O outro país

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]os anos que antecederam a batida no fundo, ia a Portugal com muita regularidade. Houve uma altura em que a cada três meses apanhava um avião e Portugal deixava de ser, então, o país que lia nas notícias e ouvia ao telefone. Na comparação com aquilo que era no início do milénio, algum Portugal tornou-se esteticamente mais agradável, tecnologicamente mais evoluído, mais dinâmico na forma de estar. Algum Portugal parecia também mais feliz, apesar de já então se falar em crise.
Mas depois veio a batida no fundo, com aquele som oco da chegada ao fim do poço que secou. Por coincidência, as viagens a Portugal diminuíram e voltaram ao ritmo quase anual – mas a crise a sério chegou até aqui com as vidas de quem emigrou por não ter outra solução. E com as notícias e com as vozes do outro lado do telefone.
Nestes últimos anos, algum Portugal continuou esteticamente evoluído, mas mais triste e muito mais inseguro. O meu Portugal, aquele que mais me diz, esse ficou mais deserto, mais pobre de gente, com os velhos a desapareceram e os jovens também. É um Portugal em que a emigração se faz às dezenas de cada vez, um Portugal onde, quando chega a geada do Inverno, não se vê vivalma na rua. E os cemitérios se tornaram pequenos.
Algum Portugal, antes da batida no fundo, sofreu uma modificação difícil de explicar, que se sente ao nível da epiderme, e houve alturas em que achei que poderia estar no bom caminho, não seria a única a pensar assim, o país parecia-se mais com aquela Europa que prometeram aos da minha geração. Mas Portugal não se educou.
Importaram-se Bolonhas e fizeram-se mestres à força, putos com 22 anos que que coleccionam diplomas de gente grande e vivida, há mais miúdos com mais estudos e isso é um conveniente argumento político, mas Portugal não se educou. Apesar de esteticamente mais agradável e tecnologicamente mais evoluído, o país não se valorizou no que é importante. As crises favorecem sempre o umbiguismo e ajudam a enredos de novela. Portugal é um país em novelas constantes: as ficcionadas, as que dão de comer a argumentistas e a actores, e as reais, aquelas que não deviam ser novelas, que deviam ser apenas factos para digerir.
Como Portugal não se educou e a estética de pouco vale se não houver dois dedos de testa, o país vive sofregamente da novela do momento. São assim as televisões com maiores audiências, são assim os jornais mais vendidos, feitos para as pessoas que gostam de novelas por pessoas que também gostam de novelas – ou, pelo menos, se sujeitam aos secundários papéis que lhes são entregues.
Estive agora em Portugal e apanhei a novela dos refugiados, que veio interromper a saga das análises quase ininterruptas aos reforços dos plantéis para a nova temporada do campeonato de futebol. A novela televisiva dos refugiados começou por ser uma coisa que se passava lá na outra ponta da Europa para passar rapidamente a ser um drama nacional. Mas pelo meio houve Sócrates.
Sócrates saiu da cela que ocupou estes últimos meses – qualquer jornalista português que se preze sabe o número exacto de dias, eu não – e foi viver para casa da ex-mulher, detido mas em casa, com direito a mais do que um quadrado com grades. O momento foi vivido com muito entusiasmo, uma novela local tem sempre muito mais interesse do que aquelas que vêm de fora, mesmo que essas se apresentem com crianças mortas em praias. Sócrates saiu e numa rua sem qualquer interesse plantaram-se jornalistas como quem planta árvores, gente sem nada para dizer que não se coibiu da triste figura da entrevista ao rapaz da pizza que, afinal, nada tinha de tonto e não foi ao número 33 entregar uma extra-queijo.[quote_box_right]A novela televisiva dos refugiados começou por ser uma coisa que se passava lá na outra ponta da Europa para passar rapidamente a ser um drama nacional. Mas pelo meio houve Sócrates[/quote_box_right]
Mas, e ao contrário do que é hábito num país que vive de novelas, o drama dos refugiados não caiu no esquecimento do povo, apesar de momentaneamente atenuado com o regresso do antigo primeiro-ministro a Lisboa. Por curiosidade sociológica, não consigo deixar de ler, já aqui em Macau, os comentários que se multiplicam nas redes sociais sobre o que são ou deixam de ser os migrantes que fogem da Síria, sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer a pais com filhos ao colo, terroristas em potência para muitos daqueles que, apesar de terem uma escolaridade bonita e politicamente convincente, sofrem de uma profunda falta de educação. São todos especialistas em geopolítica.
Quem vive no mundo das novelas não se consegue preocupar com mais do que o episódio que acabou de ver, nutrindo natural curiosidade pelo que vai para o ar no dia seguinte. A condição de espectador é cómoda e comodista, não obriga a reflexão porque não se tem um papel no argumento, não se consegue mudar o rumo da história. O desfecho já foi pensado por outros que não aqueles que vivem no mundo das novelas. É assim na política e é assim na vida, nas coisas que aparecem à frente dos olhos de quem não quer perceber o que está a ver.
A Europa vive hoje uma crise difícil, depois de outra crise difícil de que ainda não se livrou. Importa reflectir como começou esta nova crise, quem tem um papel directo nela, como pode ser resolvida. O acolhimento de quem foge da morte não é fácil, a integração muito menos. Não é assunto para ser desvalorizado nem para ser tratado como ficção.
Aos portugueses em pânico por causa de potenciais terroristas com filhos ao colo resta desligarem a televisão, esquecerem a novela e lerem duas ou três coisas sobre os outros, os outros que vivem no mundo que não acaba na fronteira que já não existe com Espanha. A ignorância é atrevida e é dela que nascem os maiores medos.
Depois há também os outros, os que contribuem para o que é esteticamente agradável e tem contornos de evolução. Mas nada tem real interesse – afinal, as eleições estão aí e há uma nova novela a começar.

