O xuangui

Da montanha Niuyang escorre um rio peculiar, onde germinam seres raros, cujas características têm assombrado gente local e viajantes, ao longo dos milénios. Chamam-lhe Rio da Água Estranha (guaishui). Nele, nas suas margens, afirmam os registos nascerem criaturas de excepção, algumas das quais perigosas. Em contraste com a sua fama e o seu nome, as águas do Guaishui deslizam suavemente por encostas e vales até desaguarem no rio Xianyi, sem nunca causar grande alarido, ao contrário de alguns dos seus irmãos que regularmente se revoltam e galgam as margens, inundando campos e aldeias. Ora nesta aprazível e serena aparência, neste celebrado curso de água, prolifera o xuangui, um animal com corpo de tartaruga, cabeça de ave e cauda de serpente.

O xuangui é um exímio nadador, o que contrasta com a lentidão com que se desloca em terra firme. Quando se move dentro de água, o seu corpo roda como um parafuso, à medida que vai avançando. Daí o seu nome que literalmente significa “tartaruga giratória”.

As similitudes com as suas primas tartarugas, nomeadamente a carapaça, que no caso do xuangui é profundamente negra, fazem com que seja extremamente apreciado para divinações. Além disso, acredita-se que quem usar uma qualquer parte do xuangui pendurada no cinto, nunca ficará surdo e perderá os eventuais calos que lhe tenham crescido nas mãos ou nos pés.

Sendo a carapaça associada ao céu e o corpo à terra, este animal simboliza um universo, solidamente ancorado nas suas patas. Conta-se ter o xuangui, em tempos primordiais, dominado a região que antecede os infernos, onde possuiria capacidade para voar, não sendo, no entanto, explícito se da sua carapaça brotariam ou não asas.

Nesse tempo, seria um predador carnívoro para desgosto de almas, homens ou bestas que cruzassem aquela região pré-infernal. Entediados de tanta voracidade, os deuses resolveram castigar o xuangui, retirando-lhe a capacidade de voar e exilando-o no Rio das Águas Estranhas, onde ocupa uma discreta posição.

Mas os implacáveis deuses não se ficaram por aqui. Para eles não era suficiente esta emigração forçada, a perda de mobilidade e de estatuto. Para evitarem para sempre o regresso de comportamentos ínvios, nomeadamente a glutonice assassina dos xuangui, extinguiram todos os machos da espécie. Desde então as fêmeas são penetradas por serpentes e é o amplexo com estes répteis que garante a continuidade desta espécie, sempre no feminino.

Há também quem considere, erroneamente, devido à sua carapaça de cor negra, o xuangui como a tartaruga original que ocupa o Norte do mundo, de onde as águas escorrem para os rios, os lagos e os quatro mares, parente da fénix vermelha, do tigre branco e do dragão verde. Contudo, é sabido que essa primeva tartaruga não possuía cabeça de ave, nem arrastava uma cauda longa de serpente. Além disso, não se imagina esse nobre animal a emitir um som de cana rachada, como faz o xuangui.

18 Fev 2022

Procrusto e a banalidade

Hoje Procrusto é rei. Procrusto era um ladrão que prendia as suas vítimas a uma cama e depois lhes esticava os membros quando não eram suficientemente grandes ou os cortava quando excediam os limites do espaço que lhes era destinado. É o símbolo antigo da banalização, da redução a uma medida convencional, da tirania da mediocridade contra os que excedem ou não preenchem os critérios preconcebidos.

Na idade do banal nada nos toca realmente. Mergulhados no imenso fluxo de notícias (reparem que num tempo mais acelerado que o chamado tempo real), somos de tal modo submergidos que os valores têm necessariamente que se esbater e não há tempo para perguntas: a nova informação está aí, nova e fresca, pronta a consumir, um pouco por todo o lado e vinda de todo o lado. Por ser banal, a informação tudo banaliza.

