquecimento com «Santa Camarão» (ed. Chili Com Carne). A narrativa gráfica engana sugerindo rapidez na leitura, mas a interpretação das imagens, da sua sequência, do ritmo com que se conta, pede tempo. Lê-se num fósforo os passos de um fragateiro descalço de Ovar até ao boxeur das botas 49 de Lisboa por caminhos que não terão sido os do sucesso. Mas há que voltar várias vezes de comboio à sua terra de beira-mar, revisitar a figuração do desespero por se sentir monstruoso, rever as suas mãos amassar o pão, as mesmas que lhe darão um destino. Um desenho nervoso, com belas e diferentes soluções gráficas, a sugerir mais do que a mostrar, a colocar-nos sem esforço e com elegância nos lugares e no tempo, sempre a preto e cinza. O tom e o estilo do Xavier revelam-se notáveis no desenho sensível e sem golpes baixos de um anti-herói solitário, triste e perdido. Afinal, excelente metáfora de um certo Portugal naqueles inícios descalços do século XX.

 

Horta Seca, Lisboa, 27 Janeiro 2018

Mal conheci Edmundo Pedro, mas conheço-o bem. Sei da coragem e das circunstâncias, do modo de andar e de contar, ambos atirados para diante, em busca de mais horizonte. Testemunha de um certo país que não se rendeu ao medo nos idos sombrios do século passado. Gostava de lhe ter editado as memórias, confesso. Faz-nos tanta falta a memória. Temos agora um pouco menos.

 

Santa Bárbara, Lisboa, 28 Janeiro 2018

Faz hoje 60 anos, mas tem a minha idade. Não saberia pensar sem este minúsculo tijolo. Possuía poucas peças, quase todas básicas como as cores. Mais do que suficientes para criar mundos inteiros e complexos, gigantescos acidentes, luxuriantes arquitecturas e não menos exuberantes ruínas, armas vanguardistas, ameaças terríveis e defesas inexpugnáveis, simples combinações abstractas, absurdos a várias dimensões. Não saberia imaginar sem os pequenos tijolos de plástico que cabiam todos numa lata redonda. Não saberia ler ou escrever sem Lego. Sem os legos, a palavra seria apenas isso.

31 Jan 2018

Spleen punk

Possolo, Lisboa, 13 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] António [de Castro Caeiro] tomou por tema de trabalho a melancolia. Escolheu-a, sou testemunha, antes de começar dieta e desconfio que não a largará tão cedo. Ele pratica a filosofia como arte marcial, com treino e disciplina. Leitura, tradução e interpretação espelham-se no aquecimento, na dança saltitante e nos sucessivos golpes com que abre palavras, desvela conceitos, irradia perspectivas. A escola do Luís [Carmelo] está cheia e bebe cada palavra, que parte dos fluidos e humores de Aristóteles, pseudo ou não, passa pela acédia de S. Tomás de Aquino, para desembocar em Nietzsche e Heidegger. Apesar de ter trocado a cabeça por uma única nuvem negra e cerrada disfruto com prazer do fluxo de ideias. Fixo-me nesta «abulia espiritual quanto ao exercício das virtudes, especialmente no que respeita a culto e à comunicação com Deus». (Que bem me sabe este regresso aos dicionários, no caso o Houaiss, e tenho que me controlar para não correr a visitar outros.) Este enfraquecimento da vontade que atacava os monges a meio da manhã, que lhes oferecia o tédio como tentação, na vez de gozosos corpos ou luxuriosas riquezas, desemboca no punk: e se nada tiver sentido? O cultivo da palavra – amanho de terra, cravar da semente – continuou para descobrir na melancolia um desalinhamento, um desfoque entre o que somos e o que fazemos, entre suprema potência e acanhada preguiça. Tarde com vista para o super-homem, horizonte definido sem superpoderes.

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Estranho que o novo da Inês [Fonseca Santos], «Suite Sem Vista», dada a nossa comum atracção pelo treze a perturbe com mais um. As coincidências sussurram-me que o absurdo nos governa e, estranhamente, encontro nisso conforto. Juro-vos ser coincidência que o meu preferido, nesta viagem aos vários centros de uma rapariga emparedada em si, resulta ser o XIII: «No espelho da suite sem vista,/ o hálito da rapariga embacia// o tempo.//A rapariga fita a parede/ para lá do espelho:// demasiado contraplacado armado/ em paisagem.// Bebe de novo o tédio do lado rachado do copo./ E da boca da rapariga sai// a palavra/ sangue.» Um hálito que embacia o tempo, um olhar que vê a paisagem contraplacada, um tédio no copo rachado e a palavra sangue, este malabarismo entre imagem e ideia e verbo faz-me parar. E perguntar: onde estou? Durante o lançamento, que descambará não tarda em festa, tenho a companhia da Rita [Taborda Duarte] e do António [de Castro Caeiro], além da autora e da sua leitora íntima, a Filipa [Leal], no deserto do palco. Não me salvam dos gaguejos e brancas, mas oferecem-me o conforto das suas interpretações incisivas e de rasgo, que nos levam ao espaço arquitetónico desta rapariga que constrói cidades no peito e define os lugares com o corpo. Esta poesia devia ser enviada ao cuidado dos arquitectos, se eles ainda construíssem com atenção, na vez de concreto. O António falou da «personificação dos objectos», nas «peças de mobiliário da nossa existência». A Rita avisou este livro tem que ser sitiado, devassado por um voyeur. Esta «Suite» dá-nos acesso, permite-nos ver os vários centros, geodésicos e outros, de uma mulher. E dá-nos, pela palavra, a sua activação. De novo, a coincidência. Na abysmo, a poesia começou com «As Coisas», da Inês. Esta colecção «abysmo mão dita», que se pretende laboratório de geometria variável, desde que mais portátil e veloz, tem o primeiro volume com a sua assinatura (calhando ser a edição número sessenta e nove). Para as capas, procurámos o olhar de artistas plásticos, como o Francisco Vidal, que definiu um rosto a partir de cores e traços sanguíneos (algures nesta página), transformado depois pela Luísa [Barreto], em peculiar objecto, jogando com o dentro e o fora, o miolo e a capa.

Horta Seca, 17 Janeiro 2018

A sério? Coincidência? Tenho nas mãos o volume II das Obras Clássicas, ou seja, dos «Sonetos Completos» do Antero de Quental, que assina o logo. Sim, ele escreveu abysmo por tê-lo conhecido como ninguém, não tanto por ser hábito da época. O Miguel Macedo viu como voyeur, com prazer. Vamos ler com as mãos, se pudéssemos. Sem querer, mas fazendo do y antena para o advir, como quem lia cada detalhe, acima ou submundo, lendo o carácter que nos podia levar onde nunca fomos, de nunca fomos capazes de vir, a dar choque. Repousa como gato e a cor do tijolo, brincando com a característica de ambos. Muitos irão elogiar o aspecto, sem cuidar na imensidade de trabalho que fixa o texto, aquele que não pára de mexer. Antero tem que ser lido na fugida de todos os cânones. Hoje sou homem e na sombra enorme, achando, eu no diálogo com ele, Antero, que podemos ambos crescer além do spleen punk (com ou sem vírgula). Talvez pudéssemos, ao ler, recomeçar revoluções. Muito de súbito, derrama, ó leitor, o essencial disto que se parte a teus pés, teatro mínimo: «Que trazes ao mundo em cada aurora?» Pergunta íntima, descuidada, roupa interior: levanta-te e diz. Faz-te e anda. Ergue-te e fica. Acreditei, por instantes, mais logo lerei, cicatriz desenhada pela vontade na pele: «Mais que amor tenho crença: essa existência/ Pede-me um culto por que dera a vida,/ Por que dou esta dor, que aqui se encerra.»

Loreto, 19 Janeiro 2018

Estou doente, mas compro «Le un», a sinopse de bolso mais brutal e explosiva dos tempos sobre os quais no sentamos, dias de rabo, vistos daqui, folha dobrada e ilustrada a celebrar com luxúria o fim do papel (voltarei ao assunto). Ah, sim e o tema: «Est-il urgent de ralentir?», como quem diz: «É urgente parar?» Nomes depois de nomes dizem, pedem, exigem, imploram, lambem a paragem, quietude, o pranta-te quedo da minha infância. Logo eu com eles, mas penso, não tanto no tema, mas no modelo-papel. Há-de tudo e lembrei-me de Barthes. Não parou de chover. Continuo a lentidar, recordar com lentidão, que belo soa daqui o que vejo voando quieto.

24 Jan 2018

Dias ampliados (com os dedos)

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Janeiro

Desacerto. Estes são os dias do desacerto. Se nunca me senti muito da vida («o meu filho é um atado»), agora tudo me sabe a deserto, solidão e danação. A paisagem tornou-se bruta e clara, nítida como lâmina, reflexo do sol nos olhos ao sair da noite. Atravesso-a dolorosamente inclinado para diante, quase tocando o chão que piso, só as pernas se mexem avançando contra o vento, a tempestade de areia, cego ao horizonte, a cheiros e gestos. O nevoeiro de chumbo encheu os ares da cidade. A cada esquina, uma pergunta rasga a rua. Que texto nos prepara para isto? Onde mora o sentido? Com que matéria podemos refazer a alegria? Há pedidos que jamais deviam ser atirados, granada de mão.

 

Lisboa, 11 Janeiro

9h45: com ligeiro atraso para o costume, leio o Expresso Diário no metro enquanto levo pancada das mochilas. Às vezes riposto. O tema era o entediante jogo de empurrões entre Santana Lopes e Rui Rio.

9h55: hoje é só um lance de degraus que deixaram de rolar. Faz sentido complicar a vida de quem sobe ao umbigo do mundo.

9h56: ao telefone com a Elisabete acertamos formato, ilustradores possíveis, papel e espírito de um livro à volta de amores possíveis e impossíveis.

10h01: aceito o pequeno rectângulo, que agradeço e conservo: «Se quiser prender uma vida nova e pôr fim a tudo que lhe preocupa. Contacte o Prof. Karamba que ele tratará o seu problema com rapidez, honestidade e eficácia.»

10h06: reparei que a nossa janela ainda dizia o ano passado, pelo que arranquei o autocolante que anunciava a exposição anterior.

10h15: acedo à conta para ver de recebimentos e tratar de pagar miudezas e nem tanto.

10h25: espreito os emails, despacho os urgentes a que consigo dar resposta, passo outros tantos para a pasta a responder. Assusto-me com o que ali se agita, insectos encurralados.

10h26: chega finalmente o contrato da RTP por causa do Spam Cartoon. Por momentos, chamo-me Joaquim. O erro costuma ser variante do Cotrim, mas desta vez apõem-me o nome do meu avô, o que me faz sorrir.

10h40: irrito-me com a agreste ironia de que, se quiser os livros que ainda estão na insolvente distribuidora, terei, não apenas de pagar o handling, assim lhe chamam em estrangeiro, como o transporte das 17 paletes. Ainda recolhem dinheiro de vendas que jamais verei, mas os pobres precisam da minha esmola para fazerem o trabalho deles.

11h52: entregue que estava mais um Spam Cartoon, reunimos telefonicamente para discutir o que se segue. Com muito esforço, evitamos atirar ao palhaço, i.e., a Trump. E lá continuamos, mesmo depois de desligar, uma conversa de há meses sobre a questão do assédio. Com tanta subtileza em jogo, só lá vai com jantar.

12h45: liga-me a advogada por causa de aditamento a um contrato, coisa de família, que me obrigada a parar tudo, imprimir o dito em quadriplicado, rubricá-lo, assiná-lo e enviar para a minha irmã, por estafeta.

13h15: devíamos comemorar certo encontro, mas as urgências obrigam a almoço rápido, sem mais história que a dos afazeres rotineiros. As datas dos amores possíveis devem celebrar-se contra a agenda, solverem-se na carne dos dias.

15h00: reunião com o Alex Cortez e o Daniel Moreira para acertar detalhes do livro (e dois CD’s) «Poetas Portugueses de Agora». Entusiasmo-me com as múltiplas qualidades, as que ouvi e estas que vejo agora.

15h45: ajudo o Bruno [Mantraste] a montar a exposição relâmpago que inaugura daqui a umas horas. Não há razão para alarme. Estendo o fio que acerta o horizonte. Ajudo a complicar umas contas. Prego uns pregos. Maravilho-me com o que vejo. Os esboços possuem uma tal intensidade que parecem brilhar (exemplo aqui na página). O Teófilo bate à janela: vem inesperadamente dar uma mão.

16h30: por desacerto da atenção, consegui que acontecessem três eventos ao mesmo tempo. Peço à Mariana que acompanhe o Luís Maio, na sua sessão na biblioteca de Oeiras à volta do «Ninguém Sabe Onde Está». Ninguém quis saber.

17h30: vejo a mensagem do Mário Gomes a convidar-me a colaborar na belíssima revista Diaphanes. Uma tentação.

18h00: embate com a realidade do que se entende por grande público. Vejo-me cercado de velhas convenções e mal-entendidos. Entristece-me, apesar de o ter previsto.

18h25: ao desligar o telefone, ainda leio mensagem com ultimato em torno de projecto que me parece estratégico. Tento desajeitadamente remediar o estrago provocado pelo meu desarranjo com os tempos.

18h30: abrimos o segundo ano do Obra Aberta com os recém publicados [José] Anjos e Inês [Fonseca Santos] a falar de poesia, infância e o mais que se solta dos livros. Doravante e para complicar, acederei ao microfone.

20h05: regresso à exposição que já vai alta em animação e gente. Na janela, mora desenhado o título «Sebenta do Diabo». Nas mãos de cada um vejo palpitar coração abraçado por espinhos.

20h35: avanços pelos cumprimentos e saudações em direcção aos braços do Jorge Colombo, que não vejo há anos. Continua grande instigador da curiosidade, dispensário dos mais díspares saberes e atenções. Sacudimos conversa, estendemo-la e nela nos sentámos prazerosamente.

22h05: não se fez fácil fechar, com os de última hora a pôr pé na porta. E olhos no diabo da sebenta.

 

Santa Bárbara, Lisboa, 12 Janeiro

Os esboços, mais do que o acabado, aproximam-me do gesto criador, da fragilidade e da potência. A imperfeição suscita-me reconhecimento, dá-me o conforto de um qualquer entendimento dos rasgos que nos abrem o mundo para o ver por dentro. O conjunto de esquissos desta «Sebenta do Diabo» do Mantraste (editada em risografia e quase toda no vermelho (proibido) pela Stolen Books) não cessa de me comover, de me divertir, de me surpreender. O fim último dos desenhos foi tornado impossível pelo amor e a exposição original, por força das coisas, teve de se chamar: «Desculpem, Apaixonei-me e Não Fiz Nada». Os desenhos, aqui agrupados, por junto com alguns já apurados e coloridos, possuem cuidados diferentes, mas sem perderem em momento algum a intensidade do olhar original do Bruno. Relendo o fantástico S. Cipriano, invoca infância em ambiente rural («foi o meu avô que podou as vinhas do mal») com a ilustração de ditos e lendas e episódios e animais e plantas e fascínios: poços que têm no castelo o seu reverso, mergulho no desconhecido e construção da segurança. Rico de detalhes e composições, ingénuo e metafórico, denso e poético, sugere a cada passo que estamos rodeados de fogos e corações. E diabos.

 

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Andávamos há meses a escavar em busca do título para o romance do Valério [Romão] que fecha a trilogia. Ele descobriu-o para satisfação do editor: «Cair Para Dentro.»

17 Jan 2018

Agreste matéria

Vila Nova de Cacela, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]estes dias em que se celebra com intensidade a passagem do tempo, se nem tudo pára, muito se faz vagaroso. Fazemos pausa e partimos ao encontro do mar. O sol ilumina os contornos de um frio palpável, as horas são marcadas pela passagem de comboios que parecem vir do passado sem destino definido. Por aqui não se sente a confusão, pouco se vê de turistagem, estamos fora. Um largo terraço mantém-nos suspensos, sem saber se o céu nos sustenta ou se a terra evita que descolemos. Aproveito para ler, entalado também pelo tempo: revisito obras (quase) completas, espreito propostas em busca de futuro, cedo até ao prazer, sem horário tatuado pelas mensagens e chamadas, sem o ritmo insidioso das miúdas urgências que atormentam um preguiçoso confesso. Durou pouco, mas foi suficiente para ressurgir velha resolução de ano novo: aprender a parar.

Horta Seca, 4 Janeiro

A lista de afazeres em atraso, contudo, não deixou de se agravar. Somos poucos para dar vazão ao que se vai criando. Uma editora não se pode limitar a imprimir livros. Deve procurar incansavelmente leitores, que andam preguiçosos e assediados, sem tempo ou vontade. Não penso em marketingue, que procura soluções em modo básico, infantilizando o comprador, importando o estafado de outras áreas. Cada vez mais teremos que oferecer experiências, passagens, viagens. O livro, por si só, contém isso, mundos e muito mais, mas há que gritar-lhe a existência no meio de uma enxurrada de mais de 40 títulos a desaguar, por dia, nas livrarias. Além disso, entendo a editora como plataforma de projectos, desde logo pelo curto-circuito com a ilustração e a assumida luxúria do design, mas também por força do talento que fomos acolhendo. Constato com alegria infantil que a contemporaneidade se exprime em várias linguagens, da música à pintura, com assustadora normalidade. Tenho para mim que esta revolução silenciosa começou algures nos interstícios do sistema de ensino da democracia, ainda que em turbulência nem sempre didáctica, para explodir depois com o advento das redes sociais, que facilitaram o acesso a oceanos de informação e a ferramentas como tutoriais, conferências ou a interacção directa com pensadores e criadores. Natural se torna, portanto, que nasçam exposições que são algo mais, conversas que partem de interesses surpreendentes, bandas de música que fazem da palavra instrumento, convites para se reinventar o escritor. Fazer dinheiro com isto, eis desafio que ainda não consegui resolver.

Outra lista, essa atormentadora, resulta das centenas propostas que nos chegam pelas mais diversas vias. Algumas são enviadas ao mesmo tempo para dezenas de editoras, revelando o desconhecimento de catálogos, filosofias, espíritos. Há tempos, alguém se oferecia em leilão: tínhamos que enviar resposta aos quesitos, que eram vários, até determinada hora. Ou perdíamos a oportunidade de uma vida. Perdemos. Pais atiram a enésima versão harrypotteriana assinada pelos filhos adolescentes. Reformados, mais que muitos, sugerem livros de história, que explicarão finalmente e de uma vez o que já se esqueceu. Best sellers também se anunciam, assim definitivos e com estrondo capaz de resolver os nosso problemas. «Poesia», essa atreve-se sem vergonha em quantidades aflitivas. Demasiadas sugestões vêm travestidas de pedidos de orçamento, confirmando a disseminação do modelo de auto-edição, o princípio do autor-pagador… Por aqui, há quem ganhe dinheiro, que a imortalidade tem o formato de um livro. Pelo meio, acontece coisa de interesse, mas não se distingue com facilidade. Há humor, abordagens originais, logo engolidas por cadência tão avassaladora que, se a ela nos entregássemos, não faríamos mais nada. Até por todas exigirem resposta atenta, justificação detalhada, vislumbre de direcção, esquecendo que não estamos obrigados a responder a algo que não solicitámos. Se por cada oferecimento que entra saísse livro pago teríamos que aumentar as parcas tiragens.