11 Set 2015

As meninas más vêm de fora

[dropcap= ‘circle’]E[/dropcap]u gostava de ter uma revista, daquelas que as pessoas lêem e guardam até deixarem de ter espaço em casa. Também gostava de ter um jornal. Uma revista e um jornal. E uma rádio, que sem rádio não vivo. Gostava de ter estas coisas que são o meio em que trabalho porque gosto de projectos, de ver os projectos a assumirem contornos, a ganharem conteúdo, a tornarem-se mais do que projectos.
Mas eu não tenho nem uma revista, nem um jornal, nem uma rádio. Acontece assim. O patronato não é para todos, é só mesmo para alguns, e estas coisas dos projectos têm muito que se lhe diga, a começar pelo capital. Os jornais e as revistas precisam de gente que os faça, as pessoas que fazem os jornais e as revistas precisam de salário para viver, e isto de ser empresário não é para todos. Apesar de, em Macau, os requisitos serem outros. As regras do jogo aqui são diferentes.
Acho imensa piada ao discurso de quem, tendo um negócio aberto, luta contra os direitos mais básicos dos trabalhadores por causa do impacto que essas pequenas regalias terão na folha de Excel no final do ano. Têm a tenda aberta, mas são contra uma licença de maternidade digna desse nome e opõe-se à criação de uma licença de paternidade. Fazem um chinfrim de cada vez que se fala na revisão da lei das relações de trabalho – pior, mandam os seus na Assembleia Legislativa dizer em voz alta que é preciso mudar a legislação, para que o patronato seja verdadeiramente protegido.
Não que as preocupações do patronato me passem ao lado, apesar da minha falta de vocação para mandar: é inegável que as empresas de pequena e média dimensões têm sofrido com os aumentos das rendas, com o aumento dos custos, com o aumento de quase tudo o que faz mal ao bolso de quem tem a porta aberta. Quem anda à chuva corre sempre o risco de se molhar. Tenho uma notícia: a vida também ficou mais cara para quem trabalha por conta de outrem. E tenho ainda outra notícia: há quem queira muito ter o seu negócio e não o possa fazer. Eu não tenho a minha revista. Nem o meu jornal. Nem a minha rádio. Escrevo e falo nos dos outros. É uma chatice? Não. É a vida.
Em Macau existe uma certa mania da perseguição aos trabalhadores, vinda de alguns sectores que não consigo classificar – até porque existe, cada vez mais, uma certa promiscuidade social a alguns níveis. Esta mania da perseguição aplica-se aos trabalhadores locais, em questões como aquelas que já aqui escrevi, e também – ou sobretudo – aos trabalhadores que chegam de fora.
Esta semana, os jornais contaram-nos que a União dos Empregadores Domésticos de Macau – cuja existência desconhecia e cujo trabalho continuo a desconhecer – vai fazer uma manifestação contra as empregadas domésticas. Na origem deste invulgar protesto está um caso complicado: um bebé de dois meses terá sido maltratado por uma empregada doméstica que, à data em que este artigo é publicado, é inocente. O julgamento ainda não aconteceu.
Os patrões das empregadas domésticas vão, portanto, sair à rua para se manifestarem contra as pessoas a quem deram trabalho. Seria mais ou menos a mesma coisa que eu sair para a rua a gritar contra a redacção da minha hipotética revista. Pelo que me foi dado a conhecer, esta união de gente preocupada com as pessoas que mete em casa considera que deve haver legislação especial para as empregadas domésticas. E uma lista negra das meninas más. São a favor de uma diminuição dos direitos, algo que não consigo sequer imaginar: como toda a gente sabe, os direitos das empregadas domésticas são quase nenhuns e os que existem são frequentemente violados.
Há histórias de empregadas internas a dormir com cães. Há histórias de empregadas domésticas que são obrigadas a devolver parte do salário que lhes é depositado, a forma esperta que os patrões encontraram de contornarem a obrigatoriedade do depósito bancário. Há histórias de empregadas domésticas que não descansam as horas suficientes que constam da lei. E há outras histórias, piores ainda. Às empregadas domésticas nem sequer é dado o direito de mudarem de patrão se estiverem descontentes. Se saírem à rua contra os patrões, podem começar a fazer as malas e a preparar o passaporte, se estiverem na posse dele.
A história do bebé maltratado é trágica, como todas as histórias de maus-tratos, principalmente aos mais indefesos. Levam-nos sempre ao umbilical pensamento de que podíamos ser nós as vítimas da situação. Mas sobre esta história ainda há muito para perceber e não compete a ninguém que não a um colectivo de juízes julgar quem tem de ser julgado.
Quem não quer correr riscos ou sabe que não os pode correr, não corre. A gente unida contra as empregadas domésticas tem bom remédio: recambia quem contratou e dedica-se a esfregar sanitas, lavar-estender-e-passar a roupa a ferro, fazer as camas, aspirar, lavar a frota automóvel da família, fazer o almoço e o jantar, ir buscar as crianças à escola, dar banho às crianças e ao cão, ir passear o cão, ir passear as crianças, aturar a birra das oito da manhã do mais novo, tão queridinho e tão chatinho, aturar a birra das oito da noite do mais velho, tão bonitinho e tão parvinho, pôr as crianças a dormir e lavar a louça do jantar, que esta noite houve convidados e é tudo a quadruplicar.
A vida é assim: até para se ser patrão é preciso ter jeito. Pena que os desta terra nem mandar saibam que, para se mandar com resultados, é preciso saber, antes de mais, o que significa o respeito.

21 Ago 2015

O final feliz

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão conheço a senhora de lado algum, mas esta é daquelas histórias em que se acredita à primeira leitura: uma médica licenciada pela Universidade de Coimbra, com nota de 19,6 valores, a especialização feita e vários anos de serviço teve essa ideia peregrina de querer trabalhar em Macau. Chumbou nos testes dos Serviços de Saúde, foi-lhe impossibilitado o recurso, avançou para tribunal. A médica é de cá – macaense, com Bilhete de Identidade de Residente. Não conheço a senhora de lado algum, mas acredito que esteja a dizer a verdade. Basta ver que os Serviços de Saúde, a quem foi dada a oportunidade do contraditório, nem sequer se deram ao trabalho de tentar desmentir os factos narrados por este jornal.
O caso desta médica que teve a pretensão de voltar para a sua terra – uma terra onde, por sinal, os médicos escasseiam e as qualidades de alguns são questionáveis – dá que pensar. Desde logo, na forma de contratação, nos métodos que são aplicados nos exames, na constituição dos júris, no desrespeito pela língua portuguesa (diz a médica que lhe foi impossibilitada essa opção dada pela lei). Mas obriga também a reflectir sobre aspectos sociais e sobre questões políticas.
Os aspectos sociais: andamos aqui todos a fingir, há já muitos anos, que isto é só harmonia. Macau foi aquele exemplo de transição perfeita, não há nada mais bonito do que a alegre convivência entre portugueses e chineses, os macaenses são filhos da terra e tratados como tal, a terra é muito deles, eles que são o resultado em forma de gente destas combinações harmoniosas de séculos. Macau não é assim, não há terra no mundo em que diferentes etnias, culturas e línguas coexistam harmoniosamente, sem um choque de vez em quando. Deixemo-nos de falsos pruridos: é óbvio que há sectores e pessoas que ainda não digeriram o passado. E porque ainda não digeriram o passado, paga o neto por aquilo que o avô poderá ter feito – mesmo que o avô nunca tenha cá estado.
Não sei se foi este o caso. Mas não é segredo para ninguém que há dentro do hospital quem, tendo poder para tomar decisões, não queira médicos portugueses por cá. Não é só no hospital que isso acontece. Chamem-lhe trauma pós-colonialista. Eu chamo-lhe estupidez.