E banaliza, sobretudo, os sentimentos. São irradiações de paixão, de amor, de adultério, de crenças nisto e naquilo, de piedade, de compaixão por si mesmo, de exposição da dor, a todo o momento, a toda a hora, sem limites, nem fronteiras. É por isso que temos tanta dificuldade em sofrer. Não é preciso: o sofrimento tem uma tão excessiva mediatização que já só existe no espaço público, deixou de fazer sentido na nossa própria privacidade. Ninguém sofre porque, na medida em que está em todo o lado o sofrimento alheio, nos sentimos, finalmente, um pouco ridículos. O dito pragmatismo tornou-se num rei que vai nu, mas que ninguém tem a coragem de denunciar, sob pena de desinserção, de não pertença ao esprit du temps. O falso fato do rei nunca foi presentificado como hoje. Nunca noutros tempos se apostou tanto na falsidade, na mentira, na verdade entrecortada, como agora. É o caso paradigmático das revistas cor-de-rosa, as publicações que mais vendem em todos os países. É porque, na realidade, o banal aflige as pessoas. E as vidas dos ricos e famosos são, pretensamente, um passo mais além dos percursos da banalidade. É claro que se trata meramente de uma aparência mas, no mundo contemporâneo, a aparência é o que interessa mesmo às pessoas que têm a sensação efectiva da extinção do real.

Esta extinção está presente sobretudo nos media. Mas não só. Existe nos nossos empregos, existe nos cafés, existe nas conversas pouco fluidas e repetitivas, existe na repetição à exaustão de temas vazios como motivo simples de entretenimento. Ninguém quer avançar nada, não se trocam ideias.

O banal reina como imperador supremo nas nossas vidas. Acabaram as noites no largo, sob as estrelas, quando os homens tentavam seriamente avançar um pouco na concepção que faziam do mundo, de si próprios e das coisas.

Aliás, ai de quem tentar superar um pouco o regime da banalidade. Será olhado como um ser estranho, desviante, até perigoso. Bom mesmo é manter o registo do banal, ainda que sobre ele se façam algumas flores, se modifique um pouco qualquer frase para dizer exactamente o mesmo. Esses são os génios do nosso tempo, os heróis dos poderosos, as estrelas dos humildes. Aparecem nas capas de revistas com afirmações brilhantes, considerações intempestivas do género “sou uma vítima da paixão”, entre garrafas de champanhe e paisagens de castelos.

O pior é que o banal nos faz duvidar de nós mesmos. Da sinceridade das nossas intenções, da bondade dos nossos sentimentos. O próprio mal foi também banalizado e nesse sentido, nesse processo, foi igualmente glorificado. A banalidade representa o mundo dividido em dois, justificando por isso a existência da maldade, da cupidez, da traição barata, da crueldade.

A banalidade é o pântano onde nos movimentamos como crocodilos tristes e desdentados, a charneca enevoada onde nenhum cão gigantesco e feroz alguma vez aparece. O banal é rex, mas pequeno, subtil, abafador das ilusões, assassino das mais legítimas esperanças. Não se trata de um tirano, mas de uma miríade de Procrustos que nos impedem de, noite após noite, ter uma simples, lúcida, clara, sufocante, visão das estrelas que – acreditamos – ainda estão lá em cima, penduradas num certo céu.

16 Fev 2022

O xingxing

Na primeira orla montanhosa do Sul, ficam as montanhas da Pega (Queshan). As antigas crónicas relatam que ali, nos vales que serpenteiam os sopés, os aldeões contam estranhas e variadas histórias sobre um tal de monte Zhaoyao, um cume que apresenta a característica singular de quando em vez estremecer. Recentemente, o Instituto de História da Academia de Ciências Sociais de Sichuan acredita ter provado que se trata do monte do Gato Agachado (Mao’er), assim denominado devido à forma do seu pico, que fica a cerca de cem quilómetros a norte de Guilin, na província de Guangxi. Nas suas encostas cresce a canela, abunda o ouro e o jade. Riquezas minerais à parte, este monte é conhecido pelos seres bizarros, plantas e animais, que por ali terão existido.

