As sombras

 

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hegam de mansinho e fecham-se, bem fechados, como se as ruas lhes fizessem mal. A clausura que procuram não deve, nem pode, ser confundida com vontade de transmitir humildade. É o contrário. O isolamento que os rodeia tem características de redoma, uma redoma que julgam pintada a ouro, pintada com ouro, condicente com a sonância dos apelidos que acompanham o nome próprio, pelo que já foram e agora são.

Chegam com pompa e circunstância, dentro das circunstâncias possíveis da pompa de quem já não sabe – talvez nunca tenham sabido – onde está. Comportam-se como príncipes de um reino que nunca lhes pertenceu, seres que não se confundem com a plebe, eles é que tiveram importância, sem os seus actos e omissões nada seria como é. O passado assalta-nos porque eles são o passado.

Chegam com silêncios. Fecham-se em copas e espadas, ases na fuga aos microfones, para os quais não são capazes de olhar sem uma certa altivez a roçar o desprezo, ou com um certo desprezo que gostaria de ser altivo, mas que não consegue sê-lo por falta manifesta de pedigree.

Mas eles estão aí. Vêm em excursão, não obstante detestarem excursionistas e autocarros, e paragens nas estações de serviço para abastecer e desabastecer. Andam aí não se sabe bem onde, nem a fazer o quê. Reúnem-se e discutem o futuro dos outros, como se pudessem decidir o futuro dos outros, trocam elogios comedidos e beijinhos contidos, gostam imenso de se verem uns aos outros enquanto se vêem uns aos outros, depois é melhor nem falarmos nisso. O resto? O resto nem paisagem consegue ser.

Não quero ficar no passado, neste passado de palácios e adjuntos e transferências e tricas e o que não se disse e o que não se fez. O passado interessa-me numa perspectiva histórica, sociológica e política, mas nada me diz como forma de vida, de pensar e de estar.

Há uma certa Macau que, do nada, aparece para dizer que ela é que era, porque a Macau de hoje não existe. Eles desconhecem-na, propositadamente, abafam-na com o cheiro a naftalina que imagino que sempre tiveram, pelo que me dizem os livros de história que fui lendo.

Essa Macau do passado que, de vez em quando, nos assalta, ignora a realidade, é incapaz de ver a mudança, não tem capacidade de perceber que os anos têm 365 dias e que passam uns atrás dos outros, os dias e os anos, e que com eles tudo muda. Houve gente que morreu desde que foram embora. Houve gente a nascer desde que foram embora. Há gente a chegar todos os dias, a comunidade já não é a mesma, é outra, tem outras preocupações que não os desentendimentos de há duas décadas, tem os problemas de hoje para gerir e não tem culpa – nem quer ter – do passado ao qual pertence apenas por herança nacional.

Esta mudança não se põe em bicos de pés. Não tem por que o fazer. Por não se pôr em pontas, passa despercebida neste bailado lento, com um ligeiro cheiro a mofo, que se dança quando a população provisoriamente se altera, por via das visitas que se sentam, lado a lado, em confortáveis poltronas, debaixo do ar condicionado que lhes seca o suor e desfaz a maquilhagem.

Ainda assim, apesar de terem os pés completamente colados ao chão, os que cá estão, os que ficaram e os que entretanto chegaram, vivem e têm direito a viver sem sombras. Sem terem de levar, de modo excessivo, com as balas que se atiram lá de longe, de há 20 ou 30 anos.

Chegou a altura de o retrato ser diferente, porque a fotografia de família não representa ninguém.

24 Mar 2017

Hong Kong | Carrie Lam é a favorita das eleições de domingo

Vinte anos depois da transferência de soberania, Hong Kong deverá passar a ser liderado por uma mulher. Dos três candidatos às eleições para o Chefe do Executivo, Carrie Lam é a mais forte, apesar de ser a menos popular. Para este sufrágio, pouco interessa se o povo gosta ou não. Já depois, a história pode ser outra

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap[á saberá o que diz. Esta semana, o magnata Li Ka-shing resumia, em declarações aos jornalistas, o que vai acontecer no próximo domingo: quando chega a hora de escolher o Chefe do Executivo, “o candidato que detém a confiança do Governo Central derrota o candidato mais popular”.

Sem revelar expressamente o sentido de voto, o milionário deu a entender que vai votar na antiga secretária-chefe Carrie Lam. Tudo aponta que seja a escolha de Pequim, apesar de, nos exercícios de auscultação dos desejos populares, o ex-secretário para as Finanças John Tsang ser bastante mais popular.

Acontece que, à semelhança de Macau – ou, para sermos mais rigorosos, em sentido inverso, porque o método foi inventado para Hong Kong e depois copiado para Macau –, o Chefe do Executivo da região vizinha é escolhido por um reduzido número de eleitores. O colégio que, a 26 de Março, vai escolher o sucessor de C.Y. Leung reúne apenas 1194 pessoas. São representantes de grupos de interesses e, na maioria, são pró-regime.

O sufrágio deste ano é acompanhado com particular interesse pelos analistas políticos. É o primeiro desde os grandes protestos de 2014 a favor da reforma do sistema, um movimento que deu em coisa nenhuma. E acontece numa altura em que Hong Kong passou a ter, assumidamente, defensores da independência em relação à China.

Além de Carrie Lam e de John Tsang, na corrida está também Woo Kwok-hing, um magistrado de 71 anos, independente, um homem que apareceu sem que ninguém estivesse à espera e que deverá inscrever o seu nome na história política da região apenas por ter sido candidato. Não tem hipóteses de sair vencedor mas, ainda assim, salienta o politólogo Éric Sautedé, foi o único a apresentar um programa político verdadeiramente diferente.

A vantagem dos 49 por cento

Os últimos dias não têm sido fáceis para a Carrie Lam. “Têm corrido rumores de que a Comissão Independente contra a Corrupção está a levar a cabo uma investigação. Terá havido uma denúncia de que tem residência no Reino Unido, uma vez que o marido é britânico, o que poderia invalidar a candidatura”, contextualiza Éric Sautedé. O politólogo francês a viver em Hong Kong não acredita que tal venha a acontecer, até porque “Lam não tem passaporte do Reino Unido”, pelo que acredita que a ex-secretária-chefe sairá vencedora da corrida. Porém, o facto não deixa de marcar a recta final da campanha.

Vista como uma mulher fria e determinada, Carrie Lam foi alvo de duras críticas por parte dos seus adversários recentes. John Tsang e Woo Kwok-hing disseram esta semana que “age como um ditador”. Tsang, antigo colega de Lam na equipa de C.Y. Leung, entende que é preciso mantê-la “bem-disposta” caso seja eleita. “É preciso ter a certeza de que actua de forma benigna.”

Na apresentação da candidatura, do universo de quase 1200 eleitores, 580 estiveram ao lado da antiga secretária-chefe. É ela a que conta, em teoria, com mais apoiantes entre aqueles que efectivamente decidem. São 49 por cento contra os 15 por cento de Woo Kwok-hing e os modestos 14 por cento de John Tsang.

Existem rumores de que Carrie Lam teria ainda mais membros da comissão eleitoral a apoiá-la, mas que os terá deixado de lado para tentar mostrar que se trata de uma verdadeira eleição, de que pode ser desafiada”, conta Sautedé. “Se apresentasse mais de 600 apoios pareceria muito mal, porque o assunto estaria arrumado.”

Pringles e ‘selfies’

Conhecido como “Uncle Pringles”, por se assemelhar ao ícone das batatas fritas desta marca, John Tsang não deverá ser eleito no próximo domingo, mas há uma batalha de que já saiu vencedor: é o mais popular dos candidatos nas sondagens e estudos que foram sendo feitos. Apesar de ser do mesmo quadrante político de Carrie Lam, tem uma imagem mais suave, em linha com a geração mais nova.

A questão é mesmo quem vota. Éric Sautedé salienta que a maioria dos apoios dados à candidatura do ex-secretário para as Finanças é proveniente do campo pró-democrata. No início desta semana, os membros pró-democracia do colégio eleitoral prometeram dar 290 votos a John Tsang.

Todas as declarações dos independentes e pró-democratas a favor de Tsang tiveram impacto junto da população. Fez uma campanha mais virada para as pessoas comuns. Tirou ‘selfies’ com toda a gente. Não há um equivalente para Carrie Lam.” Para a popularidade do ex-secretário para as Finanças conta ainda o facto de ter feito promessas em que parece atender às exigências dos residentes.

Há quem entenda que a forma como John Tsang tem sido acolhido poderá ser contraproducente para Carrie Lam. Tal não influenciará a votação, mas poderá “causar alguma tensão”, concorda Sautedé. “Mas, feitas as contas, é como diz Li Ka-shing: ganha quem tem mais importância, não o mais popular. E, afinal, os dois candidatos são muito próximos. Não tenho a ilusão de que existam diferenças substanciais entre eles. Tudo o que fizerem, um ou outro, será altamente constrangido pelas pessoas que votaram neles.”

Para o analista, uma coisa é, no entanto, certa: Carrie Lam, a ser eleita, será alvo de um escrutínio muito maior. É aí que a popularidade – ou a falta dela – passa a ser um factor relevante.

Edmund Cheng, analista político e professor da Universidade Baptista de Hong Kong, partilha do mesmo entendimento, até porque há já uma certa tradição entre popularidade e escolha do vencedor. “Passa a ser um maior desafio para um governante ter de lidar com a falta de apoio popular.”

O que vem do Norte

À semelhança de Éric Sautedé, também Edmund Cheng encontra mais semelhanças do que diferenças entre os dois candidatos mais bem posicionados, a começar pelo facto de serem ambos funcionários públicos há mais de 30 anos. “Mas, ainda assim, existem diferenças”, ressalva.

Porque é que Tsang é tão popular? Parece ter capacidade e vontade de estabelecer uma relação de proximidade com a população. Acredita que o maior problema de Hong Kong é político e que é preciso reduzir as diferenças sociais numa sociedade muito polarizada.” Já Carrie Lam demonstra acreditar que, ao resolver os problemas do quotidiano, conseguirá minimizar as reivindicações de natureza política.

O ex-secretário para as Finanças, continua o professor universitário, não terá o apoio do Gabinete de Ligação do Governo Central, o que, “para muitas pessoas de Hong Kong, é uma vantagem, porque significa que pode proteger a autonomia da região”. Edmund Cheng salienta que um dos principais problemas da antiga colónia britânica é “o aparente controlo excessivo” da representação de Pequim, “em todas as questões políticas e sociais”.

Carrie Lam, por seu turno, “deverá beneficiar em muito do apoio do Gabinete de Ligação”, no que diz respeito ao número de eleitores que vão depositar nela a tarefa de governar Hong Kong. “Mas quando for eleita, terá de ouvir o que o Gabinete e isso preocupa a população.”

As preocupações da população não deverão influenciar o sentido de voto de homens como Li Ka-shing. Mas se, por hipótese académica, houver uma segunda volta, John Tsang deverá poder contar com os votos dos eleitores de Woo Kwok-hing, uma vez que o magistrado já prometeu apoio incondicional ao antigo secretário para as Finanças.

Os analistas não acreditam que Tsang tenha uma segunda oportunidade. Carrie Lam já deverá ter alinhavado o discurso da vitória. Não tem popularidade, mas tem poder.

24 Mar 2017

Leonel Alves, deputado, sobre Lei de Terras: “Há um grande desconforto dos investidores”

O modo como a Lei de Terras tem estado a ser aplicada está a prejudicar a credibilidade de Macau dentro e fora de portas. Leonel Alves insiste que é preciso apurar responsabilidades antes de se decidir pela declaração da caducidade dos terrenos e recorda o processo que esteve na origem de várias concessões. À conversa com o HM, o advogado fala ainda da necessidade de se criar um órgão municipal sem poder político, assim como de avançar com a lei sindical. Quanto às eleições, o deputado com mais anos de Assembleia ainda não decidiu se é candidato. É que já lá vão 33 anos.

[dropcap]V[/dropcap]oltou agora de Pequim, da reunião magna da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC). O que é que se leva para Pequim e o que se traz?
Normalmente, por questões de calendário, a Assembleia Popular Nacional reúne-se em simultâneo com as sessões da CCPPC. Um é o órgão legislativo e o outro é o órgão consultivo, o que não quer dizer que todos os diplomas aprovados na sessão plenária sejam discutidos na Conferência Consultiva. Às vezes, a CCPPC é chamada a pronunciar-se sobre diplomas legislativos, mas nem sempre. Há uns três anos, tivemos oportunidade de nos debruçar-mos sobre o projecto do Código Penal. Tive a oportunidade de fazer uma espécie de comparação com o que se passa em Macau e é também positivo acompanhar a evolução legislativa da China. Este ano, essa evolução focalizou-se na questão do Código Civil. A grande meta que se pretende atingir é, em 2020, a China ter um Código Civil, incluindo todas as matérias que estamos habituados a ver neste tipo de codificação, e talvez incluindo muita matéria a que chamamos de direito comercial. Neste momento, a China vai iniciar um novo ciclo económico, que tem que ver muito com as inovações, a criatividade, o registo de patentes e de marcas, pelo que foi um aspecto a que se deu alguma atenção nesta sessão plenária. Os trabalhos centram-se, às vezes, na vertente jurídica e legislativa, e outras vezes nas questões económicas e sociais. Na China, há sempre duas questões que são fundamentais: uma delas é a reforma, reconhece-se que precisa de reformas profundas em todos os sectores da vida social; e outra é a abertura, a abertura da economia, de espírito, de pensamentos. São essas duas vertentes que insistem nestas reuniões.

“Não basta a Assembleia dizer que o Governo tem de ser transparente. A própria Assembleia tem de ser transparente”

Na organização do sistema de direito da China, Macau pode ter, nomeadamente nas questões relacionadas com o sistema jurídico, um papel importante, no sentido em que o direito do território é continental?
Tenho insistido bastante, quase todos os anos, que Macau é o local privilegiado – de todo o território chinês é o único – em que se pode fazer esse encontro e troca de experiências ao nível jurídico, porque a base é relativamente comum, é o direito continental. É muito mais difícil haver uma integração ou uma similitude com o direito de Hong Kong, que é a Common Law, e o direito continental da China. Com o direito de Macau, as bases são bastante mais próximas e um diálogo ao nível jurídico e legislativo poderá ser bastante profícuo. Macau é território chinês, o direito de Macau é direito chinês, com características próprias, porque é de inspiração europeia. Macau tem ligações com a Europa. Sobretudo com a União Europeia, podemos estabelecer contactos diversificados e fáceis. Pode ver-se que, ao nível político, há uma abertura e uma simpatia muito grandes em relação a Macau. Nunca vi nenhuma instância europeia levantar problemas num diálogo profícuo com Macau. Não é só um centro e uma plataforma, como se costuma dizer – Macau é também um local privilegiado da China para estabelecer este intercâmbio cultural. Na vertente do direito, é excelente. Conheço muitos professores e académicos portugueses com total abertura para esta cooperação. Conheço também muitos académicos e juristas chineses interessados em conhecer o mundo ocidental. Perguntaram-me várias vezes se não havia livros de Direito de professores portugueses escritos em inglês, porque para eles seria mais fácil compreenderem. Isto demonstra uma apetência grande de, a prazo, estabelecer este intercâmbio. Sendo uma plataforma de relações comerciais e económicas entre a China e os países lusófonos, estou certo de que Macau deverá desempenhar esse papel de polo de atracção de duas correntes legislativas diferentes, mas que se podem adaptar e que podem aprender uma com a outra.

Em termos políticos, Macau tem correspondido aos desígnios de Pequim?
O que é que Pequim quer? Em primeiro lugar, estabilidade social. Depois, desenvolvimento económico. Sem desenvolvimento económico não haverá prosperidade e bem-estar da generalidade da população. Macau teve a sorte de, poucos anos depois da transferência de soberania, ter-se iniciado um ciclo económico adequado e que propiciou vantagens para todos. Houve um acréscimo significativo de receitas públicas e, com elas, Macau reuniu as condições para proporcionar à população outro nível de vida. O ensino gratuito obrigatório é já uma realidade, em termos de orçamento uma boa fatia é dedicada à educação. A função mais importante de Macau é proporcionar às gentes de Macau a melhor educação possível. Fala-se muito na diversificação económica, matéria difícil e complexa, e pela minha maneira simples de pensar, acho que se conseguirmos dar aos residentes de Macau boa instrução, boa educação, terão mais facilidade em encontrar saídas profissionais adequadas. Se não for em Macau, poderão encontrar em Hong Kong, na China ou em qualquer outro sítio do mundo. Somos uma população relativamente pequena, felizmente as receitas e as reservas são significativas. A grande aposta é dar à população melhores níveis de vida, melhor educação e é uma das metas que a China pretende que Macau concretize.

Mas há aspectos da vida que se deterioram a olhos vistos. Como é que Pequim olhará para o modo como Macau evoluiu? Desde que haja estabilidade social, Pequim considera que as metas estão alcançadas?
Não. É preciso que haja, além da estabilidade, uma economia sustentável e, neste âmbito, não basta ter uma indústria forte, a dos jogos de fortuna ou azar. Há também a necessidade de diversificar a economia. Esta diversificação tem sido um objectivo político constantemente repetido. Não é fácil, mas a China e o Governo de Macau têm feito o possível para que se inicie. Não aparece num ápice, é preciso ir degrau a degrau e, para o pensamento chinês, leva o tempo que for necessário. Não é por acaso que se fala em Macau como plataforma entre a China e os países lusófonos – é um desígnio que a China apontou para Macau e creio que já foram dados alguns passos. Muitas vezes gostamos que esses passos sejam mais céleres e que os resultados concretos surjam à superfície, com clareza e confiança. Nem sempre na vida real é assim. Mas uma coisa é certa: há uma vontade política sólida, consistente, em colocar Macau neste contexto de servir de plataforma com os países lusófonos. Já se vê que muitos países lusófonos olham para Macau de outra maneira. O último fórum ministerial foi muito positivo. Encontrei pessoas africanas a dialogarem com parceiros chineses do Continente, falando todos em português, o que é sinal de que as coisas estão a encaminhar-se bem, a ganhar forma. Em resumo: é preciso que haja um objectivo político. Esse objectivo político é constantemente relembrado pelas autoridades de Pequim e o Governo de Macau tem feito o possível para que se concretize cada vez mais.

“Eu próprio, deputado, não tive acesso, até hoje, às tais gravações. Tudo é discutido à volta daquilo que possivelmente terá sido dito.”

Está na Assembleia Legislativa (AL) desde 1984. Já no pós-99, durante vários anos, teve um papel muito activo, uma vez que fazia parte da Mesa da Assembleia. Deixou de exercer essas funções há duas legislaturas. Como é que olha para a AL? Esta Assembleia serve a Macau?
A população é que saberá dizer se serve ou não. A AL do passado, da Administração portuguesa, era uma Assembleia de pendor mais legislativo e, porventura, com menos ligação à realidade social, às demandas da sociedade. Havia um ou outro deputado, da comunidade chinesa, que trazia questões muito individualizadas. O pendor era mais legislativo, o processo de transição também ditava outros processos de actuação. Na AL pós-99, o pendor é completamente diferente. A Assembleia é mais uma plataforma de discussão de questões do dia-a-dia da comunidade, o que também é útil, mas o pendor legislativo fraquejou.

As grandes políticas estão cada vez menos presentes para dar espaço aos problemas do quotidiano?
Há um maior número de interpelações, o diálogo entre os deputados e os membros do Governo é mais directo. Pena é que as reuniões sejam à porta fechada. Há muitas reuniões – quer ao nível das comissões permanentes, quer das comissões de acompanhamento – que focalizam aspectos muito interessantes que Macau defronta neste momento. A população não sabe aquilo que se passa pela imposição da regra das reuniões à porta fechada.

As reuniões deviam ser abertas?
Sim. A população merece. Não basta a Assembleia dizer que o Governo tem de ser transparente. A própria Assembleia tem de ser transparente. E uma forma de demonstrar essa transparência é, nas reuniões que sejam importantes, o acesso ao público ser mantido.