[quote_box_left]Não é segredo para ninguém que há dentro do hospital quem, tendo poder para tomar decisões, não queira médicos portugueses por cá. Não é só no hospital que isso acontece. Chamem-lhe trauma pós-colonialista. Eu chamo-lhe estupidez[/quote_box_left]

As questões políticas: numa terra em que, em termos gerais, os directores dos serviços públicos valem o que valem, numa terra onde o trabalho depende em muito da capacidade e empenho pessoal dos secretários, é cada vez mais evidente que a divisão do trabalho está mal feita. Há secretários a menos para o muito que ficou por fazer nos últimos 15 anos de Macau. Há secretários com pastas a mais, sobretudo porque todas elas são complicadas de gerir. É o caso de Alexis Tam, que fez da saúde a sua prioridade, mas que continua a ler nos jornais aquilo que, acredito, não gostaria que estivesse a acontecer.
Quem frequenta com alguma assiduidade os centros de saúde e o hospital público de Macau tem consciência de que é ambicioso o prazo de um ano que o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura definiu para que se vejam melhorias significativas nos Serviços de Saúde. À excepção da substituição do director do hospital e dos esforços para o reforço do pessoal, dos concursos de recrutamento de que se vai tendo conhecimento, nada se sabe de alterações internas que nos levem a acreditar que o modelo de gestão será revisto. Já passaram mais de oito meses desde que Alexis Tam apontou o dedo ao que vai mal na esfera de Lei Chin Ion.
Depois temos o Chefe do Executivo que, quando questionado esta semana acerca dos progressos na reforma da saúde por um dos deputados que ele próprio escolheu, não foi capaz de ir além de umas ideias gerais sobre isto da saúde, das leis sobre a saúde e do financiamento das não lucrativas instituições privadas de saúde.
Voltamos ao mesmo: num momento em que o líder do Governo passa cada vez mais por entre os pingos da chuva, são os secretários que se molham. Se fossem mais, a água não era tanta. E talvez se pudesse recuperar, de forma mais rápida e menos custosa, os anos que andámos todos a perder. Não sendo assim, sobra trabalho: Alexis Tam prometeu tentar encontrar um final feliz para a história da médica macaense. Ficamos à espera de boas novas.

14 Ago 2015

Xô daqui para fora

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguém que sabe muito mais disto do que alguma vez eu poderei saber escreveu, já lá vão alguns anos, que a Macau do futuro seria a cidade dos ricos. Na altura, as rendas ainda eram comportáveis e as contas do supermercado também. Mas o autor desta previsão – homem de estudos, viajado e com rasgo suficiente para antecipar problemas –, encontrava na aparente inércia governativa uma ideia para o futuro de Macau: mais cedo ou mais tarde, ia ser a cidade dos ricos, com os pobres e os remediados a viverem na periferia.
Estava certo. É isso que está a acontecer. Conheço algumas pessoas que, não sendo pobres, deixaram de viver com conforto para passarem a integrar o grupo de quem se desenrasca até ao fim do mês com muita ginástica financeira. As rendas dispararam, aos 30 ou aos 40 anos são poucos aqueles que, sem família, estão na disposição de regressarem ao estilo de vida universitário, e Zhuhai foi a opção. Casas mais baratas, casas melhores, uns trocos que sobram ao final do mês. Alguns sabiam ao que iam; outros foram às apalpadelas.
Macau começa, assim, a ser cada vez mais a cidade dos ricos. O comércio destinado às pessoas vulgares deu lugar às lojas de quem compra diamantes ao pequeno-almoço. Há prédios que caem de velhos no centro da cidade, mas isso faz parte do charme da terra. O contraste garante-se com os aviões de quatro rodas que circulam, de forma abundante e barulhenta, pelas ruas da terra.

[quote_box_left]Lao Pun Lap – cujos méritos desconheço, seja na investigação, na produção de pensamento ou na política – aponta para 2025 como se estivéssemos às portas de 2049. Há alturas em que parece que sim. Mas 2049 ainda não está aí[/quote_box_left]

Há já alguns anos que Macau começou a expulsar, de forma mais ou menos velada, quem não é de cá. Quanto as condições de vida dos sítios que não são nossos pioram, a tendência é fazermos as malas e voltarmos para os sítios que são nossos, o que faz todo o sentido: antes ser pobre entre os vizinhos que nos conhecem do que entre uma multidão que nos trata com transparência. A forma mais ou menos velada de expulsão deu lugar, nos últimos anos, a um discurso mais assumido, mais corajoso e também mais indecente: infelizmente, não cabem numa mão aqueles que, sem noção da floresta, insistem que é no corte das plantas mais frágeis que se encontra a solução para os problemas do território. São as que não têm raízes, dizem eles, que não percebem nada nem das árvores, nem dos homens.
Na semana passada, num discurso que jamais deveria ter acontecido, o coordenador do Gabinete de Estudo das Políticas do Governo veio defender que é preciso começar a mandar quem não é de cá para o outro lado da fronteira. A principal ideia que se retira deste estudo prolongado e profundíssimo sobre a demografia de Macau é esta: xô daqui para fora, vens cá trabalhar mas vais dormir para outro sítio, que é preciso espaço para o resto. O resto são 750 mil pessoas em 2025.
O coordenador ainda avisa que é preciso começar a pensar de forma inter-regional. Quem é de cá – está provado com outros estudos e outros números – sente de maneira diferente. Lao Pun Lap – cujos méritos desconheço, seja na investigação, na produção de pensamento ou na política – aponta para 2025 como se estivéssemos às portas de 2049. Há alturas em que parece que sim, parece que 2049 já chegou, que não existe grande diferença entre o Chimelong dos peixes grandes e as Ruínas de São Paulo dos turistas ricos disfarçados por chinelos. Mas 2049 ainda não está aí. Apesar de todos os esforços de integração regional, há quem não queira que 2049 aconteça já amanhã, neste sábado quente de Agosto.
Os principais visados pela política de dispensa do think-tank de Chui Sai On são os não residentes, os mais frágeis, mas quem sai pior no meio de tudo isto são os de cá. Quem tem os seus mortos aqui enterrados e não conhece outra vida que não a de Macau não terá um futuro sossegado nesta terra que é cada vez mais dos ricos. A não ser que seja rico. A não ser que o Governo emende a mão e decida, por exemplo, pôr a pensar no futuro da cidade quem percebe das coisas das árvores e dos homens.

P.S. – À consideração de quem manda: que se aproveite a mudança dos preços dos parquímetros para exigir à empresa concessionária dos ditos cujos a emissão de recibo. Eu, cliente regular e cumpridora, agradecia que a lei de Macau fosse respeitada. Dá-me jeito ter recibos do dinheiro que gasto em estacionamento, apesar de serem só uns trocos. Mas, sobretudo, chateia-me esta ilegalidade multiplicada pelas ruas de Macau. E chateia-me ainda mais que o Governo não exija à empresa a quem entregou a concessão que seja cumprida a lei. Está no Código Civil. É o Artigo 776o.

7 Ago 2015

As coisas lá dos States

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Departamento de Estado Norte-Americano divulgou esta semana o relatório anual sobre o tráfico humano e, mais uma vez, Macau não sai bem no retrato. Aos olhos de Washington, o território faz parte do grupo de jurisdições esforçadas, mas que não passam disso mesmo: são esforçadinhas, mas ainda têm muito para fazer. No caso de Macau, critica-se a forma como se aplica a lei e a capacidade jurídica de avaliar este tipo de processos, muitas vezes classificados como meros casos de lenocínio.