As crónicas narram, com relativo detalhe, a existência de árvores com propriedades fabulosas, capazes de matar a mais profunda das fomes ou de impedir os viajantes de se perderem do seu caminho, mas talvez a mais espantosa entidade do monte Zhaoyao seja um animal, a que chamam xingxing, cuja forma se parece com a de um macaco de cauda longa com a cabeça decorada por duas orelhas brancas. O xingxing caminha acocorado, mas quando corre assume a posição vertical dos humanos. Talvez por isso, nesta região, se creia que comer este animal aumenta a capacidade para correr.

O xingxing é também descrito como tendo, além da longa cauda e das orelhas brancas, uns olhos muito vermelhos. Outros descrevem-no como um porco de face humana. Contudo, a sua característica mais fascinante é o facto de “chamar as pessoas pelo nome.” Esta capacidade para articular palavras é o que leva, talvez, um outro compêndio a considerar os seus lábios uma iguaria. Na região onde vive o xingxing, os camponeses descrevem-no como um bicho nómada, que vagabundeia sem nexo, nem objectivo perceptível. Contudo, queixam-se também de ser um animal muito difícil de capturar.

O que desgraça o xingxing é o seu amor desmedido por vinho e sandálias. Estando a par desta tara, os camponeses colocam estrategicamente, em locais que sabem frequentados pelo bicho, vinho e várias sandálias atadas umas às outras. Quando se apercebe da presença da bebida, o xingxing aproxima-se, apesar de saber que se trata de uma armadilha e consegue reconhecer quem a terá montado. Então chama-o muito alto pelo nome e insulta-o, imprecando: “Seu miserável escravo! Julgas que me apanhas?!”

Logo em seguida, o xingxing afasta-se. No entanto, passado pouco tempo, regressa pois não resiste a experimentar o vinho e a calçar um par de sandálias. Se ele bebe demasiado torna-se uma presa fácil porque fica ébrio e as sandálias, presas umas às outras, não lhe permitem correr. E assim os camponeses são finalmente capazes de o conduzir a uma jaula, amparando-o como se faz a um tio bêbado. Quando depois alguém se aproxima e, para o irritar, lhe diz “vá, arranja maneira de sair da jaula…”, ele volta-se para essa pessoa e dos seus olhos deslizam lágrimas rubras que encharcam a pelugem fulva do seu rosto.

4 Fev 2022

O governo inactivo

O governo de Hong Kong resolveu diminuir os dias de quarentena obrigatória para quem entra na cidade de 21 dias para 14. Imediatamente, o governo de Macau veio a terreiro sublinhar que por aqui tudo continuaria na mesma, ou seja, três semanas num hotel definido pelas autoridades, sem possibilidade de escolha para quem regressa da Europa.

Não debaterei aqui a cientificidade destas diferentes escolhas e posturas exactamente porque não sou cientista. Aliás, o combate ao covid-19 em Macau tem-se saldado por um grande sucesso. Aparentemente. E aparentemente porque a doença não se combate apenas através de uma política de zero casos mas, sobretudo, criando condições para que a doença não encontre modo de se propagar com resultados mortais ou graves para os seres humanos.

E que condições são estas? Parece ser já corrente na comunidade científica e na maior parte dos países que a condição fundamental para sair deste pesadelo é a vacinação. De facto, as vacinas têm transformado, na maior parte dos casos, aquilo que era uma doença mortal ou grave, numa gripe que não obriga a internamentos e que desaparece ao fim de alguns dias. É por isso que países como a França, a Alemanha ou a Áustria tomaram medidas que, praticamente, tornam a vacina obrigatória, quando não mesmo compulsiva. Quem não estiver vacinado não deveria entrar em restaurantes, em supermercados, em transportes públicos, em concertos, em edifícios públicos, etc..