Faz falta uma assembleia municipal em Macau? Até para que estes temas de que fala possam ser debatidos.
Sim, por duas razões: primeiro, são questões muito focalizadas de diversas zonas de Macau e, depois, é um bom meio para incentivar novos actores a entrarem na cena política, para que façam a sua aprendizagem e tenham um primeiro contacto com a gestão da coisa pública.

“O Governo deverá tomar a iniciativa [de avançar para a lei sindical], tem de se incentivar o Conselho de Concertação Social para chegar a determinadas bases comuns mínimas.”

Está prometida a criação do órgão municipal sem poder político. Para já não se conhece sequer o teor do poderá ser. É uma abstracção.
Continua a ser uma abstracção, espero que se altere a curto prazo. De certeza que não vai ser nesta legislatura. Espero que o assunto seja definitivamente resolvido antes do termo do mandato do actual Chefe do Executivo, em 2019. Não faz sentido a Lei Básica prever órgãos municipais sem poder político e não haver uma concretização prática. Há que fazer um esforço político neste sentido, a sociedade civil também pode contribuir para definir concretamente o que é isto de um órgão municipal sem poder político. ‘Sem poder político’ significa que não pode legislar, não pode criar portarias, como antigamente se fazia, tem de gerir as questões da cidade. A região de Macau também se confunde com a própria cidade – era um problema que já existia antigamente com as autarquias locais. É uma dicotomia que não tem razão de ser, Governo só existe um, e o chefe do Governo é o Chefe do Executivo. Nesse parâmetro, o órgão municipal tem de ser algo que coopere e que ajude o Chefe do Executivo a gerir melhor as questões da cidade.

Por falar em Lei Básica e na sua consubstanciação. Faz sentido avançar com a legislação prevista no Artigo 27.o da Lei Básica, a lei sindical?
Acho que sim, está escrito na Lei Básica. O problema é que, depois de 17 anos, continua por se dar o primeiro passo.

Deverá ser o Governo a avançar, uma vez que, por iniciativa dos deputados, a questão não se resolve, como demonstram os chumbos aos vários projectos de lei apresentados sobre a matéria?
Pela ambiência política, pela experiência e por aquilo que aconteceu ao longo destes 17 anos, parece que, se não houver um pontapé de saída da iniciativa do Governo, dificilmente esse projecto chegará a bom porto. Portanto, o Governo deverá tomar a iniciativa, tem de se incentivar o Conselho de Concertação Social para chegar a determinadas bases comuns mínimas. Sem elas, esta iniciativa não terá grandes hipóteses de sucesso. Mas é altura de encontrarmos o consenso mínimo para se avançar. Macau já tem outro tipo de economia, temos grandes casinos, entidades empregadoras que contratam aos milhares, não se compara com a indústria de manufactura da década de 60, 70 ou 80. Muita coisa se transformou e seria bom haver mais disciplina, mais direitos e mais protecção para os trabalhadores. E quando se diz isto, implicitamente há mais direitos e protecção para o patronato, porque as coisas têm de avançar em paralelo.

“Não faz sentido a Lei Básica prever órgãos municipais sem poder político e não haver uma concretização prática. Há que fazer um esforço político neste sentido.”

Mas o patronato de Macau consegue perceber esta ideia?
Há dois patronatos. Há o das grandes empresas, das concessionárias, e há o patronato das pequenas e médias empresas que, porventura, ainda acha que uma acção colectiva dos trabalhadores poderá provocar desequilíbrios. Isto é uma realidade. Tem de ser bem ponderado, bem pensado, porque nada deve ser feito que prejudique a estabilidade e o desenvolvimento económico de Macau.

Ainda em relação à AL, para falarmos da Lei de Terras. Teve há uns tempos declarações, que foram consideradas polémicas, quando disse que a ideia que foi transmitida pelo Executivo, no debate em sede de comissão, era a de que as concessões então em vigor seriam analisadas caso a caso, aquando do fim do prazo, já com a nova legislação em vigor. Não parece ser isso que está a acontecer. Por exemplo, os concessionários da zona industrial de Seac Pai Van juntaram-se para contestar a decisão do Governo, argumentando que a culpa do não aproveitamento não foi deles. O presidente da AL anunciou que vão ser ouvidas as gravações das reuniões da comissão. O que pode resultar desta audição?
Em primeiro lugar, parece que os trabalhos preparatórios estão muito deficientes, poucas pessoas têm acesso. Eu próprio, deputado, não tive acesso, até hoje, às tais gravações. Tudo é discutido à volta daquilo que possivelmente terá sido dito. Agora, isto é uma boa lição: futuramente, para as leis importantes, é preciso haver trabalhos preparatórios adequados, por forma a que o intérprete depois saiba, com mais clareza, qual é a razão de determinadas soluções legislativas. No caso concreto da Lei de Terras, lembro-me que essa questão foi obviamente discutida ao nível da comissão, até porque, em 2013, já se sabia que, a breve trecho, poderiam acontecer diversos casos de termo do prazo de concessão. Lembro-me que a resposta do Executivo foi mais ou menos no sentido de que ninguém sem culpa poderia ser penalizado. Se um determinado terreno não pudesse ser aproveitado ao fim dos 25 anos por razões não imputáveis ao concessionário, haveria uma solução administrativa para o efeito, e não haveria necessidade de um artigo qualquer da lei especificar isto. O próprio conjunto da lei permitiria encontrar uma solução ao nível administrativo. Foi isso, mais ou menos, o que aconteceu. Se não tivesse sido isso, obviamente que os deputados – eu inclusive – não largariam o Governo até que desse uma resposta adequada a esta questão. E a resposta adequada é a própria lei, claramente, dizer qual é a solução e o caminho a seguir para estes casos. Infelizmente, em questão tão importante como esta, se olharmos para a nota justificativa da lei, para todas as intervenções do Governo e dos deputados, não há em parte alguma referência ao que está a acontecer neste momento – cegamente, após atingir o prazo dos 25 anos, independentemente da culpa do concessionário ou da culpa do Governo, tudo será revertido para a Administração.

Não está a ser tido em conta o que aconteceu nos 25 anos da concessão.
Suponhamos que o concessionário decidiu investir num prédio que deveria ter 40 pisos, mas só teve tempo para construir 39 – falta o último. No entanto, chega ao fim do prazo da concessão. Será tudo revertido para o Governo sem necessidade de indemnizar? Esta questão nunca foi discutida. O que acho muito estranho é ouvir as gravações, ouvir aquilo que nunca foi dito, porque era impensável ter-se dito que seria esta a política do Governo.

Mas o que poderá resultar da audição destas gravações?
Não sei, terá de perguntar ao autor desta ideia. De qualquer modo, é bom ouvir aquilo que se falou. Daí a necessidade de, para a discussão das grandes leis, das leis fundamentais ou das que têm grande impacto para a sociedade e para a economia, abrir ao público estas reuniões.

Mas, em termos práticos, a audição vai resultar no quê? Poderá funcionar como pressão política para que o Governo proponha uma alteração à lei?
O que acho importante é o que a AL e o Governo tiveram como consenso relativamente à política de gestão dos solos da RAEM. Se se ouvirem as gravações, óptimo, fica-se mais esclarecido. Mas a questão fundamental para o futuro é saber o que se pretende da nova política de gestão de solos em Macau. É uma política cega, insensível, que pode chegar a ter algum cheiro a confisco? O que é que se pretende com a nova gestão de solos e o seu impacto para o desenvolvimento de Macau? Isto afecta ou não o sistema financeiro de Macau, os bancos, a construção civil, o desenvolvimento normal e sustentável do mercado imobiliário? O que é que se pretende com esta nova lei? Com as concessões do passado, não há necessidade de averiguar qual o grau de responsabilidade do próprio Governo? Há terrenos que não puderam ser desenvolvidos porque não existiam plantas de alinhamento. É como um carro sem gasolina, que nunca anda. Fazendo uma pequena retrospectiva histórica, se olharmos para Macau na década de 90 – depois da assinatura da Declaração Conjunta, em que existe um anexo sobre a gestão de solos –, metade das receitas das concessões eram revertidas para o Governo de Macau e a outra metade para o futuro Governo da região. Isto significava que havia necessidade de fundos, quer para o Governo português de Macau, quer para o futuro Governo. Os orçamentos da década de 90 eram muito parcos.

“A questão fundamental (…) é saber o que se pretende da nova política de gestão de solos. É uma política cega, insensível, que pode chegar a ter algum cheiro a confisco?”

Havia, portanto, necessidade de concessionar as terras?
As receitas provenientes da concessão de terras assumiam uma parcela bastante importante, daí que houve várias concessões de terrenos que não eram edificáveis. Não havia planeamento urbanístico, não estavam infra-estruturados, não havia electricidade, canalizações ou ruas. Há um caso de uma concessão de uma parcela que está no meio do monte e que era impossível lá chegar porque não há acessos. No entanto, foram concedidos para se obter receitas públicas. Entretanto, os concessionários não podiam sequer apresentar projectos de arquitectura, por falta de plantas de alinhamento oficiais, por falta de tudo. É como se se vendesse um carro sem pneus, as quatro rodas não existem. Ficaram à espera delas para poderem iniciar a marcha. Os quatro pneus nunca apareceram e o carro ficou no mesmo sítio, não andou um milímetro, e o Governo diz que agora é tudo revertido para a Administração. A questão fundamental é: há ou não necessidade de ponderar a responsabilidade do concessionário e/ou do Governo para se saber por que determinado terreno não foi aproveitado depois de um prazo tão longo de 25 anos?

Evitavam-se processos em tribunal.
Evitavam-se processos em tribunal e, mais grave, evitava-se um certo mal-estar, um mau ambiente de investimento em Macau.

Sente que, neste momento, esse mau ambiente existe?
Há um desconforto muito grande da parte dos investidores, quer locais, quer fora de Macau. Agora em Pequim, por exemplo, muitos deputados e membros de Hong Kong da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês me perguntaram como é possível acontecer isto em Macau. É inconcebível como é que uma situação destas pode acontecer.

Estamos em ano de eleições legislativas. É candidato?
Para ser muito franco, ainda não pensei nisso. Só pensei numa coisa: estou na Assembleia há 33 anos e pesa um bocado. Pesa nos dois sentidos – no sentido de dever continuar, porque poderei contribuir com algo para alguma coisa, e pesa também do outro lado, mereço um bocado de descanso e dedicar-me a outras coisas. Não cheguei ainda a nenhuma conclusão, pelo que não posso dar uma resposta assertiva.

O que podemos esperar destas eleições? A AL tem vindo a evoluir para uma presença cada vez maior de um certo empresariado, ligado ao jogo.
É mais uma questão étnica. A população de Macau é muito diversificada, tem uma grande componente de pessoas com ligações a diversas províncias da China. As que assumem maior impacto são as de Fujian, de Guangdong. Parece-me que, nestas eleições, esta divisão entre pessoas de diferentes províncias do Sul da China continuará a ter uma influência grande junto do respectivo eleitorado, que poderá votar não em consonância com as ideias e programas políticos, mas em função da origem dos candidatos.

“A existência de um processo [de Ho Chio Meng] com estas características é alarmante. Tivemos o caso do secretário Ao Man Long, há dez anos. Neste âmbito, há algo de anormal depois de 1999.”

Falando agora do sistema judicial. Estamos a viver um momento crítico, no sentido em que temos o ex-procurador da RAEM a ser julgado. Como é que olha para isto? O sistema judicial de Macau sai descredibilizado?
O sistema judicial de Macau é muito jovem, nasceu no dia 20 de Dezembro de 1999. É altura para todos os interessados nesta matéria se sentarem numa mesa redonda e fazerem uma reflexão sobre o que aconteceu nestes 17 anos e aquilo que queremos até 2049. Neste caso, o processo está em curso, não sabemos se tem ou não culpa, a presunção da inocência prevalece. De qualquer maneira, a existência de um processo com estas características – a imputação da suspeita da prática de 1900 crimes – é alarmante. Tivemos o caso do secretário Ao Man Long, há 10 anos. Neste âmbito, há algo de anormal depois de 1999. O sistema de justiça tem andado, não se pode dizer que seja bom ou não, não é o melhor nem o pior do mundo, temos de ter a consciência disso.

Mas 10 anos depois do caso Ao Man Long, continuamos a ter um julgamento em primeira instância num tribunal de última instância, sem possibilidade de recurso. Não aprendemos.
Não tenho resposta. É algo incompreensível, porque é uma questão constantemente referida. É injusto quer para a acusação, quer para a defesa. Se a decisão for de absolvição, o Ministério Público não tem armas para recorrer e o contrário também é verdade. Quando a Lei Básica diz que há um alto grau de autonomia, existem três instâncias judiciais, tudo isto inculca a ideia de recorribilidade das decisões judiciais. Esta recorribilidade faz parte dos direitos de defesa de um cidadão. Isto estar incompleto não é nada bom para todo o sistema. Não revela maior credibilização para aquilo que pretendemos: que Macau seja uma cidade segura no exercício e na defesa dos direitos, o que tem que ver com o grau de protecção que se deve proporcionar a todos, quer para o cidadão normal, nos seus direitos humanos, quer para o investidor. Pode haver investimentos de muitos milhões e não haver meios de recurso adequados. Tudo isto deve ser reponderado após 17 anos de vivência.

23 Mar 2017

Poesia | Associação Amigos do Livro em Macau assinala Dia Mundial

Depois de alguns anos de pausa, na Fundação Rui Cunha volta-se a comemorar o Dia Mundial da Poesia. O regresso é feito com a ajuda da voz dos mais jovens e pela articulação de vários meios de expressão artística
Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 – Macau, 1926)

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a um verso de Camilo Pessanha, um verso “muito significativo” – “Eu vi a luz em um país perdido” –, que Fernando Sales Lopes foi buscar a ideia que lança o evento marcado para o final da tarde de hoje. Quando forem 18h30, a Fundação Rui Cunha recebe uma sessão em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, num retorno da efeméride ao espaço.

Nos últimos anos, a data tem coincidido com o Rota das Letras, razão que levou Sales Lopes a não avançar com qualquer tipo de iniciativa. Este ano, o festival literário já terminou, não há sobreposição de eventos, pelo que o historiador e poeta decidiu juntar de novo um grupo de pessoas para lembrar a importância do dia e, sobretudo, da poesia que se faz nas várias línguas de Macau.

O acontecimento de hoje vai além de um conjunto de poemas ditos. A organização – a Associação Amigos do Livro em Macau – decidiu conjugar esforços com várias entidades e o resultado é uma sessão que conjuga diferentes formas de expressão artística. Vai haver música a acompanhar poemas, fotografias para ver hoje (e também durante o resto da semana), e um documentário em permanente exibição.

“O programa do evento divide-se em duas partes fundamentais”, aponta Fernando Sales Lopes. “Uma delas é a evocação de Camilo Pessanha. A Associação Amigos do Livro encerra as comemorações dos 150 anos do seu nascimento com esta sessão”, explica. Esta primeira parte começa com uma leitura de poemas de autores locais que se inspiraram, de algum modo, no poeta português que morreu em Macau a 1 de Março de 1926.

Depois, vão ser ditos poemas de Camilo Pessanha. “São poemas ditos por gente mais crescida, mas também por adolescentes, pessoas de várias idades. Alguns serão musicados, o que, espero, dará um ar interessante à sessão.” O evento conta com a presença de alunos da Escola Portuguesa de Macau, que se associam à iniciativa.

Ainda a propósito do grande nome do simbolismo em língua portuguesa, destaque para uma pequena exposição biobibliográfica e para o documentário de Francisco Manso “Camilo Pessanha, um poeta ao longe”, ambos para ver na Galeria da Fundação Rui Cunha.

Da aproximação

Para a segunda parte do evento, ganha importância outra colaboração: vai ser feita uma leitura de obras de poetas de Macau a partir de imagens fotográficas, criadas sob a sua inspiração, pela ArtFusion. Estas fotografias integram a exposição “Nas Lentes da Poesia”, que poderá ser vista até ao dia 29. “É uma leitura fotográfica poética. Também vai haver intervenção musical”, antecipa Sales Lopes. “E artes performativas.”

Para a construção da sessão, o responsável teve essencialmente em conta “o bilinguismo e a intervenção dos jovens”. Porque vão ser ditos poemas em português e em chinês, vai haver tradução escrita para ambas as línguas, com a distribuição de um libreto.

“Há muitos poetas em Macau”, nota Fernando Sales Lopes. A poesia é uma forma de escrita particularmente comum entre os autores portugueses, mas entre os chineses também. “Claro que há aqui um problema que é o desconhecimento mútuo. Esta sessão também se insere nisso. Também é objectivo desta associação mostrar que é necessário e tentar que haja apoios para formar gente em tradução literária, para que se saiba o que os autores chineses estão a escrever e eles saibam o que estão os autores de língua portuguesa a fazer”, conclui.

21 Mar 2017

Fronteiras | AL e Governo chegam a solução para determinação de valores

Deputados e Executivo chegaram ontem a acordo em relação à forma de fixação do montante a partir do qual passa a ser obrigatória a declaração do dinheiro à entrada de Macau. A solução do Governo não agradava, mas a da Assembleia Legislativa também não foi acolhida. Optou-se por uma terceira via

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ois meses não bastaram para resolver um braço-de-ferro que acabou por ficar ontem solucionado. Alguns deputados da 1a Comissão Permanente da Assembleia Legislativa não concordavam que ficasse nas mãos do Chefe do Executivo a determinação do valor a partir do qual passará a ser obrigatória a declaração à chegada a Macau. A proposta de lei em causa – controlo do transporte transfronteiriço de numerário e de instrumentos negociáveis ao portador – atribuía competências ao líder do Governo, remetendo para despacho a fixação do montante.

“A assessoria e alguns deputados entendem que, como da proposta fazem parte normas sancionatórias, e o montante é um critério importante, deve constar claramente da lei”, explicou Kwan Tsui Hang, presidente da comissão. “Só que, decorridos dois meses, o Governo continuou a insistir que não deveria ser fixado na lei e não acolheu a proposta dos deputados.”

A proposta de lei em análise prevê o preenchimento de uma declaração obrigatória para aqueles que chegam a Macau com mais de 120 mil patacas em dinheiro. O articulado foi redigido com base em normas do Grupo de Acção Financeira (GAFI) na região Ásia-Pacífico, sendo que a declaração a ser preenchida nas fronteiras do território corresponde ao que vem escrito na Recomendação 32.

O Governo ainda alegou que, no futuro, o Chefe do Executivo iria alterar o montante em causa seguindo a evolução das normas do GAFI, mas os deputados bateram o pé. Arranjou-se uma solução consensual. “Depois do debate, a maior parte dos deputados e os representantes do Executivo concordaram que esta proposta de lei visa cumprir as obrigações internacionais. Por outro lado, este montante não é fixado por nós – é pela Recomendação 32”, contextualizou Kwan Tsui Hang.

A comissão propôs uma alteração ao artigo da polémica, “dizendo expressamente que este montante é fixado de acordo com a Recomendação 32”. Deste modo, o assunto deixa de ser definido em despacho do Chefe do Executivo. “O Governo vai introduzir a alteração a este artigo. A lei não vai fixar um montante concreto”, sintetizou a deputada. A haver mudanças, “serão feitas através da emissão de uma ordem” do líder do Governo

De um lado para o outro

A comissão vai ficar agora a aguardar pela nova redacção da proposta de lei, que já tinha sofrido alterações em relação ao documento que foi submetido a votação na generalidade.

Depois da reunião de ontem, Kwan Tsui Hang explicou que a lei deverá entrar em vigor a 1 de Novembro deste ano. Os deputados preferiam que passasse a valer antes dessa data, mas o Governo explicou à comissão que precisa de tempo – meio ano – para trabalhos de preparação, “como a elaboração dos formulários”.