Os números de casos de tráfico humano descobertos e de vítimas resgatadas diminuíram no último ano, o que – tanto para os Estados Unidos, como para quem trabalha no terreno – não é sinónimo de que as coisas estejam no caminho certo, antes pelo contrário: é sinal de que as autoridades não têm sido capazes de serem pró-activas na identificação de vítimas. Ao Centro do Bom Pastor, dirigido por Juliana Devoy, têm chegado muito menos raparigas menores de idade, vítimas de tráfico humano, do que no passado. A responsável não acredita que estas meninas não estejam por aí – a questão é que ninguém sabe delas.

Estes americanos têm cada uma. O Governo foi célere a reagir ao relatório dos Estados Unidos e diz que as acusações carecem de fundamento. Estes americanos têm cada uma. O Secretário para a Segurança encontra no relatório “factos básicos e juízos de valor infundados”. Estes americanos têm cada uma. É dos filmes a mais, é a influência de Hollywood: lá porque em Macau há casinos e máfias e prostituição, isso não significa que as autoridades não estejam empenhadíssimas em combater o tráfico humano. Tráfico quê, mesmo?

O relatório assinala ainda o facto de não ter sido identificada uma única vítima de trabalho forçado. Os Estados Unidos voltam a escrever que Macau tem uma lei em relação aos não residentes que os coloca em posição de fragilidade, sujeitos a exploração laboral: o período de seis meses sem trabalho a que estão sujeitas as pessoas com bluecard que se despeçam ou sejam despedidas. Para os americanos, esses que se lembram de cada uma, como para qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, é óbvio que a invenção deste período de nojo veio piorar as condições laborais dos não residentes, que perderam qualquer margem – por mais pequena que já fosse – de negociação das condições de trabalho. Os (muitos) únicos que lucram são aqueles a quem dá jeito ter trabalhadores atados pelo pé ao salário que lhes apetecer pagar.

O documento sugere que se faça um inquérito junto da população imigrante para identificar a vulnerabilidade a abusos. Estes americanos têm cada uma. No passado, houve sugestões deste relatório anual que foram acatadas por Macau. Duvido que esta proposta seja seguida. Estes americanos têm cada uma. Havia de ser bonito. O Governo a gastar dinheiro com os não residentes, esse conjunto de gente que, a avaliar pelas declarações de alguns deputados, está entre o grupo dos mais privilegiados de Macau.

Estes americanos têm cada uma. Não nutro particularmente simpatia pelas teorias universalistas dos Estados Unidos, por esta mania bastante irritante que têm de analisar os outros, de apontarem o dedo ao que os outros não fazem bem. Mas, num mundo que está cada vez mais de pernas para o ar, com uma Europa extraordinariamente enfraquecida e uma China que só soube crescer em cifrões, é bom que, de vez em quando, alguém de fora olhe para dentro. Para que, cá dentro, não se tape o sol com a peneira sem que ninguém dê por isso.

31 Jul 2015

A pequena política

[dropcap style= ‘circle’]C[/dropcap]omo se fosse uma grande novidade. O Verão de Macau, que já começa a ser noticiosamente tonto, agita-se por estes dias com a condenação por corrupção de dois funcionários da associação que ajudou a eleger Chan Meng Kam e outros dois deputados da lista de Fujian. A associação chamou os jornalistas para dizer que está a ser alvo de pressão política, para dizer que é tudo mentira e para fazer ver, aos olhos do mundo, o quão injustiçada está a ser. Song Pek Kei, a menina Song, a terceira da lista de Chan Meng Kam, também já veio garantir que não houve qualquer ilegalidade eleitoral, que os votos nela depositados são do mais limpo que há. Pelo meio, a deputada deixa ainda acusações graves ao Comissariado contra a Corrupção. Ela lá sabe o que faz.
A justiça concluiu, por ora, uma coisa diferente. O tribunal entende que houve tentativa de compra de votos – votos que custam o preço de refeições, bebidas ou transportes grátis. Partindo do princípio de que a justiça está certa e de que aquilo que se ouve por aí na altura da campanha eleitoral corresponde à realidade, deste caso só é possível retirar uma de duas conclusões: a Associação dos Cidadãos Unidos de Macau tem funcionários extraordinariamente diligentes, cheios de iniciativa, que fazem tudo o que está ao seu alcance para que os homens que mais veneram politicamente sejam eleitos, incluindo gastar o dinheiro que tanto lhes custou a ganhar para angariarem votos sem que alguém lhes tenha encomendado semelhante tarefa; ou os três deputados com mandato válido até 2017 sabem perfeitamente dos métodos usados pela máquina que os elege.
Como se fosse uma grande novidade. Não é – este caso vem mostrar o quão frágil é a vida política de Macau. Tem razão Leonel Alves que, num comentário à Rádio Macau, destacou as características do eleitorado local: Macau tem um conjunto de eleitores com contornos muito específicos, por ser uma terra de grande mobilidade, terra de acolhimento de imigrantes que não trazem na bagagem a cultura da democracia. São eleitores para quem a política tem como principal função resolver os pequenos grandes dramas do quotidiano – aquilo a que chamaríamos a política de junta de freguesia.

[quote_box_left]Temos freguesias, mas não temos juntas; não temos câmaras nem assembleias municipais que se preocupem com as pequenas grandes coisas. Quem deveria ter outro tipo de causas e de discurso aproveita-se com facilidade destas fragilidades locais[/quote_box_left]

Dizem-me que Chan Meng Kam e os seus dois pares são bons na resolução deste tipo de dilemas junto da comunidade que os elege: o deputado tem dinheiro e ambição política também não lhe falta, pelo que, ao primeiro sinal de desagrado, manda alguém meter mãos à obra para que o seu eleitorado seja feliz. Numa cidade onde a política é um conceito muito peculiar, continua a faltar uma política de proximidade. Temos freguesias, mas não temos juntas; não temos câmaras nem assembleias municipais que se preocupem com as pequenas grandes coisas. Quem deveria ter outro tipo de causas e de discurso aproveita-se com facilidade destas fragilidades locais.
Atendendo às características de parte significativa do eleitorado de Macau – convém recordar que Chan Meng Kam tem os seus apoiantes concentrados na freguesia com maior densidade populacional de Macau, que parece fazer parte de outra cidade do que aquela onde fica a Assembleia Legislativa –, é impossível mudar, a curto prazo, a mentalidade de que o voto está para venda e tem um preço. Como diz Leonel Alves, de nada adianta proibir os jantares que se multiplicam por altura das eleições: se não puderem ser feitos cá, mudam-se para Zhuhai ou para as terras de origem.
Neste contexto, sendo muito difícil convencer cada eleitor de que o sentido de voto só a ele lhe diz respeito e que o voto é um exercício de liberdade, a solução tem de ser encontrada junto de quem pretende ser eleito. Esta semana ouvimos várias sugestões do que deve ou não deve ser feito: repensar a questão da imunidade é a que me parece, desde logo, mais eficaz. Se pessoas que trabalham na máquina eleitoral de candidatos a deputados são condenadas, a culpa não pode ser assumida apenas por quem agiu a mando, sem qualquer responsabilidade política.
Como se fosse uma grande novidade. O Verão vai passar e o tempo político talvez se torne menos tonto. E, como tudo, também isto vai cair no esquecimento. Gostava de estar enganada, mas os mecanismos de transparência que se prometem na revisão da lei eleitoral de pouco ou nada servirão. Em 2017 há mais eleições e vai ser tudo na mesma. Como se fosse uma grande novidade.