E, neste ponto, a acção (ou melhor, a não-acção) do governo de Macau surge aos olhos de muitos como incompreensível e mesmo difícil de aceitar tendo em conta as dificuldades que a maior parte das gentes deste território atravessa devido à actual situação. O covid-19 só será derrotado, como o foi a poliomielite por exemplo, através da vacinação. Qualquer outra esperança não terá quaisquer resultados pois o vírus continuará sempre a espalhar-se até não encontrar lugar onde se estabelecer, ou seja, no corpo dos não-vacinados.

A inacção do governo de Macau em relação às vacinas vai fazer com que o problema por aqui nunca acabe. Ho Iat Seng deu o exemplo e foi dos primeiros a ser vacinado, mas o seu exemplo não foi seguido, o que também pode significar que a população não confia inteiramente nem nas vacinas nem no Chefe do Executivo. Não houve uma campanha decente, nem indecente. Não houve o cuidado de pôr as associações a contribuir para a vacinação. Não se criou uma onda de responsabilização cívica que levasse as pessoas a vacinarem-se. E, sobretudo, não se dificulta a vida aos não vacinados com medidas efectivas.

Não me venham com discursos sobre a liberdade de cada um. Esta acaba onde começa a liberdade dos outros, que têm o direito de não serem contagiados e de quererem retomar a sua vida normal. Como todos sabem, felizmente existem vacinas obrigatórias para frequentar as escolas e ninguém se abespinha. Graças a elas, muitas doenças foram erradicadas e muitos dos que não se querem vacinar estão hoje vivos.

No dia em que Macau abrir as suas portas ao mundo, o covid-19 aqui entrará alegremente. E essa alegria decorre do facto de encontrar imensos corpos não vacinados. Enquanto o governo da RAEM não tomar medidas mais severas, muita gente entende que não se deve vacinar. Por quê? Na maior parte dos casos, por mero provincianismo, noutros por egoísmo, mas a maior parte porque não vê vantagens nisso. E dizem: “Eu não penso sair de Macau, porque me hei-de vacinar?” Como se a questão fosse individual e não colectiva. E o governo, que tanto defende que os direitos colectivos se devem sobrepor aos individuais, neste caso fica de braços cruzados à espera que passe. Assim, não passará.

3 Fev 2022

Sobre o baptismo dos monstros

Do livro Embriologia Sagrada, escrito por um frade siciliano no século XVIII, abençoado pelo Papa Bento XIV e publicado em Português no ano de 1791. Neste passo do volume, em que o religioso pede auxílio a um especialista francês, discute-se a geração, ocorrência e o baptismo de monstros (Descoberto em Passarela, Gouveia, numa arca improvável):

 

“(…) Huma mulher póde ter commercio, primeiro com huma besta, e algum tempo depois com hum homem, ou com homem, e com besta, ou com huma besta sómente. No primeiro caso ha motivo para duvidar se a mulher concebeo da besta, ou se o féto, que sahe della, he huma produção do homem só, porém desfigurada, e feita monstruosa pela impressão, que a besta fez na imaginação da mulher no tempo da união, que precedeo á do homem: por outra parte quem póde afirmar que assim como huma besta pode fazer que huma concepção humana se faça monstruosa, também o homem não póde indireitar, e humanizar, digamo-lo assim, huma concepção bestial.

No segundo caso, se se suppõe que a mulher tem concebido do homem, toda a dificuldade está tirada (…), e sempre ha razão para duvidar e suspender o juizo; porém se huma mulher só tem tido commercio com uma besta, augmenta-se a dificuldade, e o embaraço: se he certo, como o crem muitos Fysicos, que o féto está formado todo, e organizado perfeitamente no ovo, e que se vivifica no mesmo instante da concepção, quem se atreverá a dizer que Deos suspende o seu concurso, e que não lhe infunde huma alma racional, seja quem for o macho que o põe em movimento?