A proposta de lei foi aprovada na generalidade no início deste ano e tem como grande objectivo garantir que Macau cumpre as normas internacionais de combate ao branqueamento de capitais.

17 Mar 2017

A lei muda

 

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem conhece a política de Macau sabe bem como é que isto funciona. Pelo modo como o sistema está organizado, há poucos políticos na terra. Além de serem poucos, são ainda menos aqueles que têm vontade – e interesse ou interesses – em dizerem o que pensam, o que não pensam, o que querem e o que gostariam de ver acontecer.

Não temos candidatos em posição de partida para a corrida à poltrona do Chefe do Executivo que digam umas coisas de vez em quando. Temos uma Assembleia Legislativa em que a maioria continua a não ser eleita por sufrágio directo e universal. Não temos uma assembleia municipal. Não temos partidos políticos, com os desejos próprios de quem quer subir na estrutura e, por isso, vai dando nas vistas com umas ideias mais ou menos arejadas. Os politólogos cabem numa mão cheia, sendo que ainda sobram dedos para os especialistas em economia.

A escassez de gente a falar de política tem consequências cívicas e sociais, e tem também impacto para quem faz jornalismo. Colocando o problema em termos mais práticos: é uma grande chatice. É difícil arranjar quem fale de política para alimentar secções sobre a matéria num jornal. Não é, por isso, de espantar que os protagonistas não sofram grandes variações.

Para os órgãos de comunicação social, sobretudo os de língua portuguesa, as eleições legislativas são sempre uma oportunidade de conseguir perceber o que vai na alma de gente que, durante a legislatura, se fecha em copas. Os meses que antecedem o momento do voto tornam-se, por isso, ligeiramente mais interessantes: quem não fala português, nem inglês lá arranja maneira de se fazer entender; quem por norma se mantém sossegado põe o dedo no ar a acusar a presença.

No momento em que escrevo este texto, paira uma grande incerteza sobre o que podem ou não os jornalistas escrever no próximo Verão. Há uns dias, a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa “exigiu” que, no período entre a afixação das listas e o início da campanha eleitoral, o “período de proibição da propaganda, os amigos da comunicação social tomem medidas para não sugerirem aos eleitores a votação em algumas listas ou candidatos”.

Se o fizerem, estarão a desrespeitar a lei eleitoral em vigor, que foi recentemente alterada – e umas das alterações prende-se, precisamente, com a propaganda eleitoral. Pelas notícias que me chegaram, depreendo que a comissão pretende fazer uma ultra-extensiva interpretação do artigo em causa e aplicá-lo aos órgãos de comunicação social.

Em termos práticos, a mensagem deixada pela comissão eleitoral significa que, a partir do momento em que se souberem, oficialmente, quem são as listas que se propõem a sufrágio, um jornalista não poderá fazer entrevistas a candidatos por correr o risco de estar a prevaricar. Seguindo a lógica do que foi dito, terá de fazer 20 entrevistas a 20 cabeças-de-lista, se ao acto eleitoral se apresentarem 20 candidaturas, e publicá-las todas no mesmo dia, para que nenhum dos candidatos tenha mais destaque do que os outros. Escusado será dizer que esta solução é inviável. Como também é impossível passar 15 dias – os tais do período que se pretende apolítico – sem entrevistar candidatos, os poucos políticos de Macau.

Corri a lei de trás para a frente e vice-versa. Não consegui encontrar base jurídica que sustente as afirmações que foram feitas pelo presidente da comissão. O artigo que versa sobre propaganda eleitoral não se aplica à comunicação social.

Diz a lei que se entende por propaganda eleitoral “a actividade realizada, por qualquer meio, para divulgar mensagem que reúne, cumulativamente, os seguintes requisitos: dirige a atenção do público para um ou mais candidatos; sugere, de forma expressa ou implícita, que os eleitores votem ou deixem de votar nesse candidato ou candidatos”. Explica-se ainda no artigo em questão que se entende por “público” os residentes da RAEM e as pessoas colectivas que gozam de capacidade eleitoral.

Ora um jornal não é uma actividade realizada para divulgar uma mensagem. O jornal é um conjunto de páginas que se fazem todos os dias, ou todas as semanas, conforme a periodicidade, e que não se realiza para divulgar esta ou aquela mensagem. Sucede ainda que a lei determina ser necessário, em simultâneo, chamar a atenção para determinado candidato e sugerir de forma explícita ou implícita (a subjectividade é uma treta), que os eleitores votem nele. Por último, mas não menos importante, o artigo sobre a propaganda eleitoral aplica-se a um público que são os residentes da RAEM e pessoas colectivas que gozem de capacidade eleitoral. Deixa de fora turistas, não residentes e também pessoas que moram nos nossos antípodas, e que lêem os jornais através dessa invenção chamada Internet. Não consigo compreender, assim, como é que esta norma poderá ser aplicada à comunicação social no exercício das suas funções diárias: falar com pessoas e escrever sobre pessoas, para as pessoas.

Não sou a única com estas dúvidas que ganharão contornos cada vez mais problemáticos à medida que as eleições se aproximam. O assunto voltou a ser abordado esta semana junto da comissão que, uma vez mais, não foi capaz de deixar uma ideia clara sobre a matéria. Aguardam-se esclarecimentos, que já foram solicitados pela Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau, e que, a bem da garantia dos direitos mais elementares, deverão chegar quanto antes.

Como sou do entendimento que a liberdade de expressão, a liberdade de informação, e o dever e o direito de ser informado devem ser respeitados – e o respeitinho é muito bonito –, jamais serei capaz de escrever meios textos, falar com meios entrevistados, fingir que o que está a acontecer só existe pela metade e que o resto se vê daqui uns dias.

17 Mar 2017

José Manuel Rosendo, repórter: “O jornalista não é um vendedor de sabonetes”

Porque não se trata de oferecer às pessoas os aromas que elas querem, os jornalistas não estão hoje a fazer o que devem. Faltam recursos, investimento, opções editoriais que permitam os caminhos certos a quem tem a informação como profissão. José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1, tem a carreira marcada pelos cenários de conflito, pelo Médio Oriente que aprendeu a conhecer nas piores circunstâncias. Uma conversa sobre a guerra, as ideias feitas que é preciso combater e a atenção que não se dá ao mundo

[dropcap]C[/dropcap]omo é que aconteceu fazer reportagem de guerra? Como é que a oportunidade surgiu?
Lembro-me muito bem. O nosso saudoso Luís Ochoa passou por mim na redacção e perguntou-me se eu queria ir até ao Afeganistão. Não estava minimamente à espera, mas disse que sim. Acabei por não ir dessa vez. Isto foi em 2001, logo a seguir ao 11 de Setembro. A oportunidade voltou a surgir em 2003, com a invasão do Iraque. Aí, a Antena 1 enviou um jornalista para o Iraque e havia a possibilidade de entrarem tropas no país através da fronteira com a Turquia. E eu fui, nessa perspectiva, que acabou por não se concretizar, porque a Turquia não abriu a fronteira e, portanto, por ali não houve invasão terrestre, apenas permitiram que o espaço aéreo fosse utilizado. Confesso que fiquei um bocado frustrado. Ninguém passou, ficámos todos na zona turca. Acabei por ir lá quando soube que a GNR ia para o Iraque. Fiz a proposta de ir ver para onde é que a GNR ia, fomos lá fazer reportagem, em Nassíria. Depois, como já lá tinha estado, quando a GNR foi mesmo para o Iraque, fui eu também. A partir daí, fica aquele bichinho, não pela guerra, mas por tratar aquele tipo de informação, aquela área do mundo. Tinha uma noção da importância do Médio Oriente, mas essa noção cresceu muito a partir do momento em que comecei a acompanhar e a perceber que é uma coisa central em termos de política internacional, e é uma zona permanentemente em conflito.

“Quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.”

É uma zona também complicada de compreender. Há o obstáculo da língua, as características culturais e políticas são muito diferentes das nossas. Como é que se ultrapassa tudo isto?
É curioso e, às vezes não temos noção disso, que o chamado Ocidente começou por ser ali. O Ocidente, há uns milhares de anos, era ali, na zona do Crescente Fértil, aquela zona que vai do Líbano, passa pelo norte do Iraque, pela Síria, pelo sudeste da Turquia, até pelo Irão. Aí era o Ocidente, em contraponto ao Oriente, que era na China, na zona do Rio Amarelo. Os povos começaram a deslocar-se para a Europa e o Ocidente é aquilo que hoje sabemos. Acho que é preciso ler muito, estudar muito. Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade. À medida que vamos conhecendo o terreno, percebemos que há conceitos que interiorizámos – não todos, obviamente – que são retratos distorcidos da realidade. A realidade é diferente.

Nomeadamente na relação com a religião.
Sim. Na maior parte daqueles países, o Islão é um pilar central da vida das pessoas. Mas não faz delas radicais, nem extremistas – não tem nada que ver uma coisa com a outra. Os povos árabes são como outros povos quaisquer, onde há pessoas más e pessoas boas, onde há pessoas radicais e outras mais ponderadas. Agora, como é uma região em permanente ebulição, que tem fronteiras artificiais, rica em recursos, onde meia dúzia de décadas em termos históricos não é nada – portanto, até há pouco tempo estava uma região colonizada –, tudo isso contribui para que haja até agora um conflito quase permanente naquela zona. E depois há a interferência externa que dificulta ainda mais as coisas.

Para o Ocidente mais a Ocidente, até há poucos anos o Médio Oriente era um problema que não lhe dizia respeito. De repente, com as alterações políticas, a guerra, as vagas de refugiados, o Médio Oriente foi bater à porta das pessoas de outra maneira. O desconhecimento é o principal problema em relação à integração de refugiados?
Acho que sim. É uma parte do problema que, se calhar, é potenciada pela situação financeira que a Europa atravessa. Mas, se os refugiados estão agora a bater à porta da Europa, a Europa bateu durante muito tempo à porta dos países onde estas pessoas viviam. Essa é que é a questão. O Médio Oriente era uma questão de segunda linha em termos de actualidade. Era lá longe. De repente, percebemos que não é bem assim. Aliás, sobretudo os países do Sul da Europa deviam olhar com mais atenção para todo o Mediterrâneo. Neste momento, a política externa da União Europeia (UE) é uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, não se dá a devida atenção à questão do Mediterrâneo mas, de facto, é a nossa vizinhança próxima. Estamos mais próximos dos nossos vizinhos africanos do que do Norte da Europa. Também entendo que os países do Norte da Europa não tenham grande apetência por discutir os assuntos do Mediterrâneo. Isto é um dilema no qual a UE está envolvida, não sei como se poderá resolvê-lo, e é mau que tenham de se tomar decisões sobre pressão – nomeadamente por causa dos refugiados – não havendo uma política externa já definida para estabelecer uma relação com estes países que são a nossa vizinhança. A geografia é uma coisa à qual não se pode fugir: por muito que nós queiramos, não mudamos isso. Portanto, há que encontrar formas de estabelecer um relacionamento que seja bom para todas as partes. Tem de se encontrar esse ponto comum.

Até que ponto deverá ser uma preocupação dos jornalistas, e de quem tem um conhecimento maior em relação ao Médio Oriente, ter um papel de sensibilização – diria até pedagógico, se quisermos – para que a integração dos refugiados em Portugal seja bem-sucedida? O jornalismo deve ter este papel de garantir que as pessoas têm acesso ao quadro todo.
Sim. Mesmo que não seja com o objectivo pedagógico, o facto de divulgarmos informação correcta, de aprofundarmos os problemas, de darmos contexto às pessoas, isso faz com que, de facto, resulte numa atitude pedagógica em relação aos problemas. E acho que devemos fazer isso, dar a conhecer, informar, relatar com o máximo rigor, fugindo aos tais conceitos, aos lugares-comuns. Mas é preciso ter espaço para isso.

“Tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares.”

E há espaço?
Não há espaço suficiente, sobretudo em Portugal, o que tenho dificuldade em perceber. Temos três canais nacionais de televisão, 24 sobre 24 horas. Temos rádios nacionais. Perdemos horas e horas e horas a falar sobre futebol. Debates de gente sentada, a discutir se foi penálti ou fora de jogo, e com as imagens do respectivo jogo a andarem para trás, para a frente, para trás, para a frente. Perdemos horas. Bastava que se desse uma horinha por semana a estas questões – e não digo para falar apenas do Médio Oriente, estamos completamente afastados daquilo que se passa na Ucrânia, que é à porta da Europa. Se, neste momento, fizéssemos um inquérito e perguntássemos o que é que se passa, por exemplo, na Holanda, em termos de eleições, ou o que se passa na Alemanha, as pessoas não sabem. Pura e simplesmente não sabem, porque nós temos uma informação que mantém em agenda determinados assuntos – e não digo que não sejam assunto, continuam a ser, mas são mastigados e remastigados. Se há uma coisinha nova, para se dar esse acrescento de informação vai buscar-se tudo o resto, constrói-se ali uma novela e lá vão dez minutos ou um quarto de hora de telejornal com aquilo. No dia seguinte, a história repete-se. Isto é muito complicado. Não sei como é que se dá a volta a isto. Dá-se a volta havendo vontade editorial, mas depois não há pessoas. Estamos numa situação complicadíssima.

Voltando à guerra. Vários países percorridos, muitas situações complicadas. Para quem não é jornalista, como é chegar de repente, com uma equipa pequena – ou sozinho – a um cenário de guerra, recolher informação e passá-la de uma forma que, ainda por cima, não é visível, atendendo a que trabalha sobretudo na rádio? Como é que se conta essa guerra?
A maior parte das vezes vou sozinho, sem mais ninguém. Só para ter uma ideia, recordo-me, por exemplo, de ver a CNN alugar um piso de hotel. Chegam lá e alugam um piso inteiro: produtores, jornalistas, câmaras, motoristas, segurança, tradutor. Em 2011, Kadhafi foge de Trípoli, entrámos na cidade e os hotéis estavam fechados, porque a maior parte dos trabalhadores eram imigrantes dos países ali à volta e tinham fugido. Como caíram lá os jornalistas todos, reabriram à pressa dois ou três hotéis. Esperámos na recepção, deitados no chão, que nos dessem a chave do quarto. Esse hotel tinha um jardinzinho que era o único sítio onde se conseguia ligar o satélite. Recordo-me de ver a equipa da Al Jazeera, de manhã, a fazer os briefings, e eram mais de 20 pessoas. E isto só em Trípoli, não contando com os que já estavam na rua. Isto dá uma ideia da dimensão. Quem vai sozinho faz passo a passo. Somam-se contactos, conhecem-se fixers [locais que ajudam os correspondentes estrangeiros], vai-se tendo referências, e é com isso que se consegue trabalhar. Depois, tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares, sobretudo em termos de informação pura e dura – acho que a maior parte das vezes somos enganados nesse tipo de coisas. Aquilo é de uma riqueza informativa tal que as histórias quase que vêm ter connosco, muitas vezes. Temos de ter os sentidos despertos para perceber, quando vamos a passar, onde é que está a história, e para perceber o ângulo. Depois, tem de se cuidar de tudo: os países em guerra funcionam de uma forma anárquica, os serviços não funcionam, a maior parte das vezes é preciso recorrer ao mercado negro para arranjar combustível, tenho de me preocupar com o carro, com o guia, com o tradutor, com as comunicações, com a alimentação, com o sítio onde vou dormir. Mas quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar, isto não é uma lamúria. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.

Das muitas histórias que guardou, alguma que o tenha marcado particularmente?
Há histórias. Há a de um camarada que depois morreu, e isso mexe um bocadinho connosco. Mas há histórias… Lembro-me que, no Líbano, tinha estado em Beirute e depois houve um dia em que decidimos ir para a sul, para a zona mais Hezbollah. Telefonaram-me da rádio a dizer que Israel tinha acabado de bombardear Qana e as agências estavam a dizer que foi um morticínio. Íamos a meio do caminho, fizemos um desvio e fomos para Qana. Israel bombardeou e atingiu um edifício que abateu, as pessoas tinham-se refugiado na cave, morreram lá em baixo, e muitas eram crianças. Quando cheguei lá, parámos e uma série de pessoas apareceu à volta do carro. Agarraram-me e percebi que me queriam mostrar qualquer coisa. Levaram-me para junto de uma carrinha, abriram as portas de trás e eram só corpos de crianças. Estavam as equipas de socorro a tirar as crianças lá de baixo, e adultos também. É uma imagem que fica.

Como é que se lida com esse contacto com a morte? Presumo que a primeira vez seja muito complicada.
É. Mas às vezes nem é preciso chegar à morte. Aconteceu-me agora no Iraque, da última vez que lá estive. A minha primeira preocupação é o som, obviamente, mas também faço fotografia, mas para mim. Quando percebo que tenho ali um espaço faço umas fotografias. Estava numa zona, à entrada de Mossul, que era o primeiro posto da frente para onde eram transportadas as pessoas feridas nos combates. Era um corrupio brutal. Uns chegavam mortos, crianças, adultos, velhos. E eu estava ali a fazer fotografias daquele movimento. As pessoas que estavam ali, os militares, não tinham meios. Não se podia chamar hospital àquilo – era uma vivenda, com umas macas. Quando enchia – o fluxo era grande –, começavam a pôr as macas cá fora, na rua, no meio do pó. Às tantas chega um miúdo, que devia ter uns nove ou 10 anos, que vinha ferido, ensanguentado. Deitam o miúdo na maca, o médico põe-lhe a faca nas calças e abre. Quando vou a fazer a fotografia, vi que o joelho praticamente tinha desaparecido. Acho que foi a primeira vez que não fui capaz. Talvez por ter um filho daquela idade, naquele momento houve ali um clique, virei a cara e fui embora. Não sei porquê. Sabemos que na guerra morrem pessoas, que há bombardeamentos e que vamos encontrar pessoas mortas, inconscientemente até já vamos preparados para isso, mas, de facto, naquele momento, virei a cara. Se calhar fui mau jornalista na altura, não faço ideia. Passado um bocado voltei, mas aquela imagem daquele miúdo, ferido daquela forma… Não consegui.

“Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade.”

E voltar ao dia-a-dia de uma redacção, dos assuntos que, de repente, perdem toda a importância?
Isso é que é uma chatice, porque voltas, chegas à redacção e dizes “não se passa nada”. Começas a olhar para os assuntos e pensas “mas que importância é que isto tem?”. Essa é a parte mais difícil, retomar o ritmo da informação diária, corriqueira, ainda por cima porque valorizamos muito a trica política. Gosto muito de política, a grande política – as políticas de desenvolvimento, de educação, esses temas fortes que devem ser debatidos com profundidade e agarrados com unhas e dentes – mas detesto a trica política, que não leva a lado algum. Passamos a vida com um que diz que o outro acordou mal disposto e depois vamos ouvir o que foi acusado de ter acordado mal disposto. Chegamos ao fim do dia, esprememos esta informação e vemos o que tivemos aqui: nada, na maior parte dos casos. Essa trica política faz parte do marketing político e deixamo-nos ir atrás dela. Se calhar é por isso que as pessoas se afastam um bocadinho de nós, e deixam de ler, de ouvir e de ver televisão, porque estão fartas. Não estamos a ser capazes de dar às pessoas aquilo que é realmente importante.