24 Jul 2015

Terra de azar

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hama-se Chyn, tem três meses de existência incompletos e uma vida cheia de azares. A bebé que esta semana mereceu a atenção dos jornais nasceu com uma série de problemas de saúde – problemas graves de saúde. Tem síndrome de Down, malformação cardíaca congénita, deficiência na artéria do ventrículo direito e hipertensão pulmonar. Como se não lhe bastasse a má sorte de ter nascido frágil, Chyn teve ainda o azar de nascer em Macau. Um azar nunca vem só.
Chyn é filha de filipinos. Lia ontem num jornal que os pais vivem em Macau há mais de dez anos, um facto que não tem qualquer importância para o sistema. São trabalhadores não residentes e, nessa estranha condição em que se encontram, não têm direito a cuidados de saúde para a filha. Chyn precisou de assistência médica à nascença e continua a precisar. Pelo que sei, os pais necessitam de 300 mil patacas para que possa ser operada, para que tenha uma vida mais ou menos condigna, no quadro de azares com que nasceu. É dinheiro que não têm, dinheiro impossível de ganhar com os salários que lhes são pagos. Chyn nasceu em Macau mas não é de cá – o sistema não a reconhece como sendo de cá. Chyn não é de lugar algum.
Não aceito o argumento da abertura de precedentes: não me interessa se o caso de Chyn poderá causar um problema ao Governo. Esta bebé precisa de ajuda, precisa de assistência médica que os pais não podem pagar, e as autoridades de Macau devem apoiar esta família. É a obrigação moral de quem tem responsabilidades políticas.
Macau não pode continuar a ser a terra onde nascer pode ser sinónimo de azar. Cabe ao Chefe do Executivo e ao secretário para os Assuntos Sociais e Cultura definirem, com urgência, uma nova política de saúde para os trabalhadores não residentes e para os seus filhos. As consultas públicas sobre a matéria são perfeitamente dispensáveis: todos sabemos já que há uma série de deputados e alguns sectores em Macau que são contra um catálogo de direitos mínimos para os trabalhadores não residentes. Para as Ellas Lei desta cidade, os trabalhadores não residentes têm apenas o direito a serem remunerados pelo trabalho que fazem, de preferência a valores mais baixos do que aqueles que cá residem. O resto não interessa.
Porque a melhoria de condições para os trabalhadores não residentes jamais será motivada por uma mudança de mentalidades, por um apelo social mais ou menos generalizado, torna-se ainda mais importante que seja o Governo a tomar uma decisão política, por mais difícil que possa ser. A crise no jogo também não serve de desculpa: Macau continua a ter dinheiro para que possam ser respeitados os mais básicos direitos dos homens. 17715P17T1
É urgente inventar um sistema para que os trabalhadores não residentes tenham apoios diferentes das pessoas que estão aqui de passagem. Recorrendo a um jargão político muito apreciado localmente: o contributo dos pais de Chyn para Macau é muito maior do que o de um turista que passa uma noite na cidade, entre as Ruínas de São Paulo e um casino no Cotai. Trabalhadores com bluecard, crianças nascidas em Macau e turistas não podem ser metidos no mesmo saco no que diz respeito à saúde. Invente-se um sistema – e outro para que os filhos dos não residentes tenham acesso à educação.
O argumento da sobrecarga dos serviços – de saúde e de educação – também não me convence. A maioria dos trabalhadores não residentes opta por deixar os filhos no país de origem. Os custos da saúde e da educação contribuem para esta opção, mas as questões práticas da vida quotidiana pesam ainda mais. Macau não ia ter uma enchente de bebés filipinos na pediatria do São Januário se fossem alteradas as regras com que se joga com quem tem muito pouco.
Inventem um sistema qualquer. Já. Hoje, de preferência. Há uma bebé nascida em Macau ignorada por Macau – valer-lhe-á a solidariedade de Macau, da Macau dos cidadãos, não da Macau política, aquela que devia estar cá para todos os cidadãos, independentemente da cor do cartão que transportam na carteira.
Macau hoje envergonha-me. E sei que vai continuar a envergonhar.

17 Jul 2015

O quarto com WC

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. Li esta semana no Facebook um anúncio que me deixou a pensar: uma portuguesa, residente em Cascais, anda à procura de uma “estudante” ou “profissional” para “housekeeping e babysitting” a partir das 18 horas, aos dias da semana, e aos sábados de manhã. Oferece, em contrapartida, um “bom” quarto “com WC”. Assim, sem mais – não há salário, dá-se apenas uma cama com roupa que a interessada ao cargo tem de lavar e passar a ferro.
Os comentários a este anúncio multiplicaram-se rapidamente e é nisto que as redes sociais são um instrumento interessante para se compreender o mundo através de quem vive nele. Não falta gente a achar que a proposta é uma excelente ideia, embora não esteja disposto a aceitá-la: a mulher de Cascais, que quer ter alguém que lhe tome conta dos filhos no período mais chato do dia e o jantar pronto à espera em casa, fica com o problema resolvido a custo zero. É gente que acha mesmo que a proposta é bonita do ponto de vista social, é uma ideia solidária, por se estar a dar a uma “estudante” ou “profissional” a possibilidade de ter um quarto onde dormir. Menos são aqueles que consideram que este tipo de anúncio representa um retrocesso.
Foi a isto que chegámos em países onde era suposto termos evoluído: no tempo dos nossos avós era normal os pais pobres entregarem as miúdas pobres às famílias com quartos vagos (na altura sem WC), às famílias ricas onde havia quartos e muitas crianças para tratar. Eram criadas a troco de quase nada – uma cama, comida, uns trapos para se vestirem. Era assim nos tempos dos nossos avós; é assim que hoje as coisas continuam a funcionar, nalgumas cabeças que acham bem que ao trabalho não corresponda um salário. Mais vale um quarto que nada; mais vale um quarto do que não ter onde dormir. Estranha ideia de generosidade.
 