Pois não se póde determinar se esta informação se faz logo que o féto se vivificou, isto é, no mesmo instante da concepção; pois não ha coisa que pareça deva impedir que entre nelle a alma racional; pois o féto, segundo esta hypothesi, não he todavia monstro; e he necessario, ao parecer, algum tempo, ou ao menos mais de hum instante, para que hum féto humano bem formado, e bem organizado se transforme, e possa converter-se em monstro.

Não sei que diga dos monstros, que nascem de bestas femeas com figura humana: confesso que tremo, quando revolvo esta materia: com tudo não sendo artigos de fé os systemas, que ideião os Medicos, e Fysicos, e os Anatomicos, parece que quando ha dous com pouca differença igualmente verisimeis, he permitido, havendo a mesma difficuldade em hum, que no outro, e sendo a cousa de tanta importância como esta, differir ao dictame de Medicos, e Fysicos muito hábeis, que julgam que o féto está todo formado, e perfeitamente organizado na semente do homem.

Mr. Levenhouc, Hollandez, faz ver por meio de seus globos de vidro, que na semente dos badejos machos estão formados inteiramente os badejos filhos, e que se movem algum tanto. Nesse sistema, se se supõe que o espirito seminal da femea põe em movimento o féto, e o vivifica ao tempo da concepção, e que a alma racional se infunde no mesmo instante, he necessario grande valor para decidir que o féto humano, formado todo, e perfeitamente organizado, só por estar no corpo de huma besta femea, não está informado de huma alma racional.

De tudo o que fica dito concluo, que se devia desejar que se visse baptizar geralmente tudo o que nasce de mulher, no caso de ter vida, e ainda os monstros, que nascem de bestas femeas, se tem figura humana, quando se sabe que algum homem tem podido ter parte na producção; pois é impossivel decidir que semelhantes monstros não são animais racionaes. Trata-se da salvação, ou da condemnação eterna das almas; e tendo-se feito o sacramento para as almas, e não as almas para o sacramento, a razão, e a piedade pedem que se aventure sempre o sacramento antes que a alma.”

Paris, a 25 de Maio de 1693. Fillipe Ignacio Save, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris.”

26 Jan 2022

Alexandria

Existe na cidade de Alexandria um Porto Interior. Fixa o Norte, de onde lhe veio o pai. Num dos seus extremos, alguém de novo ousou a Grande Biblioteca. Abundam livros e mulheres jovens. Pelo meio, sobre as praias, debruçam-se esplanadas, num excesso de mar. No outro extremo, passeia a desmesurada gente, talvez à espera do momento certo para voltar a pegar fogo a isto tudo.

*

Já Marte sobre o fim da cidade se levanta, mas nem por isso os homens sossegam e olham de novo o mar antigo. Pela urbe persiste o ruído, o caos que pouco cintila ou alcança. A cidade deixa à estrela esse castigo. E ela olha do alto e pouco vê, nada procura. Onde estão os épicos fantasmas da minha literatura? Ficaram os homens impuros e as suas mulheres cercadas. E as ruas belas como rugas ou trapos pisados nas calçadas.

Na casa de Kavafis paira um odor a abandono. Apenas um refrão, sussurrado por um bigode. Escasseiam os livros e sobram as horas. Os versos lamentam a sorte rasa. Poemas dormem sem abrigo pelas ruas. Nada há para fazer, só para ver e os olhos humedecem da tristeza do que não é (talvez nunca tenha sido), a sentirem fundo a culpa de uma deslocada ambição.

*

Nos versos de Kavafis expirava o último heleno e talvez uma cidade.