Há vontade de voltar à guerra?
Não digo voltar à guerra, mas vontade de voltar ao Médio Oriente, sim. Ninguém sabe muito bem o que vai por ali acontecer, há muito tempo que se fala na necessidade ou até na inevitabilidade de se redesenharem as fronteiras no Médio Oriente. No Iraque, vamos ver o que vai acontecer em Mossul. Não sei até que ponto continuará a ser como o conhecemos até 2003. Não sei se a Síria vai continuar a ser com as fronteiras que tinha até agora, há ali um problema entre xiitas e sunitas que não sei como vai acabar. Temos a Rússia agora metida em força na região, os Estados Unidos dão sinais de querer regressar, depois de Obama ter tido uma política em que passou a questão do Médio Oriente para segundo plano. É um tempo de expectativa e é preciso voltar lá, perceber o que está acontecer. Mas enquanto tivermos estas opções editoriais e esta falta de recursos… É preciso investimento na informação porque, se não há recursos, não há retorno financeiro, e então corta-se. Passado um tempo, os recursos são ainda menos, o retorno é ainda menos, e corta-se de novo. É o caminho para o abismo. Também é importante que quem invista na informação não veja nela um pote de rebuçados ou de sabonetes. A informação não é isso, é outra coisa. Houve alguém que disse, aqui há uns tempos, que deixámos de dar às pessoas o que é importante e passámos a dar aquilo que elas querem. Pronto, acabou. Isto é o inverso do que devia ser o jornalismo; é o vendedor de sabonetes, que dá à pessoa o sabonete com o aroma que ela quer.

16 Mar 2017

Legislativas | Candidatos com menos dinheiro. Eleições são dia 17 de Setembro

Já se sabe o dia em que os eleitores de Macau vão eleger os deputados para a próxima legislatura. Chui Sai On também fixou o limite de despesas por candidatura. É bastante inferior ao das últimas eleições. A medida é bem recebida, mas não basta

Com Vítor Ng

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um mês e um dia depois do fim da legislatura, a um mês menos um dia do início da próxima. A 17 de Setembro, os eleitores do território vão às urnas escolher os 14 deputados eleitos por sufrágio directo. No mesmo dia, no sufrágio de base corporativa, são eleitos os 12 deputados da via indirecta. O grupo ficará depois completo com os nomeados de Chui Sai On.

A data foi publicada ontem por ordem executiva do Chefe do Executivo. Também em Boletim Oficial foi divulgado o despacho do líder do Governo que determina o limite das despesas que cada candidatura pode gastar nas eleições: mais de três milhões e meio de patacas (3.549.622).

O número representa uma queda significativa em relação às últimas eleições, em 2013, altura em que cada lista estava autorizada a despender mais de 5,6 milhões.

Para José Pereira Coutinho, trata-se de um sinal positivo, por corresponder à ideia de que candidatos com menos posses terão oportunidades semelhantes às dos mais afortunados. No entanto, o deputado e candidato às eleições destaca que, além da teoria, é preciso garantir que, na prática, estes limites são cumpridos.

Positivo e tanto faz

“A utilização desse dinheiro para publicidade de cada uma das listas deve ser justa, ou seja, não deve ser pelo facto de haver maior capacidade financeira que certos candidatos devem ter maior exposição pública”, sublinha. “É importante também que as listas cumpram rigorosamente o limite das despesas.”

Pereira Coutinho alerta ainda para pormenores de execução dos limites agora conhecidos. “Na prática, em muitas listas ligadas a certos grupos empresariais, é difícil fiscalizar o cumprimento das regras, na medida em que, por interpostas pessoas, pode estar a ser despendido dinheiro do bolso dos candidatos, que não vai directamente das listas.” Por isso, o deputado recomenda “muita pedagogia” para que estas normas sejam observadas.

Au Kam San é da mesma opinião de Pereira Coutinho: o montante que tinha sido autorizado para as eleições de 2013 era claramente excessivo, “apesar de, na altura, já ter havido uma diminuição”. Fazendo uma alusão à relação dos valores permitidos com as contas públicas, o pró-democrata saúda esta revisão em baixa.

“O Chefe do Executivo diminuiu o valor limite e isso é razoável”, afirma Au Kam San, acrescentando que são números que, em termos concretos, não afectam a sua candidatura. “Não vamos gastar esses valores.”

Já Ella Lei não tem opinião sobre a matéria, não proferindo qualquer juízo de valor acerca desta diminuição. A deputada eleita por via indirecta, ligada aos Operários, limita-se a dizer que “é normal que o Chefe do Executivo defina um limite de despesas”, rematando com a ideia de que os candidatos “têm de respeitar essas regras”.

14 Mar 2017

Investigação | CCAC publica relatório demolidor sobre Instituto Cultural

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] resultado da investigação foi dado a conhecer na passada sexta-feira. O Comissariado contra a Corrupção (CCAC) recebeu queixas contra o Instituto Cultural (IC), tendo chegado à conclusão de que, nos últimos anos, o organismo “tem recorrido ilegalmente ao modelo da aquisição de serviços no recrutamento de um grande número de trabalhadores”.

O CCAC considera que têm sido violadas as normas legais relativas ao concurso e ao recrutamento centralizado. “Os problemas que se destacam com esta situação são sobretudo a falta de publicidade de informações sobre o recrutamento, os métodos de selecção menos rigorosos e a suspeita de incumprimento do regime de impedimento.”

A investigação à entidade então presidida por Guilherme Ung Vai Meng teve início em Abril do ano passado. O comissariado constatou que, em 2014, o número de trabalhadores neste regime tinha aumentado substancialmente – eram 112, quando em 2010 eram 58, sendo que o universo total de funcionários também subiu, de 553 para 721. “Mesmo em 2016, o ano em que o CCAC instaurou a investigação em referência, havia ainda 94 trabalhadores recrutados neste regime.

Pelo modo como o comissariado situa as justificações apresentadas pelo IC, dá a entender que não foram suficientemente convincentes. O Instituto Cultural explicou que o recrutamento de trabalhadores em regime de aquisição de serviços tinha que ver com o facto de existir “muito trabalho, pouco pessoal e procedimentos de recrutamento morosos”.

 Além Chui, além Tam

O CCAC aponta um conjunto de problemas gerados por esta prática que, segundo diz, se encontrava generalizada e sistematizada nos vários departamentos da entidade.

Para começar, este modelo de contratação levou à “usurpação do poder do órgão superior no âmbito da gestão de pessoal”. E isto porque, apesar do excesso de trabalho de que se queixou o IC para fundamentar o recurso à aquisição de serviços para contratar trabalhadores, “nos termos do regime jurídico da função pública de Macau, não compete à direcção de serviços recrutar os seus trabalhadores, tal competência pertence ao Chefe do Executivo ou ao secretário da respectiva área governativa”, aponta o CCAC.

O comissariado frisa que, em casos excepcionais, urgentes e devidamente fundamentados, “o concurso pode ser dispensado no recrutamento de trabalhadores em regime de contrato, mediante autorização do Chefe do Executivo ou do secretário” da tutela. “Não compete à direcção de serviços contratar trabalhadores sem que se realize o concurso”, sublinha-se no texto que sintetiza o relatório.

Além disso, diz ainda o comissariado, o IC dispensou as provas de conhecimentos exigidas por lei, sem a necessária autorização do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, o que constitui, “sem dúvida, uma usurpação do poder do órgão superior no âmbito da gestão de pessoal”.

 Família dos chefes

A forma que o Instituto Cultural encontrou para resolver a falta de pessoal deu ainda azo, segundo o órgão de investigação criminal, a um “desvio do regime de recrutamento por concurso”. O CCAC recorda que, a partir de 2009, a contratação de trabalhadores para a Administração passou a estar sujeita à abertura de concurso, com o recrutamento de técnicos superiores e de adjunto-técnicos a só poder ser realizado através dos procedimentos de recrutamento centralizado.

O comissariado descobriu que, no caso dos funcionários em regime de aquisição de serviços, o IC não publicitou as informações sobre o recrutamento, ao contrário do que dita a lei, nem obteve da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública os dados dos indivíduos inscritos na bolsa de emprego. “Aproveitou antes as recomendações entre colegas e amigos para divulgar, num determinado círculo e de boca em boca, as notícias do recrutamento. Estes factos violaram o princípio da publicidade do processo de recrutamento de trabalhadores dos serviços públicos.”

Depois, na selecção dos candidatos, diz o CCAC que o instituto não realizou provas escritas ou testes de aptidão profissional, a aprovação dos “candidatos adequados” fez-se apenas mediante a análise curricular e a entrevista, o que “suscita suspeitas sobre os critérios de selecção adoptados”. O organismo dá um exemplo: houve uma pessoa contratada para monitorizar obras de manutenção de instalações e equipamentos que não tinha formação na área em questão, nem a experiência profissional necessária.

O relatório acrescenta que chegaram a registar-se casos “em que familiares do pessoal de direcção e chefia ingressaram no IC para trabalhar ao abrigo do regime de aquisição de serviços”. Esta situação “contraria a política preconizada pelo Governo da RAEM para um recrutamento de trabalhadores transparente, justo e imparcial”.

 Da casa para a casa

No decorrer da investigação, o CCAC detectou ainda que, em concursos para recrutamento de técnicos ou de adjuntos-técnicos do IC, foram contratados muitos trabalhadores que tinham já exercido funções em regime de aquisição de serviços.

Em 2014 e 2015, o IC recrutou 60 pessoas, sendo que, deste total, 22 tinham trabalhado no IC em regime de aquisição de serviços. Já em 2011 tinha acontecido o mesmo: num universo de 31 trabalhadores, 13 já tinham um passado de trabalho na entidade. No final de 2013, repetiu-se a situação. O CCAC constatou que, nos concursos, “as matérias constantes das provas escritas de conhecimentos que diziam respeito às práticas e operações dos serviços tiveram um peso considerável na pontuação, pelo que os candidatos com experiência nesta área tiveram uma certa vantagem”.

O comissariado descobriu ainda que, num dos concursos, as perguntas para a prova escrita de conhecimentos foram elaboradas pelo júri só depois de este conhecer os currículos e a identidade dos candidatos. “A par disso, os critérios de avaliação da entrevista e da análise curricular foram elaborados só após ter sido conhecida a classificação de todos os candidatos na prova escrita de conhecimentos.” As práticas “não correspondem aos procedimentos normais de abertura de concursos para recrutamento de trabalhadores dos serviços públicos”.

Outro aspecto condenado pelo CCAC é aquilo a que chama “simulação para esconder uma relação de emprego verdadeira”. “O caso mais absurdo é que, para evitar celebrar permanentemente com o trabalhador um acordo com muitas das cláusulas típicas do contrato de trabalho, o IC, decorrido normalmente um ano sobre a celebração do ‘acordo de prestação de serviços’ com o pessoal em regime de aquisição de serviços, passou a celebrar um chamado ‘acordo de trabalho’”. O comissariado explica que era exigida a esse pessoal a apresentação da declaração de início de actividade na qualidade de profissional liberal junto dos Serviços de Finanças.

No “acordo de trabalho” celebrado entre o IC e o referido pessoal não existia qualquer cláusula relativamente ao horário de trabalho, e ao volume e método de trabalho, continua o relatório, nem referência alguma ao regime de assiduidade, “dando propositadamente uma imagem falsa de que o pessoal em questão prestava serviço na qualidade de profissional liberal e não como trabalhador do IC”.

Estes “acordos de trabalho” resultaram no “desvio do regime de declaração de bens patrimoniais e interesses dos trabalhadores da função pública”, outro dos problemas identificados durante a investigação.

O Comissariado contra a Corrupção remata dizendo que há duas questões que devem merecer ponderação. Para começar, “a justiça do processo de recrutamento da função pública tem de ser garantida”; depois, a “política do Governo da RAEM de racionalização de quadros e simplificação administrativa deve ser obrigatoriamente executada”.

 Os 30 dias do secretário

Alexis Tam, secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, deu ao Instituto Cultural 30 dias para apresentar um “relatório circunstanciado sobre as medidas entretanto implementadas, ou a implementar, para corrigir as situações irregulares detectadas durante os anos 2010 a 2015”. O objectivo, explica-se em nota à imprensa, é dar “cumprimento integral às recomendações do CCAC, não se admitindo que se repitam situações idênticas que não cumpram escrupulosamente as normas vigentes de recrutamento de pessoal”. Quanto ao cumprimento da declaração patrimonial, o governante exige que a situação “possa ficar regularizada o mais rapidamente possível”. Alexis Tam entende ainda que o conteúdo do relatório do comissariado “deve servir de referência para todos os serviços da sua tutela”.

13 Mar 2017

A história não morde

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão quero saber de quem é a culpa. Não me interessa se foram os concessionários que não fizeram o que deviam. Não me interessa se o Governo deixou um ultimato, dois ou três, se avisou ou não. Nem sequer dou qualquer valor ao facto de, em rigor, não estar a ser violada qualquer lei ou regulamento administrativo. Também não importa o argumento da segurança, porque existem sempre opções para que não nos caia o tecto em cima. Não quero saber.

Quem destrói tem capacidade para construir, para reconstruir. Quem pode deitar abaixo pode evitar que vá ao chão. Pode segurar, pode manter, pode preservar. Pode dar uma nova vida ou então, apenas e só, pode deixar estar a vida que já existe, mas mais composta e digna.

Lai Chi Vun começou a ir abaixo esta semana, apesar de tudo. Aparentemente, quem vive lá não queria que Lai Chi Vun fosse abaixo. Apesar de tudo, os estaleiros começaram a ser destruídos. Entra uma máquina e desaparece tudo. E tudo passa a ser lixo e pó e passado e não interessa, o Governo avisou. Não quero saber de quem é a culpa.

A história é complicada. Por isso, agora, também não interessa. O que me preocupa são os olhos vazios de quem manda deitar abaixo, argumentando que o que vai restar chega para que o pitoresco se mantenha. É a lógica do very typical, indeed, very typical.

Lai Chi Vun é um corpo. Vale pelo conjunto que permitiu que ali se criasse uma vida, muitas vidas, uma povoação. Lai Chi Vun tem passado, tem histórias para contar, tem um ambiente que é só dali. Lai Chi Vun deixa de fazer sentido se for apenas uma amostra de Lai Chi Vun.

Todos os que deixaram que Lai Chi Vun se degradasse têm culpa, mas eu não quero saber de quem ela é. Prefiro pensar que, há um mês ou dois, ainda se ia a tempo de se pensar de novo. Às tantas ainda se vai a tempo – foram dois estaleiros abaixo, quem destrói pode construir, pode reconstruir o que está em risco de desaparecer.

O problema é que as reconstruções, em Macau, têm sempre objectivos muito específicos, demasiado economicistas. Reconstrói-se para um museu, refaz-se para chamar gente de fora, põe-se tudo direitinho para ter quilómetros de turistas empacotados, a acotovelarem-se de sacos de bolachas nas mãos.

Lai Chi Vun não serve para isso, como não servem os pátios do bazar chinês que são esqueletos com árvores lá dentro. Lai Chi Vun não serve, nem pode servir. Os estaleiros deveriam ser mantidos só porque sim, porque são o último lado físico de um passado cada vez mais distante. Lai Chi Vun deveria ter uma nova oportunidade sobretudo porque tem vida ali. Há gente que dorme naquele sítio, que cria ali os filhos e que deveria ter o direito a continuar a acordar com o som da água na madeira. Numa madeira reconstruída, limpa, segura.

Quem pode destruir pode preservar, só porque sim, só porque é importante manter a memória colectiva, sem lojas de tralha inútil disfarçada de produto criativo, sem visitantes com malas cheias de leite em pó para crianças, sem gente a fotografar as casas e as caras e as mãos como se fizéssemos todos parte de um jardim zoológico, very typical, indeed, very typical.

Quem pode destruir tem de ter a capacidade de ouvir. Nestes anos que levo e Macau, raras vezes vi a imprensa de língua chinesa tão envolvida na manutenção do passado como agora. A população já percebeu que a história não volta. Resta ao Governo entender que a história não morde. O passado não tem sete cabeças.

10 Mar 2017

China | Diplomacia de Pequim quer contribuir para acalmar crises regionais

Diálogo com os Estados Unidos, uma possível visita de Xi Jinping a Washington, menos fricção no Mar do Sul da China, evitar o pior na península da Coreia. O ministro dos Negócios Estrangeiros da China falou ontem aos jornalistas. Wang Yi faz um apelo à calma, mas não deixa de apontar o dedo aos culpados

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]êm todos culpa: a Coreia do Norte, porque não desiste das suas intenções nucleares, e a aliança liderada pelos Estados Unidos que, ao promover ensaios militares na região, contribui para a escalada da tensão na península. A ideia foi deixada ontem pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da China. Wang Yi encontrou-se com os jornalistas, durante as reuniões da Assembleia Popular Nacional e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.

O diplomata deixou um apelo às partes envolvidas, pedindo para que refreiem os seus ímpetos, de modo a que se evite uma crise ainda maior. A situação na península, comparou Wang Yi, “é como dois comboios a acelerar, a irem de encontro um ao outro, sem que nenhum deles esteja disposto a ceder a passagem”.

O chefe da diplomacia chinesa reconhece que os mais recentes testes de mísseis levados a cabo por Pyongyang “ignoram a oposição da comunidade internacional”, mas diz também que os exercícios militares conjuntos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul vieram acrescentar pressão ao regime de Kim Jong-un.

Para Wang Yi, há apenas uma solução para o conflito: a Coreia do Norte tem de suspender as suas actividades bélicas, e Washington e Seul devem cancelar as simulações em grande escala que realizam com frequência. “As armas nucleares não vão trazer segurança”, sublinhou. “O recurso à força não é solução”, disse também, defendendo que a tensão pode ser diminuída se houver uma “resolução das preocupações de ambas as partes feita de forma recíproca”.

À baila veio ainda o reatamento das negociações a seis. Pequim quer voltar a sentar-se à mesa com a Coreia do Norte, com os Estados Unidos e com os restantes países que, entre 2003 e 2009, tentaram convencer Pyongyang a abandonar o programa nuclear do país. As conversações estão suspensas por iniciativa do regime comandado por Kim Jong-un.

A China é o principal aliado de Pyongyang, apesar de a relação entre os vizinhos ter sofrido alterações nos últimos tempos. No mês passado, o Governo Central suspendeu todas as importações de carvão da Coreia do Norte até ao final do ano, terminando temporariamente com uma importante fonte de divisas estrangeiras para o empobrecido país.

Teoria da aceitação

Ainda no que toca às pastas regionais, Wang Yi deixou algumas ideias sobre a relação de Pequim e Tóquio. O mais alto representante da diplomacia chinesa entende que o Japão tem de ultrapassar a sua ansiedade em relação à China, enfrentar o facto de o vizinho ter hoje uma nova dinâmica e dar passos concretos para a melhoria das relações, em vez de andar para trás.

Recordando que este ano fica marcado pelo 45.o aniversário da normalização das relações diplomáticas sino-japonesas, o ministro pediu a Tóquio que aprenda com as lições do passado – com os resultados do expansionismo militar – e que deixe de se preocupar com o crescimento da China em termos internacionais.

Neste discurso de aparente conciliação não faltou, no entanto, o factor “culpa”, com Wang Yi a acusar o Japão de prolongar o clima de tensão entre os dois países e a garantir que Pequim tentou sempre que as conversações bilaterais fossem retomadas. “A chave [do problema] é o Japão adoptar a forma correcta de pensar e aceitar a realidade do crescimento da China”, vincou.

O ministro dos Negócios Estrangeiros culpa ainda Tóquio e Seul pelo adiamento do encontro trilateral. “Temos de lidar bem com as questões que estão a impedir o desenvolvimento saudável das nossas relações de modo a que se possa assegurar o encontro entre líderes”, comentou.

Há muito que as relações da segunda e terceira economias mundiais estão ensombradas. Às feridas por cicatrizar que ainda restam dos conflitos bélicos de meados do século passado juntaram-se, mais recentemente, as disputas territoriais no Mar do Sul da China.

A este propósito, Wang Yi defendeu que a situação acalmou “visivelmente” desde a decisão do tribunal internacional em Julho. Destacou que Pequim e os vizinhos fizeram progressos para a elaboração de um código de conduta, sendo que o primeiro rascunho foi concluído recentemente.

Ainda no que diz respeito a assuntos marítimos, o diplomata deixou um aviso que é entendido como dirigido aos Estados Unidos, apesar de não ter identificado directamente o destinatário. “Se alguém está a tentar fazer ondas [no Mar do Sul da China], não terá apoio e encontrará a oposição de todas as partes envolvidas”, declarou, assegurando que Pequim não vai autorizar atentados à paz e à estabilidade na região.