Horta Seca, 5 Janeiro

Chega relatório de vendas de Dezembro a confirmar o que se adivinhava: perdemos o Natal, muito por incapacidade nossa de recuperar atrasos, mas também por causa de um mercado disfuncional, viciado em novidades e incapaz de trabalhar fundos. A falência da distribuidora fez-se pretexto para devolver os títulos empurrados para a sombra. Quantos são agora os dias de sol para um livro acabado de sair?

Outra lista cresce, confirmando para minha surpresa que existimos: a de distribuidoras oferecendo-se para nos ajudar a encontrar leitores, isto é, colocar livros em algumas livrarias. Estamos, para já, servidos, obrigado. E estamos, a prazo, obrigados a inventar novos serviços.

Casa d’Avenida, Setúbal, 6 Janeiro

«Somos Contemporâneos do Impossível» volta a servir de pretexto para, em toada íntima, me pendurar no microfone a fazer leituras do [José] Anjos enquanto o [Carlos] Barretto dança nas cordas. O contrabaixo dá, como nenhum outro instrumento, corpo e paisagem às palavras. Dois acordes e o ambiente está lançado. Depois os volteios definem o perfil do se vai dizendo, o que se solta do nosso peito. A poesia do Anjos, ferida de infância, dá-se bem com estes preparos.

A Casa renovou-se e a luz marca agora o lugar. Para assinalar a mudança, a Maria João [Frade] convidou o José Teófilo [Duarte] a rasgar janelas com as suas pinturas (uma delas reproduzida aqui na página). «O Truque do Mel», assim se chamava a exposição, coincidiu a finissage nesta tarde. Aliás, na tela maior encontrava-se rima gráfica com o desenho do Simão Palmeirim para a capa do «Somos…», coincidência pura. Na maior parte das telas, o fundo faz-se da luta das cores para se soltarem do branco. São fragmentos feridos de parede, que procuram em vão conter essa vida que se liberta dos tons ocre, da família dos suaves. Deixam-se atravessar por tábuas mal aparadas, cordéis e ramos de videira, miolo de cartão canelado, que abrem e procuram fechar fendas, passagens, dividindo a quadrícula, que sugerem contenção, construção. Não evitam o ressumar da cor, o gesto do pincel, o devaneio da textura, uma muito subtil dança de sombras. Assim à vista desarmada, pareceram-me boa ilustração para a melancolia, mas posso estar enganado.

10 Jan 2018

Se assoprar posso acender de novo

Horta Seca, 20 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]recisamos muito de água, mas o que chove são listas. Esse auxiliar de memória, que Umberto Eco elevou à categoria de arte erudita, mas que, no pós-jornalismo onde moramos, raramente se ergue da mera enumeração, sem critério que se entenda, com valor informativo mínimo, a titubear equilíbrios toscos, quando não usado como arma de arremesso. Dizem-se os melhores (livros, podendo ser qualquer artigo) do ano, mas os meses finais agigantam-se, de súbito e em bold. Por exemplo. Para o habitual exercício de listar, o ano encolhe e os meses do Inverno, a não ser que tocados pelo sortilégio de qualquer prémio, perdem-se no nevoeiro da desmemória. Patinhamos no agora, agora mesmo. Coisas de somenos, bem sei, mas a vida em sociedade (comercial) obriga-nos a alinhar por estes compassos, a atentar no assunto. Edita-se demais, o livro vale de menos. Para surpresa minha, o Arno Schmidt ainda passarinhou nestas gaiolas, mas nem que o conjunto das nossas edições fosse incluído mudava o essencial: o rol dos «melhores» pouco mais vai sendo que forma distraída de passar pelo essencial. Nem diária atualização apanharia a corrente de ar dos tempos. Não basta nomear, há que viver com os livros, dialogar com eles, criticá-los, permitir que nos incomodem. Quem passe pelos arquivos, lugar derradeiro da memória, percebe melhor do que falo. Os jornais deixaram de ser espelho. Ainda que estejam pejados de umbigos.

Horta Seca, 21 Dezembro

Mesmo cuidadosamente envelopado, como só ele sabe, o mais recente volume da obra polimórfica do mano Tiago [Manuel], no caso atribuído à sueca Tilda Markström, tem uma mossa na capa e nos primeiros cadernos. Uma marca que logo interrompem a circulação de azul em torno da palavra-título: «Cancer» (ed. Mmmnnnrrrg). Impossível não ver nisto um sinal, uma semiótica dos acasos. A viagem marcou-o. Uma cicatriz, portanto. Com uma força extraordinária, aliás comum nos seus trabalhos, o Tiago desenvolve o álbum em sucessão de imagens que obedecem a perspectiva única: um alto pode-se tornar o ponto, o cerne que nos muda a textura do corpo e do mundo. O entorno vai ganhando texturas e padrões, os mamilos e as veias transfiguram-se na linguagem que nos rodeia, que nos cerca, que nos atrai a rede cada vez mais apertada, cenário no qual tudo diz e é sinal da morte. Sem palavras, sem nunca dizer cancro em português, língua que tem por costume evitá-la, substituí-la, coisificá-la. As linhas da cicatriz transfiguraram-se em rarefeito contorno onde acomodar as sombras que a doença ainda permite. No fecho, três textos curtos, páginas arrancadas a um diário. «Já não é possível voltar ao paraíso de onde fui expulsa pela morte». Dolorosíssimo testemunho em carne viva de um íntimo processo, viagem que a todos nos toca, tocou, tocará.

Santa Bárbara, 22 Dezembro

Raramente me lembro dos sonhos, ao contrário do [José] Anjos, que os descreve como quem encena, atirando posições, detalhes e falas. Estou quase a acreditar que não sonho. Desta vez, descobri o sentido físico do pesadelo. Um peso enorme entornava-se sobre mim, que dormia de bruços, como sempre me entrego, corpo de chumbo com asas que me cobria impedindo que voasse ou tão só me erguesse. Ou respirasse. Tive que acordar para resolver. Não voo, ainda assim.

Horta Seca, 23 Dezembro

A melhor revista de bordo do mundo, para os prémios da especialidade e para mim, fez 10 anos em Novembro e dedicou-se a São Paulo – poema concreto, cidade natal da minha querida Paula [Ribeiro], directora até aos mais mínimos detalhes. Com a UP voa-se, mesmo sem estarmos no avião. Só agora consegui subir a bordo e já chegou nova a chamar-me para Londres, logo com as fotos do Fernando [Martins]. Acontece mensalmente, mas este ergue-se em exemplar arranha-céus de conteúdo e fruição. Dezenas de talentos das mais diversas áreas revelam fragmentos daquela urbe imensa, dos ícones da moda aos ângulos urbanísticos, das obras de arte ao perfil do paulistano, traçado por Marcos Caruso. «Tudo é farto em São Paulo». O tema estende-se por um sem número de detalhes que dá gozo descobrir, que tudo tem que fazer sentido e dançar. Os separadores são cinco fotografias «sinistras» de Bob Wolfenson, retratos em cinco décadas diferentes. A moda, assinada pelo Paulo Gomes, faz sonhar. A entrevista da Rita Lee faz sentido. E ninguém faz revistas em Portugal como a Paula, renovando uma tradição onde o jornalismo incluía atenção, curiosidade e serviço com fartura. Há mais, muito mais. Desconfio que a leitura deve dar à justa para uma ininterrupta volta ao mundo. Entrevista-se até Fernando Lemos, velho embaixador do surrealismo e outras inquietações, que inaugura exposição agora no MUDE, em Lisboa. Um exemplo de alguém entre cá e lá, mestre maior do preto e branco. «Orra, meu!» Esta amplificação de um Brasil que dói de tão cosmopolita sem perder ponta de tropicalidade é excepcional. Sim, nos dois sentidos. O que a paulistana directora da UP tem cometido, mesmo fora dos milhares de páginas que fez levantar voo, e com discreto alarde, vem sendo uma intransigente e amorosa descoberta e demonstração do que Portugal possui de melhor. Ramón Gomez de la Serna via Lisboa como navio de terraços transatlânticos. Quem os tem conduzido de cá para lá e de lá para cá tem sido a Paula, que gosta bastante mais de nós que nós próprios, esse tão estranho hábito.

Horta Seca, 27 Dezembro

Tombei nele por acaso e coincidiu tornar-se banda sonora destes dias menores. Adoro Adoniran Barbosa, ângulo de uma SP que jamais conhecerei, mas que ele expandiu ao universal. Brota sabedoria dos seus versos, apelo agridoce à preguiça impossível, um fulminante bom senso capaz de nos virar do avesso, pondo-nos a dançar com a tristeza, mas piscando o olho à alegria. Um amigo descobriu umas dezenas de páginas rabiscadas pelo João Rubinato, o nome de dia do artista. «De dia não sou ninguém/ de noite sou alguém/ que toca o violão.» Eram inéditos que suscitaram este magnífico «Se Assoprar Posso Acender de Novo» (ed. DaFne Music), boteco onde se juntam nomes como Criolo, Ana Julia, Diogo Poças, Ney Matogrosso, ou Liniker, entre tantos outros. Além de puxar lustro às pérolas, o produtor Lucas Mayer acrescentou o extremo bom gosto de amantizar a tradição e a contemporaneidade de modo único. Delícia que merece visita a torto e direito. Depois, contém o hino desta passagem de ano. «O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Vivendo afinal, eu penso ser alguém/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Mas com o pensamento puro aguardamos o futuro.”

3 Jan 2018

Predador de sombras

Bica, Lisboa, 12 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]rrefeceu mais o bairro, aquele que mora nas traseiras dos que passam a arrastar olhos nos azulejos, dos que desaprenderam a ver apesar das lentes e dos ecrãs e dos guias. O meu bairro de íntimas escarpas e abruptos declives deixou descer de vez o Sô Manel e assim se perderá bastante mais do que as sortes que revendia e praticava com o afinco dos perdedores crónicos. Foram-se os sorrisos rasgados, as festas no Pantufa, que o tratava como pai ganindo ausências, desfilava com canino orgulho trajado à Benfica, quando não alinhava pela selecção, e não dispensava um gole ou dois na mine. O meu bairro de sol pelas esquinas perdeu o fervor da flash interview praticada com o subtil acinte dos velhos parceiros que, apesar das cores contrárias, nunca se perdem do terreno de jogo: o coração.

Mymosa, Lisboa, 13 Dezembro

Um jantar casual com o Bruno [de Almeida] e o Alentejo reentrou na nossa vida tal chuva de estrelas. Sob aquele céu, a solidão parece impossível. Acontece amiúde este horizonte de sul, apesar de outras paragens do afecto, mas celebro aqui a habilidade do contador com a força das descrições, o equilíbrio da sugestão, o cheiro a pão da miragem posta ali na mesa, bastante mais duradoura do que a chama do álcool. Temo, contudo, não vir a conhecer outro refúgio que não em mim. A conversa seguiu depois outro rumo, que espero venha a desembocar em livro, tal o somatório de histórias e intricada reflexão em torno da doença e da criatividade.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A onda melosa do Natal cansa-me ao vómito. Tornou-se condenação inescapável, agravada pelo generalizado dever da alegria. E os nossos ritmos têm que sujeitar-se, por mais que pensemos alternativas. Acresce ser esta a estação dos livros, em país onde quase nunca chove. Há que aproveitar as gotas de água, sopesando os temas ou, por exemplo, a apetência «da época» por beaux livres. Este ano, quando mais precisávamos, falhámos todas e cada uma das ideias, por uma panóplia de razões que parece sortido de bombons baratos, a vencer o prazo de validade. A falência da distribuidora escavou sorvedouro de tempo e energia que desfez qualquer possibilidade de normal funcionamento. A própria matéria da normalidade se deixou afectar e o que, de ordinário, não faria grande mossa resultou em pequenas e médias catástrofes. Cada palavra fora de lugar, cada demora de autor ou deslize de colaborador, cada falha de matéria-prima ou cobrança de atraso, cada incapacidade nossa foi erguendo intransponíveis. Neste contexto, termos conseguido abrir, pela quarta vez, a colectiva «Princípios de Colecção» conforta-me parvamente. Sublinha que será infindável o recomeço, mesmo quando olhamos para trás, baralhando e voltando a dar parte do que fomos mostrando ao longo do annus horribilis, ou trazendo à luz os fundos, sobretudo de ilustração, que vamos recolhendo por gozo ou suscitando com os nossos projectos. O mais bonito na nossa cave, além de ser híbrida em que se desce e sobe, espelhando o bairro, são as janelas: abrem para a rua e dão para o céu. Com ou sem nuvens.

Music Box, Lisboa, 14 Dezembro

Estou na mesa a atirar obrigados a uma multidão de cabeças sem rosto em fundo negro (preciso aprender a distinguir no escuro) por causa de «Somos Contemporâneos do Impossível», do mano [José] Anjos. Para a pequena multidão serão mera cortesia, para mim fazem-se chão. De tão orgânico, «Somos…» compôs-se objecto dos representam «a vida no seu sentido adjectivo». O plural em ser dá logo ideia da cristalização de colaborações, de olhares, de gestos, de tempos e espaços que acontecem a cada página. Os encontros e desencontros, em palco e fora dele, noite e dia, à volta da palavra e apesar do gesto, íntimos mas colectivos, sopram nesta cidade. A pintura sobre papel do Simão Palmeirim, que faz capa e contracapa (reproduzida nesta página), descreve esse lugar de planos diferentes, de degraus e acessos, de contornos rápidos e toadas de branco. Tão fácil perdermo-nos nesta geometria, sem palavra. A não ser a de abysmo, onde a linha de horizonte se encolhe em curvas e contracurvas definindo a palavra antes de se voltar a perder. Esta abordagem continua no interior, com gravuras e desenhos, de arestas e passagens e florestas de prismas quadrangulares, mas também na sua proposta de reorganização da obra. «Somos Contemporâneos…» está pejado de pormenores, que o autor tem horror ao vazio. O tal índice de Palmeirim, que propõe arrumação outra, ilustra-se com máquina de escrever pautas, mas não de fazer música. Essa ficou a cargo do Carlos [Barreto], que suspira Deambulações, e acompanha esta noite as leituras da Catarina [Santiago Costa], do Valério [Romão], e da Cláudia [R. Sampaio] ainda antes do concerto dos Não Simão, de que ambos, Anjos e Simão fazem parte. Alguns dos poemas ouvem-se também «No Precipício Era o Verbo», e todos eles partilham momentos e projectos de leitura de viva voz, pelo que a intensidade invadiu a sala. Para não fugir ao habitual, a generosa leitura do mano António [de Castro Caeiro] rasga sentidos nas mais imprevistas direcções para acabar empurrando-nos em apneia para a palavra, para a amizade, para a vida. Sei que são apenas mais três vezes que as palavras-lugar-comum se escrevem, palavra, amizade, vida, mas nestas circunstâncias afianço que são a matéria dos caboucos deste livro. Tem mais. «Somos Contemporâneos do Impossível» vive do poema e para o poema, nele mergulha raízes e ergue ramos. As imagens torrenciais configuram a geografia movediça da infância e a respiração das casas erguidas ou almejadas, as ruínas dos amores e a arquitectura de existências esperando corpo, mas tudo parte ou regressa ao poema, aqui pura chama, ali relato de oficina, umas vezes cais outras navio. Recolho-me ao meu lugar: «o predador de sombras é também refém/ da vida projectada dos outros/ o estranho que se detém perante a fotografia abandonada/ que lhe dá/ e ganha vida/ enquanto novo sujeito no destino aleatório/ da contemplação»

Arquivo, Leiria, 15 Dezembro

Esta livraria consegue o milagre de inventar quem venha ouvir, em fim de tarde de sexta-feira, três maduros a ler poemas na companhia do contrabaixo. Parece impossível. Não é: somos contemporâneos da Arquivo.

20 Dez 2017

Ira em âmbar

Hoje Macau, 25 Novembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]prende-se tanto nas páginas de Hoje. Como se lavrada em braille, sigo cada linha da crónica do mano António [de Castro Caeiro], que anuncia erôs como das mais difíceis palavras antigas de trazer para a língua do agora mesmo. Ainda que estes nossos dias vivam na tensão eléctrica de permanente erotização (a satisfazer em bens e serviços mais adiante e acima, em preço e requinte). Escava ele na etimologia para encontrar fragmento de ira, que em sentido mais paisagístico se traduz em estado de alma, dominadora disposição: uma ansiedade na qual estamos imersos, borboleta no âmbar. Basta desejar um bater de asas para que a tempestade venha a acontecer algures e no futuro. «Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho.» Sem apelo nem agravo, encontro-me mergulhado em uma raiva constitucional: preciso furiosamente de mais aquele verso, do naco de prosa, de um corpus, da espessura do volume, da forma da qual desembutir o livro. «O erôs descreve esta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento.» Tomo nota: está na hora de escolher a ausência que mais me convém.

Cervantes, Lisboa, 30 Novembro

No início dos anos 1990, em Barcarrota, Badajoz, uma picareta rompeu parede e papel. Na sua carne, uma casa escondia biblioteca clandestina de heterodoxias listadas inquisições várias: diálogos com textos sagrados, indicações práticas de magia, tratado de exorcismos, manuscrito de conteúdo sexual, a mítica Oração da Emparedada, em português, além de um exemplar da jóia da literatura picaresca dos vizinhos, esse Lazarillo de Tormes que não deixou ainda de picar o desejo. A picareta trazia para a luz do presente este pedaço oculto do século XVI, ainda que para tanto tenha rompido o «Alborayque», um libelo contra os convertidos que descreve o cavalo de Maomé como maior que uma mula, mas mais pequeno que o cavalo, mantendo o rosto deste, olhos de homem, orelhas de cão, corpo de boi, uma perna de águia, outra de homem, outra de leão sem unhas, a ponta da cauda uma cabeça de garça, sendo as rédeas espadas e o freio de fogo ardente… Quem seria o leitor primeiro desta biblioteca com orelhas de e pernas de e cabeça de e olhos de, toda feita de papel ardente? Dos exemplares fac-similados desta Biblioteca de Bancarrota partem histórias em todas as direcções.

CCB, Lisboa, 2 Dezembro

Chegou e descalçou-se, apesar do frio. Estava em casa. Talvez sobrasse assoalhada em demasia no palco do grande auditório, mas Patricia Barber abriu nele casa. Os pés nus não me causaram grande incómodo, ao contrário de uns berros de incitamento, que também gritavam à-vontade, mas no contexto arranharam-me o espírito. Não terá sido o mais conceptual dos concertos, limitando-se a uma fluidez que nos varreu com sucessivas marés, das que só elas sabem ser ao sabor da lua. Saltitou por vários álbuns, no nexo jazzístico de esticar relações onde não as havia, tempo, pacing, key, disse algures que as escolhas só a isso obedeciam. A voz de Barber estende-nos um veludo sobre o qual apetece caminhar ao encontros dos versos, desconcertantes como a só a poesia sabe ser ao sabor das luas. Convivo amiúde com o seu Mythologies, do qual nos ofereceu The Moon, entre outros. Confessou, de pés descalços, que gostava de brincar de deus. Apresentava canção em que deus se apaixonava pelo artista. Fiquei com ideia de era um dos temas que escreveu para Renée Fleming, mas não tenho a certeza. Conservo a ideia, de um deus compositor que propõe contrato ao cantor: «“If I give you music, will you give me form?” As gods always want mortal form.» O ponto final, já em encore, foi uma versão calorosamente cool de Light my fire, dos The Doors. A chama esteve, ainda assim, ali por casa. Ainda voltou, para apanhar os sapatos. (Foto de Jammi York).