2. Esta semana entrevistei um grego, numa conversa ao telefone, um grego que não conheço. O objectivo era saber como é que acompanha a embrulhada europeia em que o país dele – de onde saiu há 11 anos – está envolvido. Este grego que perdeu a esperança de um dia voltar a casa, à semelhança de muitos portugueses expatriados, falou-me da falta de investimento do país, dos salários que hoje se praticam e que são um quinto dos de antigamente, dos salários que hoje se oferecem e que não se podem recusar, porque pouco é melhor do que nada. Mais vale um quarto do que não ter onde dormir.
O meu entrevistado grego não é especialista em finanças. O meu entrevistado grego é da Grécia e tem amigos gregos e conhece o passado do país e o presente e sabe que as coisas não podem continuar assim, que não é com esmolas que o mundo evolui, que há alturas em que pouco não é melhor do que nada, porque pouco não vai resolver coisa alguma.
A Grécia vive dias difíceis naquela Europa que se inventou, apoiada num sistema financeiro que não existe. Temos especialistas em finanças e em política e em economia aos molhos, farto-me de ler que os gregos têm de pagar as dívidas, os portugueses também, como se todos os gregos e todos os portugueses tivessem culpa do estranho ordenamento em que o mundo se encontra, como se todos os gregos e todos os portugueses fossem culpados por tudo aquilo que está a acontecer.
No meio de tudo isto, temos uma Europa preocupada com o eleitorado que representa – com os vários eleitorados que representa, e aqui está um dos grandes problemas –, porque há eleições à porta e povos descontentes com a ajuda que se deu aos pobres, é melhor um quarto do que nada, o importante é que tenham onde dormir, vejam lá a generosidade, mais vale uns metros quadrados com WC do que nada.
Este mundo feito de economias e de empréstimos e de negociatas entre políticos tem de ser reinventado rapidamente. Assim não se vai lá.

[quote_box_right]Temos uma Europa preocupada com o eleitorado que representa, porque há eleições à porta e povos descontentes com a ajuda que se deu aos pobres, é melhor um quarto do que nada, o importante é que tenham onde dormir, vejam lá a generosidade, mais vale uns metros quadrados com WC do que nada[/quote_box_right]
 
3. Em Macau está tudo bem por enquanto, apesar de a bolha na China estar aí quase a rebentar, numa demonstração de que aquilo que o resto do mundo foi experimentando no passado não tem grande interesse nas decisões do país que quer ser grande, maior do que já é, o maior de todos. Mas por aqui tudo bem – a vida faz-se ao ritmo de sempre, com os tiques de sempre, com as figuras de sempre.
Desde que cheguei a Macau que, na minha condição de jornalista, vou a conferências de imprensa na Assembleia Legislativa. Acontecem depois das reuniões das comissões, têm o presidente da comissão em causa como protagonista, e são feitas à hora que calha, ou seja, quando as reuniões acabam. Os deputados saem, os jornalistas entram, 10 minutos de conversa e a coisa está feita. Nos últimos tempos – sobretudo desde que tomou posse o actual Governo –, criou-se o hábito de, em reuniões em que estão presentes representantes do Executivo, estes falarem à porta, antes das declarações do presidente da comissão, que espera confortavelmente sentado na sala pelos jornalistas que estão a trabalhar.
Esta semana, tive a oportunidade de assistir a um momento invulgar: depois de quase três horas a aguardar que uma reunião terminasse, e enquanto ouvíamos o representante do Governo que tinha acabado de sair do encontro com os deputados, o presidente da comissão em causa deu de frosques. Era quase uma da tarde, a fome aperta, os jornalistas que ali estiveram quase três horas à espera que a reunião acabasse que voltassem em melhor oportunidade. Disseram-me que não era a primeira vez que tal acontecia, que Chan Chak Mo já teve outro momento de iguais pressas.
O maior desrespeito do deputado não é pelos jornalistas – é pela Assembleia de que faz parte e pela população que os órgãos de comunicação social informam. Mas Macau é assim, as coisas aqui nunca são realmente importantes, as pessoas aqui nunca são realmente importantes, tudo passa, tudo fica bem e para a semana há mais. Há sempre mais.
 
 

10 Jul 2015

Ó tu que fumas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] coisa é assim: vens a Macau e tens tudo o que não há lá na terra. Para começar, hotéis com alcatifas fofas às flores e tectos a imitar a Europa e os dias sempre azuis. Depois, tens mesas de jogo que nunca mais acabam, ainda por cima agora mais aliviadas de gente. É com facilidade que podes torrar as poupanças de uma vida, as poupanças da família e ainda os trocos contados dos vizinhos, que pacoviamente acreditaram no teu faro apurado para o jogo.

Se te sobrarem umas patacas e se o álcool etílico que te venderam numa embalagem com nome estrangeiro o permitirem, ainda podes terminar a noite bem acompanhado por uma jovem que vende o corpo a preço fixo. Não interessa se a miúda se quer vender ou se foi vendida, porque o problema não é teu e tu ages de acordo com a lei, embora a desconheças. Macau é jogo, luxo, a limusina que te foi buscar para fingires que és rico, o copo cheio, a garrafa vazia, as fichas perdidas, o sexo, o prazer todo num pacote turístico do melhor que há, e que se lixe o património, talvez amanhã passes por lá se não estiver muito calor.

O pior vem depois do prazer: corpos desnudados e contas feitas e tu nem sequer podes acender um cigarro. Aquele cigarro do depois. Quem nunca fumou não te entende e nesta terra de prazeres ilimitados parece que ninguém te percebe. O hotel não tem varanda, para evitar desgraças, e lá vestes tu as calças de há bocado, não te dás ao trabalho de apertar bem a camisa e sais em chinelos, não há uma sala de fumadores em lado algum e vais para a rua, com o que te resta de cabelo desalinhado do sexo todo. Macau é uma terra que quase não existe, onde tudo se compra, tudo se vende, acabaste de dizer adeus à miúda com quem não vais dormir, a polícia estava ali ao lado, mas está tudo bem. Macau é uma terra de vícios, onde tudo é permitido – menos fumar um cigarro.

Macau nunca foi outra coisa que não uma terra estranha, mas há alturas em que é mais. Contra a opinião das operadoras do jogo – que registaram no mês passado os piores resultados desde 2010 –, o Governo insiste e leva por diante uma fundamentalista proposta de revisão da lei do tabaco. Não interessa se as salas dos casinos são destinadas exclusivamente a quem fuma, sem mesas de jogo nem trabalhadores. A liberdade, mesmo pequena e confinada a um espaço fechado com uns cinzeiros sujos no meio, não interessa. Nada interessa nada. É assim e pronto. É assim porque alguém se lembrou que o tabaco faz muito mal.

Pena que ninguém se tenha lembrado de que há muitas outras coisas que também fazem mal, do género o que se come por aí, as condições em que a comida é confeccionada, o que vem dentro de uma garrafa de whisky, o que sai dos tubos de escape das carcaças podres que circulam na cidade. O que interessa é a guerra ao tabaco e pronto, não interessa quando nem onde. Ninguém se lembrou, por exemplo, que sujeitar um doente à privação de nicotina não é do mais aconselhável que há. Antigamente, no tempo em que a liberdade era outra coisa, fumava-se numa zona ao ar livre no hospital. Quem partia uma perna e fumava era poupado ao esforço de trepar paredes por causa daquela vontade de acender um cigarrinho. Não tenho conhecimento de que alguém tenha morrido de cancro por causa do fumo que o doente do lado expirou no terraço do primeiro andar.