Rodrigo Duterte não foi esquecido durante a conferência de imprensa, com Wang Yi a elogiar a postura do Presidente das Filipinas nos processos que envolvem conflitos territoriais. A reviravolta nas relações entre os dois países vai beneficiar as duas partes, assim como a região, salientou.

Friends, pengyou

Já a fechar a conferência de imprensa, o ministro dos Negócios Estrangeiros foi confrontado com a possibilidade de o Presidente Xi Jinping ir aos Estados Unidos ainda durante 2017. “Vai haver boas notícias este ano”, disse apenas.

Uma hora antes desta resposta, o chefe da diplomacia chinesa tinha dado a entender que o anunciado encontro entre Xi Jinping e o homólogo Donald Trump já está a ser coordenado.

“Estamos a ter uma comunicação produtiva para que haja um encontro entre os nossos dois presidentes, bem como a outros níveis”, afirmou, acrescentando que a conversa dos chefes de Estado ao telefone, mantida no mês passado, permitiu criar condições para laços estáveis.

Não obstante, Wang Yi defendeu que as duas nações têm de ser capazes de ultrapassar as suas diferenças para que a relação seja “madura”. “Os nossos interesses estão intimamente interligados. É impossível construir o sucesso de um às custas do outro.”

O diplomata fez uma referência positiva ao novo secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, que conheceu no encontro de ministros dos negócios estrangeiros do G20 no mês passado, dizendo que é “um bom ouvinte e comunicador”. Por isso, espera – e diz acreditar – que seja possível construírem uma boa relação de trabalho.

Mediador disponível

Noutros temas internacionais na ordem do dia, destaque para a visita iminente do rei Salman bin Abdulaziz al Saud da Arábia Saudita. Wang Yi diz que a China recebe com agrado o monarca, até porque está disposta a desempenhar “o papel necessário” no processo de paz do Médio Oriente.

A luta contra o terrorismo, a conquista de resoluções políticas e a manutenção das Nações Unidas à frente do processo são, para Pequim, três “princípios indispensáveis” que não podem ser abandonados no Médio Oriente. “Existem riscos de que a turbulência possa aumentar, mas também existe esperança de paz”, apontou Wang Yi.

O ministro dos Negócios Estrangeiros apontou o acordo nuclear com o Irão como um exemplo da capacidade política de negociação, um conceito que deve ser colocado em prática sempre que possível. Pequim mostra-se disponível para mediar as negociações para a paz entre a Palestina e Israel.

Wang Yi disse também que a China espera que a Arábia Saudita e o Irão possam resolver os problemas que têm através de um diálogo amigável e justo. “Como amigos de ambos os lados, estamos disponíveis para desempenhar o papel necessário se assim for preciso”, garantiu.

Europa única

Houve ainda tempo para se falar do Brexit e da Europa. A China diz que vai continuar a apoiar a integração europeia independentemente do que o Reino Unido pretenda fazer em relação. O chefe da diplomacia de Pequim explicou que gostaria de ver uma Europa mais unida, mais estável e mais próspera.

“Acreditamos que os desafios com que a União Europeia se depara podem ser uma oportunidade para que se torne mais madura”, defendeu. “Nós valorizamos a importância estratégica e o papel da Europa.”

9 Mar 2017

Kim Jong-nam | Organização misteriosa divulga filme de Kim Han-sol

As organizações de defesa dos direitos humanos na Coreia do Norte confirmam que se trata do filho mais velho de Kim Jong-nam, assassinado na Malásia no mês passado. Kim Han-sol está com o resto da família, em paradeiro desconhecido, protegido por uma organização que ninguém reconhece. O jovem espera que a situação melhore em breve

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] data da morte do pai, 13 de Fevereiro, estava em Macau. Agora, desconhece-se o seu paradeiro, apesar das tentativas da imprensa – sobretudo da sul-coreana e da japonesa – para chegarem à fala com o filho mais velho de Kim Jong-nam. Kim Han-sol deu esta semana sinais de vida, através da publicação de um vídeo. Aparenta estar em segurança, contando com o apoio de uma organização não-governamental, desconhecida para activistas dos direitos humanos na Coreia do Norte.

O vídeo de Kim Han-sol foi colocado na página do YouTube de um grupo que dá pelo nome de Cheollima Civil Defense. Após ter disponibilizado os conteúdos, o grupo entrou em contacto com o Channel NewsAsia.

“O meu nome é Kim Han-sol, sou da Coreia do Norte, faço parte da família Kim”, começa por dizer o jovem que aparece na imagem, vestido de preto, filmado contra um fundo branco. Em seguida, mostra o passaporte como prova da identidade, mas os detalhes não são visíveis, uma vez que foi colocado um quadro negro em cima do nome.

Em inglês, o homem que se identifica com sendo o filho de Kim Jong-nam explica que o pai foi morto “há alguns dias”. “Neste momento, estou com a minha mãe e com a minha irmã. Estamos muito gratos…”, afirma, antes de se deixar de ouvir o que diz, por o som ter sido propositadamente cortado. Os 40 segundos da gravação acabam com uma mensagem: “Espero que isto fique melhor depressa”.

Misteriosos protectores

O Channel NewAsia confirmou com Do Hee Youn, um activista da organização Citizens Coalition for Human Rights of Abductees and North Korean Refugees, que o jovem de preto no vídeo é mesmo Kim Han-sol. As imagens foram também colocadas no website do Cheollima Civil Defense, que alega estar a proteger a família de Kim Jong-nam.

“O Cheollima Civil Defense respondeu no mês passado a um pedido de emergência de sobreviventes da família de Kim Jong-nam para extradição e protecção.” O grupo indica, numa nota, que se encontrou rapidamente com eles e que “foram realojados num local seguro”.

“No passado, ajudamos outros pedidos de protecção urgentes”, indica ainda o grupo. “Este vai ser o primeiro e último comunicado sobre este assunto, e a presente localização desta família não será divulgada”, refere o Cheollima Civil Defense.

A organização agradece a países que, segundo indica, ajudaram a proteger os familiares de Kim Jong-nam. “Manifestamos publicamente a nossa gratidão pelo apoio humanitário que nos foi dado para proteger esta família pelos governos da Holanda, República Popular da China, Estados Unidos da América e de um quarto país que não vai ser identificado.”

O Channel NewsAsia contactou o chefe da polícia da Malásia, que diz desconhecer este grupo. As autoridades deram a entender, porém, que conseguem chegar à fala com a mulher e filhos de Kim Jong-nam.

Fontes de duas organizações de defesa dos direitos humanos da Coreia do Norte indicaram ao HM que nunca ouviram falar do Cheollima Civil Defense. O grupo não integra a International Coalition to Stop Crimes Against Humanity in North Korea. Esta coligação junta quase meia centena de organizações de defesa dos direitos humanos no regime mais fechado do mundo.

O site da organização faz referência apenas ao caso dos familiares de Kim Jong-nam, isto apesar de o grupo dar a entender ter experiência em apoio a pessoas em circunstâncias semelhantes. Fonte do HM salientou que o domínio do site foi registado há apenas cinco dias.

Logo a seguir à morte de Kim Jong-nam, as agências internacionais de notícias deram conta de que o filho ia viajar de Macau para a Malásia, para que o corpo do pai lhe fosse entregue. Essa viagem não chegou a acontecer.

9 Mar 2017

Sérgio Godinho, músico e escritor: “Voltar é mesmo uma alegria”

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Regressar a cidades onde já se esteve é ter a sensação de que o mundo não é só a nossa casa. Sérgio Godinho está a caminho de Macau, desta vez como romancista, para participar no festival Rota das Letras. Ainda em Lisboa, contou ao HM como nasceu o primeiro romance, que relação é esta com um novo tipo de escrita, e falou do disco novo que sai depois do Verão. Um álbum com uma cinematográfica ligação ao território

[dropcap]C[/dropcap]Como é que aparece este “Coração Mais que Perfeito”?
Aparece um pouco na sequência, ao nível do ofício da escrita, do livro de contos que saiu há dois anos, “VidaDupla”. São nove contos nos quais descobri uma vontade de escrever e também uma linguagem própria, uma voz própria. Surgiu um pouco por acaso, porque me pediram um conto – que está no “VidaDupla” – e depois apeteceu-me continuar. Quando acabei, senti que tinha de me abalançar, no sentido de ter vontade e de ter esse ímpeto criativo, a algo de mais fôlego, mais extenso, em que estivesse mais tempo com as personagens, onde as criasse e elas convivessem comigo e crescessem, fossem aparecendo outras. O romance não tem muitas personagens: tem duas principais. Tem uma mulher, que é a personagem principal, e um homem que é muito importante para a acção. Depois, tem mais algumas – poucas – personagens. Mas foi esse fôlego mais longo no qual me abalancei durante ano e meio. Não sou pessoa que escreva muito por dia, mas todos os dias tenho vontade de escrever. Não me obrigo. E por isso foi um grande prazer.

Como é que se passa da escrita da canção para o poema, que tem outra estrutura, para o conto e, de repente, para o romance, que implica um envolvimento muito maior com as personagens e com a construção da narrativa?
Foi uma aventura nova para mim porque nunca tinha tido uma coisa de continuidade assim, com todo esse tempo de maturação da história, das personagens, dos novos acontecimentos que vou descobrindo à medida que vou escrevendo. Não tinha uma estrutura fixa à partida. Tinha uma ideia de condução do fio da narrativa mas, depois, muitas coisas aconteceram, felizmente. Não tinha o esquema todo feito. Agora, como é que se passa? Não se passa. Embora nas canções, muitas vezes, haja personagens e narrativas, são actos completamente diferentes. A escrita de canções, desde logo, joga duas formas de expressão – a música e as palavras, as frases. A música tem códigos muito estritos, tem harmonias, tem progressões harmónicas, tem estribilhos, geralmente, tem regras muito fixas, dentro das quais há uma grande liberdade. As palavras têm uma métrica muito própria, que tem de ser musical, e não é por acaso que começo geralmente pela música. As palavras, quando aparecem, estão já a espraiar-se numa determinada frase musical. E têm rimas, quase sempre, é raro não ter uma canção com rimas, até porque gosto delas. Depois, há a conjugação dessas duas formas de expressão, para que pareça uma coisa única. A grande vitória de uma canção é nós sentirmos que aquela letra e aquela música sempre conviveram, e não podiam existir uma sem a outra. É evidente que também tenho versões instrumentais e já publiquei textos das minhas canções, mas é sempre uma parte de um todo. O todo é a canção, é o objecto canção. Portanto, são abordagens completamente diferentes. A escrita de ficção é uma escrita que vai acontecendo continuamente e que se vai estruturando. Uma canção é uma peça de joalharia. Ou de relojoaria.

“Coração Mais que Perfeito” é uma história de amor – e eu diria que não poderia ser de outra maneira. Eugénia é uma mulher que nos é apresentada através de um acontecimento trágico.
Depois vamos voltar atrás mas, de facto, há um suicídio, embora não seja completamente expresso, de um grande amor – e foi um amor mútuo. O amor não se degradou, simplesmente o homem, o Artur, começou a ter um processo de decadência psíquica em que vai perdendo o pé e ninguém o pode agarrar.

E quem é esta Eugénia? “Fala de ti própria, Eugénia”, lê-se no primeiro capítulo.
Eugénia é uma mulher forte – é uma sobrevivente –, embora os seus valores não sejam sempre os mais recomendáveis. Ela não é um exemplo, mas também não é um livro pedagógico, não tem de ser uma personagem exemplar. É uma mulher cheia de defeitos, os valores dela são fortes mas, por vezes, também são um pouco voláteis. Não tem muitas referências: a mãe não é referência para nada, o pai desaparece muito cedo, e ela vai vogando na vida sem grande rumo. Os trabalhos dela não têm um fito profissional, ela vai vivendo as coisas. Mas vai vivendo com intensidade. Há uma altura em que resolve prostituir-se, durante pouco tempo, porque sim, porque uma amiga o faz e ela tem uma certa atracção por isso, por experimentar – mas, a certa altura, aquilo corre mal. É o contrário dele: ele é um actor, que esteve na escola de teatro, que sempre teve um fito na vida. Quando comecei a construir as personagens, não descobri logo o que é que ele faria, qual seria a sua profissão, porque achei que deveria ter uma profissão que o interessasse. A personagem do actor sempre me interessou porque eu estou a criar personagens – no fim de contas, estou a ser um dramaturgo. E o actor, à sua maneira, está a criar personagens – já existem, mas está a dar-lhes o seu corpo, a sua intenção, a sua voz estilística. E esse sim, é mais próximo de mim, porque também já fiz trabalho de actor e achei que esse desdobramento de uma vida noutras vidas era interessante. Como se verá, é também por essa outra vida que tem que ver com o teatro que ele começa a perder o pé psiquicamente. Depois fica mesmo psicótico, mas é um processo longo, que ocupa a segunda parte do romance.

Esse desdobramento de uma vida noutras vidas acontece também no segundo romance, que já está escrito?
Não. É outra coisa, é um assunto completamente diferente. Está escrito. Daqui a um ano, espero, falaremos outra vez, mas não. É um assunto diferente, um romance mais concentrado, no sentido em que tem quase exclusivamente duas personagens e, a dois terços do livro, aparece uma terceira. É mesmo outro assunto. Este assunto passa-se ao longo de vários anos, num período extenso de tempo, e o outro não. O terceiro [livro] está parado porque estou a canções. Este ano sairá ainda um novo álbum, lá para Setembro.

Sobre esse novo disco, o que é que já está pensado?
O disco vai ter várias parcerias musicais. Já aconteceu, nalgumas canções, outros compositores fazerem as músicas e eu fazer as letras todas – desde as colaborações brasileiras aos Clã, com “O Sopro do Coração”, que tem música do Hélder Gonçalves e letra minha. Aqui, quis levar um pouco mais longe isso e, portanto, há canções que vão estar neste disco em que a música não é minha, mas em que estou a fazer também esses casamentos. Há duas canções – e essas são letra e música minha – que são originalmente do filme do Ivo Ferreira que está a ser rodado aí em Macau, e que são cantadas no filme pela Margarida Vila-Nova. O filme tem três canções minhas – duas delas, vou cantar à minha maneira no álbum.

Há quase seis anos, quando falámos a propósito dos 40 anos de carreira, dizia que tinha vontade de voltar a Macau. Na altura, não era algo que estivesse em perspectiva. Depois disso, já houve dois convites e uma participação num filme que está a ser rodado aqui.
Macau está a entranhar-se cada vez mais. É a sexta vez que vou a Macau. A primeira vez que fui, Macau era muito diferente, como é evidente. Foi em 1990. A Fundação Oriente convidou-me e fiz aí um concerto, depois também fomos a Goa e a Pangim, fui para a abertura oficial da delegação. Na altura, o Lisboa era o grande casino e depois havia os casinos flutuantes. Depois, há quase 12 anos, estive no Festival de Artes de Macau, mas entretanto tinha voltado lá. Estive no 10 de Junho há dois anos e agora regresso. Macau está a tornar-se cada vez mais familiar, porque vou conhecendo gente, outras pessoas com quem me cruzo. Estou muito curioso em relação ao festival Rota das Letras. Há dois anos, tinha estado com o Hélder Beja e o Ricardo Pinto, que tinham manifestado a vontade de ir ao festival e o aparecimento do romance propiciou isso. É mesmo com alegria que volto a Macau. Gosto muito de voltar aos lugares que vou conhecendo, ver o que está intacto, o que mudou, passear por ruas que já me foram familiares. Gosto muito de descobrir lugares, mas também gosto muito de voltar. Estive no início do ano no Rio de Janeiro, um lugar onde tenho onde ficar, em casa de amigos, que é uma cidade extremamente familiar e é muito bom tornar a calcorrear aquelas ruas. É a sensação de que o mundo também nos pertence. Sou um observador do que está à volta – observador em todos os aspectos, até no criativo – e voltar a Macau é mesmo uma alegria.[/vc_column_text][vc_cta h2=”Palavras e música no Rota das Letras” h2_font_container=”font_size:40px” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” h2_css_animation=”none” shape=”square” style=”flat” color=”chino” use_custom_fonts_h2=”true” css=”.vc_custom_1488974315816{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”]A primeira intervenção de Sérgio Godinho no festival literário de Macau está marcada para o próximo domingo, dia 12. Às 19h, no edifício do antigo tribunal, é apresentado o livro “Coração Mais que Perfeito”. No dia seguinte, no local que serve de sede ao Rota as Letras, pelas 18h, participa numa sessão com o autor guineense Abdulai Silá, em que vai estar em discussão o papel do escritor na construção da identidade nacional. Sérgio Godinho vai ainda participar nas sessões destinadas aos mais novos: na segunda-feira, está na Escola Portuguesa e, no dia seguinte, na Escola Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes. Na quarta-feira, o escritor de canções sobe ao palco do teatro do Venetian, para um concerto que começa às 20h30. O músico vem acompanhado pelo pianista Filipe Raposo.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]

8 Mar 2017

Casinos | Trabalhadoras dizem-se discriminadas na progressão profissional

Estão em maioria, mas não são elas as escolhidas quando chega a hora de subir na carreira. As funcionárias do sector do jogo queixam-se de discriminação e dizem que não é fácil conjugar turnos e família. As ideias foram deixadas num colóquio para assinalar o Dia Internacional da Mulher

Com Vítor Ng

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s mulheres que trabalham na principal indústria do território continuam a sentir-se discriminadas em relação aos homens, apesar de estarem em maioria. Além disso, dizem ter dificuldades na conciliação da profissão com a vida familiar, devido ao trabalho por turnos. Depois, há ainda a falta de flexibilidade das entidades patronais durante a gravidez.

Estas foram algumas das queixas ouvidas ontem num colóquio organizado pela Associação Aliança de Povo de Instituição de Macau, uma iniciativa liderada por Song Pek Kei, deputada à Assembleia Legislativa e vice-presidente da organização. Em debate estiveram assuntos relacionados com a vida e o trabalho das funcionárias dos casinos – o objectivo foi oferecer uma plataforma para que os problemas possam ser discutidos.

Ao HM, Song Pek Kei explicou que espera que, através das opiniões deixadas, se incentive a criação de um mecanismo de protecção e estratégias de apoio para que se possam resolver os dilemas dos trabalhadores do jogo, sobretudo do sexo feminino.

“Nos dias que correm, as mulheres, além do trabalho, precisam de cuidar da família. Por isso, o stress que têm pode ser muito grande”, apontou a deputada. “A indústria de jogo é a parte principal da economia de Macau e há muitas mulheres que trabalham como croupiers”, acrescentou. “Como sabemos, os croupiers trabalham por turnos. As mulheres têm um stress maior, uma vez que têm de conciliar o trabalho e a família”, sublinhou Song Pek Kei.

Grávidas com turnos

De acordo com os dados deixados no debate, em meados do ano passado havia 55.708 funcionários a tempo inteiro no sector do jogo, com as mulheres a ocuparem 56,4 por cento dos postos de trabalho. Do total, 92,7 por cento de trabalhadores dos casinos estavam sujeitos ao trabalho por turnos.

Song Pek Kei explicou que as funcionárias grávidas têm mais problemas relacionados com a saúde por causa do trabalho. “Algumas delas esperam que as operadoras possam ajustar, de forma flexível, as funções que podem desempenhar”, contou. A ideia é garantir às mulheres grávidas um horário laboral fixo, sem estarem sujeitas a turnos.

Este sector da população activa também sente dificuldades na conciliação do trabalho com os filhos. Mais uma vez, são os turnos que criam obstáculos. “Algumas mães não conseguem ter um contacto constante com as crianças porque, quando chegam a casa, os filhos já estão a dormir. Por isso, não conseguem ter tempo suficiente para as crianças, o que poderá ter consequências para a relação entre mães e filhos”, observou.