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

A princípio rimo-nos, como não? Pensando bem, a melhor forma de embravecimento, talvez fosse de chorar. No Spam Cartoon de há uma semana (https://www.youtube.com/watch?v=vDP66GuyLGs) púnhamos em campo os presidentes dos três grandes, em jogo amigável, mas com um árbitro na vez de bola. Parecia-nos singelo retrato da situação destes últimos meses, pouco mais. Eis que a realidade nos surpreendeu com pontapé nas canelas. A Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), liderada por Luciano Gonçalves, apresentou queixa contra a RTP à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) por causa deste nosso «vídeo animado satírico exibido na RTP 3». Segundo os senhores do apito, apelávamos à violência! De que cor será a ironia, amarelo vómito ou vermelho directo?

Sala Mário Viegas, São Luiz, Lisboa, 6 Dezembro

O acaso, senhor das coincidências, foi de lanterninha sentar-me no lugar D13. O treze soergue-se vezes sem conta bom miradouro, vistas a perder. Uma sala no sopé de muro alto e cinzento, doméstica sala de jantar no sopé do betão. O deus dos movimentos, Tiago [Guedes], projecta estática entre cenas avisando-nos que entrámos em atmosfera eléctrica e que podemos bem ser atingidos por impulso desvairado. Isto da estática tem mais que se lhe diga, e contém ciência sobre equilíbrios e forças. Não deixaremos de ver, na cena domesticada, esse jogo que empurrará a Isabel [Abreu] contra o Tonan Quito e o Romeu Costa, sustendo-se e sustentando-se. E a espetar farpas nas frases uns dos outros, interrompendo-se para se agarrar, para não se deixar cair para trás. Tempo, pacing, key. Em «Órfãos», Dennis Kelly desenvolve um sistema de não-ditos, quase-ditos, mal-ditos, um texto de aflitos que suscita escadas sempre a subir ou a descer em direcção ao horizonte em que cada um se vai desvelando, mas invariavelmente aquém do tudo dito. O acontecimento que justifica o sangue vai sendo talhado à navalha pelo refazer rarefeito do passado pelas palavras e pelo corpo dos autores. A violência, tal qual a verdade, apenas sugerida, imaginada. O resultado? Feridas, que tudo se resume a família e, portanto, a sangue. No coração da noite, o corpo do teatro transborda de força. A cidade, como o Mário [W.] na peça, finge que dorme.

13 Dez 2017

Fragmentos de políptico

Centro Português de Surrealismo, Famalicão, 25 Novembro

Mário Cesariny

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ndam aos trabalhões em mim, feito caixa de bolos classic nouveau da Confeitaria Moderna, as palavras de Cesariny dirigidas, em 1958, «Aos Escritores Por Causa do Que Se Lê», ditas em toada Precipício para a nação friorenta. E ausente, já agora. (A nação parece-me sempre ausente e resfriada.) «Viver o fragmento tem sido a condição sem qual não de todos nós, portugueses. Já temos o fragmento de editor, o fragmento de leitor e o fragmento de biblioteca. Herdámos (cito-o de opiniões abalizadas): o melhor fragmento de barroco, o melhor fragmento de freira, o melhor fragmento de políptico e o melhor fragmento de marquês, o fragmento de doutor e o fragmento de morto. Neste fragmento perpétuo, só mais um fragmento podia efectivamente introduzir-se, patentear-se, afirmar: o fragmento de liberdade.»

E continua em vórtice delirante até aos mais conhecidos versos de «Fragmento de Poema»: «Autoridade é do que é autor./ Só a autoridade confere autoridade./ A autoridade não é uma quantidade./ Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade./ (…) Liberdade/ A liberdade conhece-se pelo seu fulgor./ Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só./ Mas são mais revérbero no mesmo fulgor./ (…) Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz./ Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá um escravo./ AUTORIDADE E LIBERDADE SÃO UMA E A MESMA COISA» Vendidas ou esquecidas as heranças, migalhas de doce conventual (jesuítas, barrinhas de freira, fidalguinhos e viúvas, são gonçalos), teimamos em não subir ao palco deste teatro de inexpugnável autoridade. Ainda que seja total a disponibilidade para selfies e entrevistas avulso. Sorriso sobre a mão (ver foto de Eduardo Tomé nesta página, mote visual dos encontros deste ano).

Tanoeiro, Famalicão, 25 Novembro

O animado grupo no qual pontificava o abade Perfecto [E. Cuadrado], oficiante dos mais prometaicos, órficos, dionisíacos, báquicos e minoritários cultos, escancarou com delicadeza esta conhecida porta pela qual se pode, em sabendo, aceder ao sagrado. Perfecto garantiu, por via de obscuros comércios com as divindades, uma eternidade de leituras e prazeres. Não disse que podia começar logo ali. O ritual como que começa com as papas de sarrabulho, embora haja por ali queijos e presuntos, além de outros despiciendos. Tudo preliminares, digo atrasos, para o esplendor que chega com os sublimes rojões à minhota. Pode a refeição prosseguir com mais detalhes, estes edulcorados, mas o fim de boca, digo, mundo, incendeia-se com velha aguardente Moura Basto. Surgindo das trevas e do frio em versão completa e sem variações (tarrenego!), com tripa enfarinhada e sangue cozido, rojões evoca como nenhum outro prato a terra. Em telúrica dimensão: esplendor e danação.

Metro, Lisboa, 28 Novembro

Jamais terei perdido autocarro, comboio, avião, enfim, hora de viagem marcada. Prazos, sim, mais que muitos, azarinho. Não por gosto, apenas pela sobreposição das urgências, bebinca seria, se fosse doce, com distendidas camadas de veludo amanteigado e canela e pitada de preguiça. Ou por redefinição de prioridades, afinal a liberdade que resulta da autoridade. Se, suspiro, fosse autor dos meus dias oferecia-me esta liberdade, inspiro. Ainda não foi desta que perdi comboio, mas por um triz. Da Horta [Seca] disto duas paragens de Apolónia, a Santa. Aplicava ao caminho a sacrossanta meia-hora, aquela que permite chegar minutos antes a qualquer lugar da minha casidade, Lisboa. Estava mais que bem, se não me tivera enganado e tomasse rumo ao Cais do Sodré. Ri-me, de tão cansado, atei paralelos e meridianos em nó. Voltei atrás, havia tempo. A voz altifalanta da nova carruagem insistia em dizer Cais do Sodré, não sei se com artigo, mas quem se lembra dos Sodré, bem que preferia Remolares, mas nem os lugares conservam os nomes, quanto mais os nomes vestirem lugares. Confirmada a asneira no cais de chegada, soltei palavrão feito altifalante. Não contente com falhar por virgem vez o metro que trago tatuado, dupliquei o engano em aposta de casino. Tive sorte, apanhei o comboio final, rumo ao norte, como convém. Mas ficou uma marca, traço de carril (embrulhado, para levar).

Famalicão, 29 Novembro

A mais madrugadora inauguração está prestes a acontecer, pelas 9h40, com a manhã pendurada em alto frio e luz traçadora do mais ínfimo contorno, se não vemos montanhas, há que procurá-las. Trôpego, tropeço em grupo, soltando sussurros em ladainha, de olhos disparados às A4 devidamente coloridas, presas na parede abandonada. São folhas de mortos, distribuídas com parcimónia pelo comércio, mas também afixadas perto do informal mercado das hortaliças. As preces são mero reconhecimento dos que partiram, não vislumbrei surpresa, nem consolo, tão só constatação de recorrente normalidade. Mais um rio à beira do rio. Se adiante merecer campa, fica dito, preferia grelos na vez de lírios. Atenção: sonho-os postos à mão e viçosos, colhidos em hora certa, alimentícios e pouco decorativos. Adiante, ainda que o tema, não parecendo, pede frescura. Desafiado pelo António [Gonçalves], convocámos treze ilustradores treze para outros tantos pontos museológicos de interesse nesta Vila Nova, onde se morre e se nasce. Produzimos ferramenta em formato livro que usa a ilustração para recolher visões de temas tão díspares como o automóvel ou a cerâmica, o surrealismo ou Camilo para dizer que o conjunto compõe identidade. Frágil como o esquecimento ou elástica que nem rede, depende de cada qual. Empurrado pelo azul da Cristina Lamego, na capa e prolongado com gesto puxando fio do tecido da Bárbara R. na contracapa, falei de frescura. Os trabalhos continuaram, afinal a inauguração abria o encontro da rede de museus, mas que sentido para frescura ficou a ecoar, o minhoto de roupa branca, o de limpeza, vigor ou aragem fresca? Temo que tenha sido o abrasileirado. Azarinho, azarou.

Horta Seca, Lisboa, 30 Novembro

Chega. Basta de arrepios ao ver desfilar no telemóvel os números dos que já não atendem e que não consigo apagar. Digam lá que faz parte da vidinha, digam a ver se interessa, semana sim, semana sim, este obituar de braço amparando cabeça contra a parede para ver e esconder lágrimas escorrer na calçada. Digam. Que outro punk teve sorriso como este? O Zé Pedro (1956-2017) fez da raiva, de comum desviver, do supremo desatino uma forma de resistir, de subir ao palco e tocar. Contra tudo, contra ninguém. Desdobrou-se em generosidade, em acolhimento, em entrega ao domicílio. Dasse! Quem como ele? O Sérgio [Godinho] viu bem que só neste país se diz neste país. Ora só neste país se grita, verso fora, no funeral do próprio estadista: Soares é fixe! Só este país se revê em modo consensual no amargo sorriso do punk mais querido. Punk querido? Só neste país.

7 Dez 2017

À queima-roupa

Horta Seca, Lisboa, 16 Novembro

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oram cinquenta e duas as vezes que me sentei a olhar para os dias como se merecessem a pena, as penas. Quando o Carlos [Morais José] me convidou, logo ali à mesa me arrependi. Acabava de aceitar mais um afazer, de hora marcada, outra linha que ameaçava morte, ainda que fosse a de cada dia, daquelas que nos desfazem em desculpas. Ando feito num oito, às voltas com o tempo, que nunca soube gerir, percebo melhor agora graças a este «diário». A preguiça já não se chega a mim, pelo menos sem culpa. Para quê complicar mais? Achei que o demovia com a ideia do diário de um editor – se nem o livro interessa, quanto mais quem o ergue? O Carlos revelou-se temerário ou perdulário, à irónica maneira de um editor. Ano volvido, a cadência da crónica não deixa de perturbar a agenda, a julgar pelos plins de e-mails por responder, das chamadas não atendidas, dos sms que piscam, além das interrupções em contínuo, das travagens bruscas, das multas por excesso, das brigas domésticas, dos prazos perdidos, das cobranças difíceis. Mas a paragem obrigatória acrescenta perna, ampara que nem bengala. Os cinquenta e dois espelhos (semanas ou anos?) raramente me devolveram imagem nítida, nem sei se esticaram a pele prometida na primeira vez. Aliás, a infância explica-nos que as primeiras jamais se repetem, serão sempre segundas e sucessivas, em escada que pode subir ou descer. Ainda assim, o exercício dá-me jeito, ajuda a adivinhar o passado. E a t(r)emer o futuro.

 

Casa da Imprensa, Lisboa, 20 Novembro

Indispensável na geometria social do livro, o cerimonial do lançamento esgota-se, demasiadas vezes, na inutilidade do cumprir calendário, entalado entre a soberana indiferença dos media e a distracção dos interessados. Quando acontece de facto, há uma fresca verdade na primeva e disseminadora leitura do apresentador, e outra mais pesada no porte do autor sofrendo efeitos das presenças e opiniões. Não desprezemos, contudo, a potência dos detalhes significativos. Nesta vez do António [Araújo], que crepusculou agitado, nervoso, saudando pelo nome e em alta voz cada um dos que iam chegando, deu-se em passagem mínima do brilhante texto do professor Jorge Calado, que espelha na perfeição a densidade do ensaio do António, até na emoção com que temperou a objectividade. «Consciência de SituaçãoUm Ensaio sobre The Falling Man é o abstract perfeito de um evento que VERDADEIRAMENTE mudou o mundo e a vida da humanidade. Porquê uma fotografia? Porquê esta fotografia? Nas palavras lapidares de António Araújo, o 9/11 ‘reinstaurou o primado da fotografia como elemento da memória visual’. Por várias razões, entre as quais o facto da fotografia – ao contrário das imagens em movimento do vídeo e do cinema – ser a arte contemplativa do silêncio. Nestas imagens não se ouvem as sirenes e apitos de carros de polícia, bombeiros e ambulâncias, muito menos o estrondo medonho do impacto dos ‘cadáveres iminentes’ (para usar a expressão terrível do autor) no Ground Zero.» Continuou invocando e multiplicando, na sagrada e inteligente maneira de ler como quem amanha terra, semeando e regando, até que solta: «Tal como o precioso ensaio de António Araújo que hoje aqui nos reúne, o museu e zonas adjacentes [do Ground Zero] ajudam a exorcizar as memórias da tragédia que abriu o primeiro século deste novo milénio que – tenho a certeza – ficará por concluir.» Quantos terão dado pela profecia apocalíptica? As razões, conseguidas depois, não têm a ver com Trump ou outros frutos da estupidez, mas com a inteligência artificial…

 

Necessidades, Lisboa, 21 Novembro

Apresentação, na Biblioteca da Rainha, recuperada com cuidado gosto, de outro volume da Colecção Fósforo, evocando em sequência outra revolução, a Russa de 1917, a partir do testemunho educado e aventuroso de Batalha Reis, representante diplomático na convulsão. Curiosa coincidência, esta, de que só me dou conta na mesa. Já não me escapou, na Introdução de Pedro Aires Oliveira, a este «Dos Romanov a Lenine – Relatórios de Jaime Batalha Reis Sobre a Sua Saída da Rússia em 1918», a referência a Corto Maltese, feito sinónimo de aventura riscada sobre mapas e História. Noto a manifesta satisfação da Margarida [Lages] com isso, a quem esta edição tudo deve. Mas esqueci-me de apontar o foco a Rafael Bordalo Pinheiro, que fez a banda desenhada portuguesa dar primeiros passos com famosa «reportagem» às Conferências do Casino, de que Batalha Reis foi instigador. Apesar de estudos recentes sobre alguns aspectos da sua acção, continua a faltar-nos biografia compreensiva de tão fascinante quanto literária figura. Por quê esta alergia nacional à biografia?

 

Bairro, Lisboa, 21 Novembro

Eis-me atirado, de copo na mão, ali para as Galegas das escadinhas a discutir, outro modo de subir ou descer. O «Relvas morreu» da mensagem soltou asneiras que ecoam, desde então, penteando os paralelepípedos da rua do Notícias, ou a do Lisboa, e a avenida do Se7e, sem esquecer a do Inimigo. Teve uma vida de papel, muito livre e frágil, mas capaz de cortar cerce. Lisboa-a-puta não se reconhecerá mais na noite de ganga com que a pintou, cenário maior de deambulações a pincel. O virtuoso-a-dias (vá Fernando, que o parêntesis está sempre a pedir um fim: 1954-2017) meteu-se todo na bd, apenas outra forma desenhada de dizer crónica, muito para além da fronteira dos géneros. Também deu um salto ao passado procurar anti-heróis, dos perdidos que definem contornos ou daqueles que sabem andar na linha do horizonte. Fez o que lhe apeteceu confundindo bonecos e vida, insuflando-a nas personagens, desenhando a sua a preto e branco, mesmo quando coloria. Viajou e ficou quieto. Morou em barco atracado, cultivou o mau feitio, inventou o verbo arriscar. Foi-lhe madrasta, a vida. Não merecia, ele que a tratou com o devido despeito. Até à vista, meu! (Desenho do próprio na página).

 

Centro Português de Surrealismo, Famalicão, 25 Novembro

Subi a Cesariny, aos Encontros XI, a pretexto de «Afinal o que importa não é a literatura», a hora inteira em que os No Precipício Era o Verbo interpretaram a grande altura os versos da ‘máquina de passar vidro colorido’. Ainda vibro com o diálogo de fragmentos de autoridade e liberdade entre os manos Zé [Anjos] e Carlos [Barretto]. Estou em crer que o próprio se espantaria.

Tanto espanto à mão de semear. A voz do João Peste cavalgando a energia do Ricardo Martins, no Cru da véspera; os versos «burgueses somos nós todos/ou ainda menos» atirados ao ar no cabeleireiro, no talho, no mercado, no carrossel pelo trio Isaque [Ferreira], João [Rios] e Rui [Spranger], mas sobretudo a montra realista da Confeitaria Moderna: em fundo de cortiça, um pássaro amarelo a conduzir uma carroça, macaco anão a subir carroça cheia de ovelhas gigantes, e, avulso, animais indistinguíveis a olho nu. Além dos burros, inúmeros e de tamanhos diversos.

29 Nov 2017

Buracos do mundo

CCB, Lisboa, 9 de Novembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssisto deliciado ao Obra Aberta da semana (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/), com páginas folheadas pelos nómadas Patrícia Portela e Mário Gomes. Ambos me pareceram tímidos, mas de modos distintos. O Mário pensa cada frase, com a dicção marcando ritmos que o vão deixando cair em murmúrio quase inaudível, até se acomodar no silêncio. Mesmo quando fala do seu Arno Schmidt com paixão, que sem ela não se alimenta a disciplina e o esforço necessários para desafio deste nível. O tom do alemão de Schmidt, sendo respeitado ao ínfimo, foi transposto para um português tão elegante que quase o torna transparente. Mas plantou na conversa outros autores, todos do continente americano, e temas como este de que a ferramenta pode estar na origem da linguagem. Tomo nota para saber mais, para procurar livros, afinal o objectivo último do programa. A Patrícia parece querer correr contra o vento, como personagem de um dos seus contos de «Dias Úteis». Em cada ideia esconde-se uma história e o contrário não será muito diferente. Discorre sobre sabedoria e infância de tal modo tal que me parece ter alcançado essa suave mistura. Diz que não é das escritas, mas das artes performativas, e talvez por isso os seus livros possuam uma força lúdica extraordinária e pulsem em múltiplos detalhes. Nota ou epígrafe resulta em pista que importa seguir. Em «Dias Úteis», cada conto diz de maneira diferente o buraco do mundo, escondendo-o no nevoeiro de metáforas que parecem ora sonhos, ora pesadelos, ora ambos. Para este lusco-fusco, atravessou também o Atlântico para recolher as matizes do Brasil de Clarisse Lispector e Machado de Assis e de um João Gilberto Noll que fiquei com muita vontade de visitar, por causa do seu «erotismo marxista»: quando nada temos, resta-nos ainda o corpo. Lá pelo meio, aproveitou para me chamar panda, ironizando sobre a ameaça que paira sobre certo tipo de edição e editor. Ganhei assim novo argumento para fugir da inevitável dieta. Mais importante: contou da importância que a Bedeteca de Lisboa teve nos seus hábitos de leitura. Uma biblioteca, afinal, custa a matar.