Agora a coisa é diferente: não se fuma no perímetro do hospital, nem se fuma nas ruas em redor. Macau é uma cidade saudável e não cede a pressões internas ou externas, cumpre à risca as directrizes da Organização Mundial de Saúde, que ninguém tenha dúvidas de que assim é, mais limpinho do que isto não há. Eles andam por aí a salvar vidas e a gente é que não os compreende, acha-os intolerantes, tem outras prioridades. Eu tenho: preferia que os Serviços de Saúde poupassem nos incansáveis fiscais antitabaco e investissem, só para dar um exemplo, no tratamento dos doentes com hepatite C que não podem ser medicados com os métodos convencionais. Estão à espera há meses, a ver se fintam a morte. Macau tão à frente e Macau tão atrás.

Não tenho nada contra os Serviços de Saúde. Conheço gente que trabalha sob a alçada destes serviços que é muito boa gente; da gente com quem não troquei mais de uma dúzia de frases não posso falar. Não tenho nada contra, apesar de já ter tido más experiências pessoais, algo em que serei acompanhada por sensivelmente 75 por cento das pessoas que me lêem. Não tenho nada contra, apesar de os Serviços de Saúde mentirem aos jornalistas, mentindo à população. Mas eu não tenho nada contra. Eu só não gosto de fundamentalismos.

[quote_box_right]Preferia que os Serviços de Saúde poupassem nos incansáveis fiscais antitabaco e investissem, só para dar um exemplo, no tratamento dos doentes com hepatite C que não podem ser medicados com os métodos convencionais. Estão à espera há meses, a ver se fintam a morte. Macau tão à frente e Macau tão atrás[/quote_box_right]

[dropcap style=’circle’]2.[/dropcap] Esta semana fiquei a saber que há gente maltratada no Consulado Geral de Portugal e não me espanta: todos nós já nos sentimos ligeiramente enxovalhados em serviços com atendimento ao público. E quem atende ao público já se sentiu insultado por aqueles que tem de receber. Faz parte. Não é sequer uma característica das cidades multiculturais – quando vivia em Portugal detestava ir às Finanças porque saía de lá com um atestado de estupidez fiscal afixado na testa.

Mas o conselheiro das Comunidades Portuguesas José Pereira Coutinho tem uma visão diferente do assunto e toca a denunciá-la em praça pública. Faz ele muito bem, que está aqui para defender os pobres e os aflitos. A denúncia foi feita não nos elitistas e politizados jornais locais, mas sim na livre e nada politizada imprensa de Portugal. Escolheu um jornal que eu desconhecia (e de cujo nome não recordo neste momento), o que foi pena, porque nas páginas do Expresso, do Público ou do Diário de Notícias teria outra (merecida) projecção. Não obstante, graças à generosidade da imprensa local, chegaram-nos os ecos da actividade crítica de Pereira Coutinho ao consulado, profissão que agora desempenha em simultâneo com mais algumas.

Nestes oito anos em que ocupa o cargo de conselheiro das Comunidades Portuguesas, desconheço que Pereira Coutinho tenha apresentado um conjunto de propostas para a melhoria do funcionamento da representação diplomática portuguesa. Também desconheço que se tenha empenhado activa e publicamente na defesa dos portugueses – expatriados – com dificuldades na obtenção e na renovação da autorização de residência. São portugueses que supostamente representa e que simpatizam – muitos deles talvez conjuguem agora no passado este tão nobre sentimento – com a veia ocidental sindicalista do também deputado.

Podia dar mais exemplos de todos os lusitanos problemas com os quais o conselheiro não se preocupou durante estes anos, mas não me apetece. O monólogo segue dentro de momentos num lusitano jornal, que os jogos políticos deste género não se fazem de olhos nos olhos.

3 Jul 2015

Entretanto

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á semelhanças assustadoras entre o início e o fim da vida. A vida começa e acaba num estado extremo de fragilidade, como se o entretanto não tivesse servido para nada. No entretanto, entre o princípio e o fim, andamos demasiado ocupados a viver a vida que inventámos para nos lembrarmos de que o princípio e o fim são demasiado parecidos. Há momentos em que a realidade nos invade e aí deixas o orgulho com que empurras o carrinho do bebé e usas a tua força para não chorares enquanto fazes a cadeira de rodas deslizar pelos corredores do hospital.
No entretanto esquecemo-nos do que fomos e do que vamos voltar a ser. A dependência inconsciente do nascimento não deixa marcas para recearmos a dependência atordoada do fim, aquela de que todos temos conhecimento, mas que preferimos ignorar no entretanto. Temos ainda tendência para achar que o entretanto dura sempre, não tem fim, apesar de o entretanto acabar quando menos a gente espera.
Temos um modelo social que não faz qualquer sentido. E sofre de falta de lógica desde a primeira hora: o nascimento não é um momento familiar, não é humanizado, não é o momento mais importante das vidas que ali estão, mas sim um acto médico como outro qualquer. Despacha-te que a seguir vêm outros.
Os primeiros dias dos nossos também não são da melhor qualidade. Nesta cidade, ter filhos ou não ter é mais ou menos irrelevante em matéria de legislação laboral, concede-se o tempo do puerpério e depois já está, volta ao trabalho que há outros à espera, agora até querem dar uns dias a mais em casa mas é se as mães não respirarem, não comerem, não derem de comer aos filhos, que são dias livres de encargos para quem as emprega. Despacha-te e não olhes para trás.
Porque os patrões ainda não descobriram que mães e pais felizes são trabalhadores sossegados, também não há dessas modernices de horários reduzidos, possibilidades de redução salarial se nos primeiros anos houver necessidade de ficar mais por casa, não interessa se os filhos dos outros são bonitos e rechonchudos ou frágeis e doentes. O que conta é o entretanto e o entretanto é a despachar.

[quote_box_left]Macau é uma terra pouco educada para as pessoas, para as outras pessoas, para os outros. Não se decide nada a pensar nos outros, não se pensa nos outros, há só o entretanto que é meu, só meu, eu quero lá saber de ti[/quote_box_left]