*

Havia no lugar onde em 1902 foi construído o Hotel Metropole um obelisco de dois mil anos. Cleópatra impusera-o para celebrar Marco António. Agora existem sombras posteriores a marcar corredores, um elevador de três portas e as colunas solenes do átrio. — Ainda há onde respirar, rosno curto.
Kavafis frequentava o Hotel Metropole. Não sei se unicamente a entrada, de onde se disfruta a rua em poltronas altas; se subia ao primeiro andar, e deslizava pelos salões, entre brandys, golpes de estado, charutos e revoluções.
Provavelmente, pouco disso o interessava, como lhe deviam ser indiferentes os veludos e os pendentes adamascados. Imaginemos que, sem sabermos de quê, lhe interessava a possibilidade. Fantasiemos que esse quê poderia surgir, vindo da rua, sob a forma de um cavalo ou de um príncipe, ainda pingentes de suor de um galope ou de múltiplas defenestrações.
E o poeta esperava, naquele canto sóbrio, meio enternecido de sombra, raspado do passado, ainda que o hotel fosse então novo e pouco fizesse prever a glória a que o meu coração o consagra. Previra os bárbaros, é certo, mas não os previra assim.
O obelisco está algures em Nova Iorque. Central Park, creio.

in Anastasis

20 Jan 2022

És um peixe, parte de um cardume, numa rede

Não sei se é lenda urbana ou se corresponde a alguma realidade: um estudo comportamental realizado no século XX nas grandes cidades, povoadas por milhões de pessoas, chegou à conclusão de que os nossos padrões de existência e convivência tornavam os seres humanos cronicamente infelizes.

Explicava então o documento que para um ser humano o objecto mais interessante é a face de outro ser humano. Por isso, quando alguém nos cruza na rua, automaticamente, de forma inconsciente, a intenção do nosso cérebro é guardar aquela face na memória, tarefa impossível de realizar quando circulamos no seio de uma gigantesca multidão e milhares de faces se nos apresentam ao olhar.

Daí que este tipo de experiência nos cause desconforto e sobrevenha a tendência para baixar os olhos, evitando assim reparar na avalanche de faces que ao nosso lado desfilam. Explicaria ainda o estudo que, em termos gerais, física e psicologicamente, não somos muito diferentes dos nossos antepassados que viveram milhares de anos seguidos em pequenas comunidades e a essa configuração de aglomerado estavam ferreamente acostumados. Ou seja: a evolução biológica e mesmo psicológica do animal humano não foi capaz de acompanhar a evolução das suas criaturas. Ou, ainda por outras palavras: a cultura ultrapassou de longe, de muito longe, as possibilidades biológicas e a humanidade criou as condições perfeitas para a sua própria insatisfação.

Neste processo, a civilização ocidental deu pela emergência de um ser singular, estranho ao mundo antigo, sucedâneo do advento do capitalismo como modo de produção predominante: o indivíduo. Honestamente, não podemos dizer que o indivíduo seja unicamente uma criação económica da burguesia comercial florescente. O conceito como que subjazia a todo o pensamento, canónico ou mundano, desde que o ser humano iniciou a sua peregrinação pelo mundo. Claro que essa assunção foi sempre limitada por constrangimentos sociais que – e bem – compreendiam ser o desejo ilimitado do indivíduo, o seu egoísmo e a centralidade desses desejos, a semente de destruição das sociedades e da sua cultura.

A inovação, a originalidade, a mera distinção, foram sempre olhadas com desconfiança no mundo antigo, quer na Europa quer na China. Os desejos individuais, egoístas, foram em todos os tempos e em todas as civilizações, considerados o mal no mundo, a origem da desgraça e o resultado de uma profunda inadequação à nossa condição existencial. Esta é, na realidade, profundamente gregária. Contudo, o indivíduo sempre esteve lá.

Segundo Peter Sloterdijk (em Stress and Freedom), é em finais do século XVIII que, entretanto, esse mesmo indivíduo ganha foral teórico num texto de Jean-Jacques Rousseau, a saber, no quinto passeio, descrito no livro “Promenades d’un Rêveur Solitaire”. O filósofo suíço gozava na Europa da sua época, depois de obras como o “O Contrato Social”, “Emílio ou da Educação” ou o “Ensaio sobre a Origem das Línguas” de um estatuto de celebridade que não impedia, ainda assim, as autoridades suíças e francesas, inquinadas pela Igreja, de o perseguir por heresia.