Casa da Cultura, Setúbal, 10 Novembro

Sendo de cultura, uma casa desdobra-se sem fim. Apanho as cidades de Miguel Galano e fico a pairar em «París/Madrid/Lisboa». Gostava de escrever literalmente, para descrever a libertação da gravidade por via do estado em que me deixa a contemplação desta pintura. Parece figurativa, e até concreta, se pensarmos que são lugares, edifícios, esquinas e paredes com nome, mas as formas desfazem perante os nossos olhos para revelarem o buraco do mundo. O nevoeiro da melancolia toma a cidade, a luz perde a quotidiana batalha para o negrume e as arestas do mundo ganham ternas suavidades. São paisagens que agora suam a humanidade de quem os habita. Ou então sólidos geométricos que nos falam, por exemplo, de solidão. Parroquia de San José sussurra-me em baixo contínuo o quanto de espírito se esconde na rica escuridão.

Fado na Mouraria (algures nesta página) canta-me alegrias que se podem colher na solidão.

Bar A Barraca, Lisboa, 15 Novembro

Alguns livros são peregrinos. Saltámos o Verão para só agora apresentar a viagem mais recente do Luís [Brito]: «Oi?». Como explicou o Paulo [José Miranda], que o sabe não apenas de ouvido, na sua poderosa apresentação, a expressão comummente quer dizer «não entendi». Os muitos brasis não são matéria óbvia, mas por ser viagem, portanto com o autor em plena transformação, acontecem por aqui acessos arrepiantes aos buracos do mundo. Não deixa de me surpreender a frescura dos seus relatos, nos quais viajamos tanto nele como nos lugares por onde vai vivendo. Isto sem ignorar a perspicaz percussão do seu olhar. Sim, ele toca os seres e as coisas como o hang drum, que agora pratica com arte, para lhes retirar inesperadas vozes e perspectivas, enfim, existências. Não revelo grande coisa se o autor não beijou apenas: apaixonou-se. Diz-se já longe do texto. Talvez esteja na altura de voltar a partir.

Teatro do Bairro, Lisboa, 18 Novembro

Precisava ser três ou mais para saltar de Braga a Silves, sem esquecer o concerto dos Mão Morta, que celebra, em Lisboa, os 25 anos do «Mutantes S.21». Também por outras tristezas, mal entendidos e ridicularias enovelo-me e acabo, noite dentro, no lançamento de «Se Houvesse Vida Aqui», EP dos «Não Simão», a banda do Simão [Palmeirim], do Pedro [Fernandes] e do José [Anjos], ainda para mais hoje acompanhados, além dos sopros da Ana Raquel e do Marco Alves, pelo Carlos [Barretto] e pela Madalena Palmeirim. A festa deste palco foi contagiante. Aprecio a riqueza de ideias que se desprende das suas canções e diverte-me muito o surrealismo da lírica, mesmo quando negra. Em «Catarse ao mar» há quem se equilibra na linha do horizonte, que puxa cabos para anunciar réstias de alento e aproveitamentos do vento. Rimas que me dão jeito.

Dona Maria, Lisboa, 19 Novembro

Matiné das antigas com «Sopro», a mais comovente das homenagens ao Teatro a que me foi dado assistir. Inspirada e inspiradora. Ecoarão por muitos dias algumas das frases, das ideias, das imagens. Sobre um velho tabuado resgatado ao armazém, deambulam personagens/actrizes insufladas pela ponto, Cristina Vidal. A peça nasce dela, anda à sua volta, sob sua orquestração, que representa a encenação do director do seu teatro, que doravante será o seu director. Vinda das sombras, só ouviremos a voz da pálida ponto no exacto final da peça. Tudo assenta, portanto, em nada: vento e simulação. Mas, como a respiração, sem esse sopro não corre sangue, não bate coração, não oxigena cérebro. Regidos com extrema inteligência e enorme sensibilidade, os actores (a enorme Isabel [Abreu], o João Pedro Vaz e o Vitor Roriz, a Beatriz Brás e a Sofia Dias, além da Cristina, claro) incham e desincham para nos virar o palco do avesso e dar a ver as vísceras, a frágil humanidade em que tudo assenta. Derradeiro espelho da vida. Tudo pode, a qualquer momento, falhar, mas acontecerá lutando contra a morte. A cada momento nos é dada a hipótese de escolha. Pela vida. O destino não tem ponto.

22 Nov 2017

Girar Sobre o Eixo

Santa Bárbara, Lisboa, 6 Novembro

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]ão deixou ainda de dar voltas, não sei se a minha vida, se a vida à volta. Talvez por isso, este livro e não outro, me preencha. Pequeno formato, deitado à italiana, com plastificação baça na capa, anuncia um «Circle of Life» e contém umas vinte fotos do Flávio [Andrade]. (Podem ser vistas aqui https://www.flavioandrade.com/circle%20of%20life.html, mas sem a ordem que é a matéria do livro…) Um engenho explosivo faz de cada foto cruzamento de sentidos, cujo nexo se descobre apenas na foto a seguir, aqui por via da luz, ali da textura, além do motivo, mais além do movimento, das sombras, da perspectiva, do tema, da humana figura. Findo um percurso, logo a mão e o olhar nos exigem novo. Versos de poema visual, as subtilezas encaminham-nos na direcção que estivermos dispostos a percorrer. É uma cidade (há outra além de Lisboa?) percorrida às três pancadas: start, middle e end, ou como ecoa nestas ruas: partida, largada e fugida. Mais uma voltinha no carrocel que começa nuvem e acaba mar?

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro

A Jaguatirica, editora do Rio, abriu a sua colecção Lusofonias com as cuidadas edições de «Gnaisse», do Luís [Carmelo], e «Auto-retratos», do Paulo [José Miranda]. Não contente com isso, atravessou de um pulo o Atlântico para se transfigurar em Gato Bravo, escolhendo a Abysmo galeria para se apresentar de peito aberto e a poesia de Luís Filipe Cristovão e Fernando Machado Silva. Auguri!

 

Santa Bárbara, Lisboa, 8 Novembro

Arrasto os pés, maneira de sacudir o pó do dia e reparo, apesar da desatenção, que perdi um dente, meio braço, medas de cabelo. Certos metais, com o passar dos dias e das mãos, ganham o que parece brilho, mas afinal se faz mancha baça, ilha de cor ausente. Por estes dias parvos, devia desligar a sensibilidade. Se de súbito fiquei invisível, pulo ou desfaço-me na racha da parede? Se me insultam com a melhor das intenções, respondo ou agradeço a atenção? Quando próximos sobem ao ringue do disparate, visto calções ou ponho estetoscópio? Se o amigo acena entredentes a distância de um adeus, fingindo o contrário, corro ao encontro ou sento-me pesadamente? Se percebo finalmente que o meu lugar deixou de ser o habitual, exijo que se repita a história ou bebo um gole para ajudar a engolir?

 

300° /RTP3, Lisboa, 9 de Novembro

Assusto-me: minuto a minuto passaram décadas. Spam Cartoon regressa à antena, agora da RTP, sempre às quintas, primeiro no seu ambiente natural, em espaço informativo (e nobre) na 3, e depois na 1, algures perto do humor noctívago. O filme não chega ao minuto, mas o esforço para pôr a mexer o comentário humorístico tradicionalmente fixo na página, esse dura há cerca de dez anos – a começo meu e do André [Carrilho], logo depois acompanhados pela Cristina [Sampaio], que já havia tentado pôr a mexer as suas ilustrações, o João [Fazenda], todos no desenho, e o José Manuel [Condeixa], na sonorização. O que nos parecia óbvio, que as novas plataformas pediam outros dinamismos nos modos de desenhar a opinião, esbarrou com a realidade do sempiterno preconceito, da gorda preguiça, da mera desatenção. Com a honrosa excepção do António José Teixeira que tem lutado tanto como nós e que viu, há cerca de um ano, a sua encomenda para assinalar a tomada de posse de Trump tornar-se viral. Como em álbum de recortes, já manchado pelo ácido e o labor dos lepisma saccharina, desculpem, peixinhos-de-prata, saltito pelos filmes que fomos fazendo nas diferentes circunstâncias (https://www.spamcartoon.com/) e ainda me divirto com as metáforas e os figurões (e com a memória das discussões). Talvez tenha chegado a hora de disparatar um pouco mais.

Coincidência: pela manhã, mergulhei na cave com vista (Lisboa tem destes paradoxos) que, em tempos, foi o estúdio do José Vilhena. Controlei-me, por ser assunto sério, e não desatei aos pulos no meio dos despojos de uma batalha ainda não completamente vencida pelo tempo. A minha adolescência não teria sido a mesma sem Vilhena. E temo até que a minha admiração pelo seu trabalho de lepisma saccharina da nação me tenha custado, há décadas, o periclitante lugar de cronista da revista Ler. Cometi o erro de incluir «A Hora da Verdade» na lista dos livros que explicavam os dias, não apenas os da ditadura, mas os da ditamole. O tema? «Procurando não pecar por exagero derrotista vou tentar analisar a situação do país em matéria de instalações sanitárias, mas com objectividade e utilizando, claro, um ponto de vista sócio-económico como convém a qualquer pessoa que se preza ao abordar assuntos sérios.» Que filme escreveria pondo o Trumpalhão no lugar de protagonista (nesta página vai aquele que André Carrilho desenhou para este nosso primeiro filme)?

 

Casa da Cultura, Setúbal, 10 Novembro

Ainda antes do oficial atiramento na capital, fomos plantar prosa um pouco mais a sul, com o Bruno [Portela] e o Zé Teófilo [Duarte], tomando por pretexto o rutilante «Consciência de Situação – Um Ensaio sobre The Falling Man», do António [Araújo]. O fotojornalismo e a força simbólica da imagem, ou a estetização do horror, foram apenas alguns dos temas abordados em conversa viva e solta. Em cada tema que desenvolve, o António oferece inacreditável súmula de informação, abrindo na passada reflexões nos mais diversos sentidos e direcções, passe o trocadilho e a rima. Neste, sobre o 11/9, está muito presente o enigma da salvação com o que contém de perturbador: os jumpers limitaram-se a fugir ou tomaram corajosa e reflectida decisão? Quanto de humano há nesta subtil diferença…

O seu ritmo de trabalho fascina-me, crónico desorganizado. No espaço de um ano, foram três os ensaios dados à estampa em livro, e sabe-se lá quantos mais terá prontos a sair do forno. «Matar o Salazar» (ed. Tinta-da-China) escalpeliza «O Atentado de Julho de 1937», compondo a síntese de referência sobre este notável episódio. E sublinhando o que me parece fulcral: mais do que conspiração de forças políticas, capitaneadas pelos anarquistas, com apoio de militantes comunistas de base, tratou-se de um gesto de desespero dos estratos mais baixos da sociedade de então. E que tornou patente o supremo paroquialismo da nação, com uma das polícias a condenar inocentes, outra a descobrir, em conflito aberto, os verdadeiros autores, e ambas internamente investigadas sem consequências. Só a propaganda soube aproveitar o pretexto para pintar aura de santo inoxidável no ditador. Tudo perante a passividade dos jornalistas e do arremedo da opinião pública. António não esconde um dos seus amores e trata de afixar melancólico retrato de duas lisboas: a burguesa e a popular. Como que passeando pelas suas ruas, surge ainda o libertário Emídio Santana, impressiva figura com a qual também me cruzei e de quem aprendi o valor explosivo da liberdade.

15 Nov 2017

Musas sem metafísica

Horta Seca, Lisboa, 27 Outubro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m indivíduo chega exaurido, ainda que ao começo dos dias, cada manhã travestida de etapa intermédia na escalada dos himalaias. Desconsigo responder às solicitações, que logo florescem até ganhar as maduras cores da urgência. E depois vai chegando esta sazão das datas redondas, com amigo atrás de amigo a propor-se apreciar, qualificar, classificar, ajuizar, julgar, analisar, considerar, rever, medir, mensurar, aquilatar, ponderar, examinar, aferir pedaços de vida.

Tenho andado com o meio século do Zé Luiz [Tavares] iluminado pela melancolia, que não falho de humor. «Do cimo dos telhados vejo/ coisas atiradas sobre o mundo:/ um livro a arder num incêndio/ valente. Muita merda a passar/ sob as pontes. (Alguma/ é a poesia que se pode). // Uma bicicleta ergue-se entre/ o escuro e os meus dentes –/ é a musa sem metafísica, e leva/ o mundo no guiador. (Agora é bem/preciso arrojo para se ser poeta/ sem a almofada do divino).» Ando, portanto, de bicicleta entre o escuro e os meus dentes, aliás pouco claros – coisas da vida.

Vai daí o Nuno [Saraiva], por causa da exposição que o Festival de BD da Amadora lhe dedica por estes dias, deixa cair a banalidade de estar a celebrar 30 anos de carreira, palavra estranha em quem terá sempre a idade da adolescência. Contém trajectória e correria, vereda e linha de autocarros, mas não soa bem se aplicada a profissões que não parecem trabalho. Conhecemo-nos há tantos incêndios e muitas luas. Pus-me a rever a LX Comics, primeira paragem da carreira que apanhámos lá para os lados de Alvalade a pensar no Bairro Alto, quando ainda era uma coisa e outra em nós. Folhear a velha revista deu-me belo motivo para procrastinar, arte que o Nuno pratica com afinco! Logo ali, o anti-herói, Ladislau, contava em preto e branco de contornos bem vincados, gesto tardo-Tardi, diria o outro, peripécias de uma cidade que se descobria hedonista e múltipla, com várias margens e outras tantas suburbanidades. O desenho das musas respirava óbvia, mas terna volúpia e terá sido por isso que o sugeri ao Júlio [Pinto] para o feliz casamento que pariu, nas páginas do Independente, a Filosofia de Ponta. Foi por aqui, neste sucesso transversal, que trouxe a bd para a idade adulta e para fora dos guetos onde tende a cair, que o Nuno se começou a agigantar novo Stuart. Ou velho Saraiva, que sei eu. Não por acaso, qualquer pretexto lhe serve para o homenagear (veja-se no desenho desta página, uma das muitas personagens que a Amadora reclama como suas). E hei-de ainda descobrir caricatura do Nuno a borra de café assinada Stuart. A colecção, que há anos enchi de imagens, velhas e novas, com o El Corte Inglés e que a Assírio & Alvim editou, a pretexto do Prémio Stuart de Desenho de Imprensa, finou-se quando preparávamos volume sobre o Saraiva. Este projecto, como outros, que desta palavra ambos gostamos, não ficará para sempre atrasado. Nele se perceberá que, como o velho mestre, parte da arte do Nuno está na recolha, agora com três décadas anos, das figuras que fazem cidade, que são a sua pele. A edição recente (Arranha-céus/EGEAC) do álbum para colorir, «Pintar as Festas», resume as folhas da alface tão frescas e exuberantes que o desenho dele vem tatuando nas mais recentes Festas da Cidade. Diz ele: «Um marujo guitarrista arranha uma guitarra-bacalhau. Um cantor disco-pop-xunga que en-canta no palco e que é elétrico na micro-sardinha e acústico no salpicão. Uma marchante toda moderna e cheia de genica, tatuada com andorinhas que parecem atrair algumas sósias tradicionais peças de cerâmica. Um DJ Pride com phones-manjericos, master dos pratos com sardinha e chouriça. Um marujo apaixonado pela peixeira que, por intuição lógica, lhe oferece um ramo de sardinhas.» Uma graça, que dá outra pincelada no seu mister, a que mistura os tempos, o real e o mito. Regressemos a anteontem, onde as figuras da modernidade se cruzavam de forma disléxico com o jargão de pensamento prêt-a-porter. Foi aquele retrato nosso de fim-de-século, delirante e sarcástico e prazeroso, que a Bedeteca de Lisboa quis celebrar, em 1996, dedicando a sua exposição inaugural à Filosofia de Ponta. Exaltávamos ainda a inextricável relação entre o texto e a imagem, afinal a matéria-prima da narrativa gráfica. Houve muito de exultação naqueles dias, naquela casa. Apesar de inúmeros incêndios e tristezas valentes. Acabei até como personagem em fulgurante bd do Nuno cujo tema outro não podia ser que os atrasos… e a cidade. Era episódio de projecto mais lato, cuja intenção era desvelar as muitas cidades que Lisboa esconde. Como que por acaso, na empresa mais recente, o folhetim com Ferreira Fernandes, que o DN publicou, também a capital se ergueu protagonista: Lisboa, Porto de Abrigo (no prelo, em versão aumentada). Do hoje mais visceral saltou o artista para aquele passado que não deixou nunca de regressar: o fado. Outra afinidade com o malquisto pintor das nuvens e das varinas, mas o Nuno amadureceu, procrastina um pouco menos e investiga bastante mais, tendo contribuído em muito para dar corpo a contornos sumidos das figuras e das histórias daquele género de melancolia meio gritada, meio chorada, por vezes até alegre. Setúbal, e o pretexto não foram as suas magníficas bocagianas personagens que viveram pelas ruas, dedicou-lhe, há um ano, uma primeira retrospectiva. Modesta, sem alcançar o preito que tarda, mas o país parece ter o atraso como fado. Alegro-me que a Amadora te tenha dado palco, quanto mais não seja porque as tuas figuras identitárias a vão encher de cor.

E afinal, o que são 30 anos na vida de um gajo?

8 Nov 2017

Corpos celestes

Horta Seca, Lisboa, 20 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hega no último minuto, enfunado de mares e acordes, de ventos e carnes e bravezas e terra, este «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Por continuar celebrando os cinquenta, desdobra-os para regalo de quem se dê ao esforço de andar descalço nas pedras de quase tantos poemas quantos anos de (muita) vida: «entre as sombras do recreio/ és tu que desces pelo meio/ de um mês de sol cheio// e como tudo o que nomeio/ vens de noites caladas/ duma solidão/ inda mais entranhada/ que ensina/ ao seco som da pancada// que morres porque vivo/ somes porque verme/ no meio das pedras/ que te sabem indemne// desamigado dos pasmos/ que sempre foram/ uma comprida conta/ no rosário da infância». Embrenhamo-nos no território do imponderável, guiados pelo metálico da voz que esculpe, como nenhuma outra, a golpes de navalha na carne da nossa língua materna.

Sabendo da relação do autor com a fotografia, chamámos à capa uma chapa do Flávio Andrade (que ilustra esta crónica), e que sinaliza bem as múltiplas sombras e direcções deste andamento. A estrada feita lugar-comum, mas ninguém por ela passa da mesma maneira. Toca-me mais fundo por ser esta a nossa primeira co-edição, disparada, com a Rosa de Porcelana, na direcção de Cabo Verde celeste. «Boa viáji!»