No entretanto os anos passam e a malta vê os filhos de manhã e talvez à noite, que bem que estão a crescer, a creche do bairro faz bem o trabalho, a escola onde anda continua a fazer bem o trabalho, olha que grande que já está, olha só, cresceu tanto e nem deste por isso. O entretanto passa depressa, nós aqui entretidos a tentarmos ser os melhores, não porque nos apeteça mas porque tem de ser, é este o mundo em que vivemos, um mundo que não se compadece com entretantos, um mundo que não se compadece nem com o princípio, nem com o fim. Já não há espaço para dores, para alegrias. Ninguém anda descalço na terra. Ninguém se deita na relva ao sol, porque não nos deixam.
As imagens que foram postas a circular na Internet no fim-de-semana passado: há uma filha enraivecida que espanca uma mãe indefesa numa cadeira de rodas, uma filha que grita, grita, eu não sei chinês mas não interessa, percebe-se tudo o que ali está. E grita e volta a gritar, está no meio da rua e os outros não têm nada que ver com o assunto, a mãe é dela e ela bate-lhe se quiser, já bateu, mete-te na tua vida, que isto é um entretanto.
O Governo reagiu, o que aquela mulher fez é um caso de polícia, a mãe precisa de ajuda, a filha de certeza que também precisa. Faz-se o relato da vida difícil da agressora, apuram-se as causas, procura-se uma explicação para semelhante raiva, como se a raiva carecesse de fundamentação. Caso resolvido, voltamos ao entretanto.
Esquecemo-nos dos velhos cada vez mais frágeis, dos que são agredidos e dos que são ignorados, dos que não são nem uma coisa nem outra mas queriam ser aquilo que já não podem ser e, por isso, não são felizes, esquecemo-nos de que o entretanto não dura sempre, de que também nós, egoístas, vamos ter rugas e perder a força nas pernas, a força nas mãos. Esquecemo-nos do que é morrer e do que é nascer, porque não fomos ainda capaz de perceber a vida, de saber viver. Não nos deitamos na relva em dias de sol.
Prometem-nos mais apoios sociais, mais atenção a casos como o da mãe espancada – que história de vida teve ela, que já se conjuga no passado? –, uma maior sensibilização e coisa e tal e nós dizemos que sim, sabemos que isso é preciso, sabemos que são coisas que fazem falta aqui e noutro sítio qualquer, os filhos estão perto mas não têm tempo, não têm paciência, depois há os filhos que estão longe e também não podem. Mas o que faz falta, mesmo, é pararmos e olharmos para o que temos à nossa volta, se o PIB nos basta, se a educação que damos aos nossos filhos é suficiente, se é neste mundo de entretantos que nos queremos entreter, a deixar para amanhã o que já devíamos ter sentido ontem, o que já devíamos ter mudado ontem.
Macau – e às tantas o resto do mundo também, mas do resto do mundo sei pouco – é uma terra pouco educada para as pessoas, para as outras pessoas, para os outros. Não se decide nada a pensar nos outros, não se pensa nos outros, há só o entretanto que é meu, só meu, eu quero lá saber de ti, dos teus filhos, dos teus velhos, dos teus.
A relva é minha, não é nossa e nela não te esticarás ao sol.

26 Jun 2015

A culpa é do primo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dmito: numa terra em que uns são primos dos outros e vice-versa, será difícil, à partida, fazer prova do mérito. Se para alguns é de uma enorme conveniência ter irmãos, primos e tios espalhados em locais estratégicos, para outros será uma dor de cabeça ter a genealogia em constante perseguição. Mas a vida é feita destas coisas e de muitas outras chatices: já todos nós, em situações diversas, tivemos de abdicar da nossa vontade para evitar acusações injustas. É aquela velha história do ser e do parecer. E a verdade é que em Macau, quando há negócios que não parecem bem, por norma há um tio, um primo, um cunhado e talvez uma amiga à mistura.

No final de Abril, numa invulgar posição política, Alexis Tam afastou um vogal do Fundo das Indústrias Culturais, de seu nome Chao Son U. A decisão do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura foi motivada por falta de confiança política, na sequência de uma história que, para a opinião pública, se contou da seguinte forma: uma empresa de familiares de Chao Son U concorreu aos apoios financeiros dados pelo Fundo das Indústrias Culturais. Concorreu e ganhou. A dada altura do processo, a coisa não correu bem lá para os lados de Chao Son U.

O caso chegou a ser enviado para o Comissariado contra a Corrupção que, em tempo recorde nos anos de vida que levo de Macau, analisou, investigou, discutiu e engavetou o processo: nada a apontar a Chao Son U. A rapidez da justiça mereceu reparos – de quem conviveu com o antigo vogal – e foi louvada com críticas ferozes de algumas forças políticas locais. É, sem dúvida, uma decisão que abre um precedente em termos de celeridade. O assunto dava um texto – ou vários.

Voltemos a Chao Son U, um ilustre desconhecido da nossa imprensa até Abril. Esta semana, em declarações aos jornalistas, o presidente do Fundo das Indústrias Culturais confirmou que a empresa detida pelos familiares do antigo vogal consta da lista de seleccionadas aos apoios aprovados no ano passado. Leong Heng Teng, o presidente do fundo – que o leitor mais distraído conhecerá dos outros 2500 cargos que desempenha, homem com longa carreira política em várias frentes –, ficou aparentemente surpreendido com a insistência dos jornalistas, que quiseram saber se houve uma reavaliação da candidatura do familiar de Chao Son U, reponderação essa depois de o caso ter sido tornado público.

Leong Heng Teng explicou que não, que não houve qualquer reavaliação da candidatura. Garantiu também que tudo correu como mandam as regras, que não houve qualquer irregularidade, que já não há caso. Ou seja, o caso Chao são águas passadas. Leong Heng Teng não identificou o nome da empresa detida pelos familiares do antigo vogal mas, na sequência destas declarações, o jornal Ponto Final foi à procura e descobriu que pertence ao irmão de Chao Son U.

O irmão de Chao Son U não tem culpa de ter irmãos. E também não será culpado de ter irmãos com importância suficiente para pertencerem a entidades que mexem com dinheiros públicos em áreas – as coincidências são tramadas – que têm que ver com a actividade profissional que lhe ocupa os dias. O irmão de Chao Son U podia não se ter candidatado ao apoio financeiro da instituição onde trabalha o filho da mesma mãe e/ou do mesmo pai, podia ter ido bater à porta de outro fundo ou fundação, que dinheiro é o que não falta por aí, mas calhou assim e não calhou bem. Ter irmãos e primos e tios e compadres é bom, mas nem sempre.

Toda esta história é estranha: não acredito que Alexis Tam tenha acordado uma manhã com vontade de andar a dizer por aí que houve alguém que podia ter estado melhor, que é preciso rigor e transparência – e vai daí toca a escrever um despacho e afastar quem fez o que não devia. No meio de tudo isto, já depois de conhecida a supersónica decisão do CCAC, chegou a declaração conjunta de quem trabalhou com o antigo vogal: oito funcionários do Fundo das Indústrias Culturais vieram para os jornais dizer que foram pressionados por Chao Son U para que não revelassem detalhes durante a investigação levada a cabo pelo gabinete de Alexis Tam.

Toda esta história é estranha e acredito que, bem lá no fundo, sejam todos bons rapazes, um irmão e o outro, apesar de, não os conhecendo, me parecer que têm ambos falta de jeito. Leong Heng Teng diz que está tudo bem e a gente acredita, os milhões já estão distribuídos e as regras foram cumpridas à risca, mas há que começar a pensar em redesenhá-las para evitar as confusões entre tios e primos, irmãos e irmãs, sobrinhos e afilhados.

A culpa é dos primos. É o que dá ter muitas tias.

20 Jun 2015