Não são só as questões familiares que preocupam as mulheres. “De facto, hoje em dia muitas delas apontam a questão da ascensão profissional, porque alguns chefes preferem dar aos homens a oportunidade de progressão na carreira”, lamentou Song Pek Kei. “As trabalhadoras do sector do jogo querem que as empresas lhes dêem possibilidade de frequentarem acções de formação e ajustem os horários de modo flexível, porque algumas delas não conseguem assistir a estes cursos por causa da família.”

8 Mar 2017

Livros | Balanço da participação de Macau no Correntes d’Escritas

Não podia ter corrido melhor a primeira presença de Macau no principal festival literário português. O balanço é feito por Rogério Beltrão Coelho, editor, homem que há muito luta pela visibilidade da literatura do território. Para que se possa ir mais longe, é importante que as instituições percebam a importância de estar lá fora

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]ontadas nas línguas, as palavras viajaram. Atravessaram mares, lentamente, uma língua de cada vez; hoje desembarcam instantâneas, todas ao mesmo tempo. (…) A nossa língua, as nossas palavras, são por ali essa espuma. São palavras exiladas que subsistem nas vozes internas, pouco se fazem ouvir; há um ruído contínuo que urge traduzir, compreender.”

As palavras são de Carlos Morais José e foram deixadas no Correntes d’Escritas, o festival literário da Póvoa do Varzim que decorreu no final do mês passado e que teve, pela primeira vez este ano, a participação de um autor de Macau. Morais José levou a Portugal o romance “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra lançada pela Livros do Oriente, de Rogério Beltrão Coelho e Cecília Jorge.

Para Beltrão Coelho que, nos últimos tempos, tem dinamizado a Associação Amigos do Livro em Macau, a presença do território no festival literário mais relevante de Portugal foi “extremamente importante”, o que, “aliás, foi salientado no discurso de inauguração pelo Presidente da República”. “Deu-se a conhecer aos escritores e ao público que existe uma literatura em Macau, uma literatura pujante e com um representante que, no meio daquela mesa, foi um dos mais aplaudidos e enaltecidos”, relata.

A sequência deste tipo de participações estará sempre dependente de convites de quem organiza os eventos, mas para que, em Portugal, se fale mais dos livros de Macau é preciso investir em iniciativas, e é necessário “o apoio institucional e a compreensão institucional”, algo que, “infelizmente, não se nota”.

“Parece que Macau não tem interesse em que, fora do território, se tenha uma imagem que vá para além do jogo, uma imagem cultural, da existência de uma literatura pujante e que interessa ao espaço de língua portuguesa”, lamenta o representante da associação.

“Macau é muito longe e ali predomina a cultura chinesa. Mas existe, talvez surpreendentemente, uma literatura escrita em português”, contou Carlos Morais José a quem o ouviu na Póvoa do Varzim, lembrando que se escreve do e no território desde os meados do século XVI até aos nossos dias. “Quer se queira quer não, quer se saiba ou não saiba, Macau ocupa um lugar singular na literatura portuguesa”, acrescentou o autor.

7 Mar 2017

Pequim | Reuniões magnas da China com olhos postos na liderança do PCC

É impossível dissociar um momento do outro. Este ano, lá para Outubro, o Partido Comunista Chinês vai tomar decisões importantes em relação aos futuros líderes do país. Em Pequim, arrancaram as reuniões magnas anuais. A atenção vai para os possíveis futuros membros do Comité Permanente do Politburo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] cenário é bem diferente de há uma década. Quando chegou o momento de se começar a definir a futura liderança da China, Xi Jinping e Li Keqiang estavam em clara situação de vantagem em relação aos restantes principais nomes da política do país. Agora, as pistas são poucas, numa altura em que o Presidente cumpre o último ano do primeiro mandato e há vários políticos do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês (PCC) que se deverão retirar em breve, devido à idade.

Porém, é bastante possível que não surjam grandes novidades tanto na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, como na sessão da Assembleia Popular Nacional. Com o fim do mandato de Xi Jinping, ambos os eventos devem reflectir um balanço do que tem sido o consulado da actual direcção do partido.

O analista político Arnaldo Gonçalves prevê que os encontros de Pequim sejam “muito pouco virados para o futuro”. No fundo, não considera que as reuniões tragam “grande impacto”, indo pouco além do cumprimento de calendário. O especialista em política internacional antecipa que as directrizes para os próximos quatro ou cinco anos serão “decididas no congresso do Partido Comunista Chinês”.

José Carlos Matias também prevê pouco espaço para surpresas. “Normalmente, estas reuniões são bastante coreografadas. A Assembleia Popular Nacional valida aquilo que é previamente discutido nos órgãos do partido. É claro que existe algum espaço para debate, mas o essencial está previamente definido”, comenta o jornalista.

No fundo, estas duas reuniões podem ser o corolário do que tem sido a actual liderança chinesa. “Espera-se uma afirmação daquilo que é definido como o pensamento e a visão do líder Xi Jinping sobre o desenvolvimento nacional, sobre a concretização do projecto, do sonho chinês. Reflectindo aquilo que tem sido um processo de consolidação de poder do Presidente”, reflecte José Carlos Matias.

Menos partido, mais partido

O Outono vai ser decisivo para se perceber o que vai ser a China dentro de cinco anos. As reuniões magnas que, por estes dias, decorrem em Pequim deverão ficar marcadas pelo que acontecerá lá para Outubro. Por norma, os futuros líderes chineses são escolhidos entre os elementos do Comité Permanente do Politburo do PCC.

Há quem considere que a incógnita em torno da sucessão tem que ver com os esforços levados a cabo por Xi Jinping para acabar com facções e grupos dentro do partido. Citado pelo Channel NewsAsia, Tom Rafferty, o principal analista para a China da Economist Intelligence Unit, subscreve esta teoria e deixa um exemplo: “A Liga da Juventude Comunista costumava ter muito poder dentro do PCC, mas tem havido um esforço para, em certa medida, lhe cortarem as asas”. Foi a chamada ala jovem do PCC que avançou com o nome do antigo procurador da RAEM para Chefe do Executivo, tendo defendido, em 2009, que Ho Chio Meng seria o melhor sucessor de Edmund Ho.

Voltando a Pequim e a Tom Rafferty, o analista ressalva que o PCC continua a ser “uma estrutura gigantesca, onde existem as mais diversas opiniões e com facções activas”, pelo que mesmo agora “Xi Jinping não pode fazer tudo como deseja”. É por isso que todas as movimentações que acontecem por estes dias em Pequim, durante a sessão anual da Assembleia Popular Nacional, podem ter um especial significado.

Há vários nomes que têm sido avançados por observadores da política chinesa como candidatos ao grupo dos mais poderosos, o Comité Permanente do Politburo, a começar por Zhou Qiang, o presidente do Supremo Tribunal Popular da China. Da lista dos preferidos fazem também parte Wang Yang, um dos quatro vice-primeiros-ministros; Hu Chunhua, secretário do PCC na província de Guangdong; Sun Zhengcai, o líder do partido em Chongqing. Depois, há ainda Zhao Leji, responsável máximo pelo Departamento de Organização do PCC, e Wang Huning, que integra já o Politburo.

“Se Sun Zhengcai ou Hu Chunhua não integrarem o Comité Permanente do Politburo, não haverá nenhuma figura jovem o suficiente para assumir a liderança em 2022”, observa Tom Rafferty. “Poderemos assumir que se trata de um sinal de que Xi Jinping está a considerar seriamente a possibilidade de alargar o seu tempo de permanência no topo”.

Tamanho e poder

Alguns analistas especulam que o Comité Permanente do Politburo poderá ser reduzido, passando de sete para cinco elementos. As variações da dimensão do comité são importantes, na medida em que poderão influenciar qual a facção do partido que efectivamente detém a capacidade de decisão. Se houver uma diminuição, tal poderá ser sinónimo de consolidação do poder de Xi Jinping.

“Um Politburo mais pequeno é como um gabinete de guerra, que poderá tomar decisões de forma muito rápida. Se o processo de decisão for reduzido, podemos interpretar isso como um sinal de que Xi Jinping está a tornar-se ainda mais poderoso”, afirma o director do Lau China Institute do King’s College, Kerry Brown.

“Se continuar como está, é porque existe consenso e consistência. Se aumentar de tamanho, presumo que será um sinal de que existe necessidade de envolver mais pessoas com responsabilidade em determinadas áreas políticas”, acrescentou.

Tem existido ainda alguma especulação em torno da permanência de Wang Qishan, chefe do órgão de combate à corrupção, no Comité Permanente do Politburo, apesar de estar a atingir a idade da reforma. O limite para o exercício de altas funções políticas não está legislado – mas Deng Xiaoping deu origem a uma norma que tem vindo a ser respeitada.

“Parece-me que é, agora, uma hipótese mais consistente do que era no início do ano. Wang Qishan não representa uma ameaça política para Xi Jinping. É muito bem visto como economista, pelo que existe a possibilidade de vir a ser primeiro-ministro, com Li Keqiang a passar para a liderança da Assembleia Popular Nacional”, arrisca Kerry Brown.

No meio de tudo isto, existe ainda uma carta importante – fora do baralho, mas de grande relevância para o jogo – chamada Administração Trump. Os analistas acreditam que se os Estados Unidos avançarem com uma política agressiva em relação à China, as figuras mais conservadoras da política nacional ganharão força para conseguirem um lugar onde se tomam as decisões de alto nível.

Li Keqiang critica apelos pró-independência

O primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, advertiu ontem que os apelos para a independência de Hong Kong “não vão levar a lugar nenhum”. Relativamente a Taiwan, Li Keqiang também advertiu que a China se opõe firmemente ao “separatismo”: “Vamos resolutamente contrariar e conter as actividades separatistas pela independência de Taiwan”.

“Nunca iremos tolerar qualquer actividade, sob qualquer forma ou nome, que tente separar Taiwan da mãe-pátria”, frisou Li Keqiang, sustentando que a China continuará a “defender o ‘Consenso de 1992’ como base política comum, a salvaguardar a soberania e a integridade territorial do país”, assim como manter a estabilidade dos dois lados do Estreito da Formosa.

O jornal de Hong Kong South China Morning Post destaca tratar-se de um gesto sem precedentes, dado que foi a primeira vez que a noção de “independência de Hong Kong” foi mencionada – e publicamente condenada – no relatório anual do Governo apresentado pelo primeiro-ministro chinês na abertura da sessão anual da Assembleia Popular Nacional (APN), constitucionalmente “o supremo órgão do poder de Estado”.

“Iremos continuar a agir em estrita conformidade com a Constituição da China e com as Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau, e iremos garantir que o princípio ‘Um País, dois sistemas’ é aplicado com firmeza sem ser deformado ou distorcido”, refere o relatório anual.

O discurso do primeiro-ministro chinês tem lugar precisamente três semanas antes das eleições, marcadas para o próximo dia 26, para escolher o chefe do Executivo de Hong Kong, eleito por um comité eleitoral formado por 1.200 membros, representativos de diferentes sectores da sociedade, que é dominado por elites ou interesses pró-Pequim.

Um ano agitado

No ano passado, surgiram na cena política da antiga colónia britânica novos partidos com aspirações independentistas, como o Demosisto, que defende a realização de um referendo sobre a “autodeterminação” e o futuro estatuto de Hong Kong após 2047.

Além disso, em Outubro, estalou uma controvérsia em Hong Kong, depois dos dois deputados pró-independência Sixtus Baggio Leung Chung-hang e Yau Wai-Ching se terem comprometido a servir a “nação de Hong Kong” e pronunciado “China” de forma considerada ofensiva, entre outras alterações ao discurso quando prestaram juramento no Conselho Legislativo (LegCo, parlamento).

Tal levou o Comité Permanente da APN da China a considerar que os dois deputados não podiam repetir o juramento do cargo e tomar posse, uma decisão que se antecipou à que era aguardada pelos tribunais da antiga colónia britânica.

A justiça de Hong Kong concordou depois com a rara interpretação de Pequim e os dois deputados perderam mais tarde os seus assentos no LegCo, depois de os juramentos terem sido considerados “inválidos”.

Em relação à Ilha Formosa, um novo foco de tensão surgiu após a vitória nas eleições presidenciais do ano passado da independentista Tsai Ing-wen, do Partido Democrata Progressista (PDP), que obteve 75,6 por cento dos votos. Tsai recusou aceitar o chamado ‘Consenso de 1992’, ao abrigo do qual ambas as partes reconhecem o princípio de “uma só China”, mas cada um dos lados faz a sua própria interpretação desse princípio.

6 Mar 2017

Gonçalo Lobo Pinheiro retratou a pobreza em Macau: “Era como se fosse um deles”

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Numa cidade de muito brilho, de muita luz, foi à procura de um lado mais sombrio: a pobreza. O fotojornalista Gonçalo Lobo Pinheiro publicou, no final do ano passado, uma série de imagens no jornal Público que mostram um lado esquecido de Macau. “No Cárcere da Pobreza” vai estar em análise na próxima quinta-feira, na Universidade de Macau, num seminário que serve para se falar das diferentes realidades do território

[/vc_column_text][vc_column_text css=”.vc_custom_1489019654286{margin-top: -30px !important;}”][dropcap]C[/dropcap]omo é que surgiu a ideia de procurar um lado pouco visível de Macau?
É o papel do jornalista – e do fotojornalista – procurar este tipo de abordagens. Tenho vontade de andar à procura de histórias diferentes. Em Macau não é muito fácil encontrar esta diferença. Tentei perceber – dentro deste dinheiro, desta vida quase luxuosa para muita da população –, onde é que havia estes nichos de gente que, de facto, não tem rosto, que passa por dificuldades. Fiz vários contactos. Falei com a Santa Casa da Misericórdia, que me disse que a Caritas estava mais indicada para o trabalho que pretendia fazer. Depois comecei a encurtar distâncias, até que me deram abertura para poder entrar dentro da Casa Corcel, que é onde estão pessoas sem abrigo, pobres. Há outras pessoas que só vão lá comer. É uma ajuda aos mais necessitados. Tentei também, através deles, ir ao contacto das famílias desfavorecidas: existem algumas, na Ilha Verde, na Taipa, que moram em barracas. Só que aí foi muito mais difícil. Acabei por deixar cair a ideia. Depois foi a história normal: fui fazendo marcações para poder ir à Caritas. Numa primeira fase, ia acompanhado, até mesmo por uma questão de apresentação – para não chegar ali uma pessoa que não sabem quem é –, e para servir também de tradução, porque a maior parte das pessoas não falam outra língua que não o chinês. Foi assim que começou. Depois passei lá vários dias, várias semanas, em momentos diferentes, fui lá de manhã, à tarde, à noite…

Como é que foi o processo de conseguir ganhar a confiança de pessoas que não falam a mesma língua?
Tem de se estar ali, só a olhar para eles, e sorrir. Alguns são muito sisudos, até viram a cara. E depois vai-se fotografando. Uns diziam que podia fotografar; outros diziam logo à priori que não há cá fotografias, nem à ponta do dedo mindinho. Tem de se andar naquele jogo. Depois fotografa-se, mostram-se as fotografias para ficarem entusiasmados. Aqui é que se criam as ligações. A ideia era eu estar ali como se fosse um deles. Obviamente que, nos primeiros dias, era mais complicado, porque viam um intruso ali. Depois de se habituarem, passou a ser muito mais fácil e circulava à vontade. Tinha algumas restrições quando ia para a ala feminina – ia acompanhado de uma senhora –, mas, fora isso, andava tranquilo. Estavam a fumar, ia para ao pé deles. Havia um que estava a fazer a barba, eu passava pela casa de banho. Fazia uma vida como se estivesse ali. Mas teve de se ganhar essa confiança – os primeiros dias foram muito complicados.

Quando olhamos para estas fotografias, imaginamos histórias de vida. Foi possível ir percebendo como é que as pessoas foram parar a esta casa?
Algumas histórias consegui perceber: há casos em que as famílias não quiseram mais saber deles, outros porque gastaram o dinheiro todo e deixaram de ter meios de subsistência, e outros ainda porque tiveram problemas de saúde e nunca mais voltaram a ser os mesmos. A maioria estava resignada – muitos deram a entender que a vida deles não vai sair daquele marasmo –, mas outros não. Mesmo tendo 60 ou 70 anos tinham esperança de melhorar a sua condição. Há histórias complicadas, como a de um chinês de Moçambique que estava triste porque não podia ver os filhos. Depois havia um que era chefe de cozinha, mas que teve uma trombose. Há pessoas que não têm dinheiro para pagar a renda. Há várias histórias.

“Tem de se estar ali, só a olhar para eles, e sorrir. E depois vai-se fotografando.”

Sente que o facto de os ter fotografado lhes deu uma dignidade diferente?
Espero que sim. A minha ideia era também ir por aí. Não era só mostrar as pessoas que estão marginalizadas na sociedade, mas também que as fotografias dessem essa dignidade. Tenho fotos mais complicadas do que outras mas procurei, nesta sequência de 15 imagens que publiquei, mostrar o lado mais bonito do que não é nada bonito, que é estarem ali, naquelas condições. Procurei fazer mais retratos, sempre que possível, com as pessoas a sorrir, mas não interferi muito nisso. O meu trabalho foi feito para mostrar as condições complicadas em que eles estão, mas são pessoas que têm um rosto, com vida, com história. Antes de chegarem ali, viveram muitos anos e fizeram outras coisas. Podem ser 100 ou 200 pessoas – o que parecerá ridículo numa terra com quase 700 mil habitantes – mas têm a sua voz e o direito a aparecerem.

Este não foi um projecto vulgar em Macau. Há mais ideias deste género para o futuro?
Neste momento não estou a trabalhar em nada em específico. Tenho ideias para fazer mais algumas coisas, estou a estabelecer contactos com associações. Vamos ver. Mas tenho, pelo menos, duas ideias que gostaria de fazer nos próximos dois anos. Isto requer disponibilidade, porque tenho de partir às minhas expensas. Conforme o meu tempo, vou fazendo as coisas. Às vezes pode durar uma semana ou então um mês, dois, um ano. Mas estou a fazer contactos, porque também há esse lado mais burocrático. Depois faço a minha agenda: hoje vou, amanhã não vou, posso ficar uma semana ou duas sem ir e isso é interessante. Se for diariamente, não é muito bom. Haver descansos permite renovar o olhar. As reportagens deviam ser assim: deixar fluir, ver como é que as coisas correm. Não quero ter esse tipo de pressão, quero estar tranquilo.[/vc_column_text][vc_custom_heading text=”Galeria” font_container=”tag:h4|text_align:left” use_theme_fonts=”yes” css=”.vc_custom_1489051468346{margin-top: 5px !important;margin-bottom: 0px !important;padding-left: 20px !important;}”][vc_gallery interval=”5″ images=”16099,16098,16097,16096,16095,16093,16092,16090,16089,16088,16087,16086,16085,16084,16077″ img_size=”large” onclick=”” css_animation=”fadeIn” css=”.vc_custom_1489051293835{margin-top: -10px !important;margin-bottom: -30px !important;padding-bottom: 0px !important;}”][/vc_column][/vc_row]

6 Mar 2017

Os maus e os outros

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi um acontecimento raro sobre um episódio que, infelizmente, nada tem de invulgar. Esta semana, os jornais de Macau publicaram uma corajosa carta de uma residente do território que conta um episódio assustador que teve com a polícia. Em termos muito sucintos, devido a uma multa por excesso de velocidade – da qual não teve conhecimento e que deu origem a um julgamento à revelia –, a autora da carta acabou na esquadra, identificada e detida, depois de ter sido levada pela polícia à chegada a Macau.

Pelo modo como todo o processo decorreu, sentiu-se ultrajada e humilhada. Por considerar injusto o tratamento que teve, deu voz à sua indignação, coisa pouco frequente por estas bandas. Quase sempre por cansaço, outras vezes por sabermos de que nada adianta, habituámo-nos a engolir os sapos tal e qual nos são colocados no prato. Crus e amargos, sem direito a sobremesa para adoçar a boca.