Escola de Mulheres, Clube Estefânia, Lisboa, 20 Outubro

Dia gordo, este, que acaba sob o signo da perturbação. Em vale desaguando no escuro, as cadeiras desenhavam as colinas que predispunham os corpos para experimentar o rio que aconteceu ali em baixo, mesmo à frente dos nossos olhos. O Nuno Moura respigou restos de vida a dois, amorosa, afectiva, conjugal, matrimonial. A Marta [Lapa] não procurou narrativa, antes deslaçou ainda mais as palavras, deu ao texto tratos de laboratório e dele extraiu, com a participação dos actores Margarida Cardeal e Vitor Alves da Silva, uma segunda voz para o fio musical do Pedro [Moura]. O combate virou dança. Ou terá sido o inverso. Passei dias mergulhado em pintura, talvez abstracta, homem e mulher a desdobrarem-se em músculo e suor, carne e espírito, consentimento e aversão, entrega e desapego, fuga e comunhão, relâmpago e monotonia. Leves e soltos, por instantes, para logo se fazerem de chumbo. Líquido, por força da temperatura, regressando à forma dos corpos, por via da palavra. Uma intensidade minimal de grande risco, onde cada peça de marcenaria encaixou, da luz ao trabalho dos actores, da orquestração das figuras à melodia. Há muito que não saía de um espectáculo* assim, desorientado, sem saber bem o que pensar. (*Escreveria experiência, se a palavra não tivesse sido roubada pelo marquetingue). Ainda não sei bem se gostei, mas isso interessa? Ah, tinha por título, de que desgostei, «AAC – Associação Amizade no Casamento». Sou homem casado, sei da amizade no casamento. Aprecio bastante o risco, como à mesa com ele.

Praça da Criatividade, Óbidos, 22 Outubro

No meio do desarranjo destes meses, contribuímos para a baderna do Folio com umas «rapidinhas», que as circunstâncias foram reduzindo a mínimos, mas cujo modelo gostaria de aprofundar: intervenções de 15 minutos, nas quais os autores, ou alguém por eles, se atrevem a extrair tema de um livro. E metidas a martelo na programação. Foi um ensaio, mas há que insistir em desenrascar outras formas de festivalar. Folia, mas melancólica, aconteceu na subida ao palco dos «Tomara Tu Ter uma Tia Assim (TTTTa)» para cantarmos loas ao desvario dos corpos. Sem copos, por razões que se não explicam.

Horta Seca, Lisboa, 23 Outubro

Desde sexta que, a cada pausa arrancada a ferros, me atiro a «Cento e Onze Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública Portuguesa» (ed. Afrontamento/RTP/Antena 3/Cultura FNAC). Com coordenação do Henrique Amaro e do Jorge Guerra e Paz, a lista começa em 1936, com duas marchas de Beatriz Costa, para marcar o início da Rádio Pública, e segue até Capitão Fausto Tem Os Dias Contados, do ano passado. Estrutura e desenho simples, mas apetecível: capa do disco, comentário ao lado, ficha técnica, conjunto devidamente acompanhado por cronologia, pequenos textos de enquadramento e índices. Que mais precisamos para o deleite? Da rede, além da rádio. As listas possuem uma dinâmica curiosa: exigem logo opinião, artistas que faltam, trabalhos que podiam ser outros, discussão de critérios, etecetera. Nenhuma será perfeita, mas esta apresenta-se de talhe bem equilibrado, nos gostos, estilos, épocas e formatos. Oferece matéria para desilusões, que o afecto adolescente não é dos melhores críticos. Há rugas, claro, mas serão de expressão. Podemos ler as capas só por si, a ver se o que sobrou ainda diz bem ontem ou se desfez em nada. Mas serve sobretudo para revisitações e até descobertas. Diz-me ao ouvido que ter a minha idade pode ser consolo. Quando não estava distraído, assisti a uma série de pequenas e médias revoluções. A de Zeca e Sérgio e Zé Mário e Paredes e Fausto, a dos Telectu, Mler If Dada, Variações, Pop Del Arte, a dos Mão Morta ou Palma, a de Camané e dos Ornato Violeta. E por aí fora, em altas rotações, até à enorme riqueza deste presente pobre.

Horta Seca, Lisboa, 24 Outubro

«Contemplação Particular». Depois das desafiantes pinturas, que transcendiam o corpo, que o elevavam na sua mais pura materialidade, em abstracta dança de formas carnais, expostas depois em «Delubro», espaço do sagrado que parava o tempo ali para os lados do Centro Cultural de Belém, eis o livro, a tornar portátil o experimento. O António [Gonçalves] fecha com a inteireza da madeira (carvalho?) este seu deslumbrante e desafiante projecto, ignorado pela crítica. Aliás, que bem se cruzaria a peça da Marta com as telas do António! São da mesma massa, do mesmo risco: traço e navalhada. Por isso me irrita sobremaneira esta indigente falta de curiosidade. Serão cometas, mas podemos dar-nos ao luxo de ignorarmos a sua passagem por nós? Fecho parêntesis. Este objecto, ao menos, continuará a dizer do erotismo muito para além da inevitável morte, essa irmã chegada. Não será de igual modo, apesar de se estender a álbum, que a pintura se vê com o corpo todo, mas permite aproximações. E atira muita lenha para o desejo, com dvd e tudo. Tudo, que nasceu da leitura corpo-a-corpo de Flaubert e Bataille.

1 Nov 2017

Desconcertos concertantes

Horta Seca, Lisboa, 17 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ircula há um mês, mais coisa menos coisa, o N.º 4 de Cidade Nua – Revista de Poesia e Palavra que o Alex [Cortez] e o Nuno [Miguel Guedes] animam. Desta vez, cometeram a imprudência de incluir micro-contos meus, vã tentativa de fazer cócegas ao urbano lugar-comum. Confesso que o objecto me desconcerta, não pelo lado singelo e descomprometido, mas pelo grafismo que me parece casuístico e apressado. E o texto que se verga todo ao itálico, como se soprasse vento forte. Este nervoso miudinho não me impede que tenha voltado vezes sem conta aos textos que por aqui moram, em testemunho importante do momento. Oiço o Helder [Macedo] aceitar que a poesia pode ser espelho e a ficção lupa, «mas seria um espelho distorcido e uma lupa embaciada». Diz ainda que «a poesia não muda nada, mas pode iluminar tudo», para logo distinguir bem que a poesia não se encontra no que habitualmente se considera poético, que esse «banaliza tudo». Luz encontro, sublinho interruptores à toa no escorregadio papel. Há mais que estes, amostra para nos entendermos. José [Anjos]: «não tendo eu a delicadeza/que empurra às flores/os seus frutos». Paula Cortes: «e por vezes nem mesmo a noite/é a última palavra sobre o destino». Cláudia [R. Sampaio]: «mais um dia que se ajoelhou de faca na boca». Miguel Manso: «que tudo é logramento porquanto logra e doa/o estarmos». Catarina [Santiago Costa]: «Gostaria de morrer como as oliveiras/ – que apenas parecem plissadas, nunca defuntas –,/ albergar-te sempre».

Teatro da Trindade, Lisboa, 18 Outubro

Se não conhecesse Ramón Gomez de la Serna leria na palavra conferência um inevitável vestido de noite ou fato de gala ou, pior, cruzamento de ambos. Não se recusa convite caloroso e atempado, como foi este do Joaquim [Paulo Nogueira], ainda por cima quando o ciclo leva por título (R)Existência? Uma interrogação que esconde uma atitude, a reviver até o sabor daqueles dias, há tantos anos, em que cruzámos caminhos a pensar em alternativas. Entro na sala, com o desconforto habitual que me toma aquando do afrontamento de plateias. Conforta-me a chuva, ajuda até a concentração. Espreito o frenesi à janela e descubro na arcada um «vestígio de projéctil disparado em 25-4-74», ainda antes da placa mo assinalar com pompa. Calculo a direcção e ponho-me a divagar por que teria sido disparado do prédio em frente. Por estes quarteirões sempre coabitaram polícias e livrarias e editoras. De que calibre seria a arma?

«Pode uma editora dar sombra?», este o mote que escolhi há meses, prometendo logo mais questões que respostas, esse fruto da época. «Uma editora é uma árvore. Semeamos agora, mas estaremos vivos para recolher fruto ou sombra? Deve um livro ser comprado ou oferecido? Ainda se lê em papel? Uma editora é um projecto de saber radical: tem raízes e pensa em céu, gosta de sol e chuva, gosta apenas, gosta que se possa tomar o gosto. Para quê tantas editoras, as da indústria e as outras, as da pureza e as do cânone, as do espectáculo e as cultura? E só editores editam? Todas as editoras são iguais? Onde se guarda o enigma do fascínio da edição? A ânsia do autor queima o editor? Breve digressão sobre o passado e de costas para o futuro perigosamente à beira do abysmo.» Esqueci-me de brincar com o facto da editora mergulhar raízes em Horta Seca. E não podia contar então que estaria hoje a tentar resistir à falência de uma distribuidora, enfim, à dispersão dos leitores. Para não falar dos fogos, que afectam até as metáforas. Editamos contra isto mesmo, contra a morte. E que mais se pode dizer sobre isto? Levei ajudas, claro. Queria falar de desejo, com ligações à infância, daí ter usado para abrir as hostilidades o «Sem querer», filme partilhado com o João [Fazenda]. Sinopse selvagem: podemos amar tanto a ponto de conseguir transferir o objecto para o interior de nós? Publicar tem tudo a ver com isto, acho. Plantei depois jardim de livros à minha volta. Grandes de inventar cinema ou sussurrantes de simplicidade e silêncio, marcantes cada um por razões quase só minhas. Silêncio, só um livro o sabe plantar. Precisava partir do concreto para dizer alto da intuição, da luxúria, do falhanço e da biodiversidade de que falamos quando falamos de editar. Falamos de vida, pois, de conceber cada livro como único. Não pararia de descrever cada um, de os acariciar com palavras agora, que já o fiz com os olhos e as mãos, com o corpo todo. Livros únicos a percorrer de corpo inteiro, dos que anunciam potência de futuro, uma primavera sempre disponível e portátil, na vez de apenas transparecer o presente, por espectacular que seja. O presente será sempre de menos, se não trouxer passados ou madrugar amanhãs. Não nos entusiasmemos: este caixeiro-viajante traz para vender espelhos distorcidos e lupas embaciadas. E missangas. Antes de sair ainda fui tocar a ferida na madeira que fora árvore. Cicatriz em pau nunca fecha, solta sempre lasca, falha.

Mymosa, Lisboa, 20 Outubro

Se eu me contasse a mim mesmo daqui a uns anos, sentado frente a frente, não acreditaria. Espero ser sensato sentado, talvez incréu dos mais beatos. (Imploro, por deus, a ventura de não ser amargo…) Trazido pelo Henrique Amaro e pelo Rui [Garrido], tombou na mesa dos projectos outro dos que convocam memórias afectivas, daí a conversa escorrer, com detalhe e banda sonora. Na mymosa, direi eu a mim mesmo, houve tempo que isto acontecia, a magia do poético. Aqui há atrasado, brinquei com as sortes e tramei-me com erro em título, nem todas as traseiras trazem o que deviam, mereço a devida punição, ainda que isto ressuma a puro gozo, nome da editora adolescente que recolheu asas. (Quantos perceberão, mano Paulo [Caldinho Gomes] o que nesta frase agora mesmo desapareceu após ter aparecido?) O Rakesh-do-é-fim convocou à nossa mesa o João Moreno, que desdobra o presente no baralho das cartas de azar. Desconforta-me o jogo de mãos, o paleio de vendedor, a perda da razão atrás do como se faz, o fundo de boca do engano, conjunto que vem colado com cuspo à magia. Dito isto, o João atira-nos para a infância. Digno de se contar, o deslumbramento dos maduros a acreditar no impossível, a carta desejada a sair da boca meio mastigada, a sair na caixa selada onde sempre tinha estado embora tivesse sempre nos nossos olhos, e mais, número atrás de brincadeira, com a crença de cada um a ficar feita num oito, de copas ou paus, que importa isso. Na mymosa, chegou a ser assim isso do editar. Só me saem duques.

25 Out 2017

Da sorte que o azar trás

Monumental, Lisboa, 8 Outubro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este outonal Verão, acolhidos pela sombra expressionista do limoeiro, a que o Manel [San Payo] chama bonsai, montámos banca na EDIT, a Feira de Edições de Lisboa, erguida pela Filipa Valadares, da STET, pela terceira vez. Por causa do ar que me enche os bolsos, aproximei-me pouco das tentações. E se foram muitas, nesta festa de biodiversidade, com os mais díspares percursos, artísticos e da curiosidade, profissionais e do gozo, a desembocarem com faustosa riqueza no objecto livro. Riqueza não significa apenas essa luxúria dos materiais e dos formatos e das técnicas, que tanto irritam os viciados em doutrinação; mas e sobretudo a exuberância das ideias, por vezes simples, capazes de criar uma experiência completa para todos os sentidos. Por poucos que sejam os exemplares. Leitores, dos que usam o corpo todo, também existem. Comprovou-se, se preciso fosse, nas centenas que, colhendo ou cheirando, percorreram o refrescante jardim estendido ali por mais de 20 casas editoras. Para sussurrar, apesar da habitual desatenção mediática, que há mais livro para além do livro. E das livrarias (desatentas).

Mymosa, Lisboa, 11 Outubro

No último ano agravou-se, apesar da distância, uma ligação que, confirmo ao vivo e à mesa, temo ter acontecido há muito. Por admirar as várias facetas do trabalho do Rui Rasquinho, as bastante poéticas, como as outras mais pop-irónicas, chamei-o a jogo até que nos encontrámos no «Cidade em Forma de Assim» (ed. APCC), exercício delirante e trabalhoso em torno da ideia de utopia. Para as crianças que se atrevam. Isto sempre à distância, que ele vive em Macau. Ia escrever habitualmente, apesar da minha embirração com advérbios, tão conhecida na casa, mas não se vive habitualmente em Macau. Disso falámos, do fascínio com que as cidades nos consomem, também das imagens em que ardemos e até de música, de flamenco, por acaso, que ambos celebramos.

Nisto, entra Camané, que deixa como lastro do abraço o novo em que «Canta Marceneiro». Não deu para lhe dizer que entrou a meio daquele sapateado. Distraído, eu ainda não tinha visitado a casa que a sua voz ergueu a partir dos caboucos do mestre. Comecei ali a subir à pureza. «Naquela casa de esquina/ Mora a Senhora do Monte,/ E a providência divina/ Mora ali, quase defronte// Por fazer bem à desgraça,/ Deu-lhe a desgraça também,/ Aquela divina graça,/ que Nossa Senhora tem.» Irei com o Rui à Senhora do Monte, em horas tardias para escapar da turistada e dizer-lhe dos segredos do lugar onde Lisboa pode ser vista como abysmo. Por aqui, a graça e a desgraça moram na mesma rua. Vejo daqui.

Bicaense, Lisboa, 11 Outubro

A alguns, a vida assenta-lhes como pele. O mundo aconchega-se-lhes à passagem em coreografia, para mim, de espanto e simplicidade. Basta estarem para ser. As minhas nódoas negras, as cicatrizes de que tanto gosto, mostram que comigo a vida faz-se de arestas. Não me queixo, aprendi a viver com isso. O meu grande companheiro continua sendo o esforço. Sentamo-nos vezes sem conta em silêncio a olhar o mar, a ouvir música e a imaginar possibilidades. Depois levanto-me e trato de me arranhar, só por ir. Se nisto penso agora, culpo os Penguin Cafe Orchestra, caídos no ouvido. Em tempos, sem eles, tudo teria sido muito pior do mau que foi. Será o esforço um pinguim, como na capa do Matter of Life? O assunto surge também tintado de ironia por vir na sequência de se ter repetido no espaço de dias esta, para mim, estranha sensação de conforto. Preparo com os manos António [de Castro Caeiro] e Luís [Gouveia Monteiro] um programa de televisão. Pode até nem se confirmar, à semelhança de inúmeros anteriores, mas o que ganhámos já de entendimento e cumplicidade e gozo e aprendizagem compensou o pinguim, digo, esforço. A busca de sentidos faz sentido. Na dureza, está-se bem. Nasceria daqui samba se soubesse?

Horta Seca, Lisboa, sexta 13

Falta a caridade de uma reflexão ao fósforo «Um Dia Não São Dias», do António [Caeiro], sobre as sextas, 13, dia igual a nenhum outro. Qual bruxas, qual demónio! Por uma vez, não sacrificamos ao real e deixamos que o absurdo nos governe. Sem medo do medo. Atentos aos sinais, a querer por força crer. E rir, sendo outra a vontade. Gosto muito do 13, mais ainda se moldado em dia à sexta-feira. Esta concreta desfez-se pujante e mãe de múltiplas decisões, de planeamento e adiamento, de resolução e enterro de atrasos. As casas custam mais a arrumar aos que não sabem cantar. Quis o destino que ao crepúsculo me chegasse valiosa caixa de ferramentas, donde esta vontade de soltar a voz: e se a minha âncora fosse a lua. Podia ser verso de fado, házar?

Centros das Artes e Vila Flor, Guimarães, 14 Outubro

O mano Tiago [Manuel] saltou da criação e abalançou-se à organização: novo episódio na história hesitante da coisa desenhada, a Bienal de Ilustração de Guimarães. Cravou-me para membro do júri, e foi (quase) um prazer, basta dizê-lo para se arrumar na gaveta das éticas declamativas. Interessa sublinhar que a BIG surge distinta do que se vai fazendo neste país de macacos de imitação – primeiro aplauso. Há prémios a engordar as distinções, para os que vêm do passado (Carreira), como para os que se dizem do futuro (Revelação). Serão todos de hoje, tal a massa de onde emerge o Prémio Nacional, também assente em maravedis – segundo aplauso. Nada mau, se acrescentarmos a isto as costumeiras exposições, incluída a que está a cargo do fazedor do cartaz (nesta página), desta o enigmático Daniel [Lima] – mais palmas. Atenção às escolas secundárias, palestras e catálogo desenham o resto da teia que procura garantir raízes, em contra-ciclo aos mercados. De resto, puro prazer. O de ver a memória em acção, nos originais e palavras do iluminador de quotidianos (notas, selos, publicidade, livros e o mais), Luís Filipe de Abreu, resgatado do esquecimento muito pelo esforço do Jorge [Silva]; no volume da inestimável colecção D (conhecem?), da INCM; na exposição na Festa da Ilustração, em Setúbal, em 2016; e que agora nesta, acompanhada em mais uma bela lição dita, na manhã límpida de sábado. Subo ao largo do Toural para saborear a infância da Isabel em jesuíta que ilustra outras geometrias, antes de me perder em territórios conhecidos e noutros nem tanto. Estou sempre a perder rostos (Viva, Sebastião [Peixoto]! Olá, Bárbara [Rocha]!). Mais prazer, portanto, na alegria infantil das descobertas, mesmo depois de tantos salões, festivais, exposições. O Prémio Revelação, entregue à Carolina Celas, foi isso mesmo. Mergulho naquela frescura, nos materiais e perspectivas, tal qual a da sujidade preto e branco com que o João [Fazenda] pintou os contos da Granta. A coisa desenhada está viva! Irrequietude, com sabor a pastelaria fina?

Horta Seca, Lisboa, 16 Outubro

Na exacta madrugada destas linhas, metade do país ainda arde, a outra volta a chorar cinzas. Nesta altura não, mas estaremos em outra qualquer dispostos a enfrentar a realidade de que somos todos culpados? Que fomos nós quem escolheu saborear este coquetel de capitalismo selvagem e abandono das raízes, com pitada de corrupção (nos actores mais insuspeitos e não apenas nos políticos)?

18 Out 2017

Os dias cobram dívidas

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue obituário escreveria o coelho, personagem principal da crónica mais pequena da nação, tantas vezes surrealista em toda a potência e delícia do termo, para dizer da vida e obra do seu criador, Jorge Listopad? Não arrisco vestir-lhe a pele. Sei que devo a Listopad teatro, palavras, cidades, visões, servido o ensemble com irrequieta frescura. Desejava arrastar o dia à procura de flores e frutos na horta de papel onde guardo alguma daquela sua flora. «Jorge é o mesmo que Jíri. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em Novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro.» Assim se nomeou em autobiografia, passados os oitenta. Custa-me saber que o lavrador de Novembro deixou de amanhar a horta que mantinha na teia de um palco.

Horta Seca, Lisboa, 3 Outubro

Raspo dos dias apenas o mel. Quando devia estar a arrumar a casa, batem-me à porta com projectos. Primeiro o Bruno [Portela], que arrasta consigo a fotografia. Arrasta por alto, rente ao tecto onde habita. Gosto dos seus modos. De fazer. Neste país que prefere estender passadeiras, o Bruno desenvolve tapetes onde nos podemos sentar mediterraneamente, uns num canto, outros a meio, mas no conforto do encontro. Anima, com o Luís Vasconcelos, o ponto de encontro do fotojornalismo nacional, a Estação Imagem, iniciativa que vem rasgando o país para o mostrar melhor, que convoca parceiros internacionais de ofício e olhar, que anseia por preservar a memória, que procura resposta simples para o complicado: sobrevivência. Depois, também se pode discutir gostos. Assentados. A espessura das ideias que trouxe, como as que levei eu para a troca, adiante as partilharei.

Com o Alex [Cortez] chega-me, de seguida, o desafio de acolher em livro os «Poetas Portugueses de Agora», a mais recente empresa da Lisbon Poetry Orchestra, banda rica de vozes ditas e instrumentos tocados, quase canções com o texto a dançar sobre a rica tessitura de baixos e guitarras e tecladas e sopros de variegada respiração, além de mais cordas convidadas. Os versos são de próximos de agora ou nem tanto: Daniel Jonas, Cláudia [R. Sampaio], Paulo [José Miranda], Valério [Romão] e Filipa Leal. Ditos por Paula Cortes, Miguel Borges, André [Gago] ou um Nuno [Miguel Guedes] acabado de conhecer há uns 40 anos. Lá está: como dizer não ao presente? E o embrulho, que não terá apenas um CD, vem com aspiração a objecto, desenhado pelo Daniel Moreira, que ilumina ainda os detalhes. O Alex não tocou apenas argumentos, trouxe EP que oiço em modo vertigem. Diz o Paulo na voz do André: «Os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dívidas// ser-se cobrado/ é como andar à chuva e ter coração/ e precisar de respirar/ e precisar de andar/ e precisar de cuidar das plantas que enfeitam a varanda/ ou as marquises dos arredores de Lisboa.»

Horta Seca, Lisboa, 4 Outubro

Distinta estava a noite na auto-estrada. O escuro não se assume na via rápida, nem mesmo em pleno coração do Alentejo. Vislumbro ao correr do vidro as constelações, a mancha leitosa da via láctea. Não me podia alhear, que assim o exigia o cansaço de quem conduzia, de sul para norte, de quem me conduz, nas direcções cardiais. A Lua dizia mais luz, de cheia que estava. Nisto, o mal-estar. Mal dou por mim, ao quilómetro cento e trinta e seis vírgula oito, detalhe ampliado, aquele oito infinitamente maior que o resto dos numerais ordinais, tenho a meus pés uma mulher estendida no asfalto, sem dar cor dela. De que branco seriam os nossos rostos na escura noite nívea da auto-estrada, sem darmos por nós, um acordado outro nem tanto. Tomo por justa esta imagem para os dias que passam velozes.

Casa da Cultura, Setúbal, 5 Outubro

Ninguém dá por ela, como convém a um bom fotógrafo. A Graça [Ezequiel] desfaz-se nos cenários, nas paisagens, nos momentos. Ninguém a vê. E por isso o seu território outro não é que os bastidores. Mesmo quando fotografa o palco, o que nos dá a ver é o outro lado, o da preparação, o esboço antes do risco final, o momento em que o artista se apaga para deixar entrever o indivíduo. Em performance ou repouso, de atenção presa ou distraído no acaso, alguém foi apanhado sendo. Apenas sendo, vibrantemente existindo. Daí o negro, a enorme quantidade de negro que estas fotos contêm (conferir nesta página com a de Helder Macedo). No palco, pouco mais há além do negro profundo, a cor da arte, e precisamos do olhar e da câmara da Graça para libertar a luz destes rostos. Eles estão a criar para nós, a dizer que não podemos ser apenas isto, que no negro se encontram todas as cores que precisamos para abrir mundos neste. Ensaiando ou descontraindo, como representando ou dizendo, o escritor, o artista, o actor, o músico são mais, são maiores. Por serem nós, por que nos fazem ser com eles. Atenção, com eles, que não como eles. Por ora, estes esboços estão perto no sul feito de beira-rio.

Horta Seca, Lisboa, 6 Outubro

Podia a entrada estar datada de 11/9, o dia exacto e icónico em que disponibilizámos este denso e fulgurante ensaio do António [Araújo]: «Consciência de Situação – Um Ensaio Sobre The Falling Man». A partir de uma fotografia célebre, a de Richard Drew a que alude o título, o António ajuda-nos como nenhum outro a enfrentar a ferida que se abriu nos nossos mundos, em 2001. A queda é o eixo desta poderosa reflexão, que vai muito além da costumeira compilação de notas de leitura, provavelmente de toda a bibliografia sobre o assunto, para tocar a história da fotografia, o miolo do jornalismo, a análise de comportamentos em situações de risco real, a filosofia e a religião unidas pela umbilical ideia de salvação, mas também de beleza ou presente. Este pensamento vem, como gosto tanto, insuflado de um sopro de – ia escrever emoção, mas é – humanismo, que me comove e perturba, mesmo nas descrições violentas, nas esmagadoras reflexões, nas poéticas construções. Apesar de ser sobre este incandescente assunto, há-de concluir, são as «divagações vazias que constituem a melhor metáfora do nosso tempo». Não será o caso, garanto. «Na manhã de 11 de Setembro de 2001, as câmaras de televisão filmaram uma mulher na rua, horrorizada pelos corpos em queda do cimo das Torres Gémeas. Aos gritos, dizia: «há ali gente a saltar, gente a saltar! Acho que estão a tentar salvar-se!» Ninguém pode tentar salvar-se saltando de um 102.º andar de um edifício. Tudo depende, no entanto, do que entendermos por “salvação”. Em função disso, o grito descontrolado daquela mulher pode ser encarado como uma frase insensata e ditada pelo pânico; ou, pelo contrário, como a observação mais certeira e sagaz alguma vez feita sobre os suicidas do 11 de Setembro.» Sei bem onde estava (e com quem estava, certo, Cristina [Sampaio]?). Mas nunca mais soube onde estamos.

P.S.: Cultivo a superstição de contrariar a vontade de abrir o livro mal me chega da gráfica. Costumo dar logo com a gralha grasnando. Confirmou-se: na 123, esquecemo-nos de limpar a repetição da capitular.

Horta Seca, Lisboa, 7 Outubro

Divertido, não fora perturbador. Percebo melhor a tatuagem do presente: business as usual. Estás bem? Péssimo, respondo: exausto por isto e por aquilo, além de que a minha distribuidora faliu. Que maçada! Olha, o meu livro, quando sai? E a factura, quando me pagas? ‘Bora jantar? ‘Bora, respondo.

11 Out 2017

Arrojado esforço

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e súbito, a mensagem: chegou o Carlos Lopes. Dava jeito aqui que usasse relógio que escrever que o olhei, mas vivemos mergulhados nas horas, sendo impossível escapar-lhes. Era meia hora antes do combinado, pelo que tive que correr. Está certo, natural será que um campeão seja mais rápido e nos obrigue a correr. Os corredores param o tempo, sabemo-lo desde os gregos, abertos à contemporaneidade pelo esforço de professores como o mano António [de Castro Caeiro]. «Sem dúvida, o melhor de tudo é a água./Mas o ouro, que imita o fogo a arder na noite,/distingue-se em excelência de todas as outras riquezas.» Abre logo assim a primeira das Odes Olímpicas, de Píndaro. O ouro visitava-nos e trazia a água da simpatia, vede que combinação. «A fama de Pélops brilha, ao longe, nas corridas das Olimpíadas,/ onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força./ O vencedor tem, assim, para o resto da sua vida/ uma serenidade doce como o mel// em virtude do prémio das competições. / Mas não há bem mais supremo para um mortal do que a glória desse dia. / E eu tenho de coroar aquele homem / com a canção do cavaleiro, ao modo eólico.» Que sopro é este que me empurra para me armar em Píndaro e coroar Carlos Lopes com qualquer canção, modesta que seja? Tranquilos, que não me atreverei ao poemar celebratório que logo se parte à passagem da primeira hora. (Sim, estou a pensar naquele passe de Manuel Alegre para Eusébio…) Mas um dos meus heróis está aqui, à distância de um abraço, aquele que abriu loja de desporto na colina mais íngreme da cidade, na montanha maior da minha infância, a das vistas alargadas e arejadas, onde revisitei tantas revoluções, paixões, projectos. A Penha de França não terá sido Olimpo, mas avizinhou-se. Se não bastasse o ouro ganho longe, «onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força», acompanhado por cá nas cores que ainda pareciam preto e branco, ainda tinha ido montar bazar nos meus lugares, no topo que exige o máximo da respiração. Ei-lo aqui, à distância de outro abraço, trazendo a frescura da humildade, do bom humor. A selfie não foi apenas a fotográfica, ele desenhou auto-retrato que concorrerá com a medalha que o André [Carrilho] lhe esculpiu. Corro a pô-la na parede, em eólico lugar.

Roterdão, Lisboa, 29 Setembro

Quem chegasse, na exacta hora marcada, tinha que abdicar de um dia soalheiro para entrar nas quatro da manhã de uma sexta ou sábado. Mais: tinha que ultrapassar alguém que se esforçava por prender na entrada uma pesada cortina antes de descer à cave que o ar condicionado teimava em fazer frigorífico. Foi uma entrada a pés juntos no Festival Silêncio. Este cenário, dramático, mas casual, fez-se apropriado para a ocasião: dizer, na voz alta de Joana Bértholo e André Neves, que o olhar múltiplo do Pedro Neves Marques se materializara em ficção. «Morrer na América», que resulta de uma colaboração da Arranha-céus com a kunsthalle lissabon, de João Mourão, leva-nos ao coração da mais icónica e mítica América. Decadente e tecnológico, contraditório e imagético, apocalíptico e, afinal, tão humano, esse coração cujo pulsar tão bem o Pedro capturou. A sua escrita, com raízes na ficção científica, atinge um grau de detalhe único, alimentando um fluxo em contínuo que se torna hipnótico e nos captura como floresta densa, prenhe de cambiantes visuais e tonalidades de pensamento. Houvera atenção e logo se veria que estamos perante um caso sério. Ah, mas são contos, esse parente pobre da miserável literatura. De um dos mais fulgurantes, Liberator, registo: «Neste novo mundo, pelo lutamos, a morte acontece apenas sob a forma de assassinato. Matar Édipo é hoje a única maneira de os jovens se apoderarem da morte, contra, e para lá, do impulso de morte do capital. E neste novo mundo, o que não falta são Édipos por matar; não há falta de reacionários, pedagogos e contrarrevolucionários por abater. Daí que, ao mínimo sinal de mudança, sejamos considerados indiscriminadamente como terroristas. É também essa a razão por que, hoje como naqueles primeiros tempos de mudança, a perseguição política é uma constante.»

Roterdão, Lisboa, 30 Setembro

O dia começou, de facto, ao fim da tarde com os No Precipício Era o Verbo a lançarem o álbum/cd em Lisboa, para um Musicbox cheio, outra casa do maratonista Alex Cortez, que fez as honras e sublinhou o carácter integrado do projecto, do cuidado musical ao cuidado estético. No mais, foi a intensidade do momento e a alegria de folhear o livro na cidade, entre amigos. Banal, apenas isso, o facto de termos andado pelo país, de Paredes de Coura às Caldas da Rainha, antes de o apresentarmos na grande e propícia e ventosa cidade.

Continuou depois com Goraz Voraz, a primeira mostra deste «projecto de spokenword pluri-multi-tutti-desfacetado contra a metronomia do cansaço doble». A partir do topo da bateria, mesmo junto às nuvens baixas, foi orquestrada pelo José Anjos, com o violino da Maria do Mar, o baixo de Pedro Salazar e o hangdrum do Luís Brito a iluminar as paisagens construídas pela Inês Fonseca Santos, a Liliana Ribeiro, a Rita Taborda Duarte, a Cláudia R. Sampaio. O mano Luís [Gouveia Monteiro] apresentou-se com um deliciosíssimo inédito, Alter-eco, para nos dizer que somos os sotaques, as pronúncias, afinal, as vozes. A Catarina [Santiago Costa] também se ergueu tonitruante. A experiência ganhou irritação e interesse ao ser atropelada por uma atitude que se tornou moda em algum poetar destes dias, a arrogância desordeira travestida de gesto político. Não serei eu a explicar a diferença: estudassem.

O cartaz do Rui [Garrido] (que ilustra esta página), criado propositadamente para a ocasião, diz como se há-de a voz erguer do caos: «from the guts to the throat». Terá que ver com gritar ao microfone?

Roterdão, Lisboa, 1 Outubro

Eleições? Nem dei por elas. Futebol? Quase nem dei por ele. Por duas vezes, durante a semana, vi abrir-se nos meus dias uma clareira, durante os ensaios para o que aqui aconteceu. Primeiro, o volume Má Raça, feito para as imagens fortes do Alex [Gozblau], fizeram-se espírito com as improvisações do Filipe [Raposo], mal esta voz triste disparava os versos em melancólicas trajectórias. Fui tecla do piano. Mais entrado na noite, vi-me no Botequim de há 30 anos, deslumbrado com os modos tonitruantes, tão terna e dramaticamente tonitruantes da Natália Correia. Estava com irmãos, o Luís [Gouveia Monteiro] e o João [Maio Pinto], dizendo poemas da sua Antologia de Poesia Erótica e Satírica no fio na navalha, digo, no fio das cordas de uma guitarra eléctrica. Tomara Tu Ter uma Tia assim fez-se projecto-projéctil. O mais extraordinário, penso agora, despido da emoção, foi a naturalidade do sucedido. Não apenas da suave balística dos encontros e cumplicidades, ditas e não ditas, mas sobretudo do veludo de estar em palco. Em comunhão.

5 Out 2017

Jardim de sombras

Santa Bárbara, Lisboa, 17 Setembro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uase o costume. Esvai-se o mês por entre os dedos, sobra tanto do que devia ter sido feito ou dito, cresce frondosa e por podar a grande árvore dos atrasos: dead line, linha morta, assim lhe podia chamar. Os seus estranhos frutos, as urgências colhem-se ao abrir do dia, para consumirem o oxigénio do que importa, até das raízes com que devia ocupar parte do dia. Além de sombra, o que viverá neste jardim? Ao costume junta-se a assombração de uma urgência maior, a de retirar os livros, vestígios de corpo por erguer, do armazém que se tornou cemitério. Durmo inquieto, numa atalaia de melancólica impotência.

Remolares, Lisboa, 18 Setembro

Desenvolvi uma alergia a reuniões. São indispensáveis, bem sei, até para, aqui e ali, ganhar o tempo da organização, mas preciso de um intervalo, de parar a torrente. Não vai nunca parar, pois não? Forma terei que arranjar de a conduzir para o lameiro onde alimentará em abundância o milho ou trigo ou outra semente do pão. Nas férias da infância grande aconteceram noites ainda maiores de espanto e utilidade, quando acompanhei o avô Joaquim ao topo da Gardunha buscar a água, que se conduzia depois por regos e caneiros até ao seu sítio, que era então de esperar. A noite inteira de sacho na mão, atento às instruções, acreditando que dominava a água, que lhe aprendia as forças. Dava jeito agora essa sabedoria, aplicada à força líquida que me atravessa e molha e enche de lama, às vezes cheirosa como terra molhada, outras nem por isso. Preciso muito de silêncio pelo que apetecia fugir deste acerto de detalhes acerca da nossa participação no Festival Silêncio, que ocupará o Cais do Sodré e os sentidos de muita gente, no final do mês. O Alex [Cortez] atira-me para as mãos o jornal que anuncia a programação e esmaga-me com a quantidade e a qualidade das propostas que celebram a palavra tendo por eixos a Voz e Maria Gabriela Llansol. A abysmo estará naqueles dias pelo Roterdão, com lançamentos e, sobretudo, concertos que cruzam a poesia dita com a música tocada, ou vice-versa. A isso voltarei, até porque me deixei implicar de viva voz em dois desafios que me assutam. Perdido em pleno jardim de confusão, irei arriscar ler o meu (e do Alex [Gozblau]) Má Raça, acompanhado pelas improvisações do Filipe [Raposo]. Não destoará, por tanto, o lado cabaré daquela voz, que me parece já tão longínqua, um eco. Será ainda pretexto, para apresentarmos os Tomara Tu Ter uma Tia Assim, banda em debandada com o Luís Carmelo e eu a lermos a antologia [de poesia erótica e satírica] da Natália [Correia], enquanto o João Maio Pinto pinta o ambiente à viola. Deixemos isso para depois, regressando ao bojudo jornal, que me frusta por me provocar com que o tempo me fará perder: as maratonas de leituras e performances e ciclos e debates e conferências. «O que é o texto em face do silêncio? O seu receptáculo.» Llansol oferece o mote para um mundo de transversal diversidade que reflecte a cidade no seu sítio: lugar-farol que usa a palavra literária para nos conduzir pelas tempestades. Em festa. O Alex [Cortez], e equipa, vêm erguendo um corpo que se arrisca tornar no mais desafiante dos festivais, literário muito para além da literatura. Fiz bem em ter ido a esta reunião. Mas vim com outro desafio: a edição do disco/livro dos Lisbon Poetry Orchestra. Terei tempo para responder?