A partilha da carta nas redes sociais teve o resultado que se esperava: a indignação de uns foi acompanhada por relatos de outros acerca de episódios semelhantes. O caso desta residente não é único, não se tratou de um equívoco no modo de lidar com um cidadão, não foi (apenas) um problema de comunicação. É uma questão de atitude.

Há várias histórias do género, com algumas diferenças de contexto, de objecto, da natureza da prevaricação. Em todas elas, sobressai um facto: a polícia de Macau, em termos gerais, tem tendência a tratar um condutor que comete a maluqueira de andar a 74 quilómetros à hora numa estrada em Coloane como se estivesse a lidar com um bandido a sério, daqueles maus e feios e muito, mas muito perigosos.

Não sei o que é que se anda a ensinar na escola da polícia da terra, mas há um princípio que deveria ser trabalhado: os agentes das forças de segurança existem para servir a população. É neste conceito abrangente que cabe tudo o resto: a prevenção, a protecção, a acção, o combate ao que não vai de encontro à lei.

Aos agentes policiais deveria ser também incutida a noção de que é necessário separar o trigo do joio. Uma contravenção ao volante não é o mesmo que um sequestro num quarto de hotel por dívidas de jogo. Um condutor que ultrapassa o tempo do parquímetro não é um doidivanas a 150 quilómetros à hora no Iao Hon, à procura de velhinhas para atropelar. Um residente desesperado por um lugar de estacionamento, que aguarda por um lugar vazio à porta de um auto-silo, não é um agiota. Um pai que pára o carro à porta de uma escola para ir apanhar o filho não é um serial killer. Um doente que estaciona cinco minutos à frente da farmácia não foi branquear capitais através da aquisição de paracetamol.

A polícia não pode ser vista como o bicho-papão da cidade, pelo que não pode comportar-se como tal. Multas para passar e multas por pagar devem ser tratadas como aquilo que são. Os direitos dos cidadãos devem ser respeitados, começando pela informação. Fala-se hoje menos português, mas é inadmissível que um polícia desate aos berros em chinês quando o seu interlocutor, visivelmente, não percebe a língua.

Há que ensinar que o excesso de zelo é de evitar, porque facilmente descamba em abuso de poder. E que medo e respeito não devem ser confundidos porque são conceitos incompatíveis: é impossível respeitar alguém de quem se tem, apenas e só, medo pela farda que veste.

5 Mar 2017

Kim Jong-nam | Suspeitas acusadas de homicídio. Seul propõe suspensão de Pyongyang na ONU

 

Insistem que são inocentes, que foram enganadas, mas arriscam a pena de morte. Já há duas acusações formais em relação ao homicídio de Kim Jong-nam mas, para já, os mentores do ataque continuam a monte. Ou protegidos pelo regime de Kim Jong-un. O uso de uma arma química altamente mortífera deve ser entendido como um aviso, dizem os vizinhos do Sul e quem trabalha na defesa dos direitos humanos na Coreia do Norte

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s duas mulheres alegadamente envolvidas na morte de Kim Jong-nam foram ontem formalmente acusadas de homicídio. A indonésia Siti Aisyah, 25 anos, e a vietnamita Doan Thi Huong, de 28, foram presentes a tribunal em Sepang. Além das duas mulheres, foram acusados quatro homens de nacionalidade norte-coreana que se encontram em paradeiro desconhecido, depois de terem saído da Malásia em meados do mês passado.

As arguidas são acusadas de terem atacado Kim Jong-nam no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, no dia 13 de Fevereiro, ao colocarem-lhe no rosto um gás tóxico asfixiante – o VX, um agente nervoso letal. Ao abrigo da legislação da Malásia, as duas jovens poderão ser condenadas à morte, por enforcamento, se forem consideradas culpadas. Não foi interposto qualquer recurso após a leitura da acusação.

Ambas disseram aos representantes diplomáticos dos seus países que foram pagas para participarem no que acreditaram ser uma brincadeira para um programa de televisão.

As agências internacionais de notícias relataram que o dispositivo policial nas imediações do tribunal era grande, com cerca de 200 agentes presentes. A polícia conduziu as mulheres algemadas para o tribunal. À saída, envergavam coletes à prova de bala, um reflexo da preocupação das autoridades malaias em relação à possibilidade de que outros envolvidos no crime queiram silenciar as arguidas.

Espera de mês e meio

Ainda antes do início da audiência, em declarações aos jornalistas, o advogado de Siti Aisyah, Gooi Soon Seng, mostrou-se preocupado com questões processuais prévias ao julgamento. Está marcada uma nova sessão no tribunal para 13 de Abril, altura em que a acusação vai pedir que as duas mulheres sejam julgadas em simultâneo, num só processo.

À porta do tribunal, o advogado de Doan Thi Hong afirmou aos jornalistas que a sua cliente lhe disse estar inocente. “Negou, negou tudo. Disse ‘sou inocente’”, relatou Selvam Shanmugam. “Claro que está obviamente muito nervosa porque arrisca a pena de morte.”

Ontem, as acusações contra Siti Aisyah foram lidas em primeiro lugar, seguindo-se o processo relativo a Doan Thi Huong. Há um homem norte-coreano detido, identificado pela polícia como sendo Ri Jong Chol, mas ainda não foi acusado de qualquer crime.

A polícia malaia deteve as duas mulheres nos dias que seguiram ao ataque. As imagens do circuito de segurança do aeroporto, que tiveram uma ampla divulgação pelos media, mostrava as arguidas a abordarem Kim Jong-nam, com uma delas a colocar-lhe um objecto sobre o rosto. O filho mais velho de Kim Jong-il, que se preparava para apanhar um voo com destino a Macau, morreu 20 minutos depois.

Em declarações feitas em Jacarta, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros manifestou a esperança de que Siti Aisyah possa ser julgada de forma justa. “Esperamos que o princípio da presunção da inocência seja respeitado. O advogado de defesa de Siti fará o seu melhor e desejamos que tenha um julgamento justo, em que sejam respeitados os seus direitos, e que não seja julgada pela opinião pública.”

Doan Thi Huong, a mulher vietnamita, foi detida 48 horas depois do homicídio no mesmo terminal do aeroporto onde Kim Jong-nam foi assassinado. Será a mulher que usava uma t-shirt branca com o acrónimo “LOL” estampado, e que foi captada pelas imagens do circuito de segurança enquanto esperava um táxi, já depois do ataque.

A suspeita indonésia, Siti Aisyah, foi apanhada no dia seguinte. A polícia explicou que, na prisão, teve ataques de vómitos, admitindo que se tratará de efeitos secundários da exposição ao VX. Os diplomatas indonésios que a visitaram depois disseram que se encontra bem.

Segundas intenções

Kim Jong-nam morreu vítima de uma das mais mortíferas armas químicas alguma vez criadas. O VX é muito mais potente do que o gás Sarin, usado na Síria em 2013 e no metro de Tóquio em 1995. Os especialistas dizem que umas gramas de VX são suficientes para causar a morte a muita gente. Existem fortes dúvidas sobre o modo de manuseamento do VX pelas arguidas, uma vez que, sem as devidas precauções, também elas teriam morrido.

De acordo com os serviços secretos sul-coreanos, a Coreia do Norte tem centenas de toneladas de armas químicas, incluindo VX, espalhadas por todo o país. Pyongyang nega que assim seja. Parece não haver dúvidas, entre os analistas, de que o regime de Kim Jong-un, o meio-irmão mais novo de Kim Jong-nam, é o responsável pelo que aconteceu.

“É impossível a uma associação criminosa vulgar obter VX, pelo que é uma prova de que o Estado norte-coreano está envolvido”, assinalou ao HM o activista e investigador japonês Ken Kato. O director da Human Rights in Asia vinca que “não há outro país, além da Coreia do Norte, com razões para matar Kim Jong-nam”.

A utilização deste tipo de químico levanta questões acerca dos verdadeiros motivos de Pyongyang num dos homicídios mais estranhos dos últimos anos. Há quem entenda que a escolha do VX teve que ver com a necessidade de os autores terem a certeza de que não haveria falhas. Outros analistas especulam que, ao matar um homem – aquele homem – num aeroporto internacional, a Coreia do Norte quis mostrar ao mundo o que é capaz de fazer com armas químicas, facilmente esquecidas pela comunidade internacional, que está preocupada com os avanços nucleares do regime.

Depois, existe ainda a teoria de que Pyongyang não pretendia que o VX fosse descoberto, por não querer arriscar mais sanções impostas pelas Nações Unidas.

Ken Kato acredita que a Coreia do Norte entrou num “comportamento que demonstra a incapacidade de tomar decisões racionais”. Se assim não fosse, prossegue o activista, não teria entrado em conflito directo com a Malásia, um dos poucos aliados do regime. “Isto é extremamente perigoso para a comunidade internacional porque o Norte pode vender armas nucleares, químicas e biológicas a terroristas”, sublinha o activista, com vasto trabalho desenvolvido sobre o regime. “Não é um assunto que diga respeito à Malásia, mas sim ao mundo todo.”

O castigo

Os estados que assinaram a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas podem invocar que existiu uma violação da legislação internacional no caso Kim Jong-nam. A Malásia faz parte deste pacto desde 1993 – que proíbe a produção, a transferência e a utilização deste tipo de armamento –, mas a Coreia do Norte não.

As autoridades policiais de Kuala Lumpur já deram indicações de que estão disponíveis para fazerem chegar os resultados da autópsia e das investigações às Nações Unidas. Resta agora saber se o Conselho de Segurança da ONU irá tratar o caso como altamente prioritário.

No limite, os estados que ratificaram a convenção podem invocar o pacto e tomar medidas colectivas em relação a Pyongyang que poderão mesmo resultar na suspensão dos direitos e privilégios da Coreia do Norte no âmbito das Nações Unidas. Seul defende este caminho: esta semana, numa convenção sobre desarmamento em Genebra, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Sul, Yun Byung-se, afirmou que a utilização de armas químicas é um aviso, pelo que a comunidade internacional deve agir. O diplomata entende que o regime de Kim Jong-un deve ficar temporariamente impedido de ocupar o assento que detém nas Nações Unidas.

“A comunidade internacional não está habituada a lidar com um país como a Coreia do Norte”, considera o japonês Ken Kato. “Devia perceber que o regime norte-coreano é uma associação criminosa. Deve ser tratado como tal e não como um país em desenvolvimento, em fase de aprendizagem das normas internacionais. De outro modo, o regime jamais mudará.”

 

 

 

 

Só Pyongyang pede o corpo

Membros do Governo da Malásia estiveram reunidos com uma delegação norte-coreana que chegou a Kuala Lumpur esta semana para um encontro de alto nível sobre a libertação do cidadão da Coreia do Norte que se encontra detido, bem como para a entrega do corpo de Kim Jong-nam.

O ministro da Saúde, Subramaniam Sathasivam, disse aos jornalistas que não esteve presente no encontro, mas adiantou que terá de ser tomada uma decisão acerca do que fazer com o corpo, uma vez que não apareceu qualquer parente próximo para identificar formalmente a vítima do ataque do passado dia 13.

A Coreia do Norte diz que o morto é um cidadão norte-coreano, mas nega que seja o meio-irmão do líder Kim Jong-un. Logo a seguir ao assassinato ter sido tornado público, o regime exigiu que o corpo lhe fosse entregue e tentou evitar a realização da autópsia.

A morte de Kim Jong-nam desencadeou o pior conflito diplomático entre Kuala Lumpur e Pyongyang de que há registo, com a Malásia a insistir que o corpo do homem assassinado no aeroporto internacional da capital só será entregue a um familiar próximo após exame de ADN. As agências internacionais de notícias ainda chegaram a dizer que o filho mais velho de Kim Jong-nam, Kim Han-sol, estava a partir de Macau para a Malásia, para resgatar o corpo do pai. Até à data, tal não se verificou.

2 Mar 2017

Autonomização do crime de branqueamento de capitais é consensual

O assunto levantou dúvidas, mas já estão resolvidas. A comissão da Assembleia Legislativa que está a estudar as alterações aos crimes de branqueamento de capitais e terrorismo concorda com o Governo. Em breve, a lavagem de dinheiro vai poder ser dissociada do crime que a precede

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa conta entrar em Abril na recta final da análise às alterações aos crimes de branqueamento de capitais e terrorismo. O diploma foi aprovado na generalidade em Novembro do ano passado, sendo que a principal parte do trabalho na especialidade está feita. Agora, as assessorias da AL e do Governo têm um mês para elaborarem um texto que vai servir de referência aos deputados na última fase da análise.

Ontem, Governo e deputados resolveram a questão que mais dúvidas suscitou à comissão. “Chegámos a um consenso que vai no sentido de autonomizar os crimes de branqueamento de capitais e crimes precedentes”, explicou Cheang Chi Keong, o presidente da comissão.

A legislação em vigor foi aprovada em 2006. “Na altura, os crimes precedentes não foram autonomizados. Mas, ao longo da execução da lei, verificou-se que a punição dos crimes precedentes dificulta o trabalho dos procedimentos judiciais”, contextualizou o deputado.

Cheang Chi Keong acrescentou que há vários países e territórios que optaram por esta separação entre lavagem de dinheiro e crimes precedentes. “Vai encurtar o tempo na conclusão do processo”, apontou. O presidente da comissão disse ainda que há processos em tribunal que não tiveram sucesso, porque “o dinheiro não tinha sido obtido cá, mas fora do território”. É por isso que se propõe a autonomização dos dois crimes, “para acabar com uma lacuna”.

As explicações do secretário

A reunião desta terça-feira contou com a presença de Lionel Leong, secretário para a Economia e Finanças, que falou com os deputados sobre a intenção destas mudanças na legislação. De acordo com Cheang Chi Keong, o governante sublinhou a importância da manutenção de um ambiente económico saudável. Além disso, as alterações vão ao encontro das normas fixadas pelas organizações internacionais.

“Nestes dez anos, a economia de Macau cresceu muito rapidamente, mas isso trouxe alguns riscos relativamente a aspectos como o branqueamento de capitais e o terrorismo”, continuou o deputado. “O Governo entende que há toda a necessidade de introduzir alterações a estas duas leis, para minimizar os riscos daí decorrentes.” O Executivo pretende ainda assegurar que Macau não entra nas listas negras da comunidade internacional por falta de legislação.

1 Mar 2017

Internet | Comissariado da Auditoria aponta falhas no serviço WiFI GO

É um serviço que entra na lógica da ‘cidade inteligente’, mas que é problemático. O Governo gastou, pelo menos, 160 milhões de patacas no sistema de banda larga sem fios. O Comissariado da Auditoria analisou o WiFi GO e não gostou do que viu. Há serviços pagos que não foram sequer instalados

[dropcap style≠’circle’]“H[/dropcap]á problemas no que respeita aos trabalhos de planeamento, à fiscalização dos serviços de operação, à instalação de pontos de acesso sem fios e das respectivas liquidações.” O resumo é feito pelo Comissariado da Auditoria (CA), que ontem divulgou um relatório sobre o sistema de banda larga sem fios, o WiFi GO.

O serviço começou a ser instalado em 2010, com o objectivo de disponibilizar a cidadãos e turistas acesso gratuito à Internet. O sistema tem vindo a ser instalado de forma faseada em espaços do Governo, em instalações públicas, nos principais postos fronteiriços e em pontos turísticos. De acordo com o CA, que realizou a auditoria entre Janeiro e Maio de 2016, o Executivo gastou, até Março do ano passado, 160 milhões de patacas. Este dinheiro foi investido na instalação da rede, nos serviços de operação e no pagamento de despesas relacionadas com os circuitos alugados.

Com o estudo, o Comissariado da Auditoria pretendia avaliar a qualidade do serviço. Desde logo chegou à conclusão de que o carácter “vago e abrangente” dos “objectivos gerais e específicos” do planeamento do WiFi GO fez com que “não existisse uma direcção concreta quanto à sua execução, podendo ter conduzido à instalação arbitrária e até indiscriminada de pontos de acesso”. O sistema era uma das apostas da Direcção dos Serviços de Regulação de Telecomunicações (DSRT), entretanto extinta.

“Dadas estas circunstâncias, será difícil determinar, com certeza, em que momento é que os objectivos propostos pela DSRT foram alcançados”, indica o relatório do CA, que não encontrou fundamentos para a selecção da maior parte dos pontos de acesso ao serviço.

A auditoria avaliou também o sistema de fiscalização adoptado pela DSRT, que se revelou “imperfeito e insuficiente, pois não era capaz de assegurar a qualidade do serviço WiFi GO”.

Dos 183 pontos de acesso escolhidos pelo comissariado, 30 tinham uma qualidade de ligação “insatisfatória”. Os pontos de acesso ao ar livre obtiveram uma taxa de aprovação de 48,6 por cento nos testes de ligação e de velocidade. Em termos gerais, foram aprovados 66,6 por cento dos pontos testados. “Porém, a qualidade da ligação é pouca satisfatória, constituindo um desperdício do erário público”, considera o CA. Em vez de se dar a ideia de que se está numa cidade internacional, o serviço “afecta a experiência dos turistas, deixando-os com uma percepção negativa em relação à imagem de Macau”.

Problemas com a lei

Os problemas não terminam aqui. De acordo com a auditoria, em seis das oito fases de instalação do WiFi GO, o número de dispositivos instalados foi inferior ao previsto nos contratos. O Governo gastou mais 422 mil patacas do que era suposto, uma vez que as 25 obras em questão, que não chegaram a ser realizadas, foram pagas pela DSRT.

Trata-se de uma situação “desrazoável e desfavorável” para a Administração, sublinha o CA, que explica o que esteve na origem deste desfasamento entre serviços pagos e recebidos: os contratos fixavam um preço total e não incluíam cláusulas de revisão. O problema passou despercebido durante anos porque a DSRT não fez qualquer menção nos documentos de liquidação. “Só depois de ter sido apontado pelo CA, durante a auditoria, é que a DSRT introduziu pela primeira vez num novo contrato de aquisição, uma cláusula de revisão do preço”, lê-se ainda no relatório.

A DSRT defendeu-se dizendo que algumas das obras previstas para certos locais não foram realizadas de acordo com os planos iniciais, tendo sido transferidas para outros locais. O CA consultou os projectos de execução mas, como não mencionavam o valor previsto, “qualquer ponderação objectiva dos preços das obras se tornaria difícil”.

O comissariado acrescenta que “é de estranhar o facto de a DSRT transferir as obras de instalação para outros locais não previstos no contrato sem ter tido a devida autorização escrita”. Perante este cenário, “obviamente que a DSRT não agiu de acordo com a lei”.

Pensar no futuro

Quanto às sugestões, o CA sugeriu que a DSRT – que, entretanto, se juntou aos Correios – deve efectuar um estudo que tenha em conta o desenvolvimento global de Macau, definindo de forma exacta “os efeitos concretos e os objectivos que se pretendem alcançar com o serviço WiFi GO”.

Além de uma boa selecção dos pontos de acesso, recomenda-se a definição de mecanismos que garantam a eficácia económica do serviço e a criação de um regime de fiscalização que permita assegurar a qualidade do sistema.

O comissariado deixa ainda conselhos sobre o modo como devem ser firmados os contratos entre serviços públicos e fornecedores de serviços: “É necessário definir com maior detalhe possível o conteúdo das prestações estipuladas no contrato, bem como a forma de cálculo do preço”. Em situações de incerteza, a Administração deve evitar fixar um preço total, optando por uma forma de cálculo que “permita assegurar que o pagamento seja efectuado de acordo com os bens e/ou serviços efectivamente recebidos ou prestados”, sugere o CA.

Em suma, “o papel a exercer pelo WiFi GO não é claro”, sendo que “não está nitidamente definido quais são os principais beneficiários deste serviço: se os cidadãos, se os turistas”. A auditoria permitiu concluir que “as situações verificadas levaram a que, apesar do avultado investimento público neste serviço ao longo dos anos, os resultados concretos alcançados ficassem aquém das expectativas”, resultado para o qual contribuem os problemas técnicos, nomeadamente no acesso à Internet e na instabilidade do sinal de wi-fi.