Horta Seca, Lisboa, 19 Setembro

Chegam-me a conta-gotas os ecos da passagem da equipagem abysmo pelo furacão Macau. Mano após mano, vejo-os tocados pelo fascínio. O Valério [Romão] regressou apaixonado, aprendeu a combinatória dos ideogramas e receitas de Tom Yum. O António [Caeiro] sublinha a melancolia dos seus tons. O Paulo [José Miranda], dono de outra experiência, até escrita, trouxe terno distanciamento, projectos que se podem tornar comuns, e uma mão-cheia de livros, selecção da colheita do Carlos [Morais José] nos terrenos férteis do Oriente. Além de uma, tão bela quanto portátil, Clepsydra em versão missal para esta geração dos 150 anos de Pessanha, e de outros a que voltarei com água na boca, veio com o seu Karadeniz – Entrevista com um assassino em formato de livro. Outro exercício no qual o Paulo faz de um género esqueleto onde apôr as carnes da reflexão, aqui sobre a morte e o acto de matar, a soldo ou gratuitamente, em fúria ou na mais aplicada das preparações. Afinal, pretextos para aflorar o tema que explodirá no seu próximo e explosivo romance: a responsabilidade.

Horta Seca, Lisboa, 21 Setembro

O perfume de Macau está também na exposição do André [Carrilho]. Atrito, que continua e encerra, diz o autor mas não acredito, o percurso começado com Inércia, reflexão pintada sobre a viagem e a paisagem, sobre o tempo que precisamos para perceber as subtilezas, de cor e luz e sombra, do que nos rodeia, para encontrarmos o nosso lugar, o nosso olhar. Montar as imaculadas reproduções, fruto da mestria única do Francisco [Vaz da Silva], encheu-nos de prazer, a mim e ao mano Luís [Gouveia Monteiro]. Dar a ver segundo afinidades narrativas, de cor ou de lugar, proximidades, perspectivas, temas, para além da cronologia ou do autor, pôs-nos nas nuvens, tal a leveza e gosto que brota do pincel do André. Mas onde ele se transcende, e voa além da tradição da aguarela, é pelo gesto que recolhe o peso e o movimento das cidades. E Macau ou Hong Kong (como o caso que ilustra esta página) chegam-se à frente como protagonistas. O negro sujo, o vermelho de sangue, o amarelo do tempo dançam para nos oferecer a noite, que aqui se faz mais verdadeira por não depender da natureza. A cidade faz noite quando lhe dá na real gana.

Esta exposição está integrada na «rentrée cultural da 7.ª colina de Lisboa», que pela oitava vez abre em simultâneo (e festa) quase 40 espaços dedicados à arte contemporânea, ideia e esforço do Cláudio [Garrudo] e da Ana [Matos]. Dá gosto, só vos digo.

Horta Seca, Lisboa, 22 Setembro

Para uma pequena plateia de luxo, foi apresentado, pelo José Teófilo [Duarte] com acento na relação do pensar com o fazer, o Escrytos, do Paulo Pires, subido do sul, tendo por companhia o instrumento. A sua costela de programador puxa para o cima da conversa esse terço temático do volume. Mas há mais, muito mais por onde ali andar. No final, de olhos fechados, encheu a rua com um sopro, que ele tão bem toca nas suas páginas: «Cerram-se os olhos por momentos e a esperança, o desencanto, a ironia, a melancolia, a (violentíssima) ternura, a alegria ganham no acordeão uma dimensão singular de expressividade e densidade psicológicas através dessa fascinante mecânica, plena de essência e complexidade (feita de ar, fole, palhetas, caixas harmónicas de madeira e “corredores” ora abertos ora oclusos – como os labirintos da subjectividade humana), que ora alinha, ora solavanca/questiona e “desarruma” o corpo e o espírito.»

Fim de tarde do costume, aqui no jardim de sombras.

27 Set 2017

Feridas de combate

Santa Bárbara, Lisboa, 4 Setembro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão queria acreditar, apesar de todos os sinais: a «nossa» distribuidora anunciou a insolvência, ao fim de meio ano com atrasos nos pagamentos, entre outros disfuncionamentos. Nada de novo, mas uma navalhada nas costas, embora pouco tendo de original na história universal da infâmia, mal a ponta e mola escreve ferida, dói como se fosse a primeira vez. O mundo volta a parar. Assim tem acontecido demasiadas vezes este ano, estes últimos meses. Talvez a vida se resuma a este pára-arranca. Quando putos, o tempo estende-se quando acontece a infância. Agora, explode com a desgraça.

Em minutos, experimentei o arco-íris das sensações básicas e também algumas combinações mais coloridas. Nem sei se comecei pelo desânimo, mas temo que esse ande sempre no bolso. O negócio da edição deixou-se ficar parvo, também no sentido latino. Como em tempos argumentava para me dissuadir esse grande editor e saudoso amigo, José Alexandre [Magro], o editor está entalado entre a ditadura do mercado e a ansiedade extrema do autor. Não dará nunca combate capaz a um nem resposta cabal ao outro.

Habitamos país onde o livro e a leitura valem pouco mais que beatas intenções, as boas livrarias não pagam e as grandes entendem que os livros devem todos ser best-sellers. Os editores, sentados no vetusto sofá do cada-um-por-si, foram entregando as armas cedendo à avassaladora lógica de um fazer negócio que esmaga quem produz para engordar margens insanas de lucro aos que vendem. E continuam tolhidos na forma de articular novas respostas e, sobretudo, maneiras de interrogar as necessidades, talvez mesmo de as criar.

O Estado, apesar de esforços e tentativas por avaliar devidamente, não foi capaz de estimular a leitura, de maneira a enterrar de vez a herança do outro dito Novo. Pior, não assegura a regulação de um mercado esquizofrénico. Depois, ao contrário de qualquer país que estime a sua cultura, deixou de alimentar as belas bibliotecas que semeou com os autores nacionais, de ontem ou de hoje. O governo liberal do Reino Unido compra milhares de exemplares de títulos de autores contemporâneos para os distribuir pelas bibliotecas públicas. França tem um completíssimo programa de apoio à edição. Até os Estados Unidos da América, ao contrário do que se apregoa, investe na sua memória futura. O livro, ainda que objecto de consumo, mantém uma aura que lhe elimina o valor pecuniário.

O livro não custa dinheiro e pode ser oferecido, reclamado mesmo, com inesgotável generosidade e sem ponta de vergonha. Em França, há uns anos, as pequenas editoras deixaram de oferecer os tradicionais exemplares para crítica e explicaram as razões: sobrevivência e pedagogia. Se nem os que precisam do livro como ferramenta os compram… O ofício dos jornais, sobretudo estes por causa dos seus pergaminhos, mas estendamos à galáxia mediática, relegou o debate e a crítica literária para um cantinho do lazer, cada vez mais ocupado com mega-festivais tornados lugares únicos para a experiência do ser e do pertencer. Acabei na raiva, que logo foi domada pelas necessidades práticas.

Nem desmarquei o encontro que tinha para preparar o lançamento de mais um livro de contos do Ricardo [Ben-Oliel]. Nisto me devia concentrar, na leitura do novo romance do Paulo [José Miranda]; em empurrar para a gráfica os três títulos três da nova colecção de poesia, Mão Dita; em finalizar a maqueta do inacreditável Arno Schmidt; em gritar com o Valério [Romão], por causa do atraso no fecho da trilogia; em acertar os detalhes do próximo José Luiz Tavares, a nossa primeira co-edição internacional; em afinar a nossa voz no Festival Silêncio, que animará o Cais Sodré, no final deste mês; em confirmar os momentos abysmo no Folio, de final de Outubro.

Não, vou ter que procurar nova distribuidora; garantir que os títulos, pelo menos os mais recentes, regressam rapidamente às livrarias; retirar o mais depressa possível a minha fortuna do armazém da distribuidora, por via das dúvidas e das manigâncias; ir em busca de apoios concretos; pedir paciência aos credores, começando pelas gráficas, das parceiras mais sacrificadas no estado das coisas; tranquilizar os autores e os colaboradores, explicando com aguda racionalidade que a fuga para a frente nos permitirá atravessar o mar revolto; aguentar as condescendentes pancadinhas nas costas, as piadas acre-doces, os bem-te-disse, as cruezas que desabrocham, perfumadas, como rosas pela manhã, os silêncios de chumbo.

Com a revolta tranquilidade do mar, vão chegar, bem sei, os gestos solidários. Neles assenta a convicção de que este abanão, coincidente com o sexto aniversário, pode bem marcar uma nova fase. As ideias fervilham, apesar do cansaço de bolso. Na minha adolescência militante, a chama nascia sempre da palavra e era comum mergulharmos na etimologia em busca dos sentidos que nos impeliam. O mano António [de Castro Caeiro] está onde eu queria estar pelo que não posso, por ora, provar dos sucos inesperados que sempre consegue retirar da tradição. Arriscarei pensar que a crise surge dos meandros da medicina para dizer dos momentos decisivos, o exacto instante que a vida vencia a morte ou, pelo contrário, a decisão tomada era definitiva. Antes da economia nos encher a vida com ela, derivaram outros caminhos, que chegaram, por exemplo, ao crisol: o cadinho que se leva ao lume para purificar o ouro. Talvez se aplique.

Falando de sinais. O logotipo da abysmo possui grande biodiversidade, mudando consoante a interpretação do ambiente por quem concebe ou ilustra a obra. Para melhor estabelecer relações entre o que se passa naquelas páginas e os olhares de quem lhes toca. E o espírito da editora. Procurei aquele que melhor reflecte o momento. O mano Luís [Afonso], há seis anos, desenhou um homem a atirar-se para o abysmo do ípsilon. O Luís Talklin, que desenhou a colecção de contos, põe uma figurinha a subir o braço do y, letra que, afinal, centro de todas as leituras. Podiam ambos ser, golpe e contragolpe. Só que o Sal Nunkachov levou o jogo mais longe e ilumina o caminho: uma bifurcação pode transfigurar-se em fisga e atirar-nos longe.

20 Set 2017

Dois efes a conversar

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]anta Bárbara, Lisboa, 3 Setembro

Agora os caracteres andam luminosos, mas desde sempre foram iluminados. Não há luz mais intensa que a de um pensamento, nem nada mais brilhante que o gesto da escrita, fruto do desejo de contar, da necessidade de um registo, de um apoio para pensar mais e mais longe. Pensar nesta história continua a ser mergulho no enigma, que exige falar de momentos grandiosos e invenções minúsculas, mas também de matérias e imagens, de religiões e rebeliões. De velocidades e arquitecturas, de técnicas e histórias de amor, saber e sabor. De muito, portanto, mas sobretudo de nomes e palavras: alfabeto e papel, volumen e codex, Gutenberg e Baskerville, Bíblia e Enciclopédia, minúsculas e gravura, Afonso X, El Sabio, e Geoffroy Tory, biblioteca e autor, multimédia e e-book.

Quem mais senão a Natureza para fornecer o lugar da escrita? Pedras, tabuínhas de cera ou argila, ossos, folhas de palmeira, metais, peles de animais (o medieval pergaminho, por exemplo) e, enfim, liber (latim para uma película entre o tronco e a casca de certa árvore) e biblos (grego para «papyrus», essa planta oriunda do Vale do Nilo). Toda a Antiguidade se deixou escrever em longos rolos de dezenas de metros de papiro com textos copiados numa só face em colunas de 25 a 45 linhas. Como para tantos outros detalhes, pouco mais se consegue do que imaginar a enorme biblioteca de Alexandria ou obras como as 123 atribuídas a Sófocles das quais só conhecemos sete.

A nossa época deve ter começado no exacto e revolucionário momento em que os rolos (volumen) passaram a codex, conjunto de cadernos dobrados e cozidos que permitiam a escrita de ambos os lados da folha, que reorganizaram o texto (títulos, capítulos, índices), que tornaram mais fácil o manuseamento e melhor a armazenagem. Questões de técnica, claro, mas que só nos nossos dias se vêem afectadas pelos formatos de computador (e-book) que possibilitam coisas de nada como procurar instantaneamente significados ou cruzar leituras, abandonando assim a evidente e sempiterna sequência das páginas.

A mão foi, de facto, responsável por muitas mudanças, sobretudo a do monge copista medieval que celebrava em latim o seu Cristo reproduzindo a Bíblia, de modo cada vez mais rápido por exigência dessa fé que se espalhava através da rede crescente de mosteiros, que eram escolas e logo cidades. Terá sido a pressa que obrigou à passagem das capitais romanas para as unciais e destas para as nossas elegantes e legíveis minúsculas carolinas? Era outra a qualidade do tempo, que permitia iluminar cada página com uma arte feita de segredos e contemplações e encadernar o conjunto de modo tão protector quanto luxuoso. De velocidade só podemos falar por causa de um mistério chamado Gutenberg, a figura alemã que soube aproveitar a existência do papel, essa invenção chinesa, e as conhecidas técnicas de impressão como a de carimbos gravados de madeira para tudo verter na ideia de caracteres de chumbo móveis e tintados que por força de uma prensa conseguem, em 1454, reproduzir velozmente a célebre Bíblia de 42 linhas.

Uma frase, ainda que seja um pulo, não nos consegue fazer percorrer a viagem deste instante em que o Livro é lido em voz alta, até que uma vontade de saber ou a necessidade da ficção nos fazem ver, de súbito em finais do século XVIII, um pequeno livro na mão de uma burguesa que lê apenas para si, num momento íntimo e silencioso, perigoso, portanto, um romance de cavalaria. Entre um momento e outro, não há apenas uma Europa que discutiu Deus e a Ciência, para quem as imprensas passaram a centros de saber, tantas vezes subversivo e digno de fogueiras simbólicas, há todo um percurso evolutivo feito da descoberta da numeração árabe, da pontuação e outras arquitecturas, da «ciência» dos tipos de um Garamond e da página segundo um Troy, ou da «paixão» total pelo objecto livro de um Baskerville; ou das visões gravadas para sempre como motivo de espanto, fossem elas a anatomia de Vesálio ou a de Charles Eisen para os contos de La Fontaine. Há, antes de mais, a ideia de que todos podem partilhar (em livrarias e bibliotecas) o tudo que cabe nesta caixa: todas as viagens, todos os saberes (Enciclopédia), todos os fogos pela mão não de um copista, mas de um autor. E o livro nunca foi só letras, foi iluminura e cercadura antes de ser design; foi a página fulgurante e absoluta de William Blake (Canções da Inocência e da Experiência) e as invenções de Laurence Sterne (Vida e Opiniões de Tristam Shandy) ou de Raymond Queneau (Cent mille milliards de poèmes). Foi, portanto, tudo antes de ser agora todas as formas, tamanhos e possibilidades. Os caracteres, que nunca foram cegos, continuam irrequietos.

Santa Bárbara, Lisboa, 3 Setembro

Na classificação das artes há uns lados de sombra onde se abrigam, ao fresco, aquelas disciplinas tão indisciplinadas e movediças que escapam às supremas etiquetas e às grandes hierarquias do gosto e da sensibilidade. São menores ou impuras, e por isso se atravessam no nosso caminho. Às vezes até se instalam para ficar nos nossos modos de ver e de experimentar. Como algumas insidiosas melodias que não nos deixam o ouvido, há pequenos momentos visuais que nos paginam os dias, que os arrumam logicamente ou os desarrumam poeticamente.

Sebastião Rodrigues foi um desses discretos manipuladores com poder para, com uma capa, nos levar à descoberta de um livro fundamental, com um cartaz explicar nos uma revolução, no desenhar de uma letra nos aproximar do mundo. Era tido como designer e ilustrador, ou seja, como coordenador e intérprete mas o seu trabalho foi além disso. A sua obra tem tanto de irónica desconstrução dos modos de ver como de criação de paisagens fascinantes e faiscantes.

A força de seta da linguagem de Sebastião está na maturidade que resulta do imenso trabalho de análise e leitura, de corte e costura, de um velho labor prolongado coerentemente por várias décadas. E que diz esta língua artesanal e discreta? Que os mais banais dos objectos podem ser símbolos, que uma letra pode ser uma imagem. A conversa que Sebastião Rodrigues pôs a letra a ter com a imagem é de um equilíbrio tão elegante que oferece uma inquieta tranquilidade. Dá ideia por um instante que a vida pode ser uma brincadeira entre contrários. Como se aquela estética bem humorada, aquelas sínteses luminosas fossem o sinal político da possibilidade de outras vidas, um piscar de olho à complexa simplicidade que tem um gato preguiçoso ou um f. Um efe de fragmento.

Escreveu ele algures simplificando que desenhava «com a maior parcimónia os mais diversos símbolos, para os dispôr da melhor maneira que sei em variadíssimos espaços, além da parcimónia, também utilizo a alegria, (…) o jogo, (…) o improviso e até o imprevisto.» É estranho que dois efes a conversar nos possam dar lições de vida. Dois efes que falam podem dizer o quê (conferir em Divertimento, com Alexandre O’Neill, ed. Bruáa)? Dizem pontos de interrogação, corações, setas partidas e outros sinais que fora de contexto fazem outros textos, se tornam imagem. Um símbolo do jogo e da alegria que ainda pode ser a vida. Contra a morte.

13 Set 2017

«É o xuá das ondas a se repetir»

Spotify, 28 Agosto

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]alto para «As Caravanas» com Chico a viajar pelos reflexos dos hojes. Melhor, vou para Chico, sítio que continua único. Não gasto mais do que umas linhas com a tolice das vigilâncias que vão grassando como ervas daninhas, censores de algibeira que não alcançam que o lugar da arte só pode a dimensão e a forma dos oceanos, respirando tempestades e calmarias com profundidades sem luz enquanto espelham o céu. Prefiro caminhar nas dificuldades da canção que dá título, por exemplo. Traz um Brasil que expulsa negros e pobres da praia, um Brasil de bossas velhas que embaçam olhos e razão. «Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/  Que embaça os olhos e a razão/ E essa zoeira dentro da prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar». O Sol há-de ser culpado de tudo, até das trevas. Mas vislumbro momentos de sentar na infância, comoção em estado puro, que os dias estão para isso. Nesta, toca com o neto. «É o xuá/ Das ondas a se repetir/ Como é que eu vou saber dormir/ Longe do mar/ Ó mãe, pergunte ao pai/ Quando ele vai soltar a minha mão/ Onde é que o chão acaba/ E principia toda a arrebentação/ Devia o tempo de criança ir se/ Arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de Massarandupió.» Onde acaba o nosso chão? Uma após outra, mais ou menos solares todas, estas canções são do espanto feroz.

Santa Bárbara, 29 Agosto

Devia. Os dias nascem logo forrados a deveres, e é a custo que procuro não ocupar as noites alinhando os por fazer que vão esticar ao impossível a pele das horas. Faço-me ortónimo e libertário, não saio de casa, que «grande é a poesia, a bondade e as danças…», mas leio um livro. Oliveira que podia bem ser, finco raízes e aprendo «práticas de viagem» sem sair do sítio. Vou para «Itália», na melhor das companhias, de braço dado com o António [Mega Ferreira] (ed. Sextante). Dispenso até a deslocação, pois os lugares são aqui reconstruídos da boa maneira, cruzando saber e sabor. São os sentidos, se neles incluirmos a inteligência, que se fazem cicerones no labirinto de torres e palácios, pinturas e escritores, Svevo e Joyce, as sublimes composições e os cafés de ficar horas, o Rosati de Pasolini, os azeites aromáticos e os vinagres balsâmicos, sabonetes e Paolo Conte, Carpaccio pintor e prato que o homenageia, a modesta planície de Morandi e os portos e os passos de Dante. No percurso, deparamos continuamente com primeiras vezes, na cultura ocidental e, portanto, em nós. Nem guia nem roteiro, antes Grand Tour a uma paixão, que é país, mas sobretudo berço de uma cultura que celebra a vida. Quem viaja ainda deste modo?

Horta Seca, 30 Agosto

Devia estar a caminho de Macau, na boa companhia de tantos abysmados que partem celebrar Pessanha. As circunstâncias conspiraram e travaram os ímpetos e as vontades. Fico-me, encostado a uma lápide, gatos por perto, horizonte de torres (como o poeta, na interpretação de Rui Rasquinho nesta página). A ler luzes em países perdidos, com a intacta intenção de no chão sumir-me, como fazem os vermes. Pessanha e Macau tornaram-se estranhos sinónimos. Releio «O Mal», do Paulo [José Miranda], para encontrar a tese de que ambos são sinal, húmido e desfocado, da errância em busca de uma identidade, em vida de empréstimo. De Portugal e do que dele encontramos em nós. Cidade e poeta são sinais e versos de um mau estar, de um Mal tornado ser.

O desprezo pela vida, que ambos cultivam, encontro-o na bd melancólica de Fonseca & Morais, Caze – Um caso de ópio. Narrativa na velha tradição do policial negro, mergulha a aventura nas lendas chinesas que tudo sintetizam em pintura, que tanto pode vaticinar a morte do seu pintor como dar vida a uma águia. «Ela descia, vagarosa e sonolenta, senhora antiquíssima dos ventos e das elipses, até pousar nas copas mais altas dos jardins proibidos.» O traço solto, meio desajeitado, sublinha os passos ziguezagueantes de Caze, o detective que parte em demanda, por encomenda, de um antepassado português, portanto de uma identidade, afinal não mais que ladrão de arte e de passados. O testemunho chega-nos por escrito e na primeira pessoa. Será mesmo apenas um caso de ópio, ainda que este sirva para amaciar as arestas da vida? Não, nem mesmo do ódio, aquele que a personagem do Paulo persegue em ensaio para explicar Pessanha. Sendo nós, cada um de nós, pouco mais que sombra em trânsito, saber apagar-se releva da sabedoria. E apagar outros não custa assim tanto, pelo que a mandatária de Caze desaparece no fim, sem custo, em viagem ao fim do mundo. Macau ergueu-se ilha do fim do mundo, ainda que por ali nasçam princípios a cada esquina, também o tempo.

Por que fez Orson Welles de Macau o cenário da peça magnificamente filmada, a sua primeira a cores, «The Immortal Story»? Pourquoi pas?, diz Jeanne Moreau, anunciando o lema da casa do pai, que se suicidou por ter experimentado a miséria às mãos do todo poderoso Orson Welles. Macau pouco mais acontece aqui do que evocação de um lugar que comunica com os infernos. Para mim, Macau está nas escadas que sobem e descem na semi-obscuridade. Não são as paisagens que contam, mas rostos, filmados como só Welles sabia, olhando de frente a câmara, pois ela é o destino. «As pessoas só recordam coisas que já aconteceram», diz o gigante solitário e moribundo que Welles incarna, afinal um encenador, demiurgo do mal. E se o dinheiro for capaz de produzir uma realidade que preencha o vazio de uma história de marinheiros? Isso mesmo se congemina, o velho relato de um marinheiro a quem o marido paga para engravidar a mulher vai acontecer. Acontece por ser Macau o farol do poder do jogo, claro, mas sobretudo do ouro, que «é sólido e à prova de dissolução», diz o mais dissoluto senhor do dinheiro nesta imortal história. Abunda o vermelho nas cores saturadas e fortes, translucidas apenas na cama, palco maior do acto entre Virginie e o virgem, marinheiro que não perdeu as graças da palavra. A madrugada faz tombar o pano da dor. Para o senhor da venalidade, os olhos fecharam-se-lhe de vez. Mas não haverá, apesar da dor, neste cruzamento de encontros novos princípios? Valha-nos Pessanha, chão onde sumir.

«Na inundação da luz/ Banhando os céus a flux,/ No êxtase da luz,/ Vejo passar, desfila/ (Seus pobres corpos nus/ Que a distância reduz/ Amesquinha e reduz/ No fundo da pupila)// Na areia imensa e plana/ Ao longe a caravana/ Sem fim, a caravana/ Na linha do horizonte/ Da enorme dor humana,/ Da insigne dor humana…/ A inútil dor humana!/ Marcha, curvada a fronte.//  Até o chão, curvados,/ Exaustos e curvados,/ Vão um a um, curvados,/Os seus magros perfis;/ Escravos condenados,/ No poente recortados,/ Em negro recortados,/ Magros, mesquinhos, vis.// (…) A dor, deserto imenso,/ Branco deserto imenso, /Resplandecente e imenso, /Foi um deslumbramento. /Todo o meu ser suspenso,/ Não sinto já, não penso, /Pairo na luz, suspenso /Num doce esvaimento.»

6 Set 2017

Recuos, mais que avanços

Santa Bárbara, 22 Agosto

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om esforço (nada é sem ele agora), procuro experimentar o tempo de modo distinto para o travestir de férias, essa invenção pequeno-burguesa. Parar não devia obedecer a nenhum calendário. A preguiça devia ser estado natural de qualquer indivíduo, e aqui me confesso seguidor de Lafargue. «Ó miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! Ó lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida.» Teimo em erguer uma fábrica no meio da minha povoação rústica e isso paga-se. Na vez de me dedicar ao essencial gasto-me, em pleno Agosto, a fazer cobranças difíceis, dificílimas. Poupo-nos à desgraça de um diário mais próximo da suja realidade.

Ora o essencial está nisto, por exemplo: o Paulo [José Miranda] foi entregando, nos últimos dias e com horas de intervalo, dezenas de versões do seu novo e desafiante romance. A mais recente acontecia ser todavia ainda mais final que a anterior. E mesmo depois da finalíssima veio uma derradeira. Fechado esse capítulo abriu-se a discussão em torno do título, que logo aqui e agora que ficar resolvido. Isso além do lançamento e do lançador. O coração do editor vive deste sangue e o tempo devia suspender-se por via de primeira leitura ansiosa, de uma segunda de lápis na mão, antes de terceira para deleite e ajuste. Vai demorar um pouco mais, mas só um pouco, por causa das dezenas de chamadas em espera, das combinações por acertar, das agendas para ferir de urgências a vermelho. Uma delas, um título que nos acalme as ânsias. (Mão amiga entrega-me romance de Reginaldo Pujol Filho: «só faltou o título», assim se chama).

Horta Seca, 23 Agosto

Recuo. Na flecha disparada ao futuro, os desvios chamam-se recuos. Uma seta não se consegue puxar para trás. Uma arma de fogo, essa, depois do disparo dá coices. Nunca disparei uma pistola. Bisnagas, sim. As engenhosas e doidas das infâncias, sim. Passos às arrecuas, dei sem querer. Passos às arrecuas, fui obrigado a dar. Quem se estende para diante em voluntarismo deve com isso contar. Vejo agora que as setas, como nos desenhos animados, podem, sem perder força, rodar no ar e voltar na nossa direcção. O progresso, essa invenção pequeno-burguesa, faz-se de alcatrão mole, apenas estrada, pouco horizonte. Preciso muito de me afastar no tempo para pôr contornos do difuso neste presente feito de recuos.

Horta Seca, Lisboa, 24 Agosto

Mário Gomes entrega trabalho hercúleo que as circunstâncias não me deixam apreciar devidamente. Ainda vou na leitura ansiosa da primeira tradução para português de Arno Schmidt (na foto), no caso, duas novelas, «Leviatã e Espelhos Negros». Confirmei o que apenas antecipava, por causa de detalhes e do discurso apaixonado, contudo esclarecido, sobre a obra e o autor, a qualidade do texto final em português radicalmente novo. Schmidt, que conhecia mal, mudou o alemão e terá, portanto, que mexer com qualquer língua. Mário transpô-lo com elegância e cuidado extremo. Parece-me que a abysmo nasceu para editar Arno Schmidt. Quando o sinto com um autor, acredito que sou editor. (Dura pouco a sensação).

Ao calhas: «E os incontáveis paralelos de granito zumbiam debaixo de mim, à esquerda, à direita; passados sete minutos estava de novo a arfar pela faixa de asfalto entre Ebbingen e Cordingen: placas cor de óleo de linhaça, conscienciosas que nem funcionários públicos, indicavam em todas as direcções da pista de corrida: oh, gente de juízo! Amplo e verdejante, o berço do final da tarde, arborizado, pedaços de bosque por todos os lados, o vento estava fresco e, com um assobio de pífaro, mandou-me rumo a casa, pelo prado fora; deslizei, balançando-me sobre coxas duras e esmagadoras, pela faixa ondulada de asfalto: viva a solidão!»

O cuidado pode ser medido neste episódio. No Espelhos Negros, de onde retirei as linhas anteriores, surgem incursões pela matemática, pelo que pareceu avisado ao Mário dar a ler a quem soubesse. Recorri à Carlota [Simões], que anima o belíssimo Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, e soma aos inúmeros saberes uma curiosidade dispersa e o uso de língua próxima do alemão. Logo se percebeu que não se tratava apenas de bem enquadrar o Teorema de Fermat e demais vizinhanças, mas de detalhes de balística, o que levou a posterior investigação e mais contactos. Tudo porque o autor, não contente com a hipótese de pôr pombos a voar como balas, resolveu transformar a ideia em equação. Ninguém daria pelas pequenas incongruências, uma ou duas do próprio autor. Trabalhamos para os dois ou três que notariam.

Estou em crer que a edição de Arno Schmidt poderá ter que ser lida com recurso à balística, tal os movimentos que causará nos leitores que se atreverem.

Alvalade, 27 Agosto

Ver no estádio um jogo de futebol continua, apesar disto e daquilo, fascinante. Um dos mais divertidos paradoxos dá-se na dança entre ruído e silêncio. Habituados à narrativa torrencial da televisão ou da rádio, ali a coreografia desenrola-se em silêncio pontuado nos picos do drama pelas neves de vogais abertas ou fechadas pela aflição e pela alegria. No entorno, claro que se conversa, tantas vezes absoluta e distante banalidade, como se cultiva a mui nobre e elevada arte do palavrão, nem sempre com criatividade; claro que se comenta e analisa, do detalhe de uma jogada ao panorama geral do sistema, de uma memória revivida à projecção de campeonato inteiro. Mas o olhar cria uma campânula de cristalino silêncio no rectângulo verde, se concentrado nas deambulações daquele talento individual ao serviço do colectivo que se dobra e desdobra, em avanços e recuos, tornando-se ele, nos bons momentos, entidade única, viva, orgânica e esmagadora. O vidro estilhaça com o golo feito seta de grito uníssono.

O Sporting ganhou, sofrendo, muito por sua culpa, ao Estoril Sol por 2-1, com golo anulado a cada equipa pela figura fantasmática do vídeo-árbitro. Mathieu entrou na short-list com grande jogo: aprecio quem, vindo da defesa, rasga campo para desequilibrar com a velocidade do inesperado ou vice-versa.

30 Ago 2017

Lâminas em busca de coração

Horta Seca, Lisboa, 31 Julho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]contece com estranha frequência que uns dias se fazem buraco negro e sorvem o à volta. Julho baralhou-me os dias, os calendários, as agendas. De que servirá um diário, se os passos da escrita andarem à volta dos mesmos dias? Jeanne Moreau morreu, mas continuará a flâner, a deambular entre carros, no avesso das montras, à chuva, na pista de dança, de novo em cidade outra, nas teias de aranha do desejo, no cabaret fantasmagórico. Jeanne será mais da luz, doravante. Arrume-se isso no óbvio, aceitemos a graça de viver em tempos de fluxos ininterruptos e acessíveis. Revisitaremos as imagens sempre que houver necessidade de dar de beber à melancolia. Avancemos oceano dentro, o da voz. Jeanne dizia poesia, de Vinicius e de Genet. Jeanne cantava Duras e Norge, poeta du pays plat, que fará link inesperado a entrada mais adiante. E que bem cantava e dizia a morte, le vrai scandale. Os buracos negros absorvem de nós maturidades e deixam-nos na seca adolescência, indecisos apenas com vontade de ir, escusado será dizer que sem para onde ou por quê. Vai daí gravei cortante cassette com a playlist para riscos de ponta e mola no mapa.

Acerte-se princípios, desde que difusos, com Le Blues Indolent, de Cyrus Bassiak, aqui sem o grão da voz, mas oferecendo sensualidades de allumeuse. «Je suis indolente, mes yeux sont vagues, vagues, vagues/ Et je balance mes hanches vaguement/ Mes lèvres remuent, fardées de mots si vagues, vagues/ Les passants hésitent en me croissant/ Le temps maudit toujours les presses/ Le vent si lent pour celle qui attend/ Le temps me berce de paresse/ Alors je chante sans fin ce vague chant». Os passeantes cruzam-na, apesar da hesitação. O tempo amaldiçoa os apressados. Para onde seguir se nos perdemos já, se somos sem paisagem ou amor. Sigamos imóveis com India Song, de Marguerite Duras, hino dos sem rumo. «Chanson,/ Toi qui ne veux rien dire/ Toi qui me parles d’elle/ Et toi qui me dis tout/ Ô, toi,/ Que nous dansions ensemble/ Toi qui me parlais d’elle/ D’elle qui te chantait/ Toi qui me parlais/ d’elle/ De son nom oublié/ De son corps, de mon corps/ De cet amour là/ De cet amour mort.» A canção que nada quer dizer diz afinal tudo e na voz habitam já as profundezas. Anda por aqui desejo e morte. Hesito. Devia talvez ter saltado antes para a Chanson a tuer, de Norge, onde noto alegria infantil no jogo das facas que desemboca em frieza de estátua, aspirando a homicídios perfeitos. «Plante ce couteau, minette/ Mais droit au coeur s’il te plaît/ La besogne à moitié faite/ Et les meurtres incomplets/ Font horreur à l’âme honnête/ Qui n’aspire qu’au parfait/ Qui n’aspire qu’au parfait/ Parfait, parfait, parfait». A lâmina procura um coração ao ritmo de chansonnette o mesmo com a noite esquecerá o crime. É chegada a hora de Genet, em tom esgaçado e pesado, sem perder a clareza da folha da navalha: «Rocher de granit noir sur le tapis de laine/ Une main sur sa hanche, écoute-le marcher/ Marche vers le soleil de son corps sans péché/ Et t’allonge tranquille/ Au bord de sa Fontaine». Granito sobre lã, amor que fere. Espelho desse outro, que Jeanne sussurra em francês sincopado, e aqui espraio no original de Vinicius: «Oh, minha amada/ Que os olhos teus//  São cais noturnos/ Cheios de adeus/ São docas mansas/ Trilhando luzes/ Que brilham longe/ Longe nos breus// Oh, minha amada/ Que olhos os teus// Quanto mistério/ Nos olhos teus/ Quantos saveiros/ Quantos navios/ Quantos naufrágios/ Nos olhos teus». Vai longa a caminhada, por décadas e sítios de nunca ficar. Não precisamos de final, sendo a vida cabaré, outro número se fará súbito. Chamemos Oscar Wilde, mestre de conclusões, para anunciar o essencial em colorido arrastado e espesso, uma prece, um apelo. Uma pergunta ecoa (a imagem é de Querelle, o filme de Rainer Werner Fassbinder): onde vais? «Yet each man kills the thing he loves,/ By each let this be heard,/ Some do it with a bitter look,/ Some with a flattering word,/ The coward does it with a kiss,/ The brave man with a sword!/ Some kill their love when they are young,/ And some when they are old;/ Some strangle with the hands of Lust,/ Some with the hands of Gold:/ The kindest use a knife, because/ The dead so soon grow cold./ Some love too little, some too long,/ Some sell, and others buy;/ Some do the deed with many tears,/ And some without a sigh:/ For each man kills the thing he loves,/ Yet each man does not die.»

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Vão surgindo reacções, pouco menos que entusiásticas, ao início da publicação das Obras Completas de Fernanda Botelho, que iniciámos com «Esta Noite Sonhei com Brueghel». Ansiávamos por este momento, que circunstâncias várias nos fizeram adiar muito para além do razoável. Isto apesar do apoio incondicional da família, sobretudo da Joana [Botelho], a neta que assumiu a tarefa de avivar memórias, organizar espólio, recuperar a casa da Vermelha, convocar novos leitores, enfim, um infindável número de tarefas que tornam exemplar o tratamento que vai dando à obra. Sabemos bem que as famílias se comportam muitas vezes como se estivessem em contos do Valério [Romão], algures entre a indiferença alarve e a cupidez olímpica. Também a Paula Morão, e o seu Centro de Estudos Comparatistas, se juntou a nós entusiasticamente no afã de trazer à tona uma voz oriunda das profundezas, mas que não precisa de nelas ser enterrada.

Muitas razões justificaram o começo por aqui, pois nada nos obrigava à cronologia habitual. O forte carácter autobiográfico, as correspondências com a imagem, no caso a pintura de Brueghel, a reflexão sobre a escrita, a lúdica complexidade da estrutura, o recorte a navalha dos protagonistas, as cidades (belgas) como personagens, o olhar teatral sobre o estranho mundo dos afectos, a gloriosa potência do desejo, o desenho do feminino, a luxúria da linguagem e um uso raro dos diálogos, enfim, o conjunto serve bem de introdução a uma obra cheia de recantos, tantas vezes obscuros e desafiantes. Retiro mais gozo desta leitura, confesso, por culpa do veneno. A Isabel Lucas, no Público, afinou pelo diapasão da ironia, que não deixa de ser um dos cimentos, mas creio que a Fernanda Botelho afia um pouco mais o olhar e a palavra. Vai um exemplo? «A gente de Brueghel ostenta com desfaçatez a sua vocação primária para o vício incorrupto, tanto quanto para um casto e regozijado amor à terra pródiga — mas que significa isto, afinal? Talvez signifique desperdício, muito simplesmente. Muito simplesmente desperdício! Mas onde viveu esta gente, em que galáxia, em que mundo? Confesso que aquele homem gordo de chapéu à banda, com pernas em forma de presuntos esticados e mangas enfoladas para arejar o suor, confesso que me perturba, a mim, que fossilizei as minhas aventuras mentais em tipos escorridos, apertados em blue-jeans e com barba mal despontada. Detesto aquele homem gordo, mas ele perturba-me. Não sei o que pense dele, certamente nada de lisonjeiro, porém profundamente marcante. Detesto-o (ou assim o julgo), mas ele excita-me, ou talvez seja apenas fascínio o que sinto, declaradamente ao nível mais baixo da minha vileza humana.»

23 Ago 2017