Não esquecendo que o serviço gera “críticas entre cidadãos e turistas”, o Comissariado da Auditoria frisa que, pelo facto de os problemas nunca terem sido “adequadamente resolvidos”, um serviço pensado para beneficiar a população acabou por ser “inútil”, afectando a confiança do público “também em relação a outros projectos do Governo”.

Por fim, recomenda-se que se tenha uma perspectiva conjuntural do sistema WiFi GO, atendendo a que tanto o sector privado, como alguns serviços públicos disponibilizam também eles gratuitamente o serviço de wi-fi.

28 Fev 2017

Migração | Artista de origem tibetana barrado à entrada de Macau

O pintor de origem tibetana Tashi Norbu foi impedido de entrar no território no passado sábado. Era um regresso a Macau para participar numa iniciativa de uma galeria local. O cidadão belga diz que não lhe foi dada qualquer justificação, mas admite não ser visto com bons olhos em Pequim

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] notícia é avançada pela entidade que convidou o artista, em nota à imprensa: o pintor Tashi Norbu foi impedido de entrar em Macau no passado sábado, quando se preparava para participar num evento promovido pela Galeria iAOHiN Amber. O artista vinha ao território para uma performance ao vivo, mas teve de dar meia volta e regressar a Hong Kong.

“Planeava mostrar a minha arte, a linguagem e as técnicas que estudei durante toda a minha vida”, disse Tashi Norbu ao telefone, citado pelo comunicado. “É triste que tenha sido impedido de apresentar o meu trabalho em Macau”, lamenta.

Tashi Norbu é cidadão belga e vive na Holanda. Em Abril de 2016, o pintor esteve na RAEM para uma mostra também promovida pela Galeria iAOHiN. “A minha exposição do ano passado em Macau foi muito bem-sucedida e foi por isso que a iAOHiN me voltou a convidar, desta vez para a inauguração da nova galeria. Ia pintar um ‘galo de fogo’, o símbolo deste ano novo lunar, que está também presente no calendário tibetano”, explicou o artista plástico.

“Quero apenas fazer a minha arte, e as únicas mensagens que quero passar com os meus quadros são o amor e a bondade”, garante o pintor de origem tibetana. Tashi Norbu destaca ainda que viajou um pouco por todo o mundo, foi já convidado por uma “diversidade de países com culturas diferentes”, sendo que “esperava que esse fosse o caso de Macau”. O pintor já tinha passado, no entanto, por uma situação semelhante na Polónia.

Organização desiludida

De acordo com a galeria, apesar de, no ano passado, o artista plástico ter conseguido entrar no território, tanto à chegada, como na partida esteve retido durante uma hora pelos Serviços de Migração – uma situação que não se verificou em Hong Kong, onde atravessou a fronteira sem qualquer problema. Desta feita, as autoridades não apresentaram qualquer justificação para negarem a entrada, mas Tashi Norbu admite que pode ser considerado “um pintor controverso” por Pequim.

A entidade organizadora do evento especula que a obra do artista “poderá ser banida na China por retratar monges tibetanos e cenas espirituais com o Dalai Lama e tibetanos no exílio”. Acresce o facto de Tashi Norbu ter vendido a um coleccionador de Hong Kong um quadro chamado “O Guarda-chuva Precioso”. Trata-se de uma referência aos protestos de 2014 na antiga colónia britânica, “com um guarda-chuva amarelo no meio de monges a voar e, entre eles, uma freira católica”.

Na mesma nota à imprensa, o responsável pela galeria, Simon Lam, diz-se “desiludido com a atitude das autoridades”, por considerarem “a arte uma ameaça e impedirem algo que não era mais do que uma performance artística”. O responsável considera que “isto não é o que Macau deveria estar a fazer, a censura é simplesmente algo que está errado, e não há justificação possível, uma vez que Tashi Norbu teve autorização para estar em Hong Kong na semana passada, sem qualquer problema”.

27 Fev 2017

Novo Macau | Analistas comentam saída de Jason Chao

Apanhou desprevenidos os observadores da política local, que não acreditam, no entanto, num mero regresso à vida civil do demissionário vice-presidente da Associação Novo Macau. Éric Sautedé não afasta a possibilidade de, um dia destes, Jason Chao voltar em força. E surpreender quem agora bate palmas

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] visto como sendo o homem que revolucionou a Associação Novo Macau (ANM), movimento político pelo qual foram eleitos Au Kam San e Ng Kuok Cheong. É tido como um jovem incómodo, um activista sem papas na língua que, por não estar de acordo com os mais velhos, contribuiu para a fragmentação da principal associação pró-sufragista do território.

Na semana passada, Jason Chao anunciou que está de saída da ANM. Na despedida, garantiu que não houve desentendimentos com a actual direcção e deu a entender que tem novos planos ligados ao trabalho junto da sociedade civil. Chao deixa o organismo a pouco mais de meio ano das eleições legislativas. “Estou um pouco surpreendido com a saída de Jason Chao”, admite Eilo Yu, professor da Universidade de Macau.

No comunicado que publicou no Facebook, o ainda vice-presidente da Novo Macau mostra-se desiludido com o facto de serem cada vez menos aqueles que estão dispostos a dar a cara pelos ideais democráticos. Eilo Yu tem uma leitura diferente sobre a matéria. “Em termos de tamanho, não me parece que o campo pró-democrata esteja a ficar menor. Nestes últimos anos, passámos a ter mais jovens e grupos independentes a assumirem uma posição sobre questões públicas”, sublinha ao HM.

Teoria da fragmentação

“Talvez o desencanto de Jason Chao tenha quer ver com o facto de o campo pró-democrata não estar a crescer em paralelo ou em proporção à economia de Macau”, acrescenta. Para o politólogo, “a oposição encontra-se mais fragmentada do que unida”.

Eilo Yu recorda que, quando o deputado Au Kam San e outros elementos da Novo Macau saíram da ANM e passaram a integrar a Iniciativa de Desenvolvimento da Comunidade de Macau, “as forças pró-democracia separaram-se”. “Têm o seu posicionamento e estratégia, têm também, por vezes, opiniões diferentes, o que poderá contribuir para a frustração de Chao”, afirma.

Surpreendido com a saída ficou também o académico Éric Sautedé, uma vez que esperava que o vice-presidente da ANM se candidatasse às eleições legislativas deste ano. “Não conheço ninguém em Macau que não tenha ficado surpreendido. É um jovem político muito sofisticado e desafiador e, apesar de os resultados que obteve em 2013 não terem, certamente, ido ao encontro das suas expectativas, deu a entender que se iria de novo candidatar”, refere o analista, que vê em Jason Chao “um lutador”.

Éric Sautedé não tem a certeza de que o jovem político esteja desiludido com o rumo dos acontecimentos dentro e fora da Novo Macau, mas não tem dúvidas de que existe frustração, “especialmente porque ele é amplamente reconhecido como um firme defensor dos valores democráticos e da reforma em Macau, e infelizmente isto não se traduziu no resultado que legitimamente aspirava” nas últimas eleições.

De fora, mas perto

Ainda sobre Jason Chao, o politólogo francês traça um retrato do vice-presidente da ANM para tentar perceber qual o passo que se segue. “Baseia-se em princípios, é um idealista, e desafia o campo conservador e iliberal ao utilizar, em simultâneo, abstracções e actos surpreendentes, algo que homens como Fong Chi Keong ou Chan Chak Mo devem ter verdadeira dificuldade em alcançar”, atira.

Sautedé recorda ainda que Jason Chao é uma pessoa que suscita opiniões muito diferentes, atendendo ao forte envolvimento no movimento de direitos LGBT em Macau, que “continua a ser uma comunidade muito tradicional”. “Ele assumiu ser homossexual, ansioso por acabar com todas as formas de discriminação na sociedade.”

O académico acredita que a saída anunciada para o final do próximo mês “é estratégica, deverá ter algo em mente, mais no lado do trabalho junto da sociedade civil, que poderá ser complementar ao papel mais institucional da Novo Macau”.

Eilo Yu concorda com esta perspectiva, ao destacar que “Jason Chao deu a entender que irá criar uma nova organização para a continuação da sua actividade, pelo que poderá cooperar com a Novo Macau nalgumas situações”.

Não obstante, o professor da Universidade de Macau adivinha tempos difíceis para a ANM. “Em termos psicológicos, a saída de Chao por certo trará pressão, a curto prazo, à Novo Macau. Nestes últimos anos, Scott Chiang e Sulu Sou têm estado muito activos na vida política de Macau. Acredito que continuarão o que têm estado a fazer”, diz. Mas perderam oficialmente um companheiro de luta.

Em termos gerais, continua Eilo Yu, “a saída de Chao vai fragmentar ainda mais o campo pró-democrata e reflecte que este continua a ser virado para a elite”. Para o analista, a pró-democracia em Macau “não tem capacidade de união e de acomodação da elite e das massas, que têm diferentes opiniões dentro de uma organização”. O fenómeno não é exclusivo de Macau: “Essa é a natureza das forças pró-democratas em várias regiões, como acontece em Hong Kong”.

Esperar pela surpresa

Já Éric Sautedé entende que a Novo Macau é “como uma família”. “Aqueles que se regozijaram demasiado depressa com o facto de Jason Chao ter passado aos bastidores poderão, muito bem, ter uma surpresa quando chegar a hora”, diz.

O politólogo lembra que, “desde que se juntou à ANM, em meados dos anos 2000, Jason Chao esteve sempre à frente de todas as batalhas democráticas em Macau, e mais ainda depois de, em 2010, se ter tornado presidente da única força política da oposição, quando tinha apenas 24 anos”. Ou seja, não será agora que vai atirar a toalha ao chão.

“Infelizmente, em Macau, o sistema eleitoral é totalmente selado e as eleições são ganhas com um apoio comunitário muito grande – Fujian, Jiangmen ou Chaozhou, é escolher – e com muito dinheiro gasto em jantares, entretenimento e sorteios, durante todo o ano e ao longo de todo o mandato”, lamenta Sautedé. “Quando se defendem ideias não é preciso sujar as mãos, luta-se contra o sistema naquilo em que é discutível”, acrescenta. Jason Chao deixa a ANM, mas não deixará as lides políticas do território.

27 Fev 2017

Tráfego | Parquímetros de Macau infringem normas do Código Civil

Os parquímetros que estão a ser colocados nas ruas de Macau não dão recibo aos utentes. A situação não é nova – o Governo está a consentir que se prolongue uma situação que é ilegal. Os Serviços para os Assuntos de Tráfego alegam que se poupa papel. A lei é violada em nome do ambiente

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ão parquímetros para mais de 11 mil lugares e têm de estar instalados até ao final de Abril do próximo ano. A empresa a quem foi concessionado o serviço de parquímetros está a substituir, de forma gradual, os equipamentos nas vias públicas mas, à semelhança do que acontecia já com as velhas máquinas, os novos dispositivos não dão recibo ao utente, em troco do dinheiro depositado.
Para quem sabe de leis, está-se perante uma ilegalidade, que o Governo não nega. A Administração defende-se, porém, com preocupações ambientalistas: a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT) diz que, com a inexistência de recibos, poupa-se papel.
A lei é clara no que diz respeito aos direitos dos consumidores na aquisição de bens e serviços. O Artigo 776.º do Código Civil, que dispõe sobre o direito à quitação, diz que “quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado”. O mesmo artigo diz ainda que “o autor do cumprimento pode recusar prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento”. Por outras palavras, um condutor poderá recusar-se a pagar se não tiver a certeza de que vai receber um comprovativo de que fez o pagamento.

Amigos do ambiente

Confrontado com o que diz o Código Civil e com mais algumas questões sobre a matéria, o gabinete do secretário para os Transportes e Obras Públicas delegou as respostas na DSAT, que fez os seus esclarecimentos por escrito. “Os novos parquímetros que foram introduzidos em Macau são iguais aos que foram adoptados em outras regiões, tal como em Hong Kong”, começam por esclarecer os serviços. “Durante a utilização dos parquímetros, o utente, após ter efectuado o devido pagamento, poderá visualizar no ecrã o sistema de cobrança, ou seja, o utilizador toma conhecimento de quanto tempo poderá estar estacionado, no respectivo lugar do parquímetro, consoante o valor que colocou.”
Cada novo parquímetro serve vários veículos em simultâneo, estando os números dos lugares pintados no chão. O utente dirige-se à máquina, pressiona F1 para português, selecciona o número onde tem o carro estacionado e faz o pagamento, que pode ser em moedas ou com o MacauPass.
“Este sistema, adoptado pelo Governo de Macau, alimenta a política de protecção ambiental, com a diminuição clara do uso do papel”, defende a DSAT, sem fazer referência directa ao Artigo 776.º do Código Civil. Os Assuntos de Tráfego aditam que, “ao recorrer ao pagamento por cartão-porta moedas electrónico, o utente pode, caso considere necessário, requerer à entidade exploradora da emissão do respectivo cartão, uma consulta dos seus movimentos e obter informações relativamente ao pagamento do parquímetro”. Ou seja, quem precisar de fazer prova do dinheiro que gastou ao estacionar nas ruas de Macau terá de dirigir-se à MacauPass. E quem tiver feito o pagamento com moedas? A DSAT nada diz sobre o assunto, presumindo-se assim que, para quem usou patacas em vez do cartão, não há forma de obtenção do comprovativo de pagamento.

Ilegalidade problemática

O advogado Sérgio de Almeida Correia não tem dúvidas: “O facto de existirem parquímetros em Macau que obrigam as pessoas a colocarem moedas para o estacionamento, não lhes sendo dado o comprovativo, é uma ilegalidade”. Trata-se de uma ilegalidade porque “viola aquilo que está previsto no Código Civil, designadamente o Artigo 776.º” – que confere a qualquer cidadão o direito a ter um documento de quitação dos pagamentos que efectua”, sendo que “traz outros problemas e inconvenientes”, observa.
“Não me é possível ficar com um documento que me diga a que horas é que estacionei e até que horas é que tenho direito a lá ter o carro. Se for autuado por um polícia cinco minutos antes do termo do prazo, não tenho maneira de fazer prova de que, à hora a que o meu carro foi autuado, ainda estava a cumprir com as regras”, aponta o advogado.
Mas há outros problemas além da contestação de multas. “Por outro lado, em relação a algumas entidades, é necessário fazer prova da apresentação do recibo para efeito de reembolso de despesas, para apresentação, por exemplo, junto dos Serviços de Finanças.”
Sérgio de Almeida Correia chama ainda a atenção para as pessoas que utilizam os seus carros ao serviço de empresas. “Têm direito a serem reembolsadas das despesas que efectuaram, mas qualquer entidade patronal precisa do recibo para poder fazer o pagamento. Se há uma saída de dinheiro de uma empresa, tem de estar suportada nalguma coisa.” Ora, um trabalhador que gaste por dia quatro patacas em estacionamento, por usar o carro ao serviço do local onde trabalha, chega ao final do ano com menos 1000 patacas no bolso.

“Péssimo princípio”

O advogado considera que se trata de um “péssimo princípio da Administração de Macau proceder à instalação de parquímetros sem que seja possível fazer prova do pagamento, sem que seja emitido o respectivo recibo”. Sérgio de Almeida Correia não hesita em dizer que se trata “de uma coisa inconcebível num sistema de direito, num território onde existem leis, onde as pessoas têm direitos e têm obrigações”. As obrigações não são só para os cidadãos, nota o jurista. “Também se aplicam no sentido da região relativamente aos cidadãos. O cidadão cumpre as suas obrigações, pelo que também espera que a região cumpra os seus deveres.”
Quanto ao argumento da DSAT em relação à inexistência de recibos – as preocupações em relação ao consumo de papel –, Sérgio de Almeida Correia entende que se está perante um objectivo a ser perseguido mas, no caso em análise, “o cumprimento da lei impõe-se relativamente à preocupação ambiental”.
“Além de mais”, vinca o jurista, “essa preocupação ambiental só faria sentido se fosse estendida também a outras áreas”. No que toca directamente à acção da DSAT, “não existe essa preocupação ambiental relativamente à emissão de gases de escape por parte dos táxis ou por parte dos autocarros que estão ao serviço dos casinos, porque basta circular atrás deles nas subidas para se verificar a quantidade de fumo que é libertada”.
Ainda a propósito do consumo de papel, mas noutra tutela, Sérgio de Almeida Correia lamenta que “essa preocupação ambiental não exista relativamente aos tribunais e que se continue a impor aos advogados a apresentação de duplicados em papel de todos os articulados que apresentam”. O advogado dá uma ideia do volume em questão: “Se estivermos a falar de acções com 20 ou 30 partes, em processos em que cada articulado pode ter 40 ou 50 páginas, é ver a quantidade de papel que é necessária e o impacto ambiental que isso representa”. O jurista não compreende por que não se informatizam os serviços, “como se faz nos países civilizados”. Portugal é, “há mais de uma dezena de anos”, um bom exemplo.
Voltando ao argumento da DSAT, Sérgio de Almeida Correia diz que lhe parece “forçado”. Poupança por poupança, e uma vez que não se corrigiu a situação ilegal que já se verificava, deixavam-se estar os velhos parquímetros. “Estavam a funcionar, cumpriam a sua função. Até por aí, parece-me que há um desperdício.”

Sem outras soluções

Pelos números fornecidos pela DSAT ao HM, até Janeiro deste ano, “a disponibilidade de lugares de estacionamento de parquímetros em Macau era de 11.332”. Nos últimos anos, estes equipamentos proliferaram no território, sendo difícil encontrar um local de estacionamento na via pública que não seja pago, “até em Coloane, junto aos trilhos”, aponta Sérgio de Almeida Correia.
Ainda segundo as explicações dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, compete à Sociedade de Administração de Parques Foieng a instalação e a gestão de lugares de estacionamento no território. “De acordo com o contrato celebrado, depois do concurso público, de prestação de serviços de exploração, a mesma deve proceder à substituição do respectivo sistema de cobrança, até a 30 de Abril de 2018, assumindo os encargos resultantes de toda a instalação.”
Em muitas cidades com problemas de estacionamento, dilema com que Macau se depara, são instalados parquímetros que permitem aos utentes, sobretudo nas zonas residenciais, pagarem de véspera as primeiras horas do dia seguinte, para evitarem ser multados se saírem de casa mais tarde. O HM quis saber se esta hipótese tinha sido estudada para o território.
“Para já não existe a possibilidade do tipo de pagamento mencionado”, responde a DSAT. “Mais se informa que, durante o período das 22h às 9h do dia seguinte o estacionamento é grátis”, acrescenta. “Elevar a rotatividade de estacionamento permite impedir a ocupação permanente e abusiva dos lugares de parquímetros, respeitando o Artigo 21.º do Regulamento do Serviço Público de Parques de Estacionamento, que afirma não ser permitida ‘a sobrealimentação do parquímetro ou de outro sistema de cobrança, nem de estacionamento para além do período máximo permitido’”, citam os Serviços para os Assuntos de Tráfego, sem esclarecerem se a ideia da criação de zonas residenciais chegou a ser pensada.
De resto, este sistema de antecipação do pagamento jamais poderá ser implementado com os parquímetros novos que estão a ser instalados em Macau. Chama-se “pay and display” e é amplamente utilizado em Portugal, assim como no Reino Unido, entre outras jurisdições. Os utentes fazem o pagamento com moedas ou cartões electrónicos e, em troca, é dado um recibo que colocam num local visível do veículo. À semelhança dos equipamentos novos do território, também estas máquinas servem para vários lugares de estacionamento em simultâneo, sendo que, para os concessionários do serviço, têm uma mais-valia em relação às de Macau, ao evitarem que os condutores tirem partido do dinheiro que sobrou do carro que esteve estacionado antes. Para os utentes, há também vantagens: além do pagamento por antecipação, não é preciso andar à procura do lugar de estacionamento pintado no chão. E dão recibo.

27 Fev 2017