Por isso, refugiara-se numa ilha perdida, praticamente deserta, no seio do Lago Biel, na sua Suíça natal. Aí, segundo Sloterdijk, “algo semelhante a um Big Bang ocorreu na moderna poesia da subjectividade”.

Dias depois de se ter instalado na ilha, Rousseau entrou sozinho num pequeno bote, deixando em terra a sua companheira Marie Thèrese, e remou para o meio do lago. Pouco depois, pousou os remos, deixou o barco ao sabor dos movimentos das águas e, sob o sol magro das terras helvéticas, dedicou-se à sua ocupação favorita: o devaneio (rêverie). Sloterdijk chama a atenção que esse “fluir da alma sem se agarrar a nenhum tópico como meditação imaterial” teria um sentido muito mais europeu do que oriental. Rousseau descreve que, por vezes, deixava o barco e o espírito vaguearem sem objectivo durante horas a fio, o que lhe proporcionava um prazer supinamente mais intenso do que o que se costuma designar por “prazeres da vida”. Nas suas palavras:

“Que prazer se retira então de uma tal situação? De nada exterior a si mesmo, de nada senão de si mesmo e da sua própria existência, pois enquanto esse estado dura é-se suficiente a si mesmo, como Deus. O sentimento da existência, despido de qualquer outro afecto, é em si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que por si só seria suficiente para tornar essa existência querida e doce para quem pudesse remover de si todas as impressões sensuais e terrenas que sem cessar nos distraem e perturbam a doçura da existência neste mundo.”

Aqui temos, portanto, a descrição de um indivíduo despido de intenções políticas, sociais, económicas, intelectuais, cognitivas ou mesmo artísticas. Ele é, praticamente, uma consciência pura, para si (indivíduo) e em si (essência/Deus), que puramente goza da mera existência, separada da existência dos outros homens, da cultura e da sociedade, num mero acto de auto-reconhecimento, ainda assim dotado de uma extrema profundidade. Nunca antes o indivíduo se atrevera a fazer de si mesmo uma tal descrição e sobretudo confessar que a pureza que advinha da construção desse instante lhe proporcionava um inaudito prazer.

Rousseau apresenta-nos um indivíduo sujeito de si mesmo (não do rei ou da própria linguagem), independente, totalmente livre, pelo menos enquanto mergulhado nos seus devaneios próprios e distante de qualquer contacto social. Este homem rousseauniano prescinde do resto da humanidade e adquire nesse distanciamento um prazer descrito como o mais sublime de todos os prazeres, embora consista unicamente na constatação e fruição da sua existência enquanto consciência individual.

Como acrescenta Sloterdijk, não estamos perante o tédio heideggeriano ou a consciência infeliz de cristãos, budistas, estóicos, freudianos e outros que têm moldado a nossa relação ao mundo. Este indivíduo, meramente por ser dotado de consciência, de um pleno sentimento de si, é soberano e feliz.

*

Ora este homem, este sentimento de absoluta solidão perante o cosmos, este sentimento de total liberdade, praticamente desapareceu. Desde os anos 90 do século XX que constantemente, em permanência, nos sujeitamos voluntariamente a outro tipo de experiência eminentemente social: vivemos em e para a rede. A consequência do advento da internet é, singularmente, uma vivência de grupo, ainda que virtual, dispensada que está a proximidade física para a maior parte das actividades humanas. Concomitantemente, a presença constante do telemóvel obriga-nos a estar a todo o momento à disposição dos outros. Estes exigem a nossa presença e a sua permanente existência constantemente nos faz viver para e com eles, considerando as suas opiniões os seus “gostos” e “desgostos”, um novo tribalismo cujas fronteiras ainda que mal definidas não deixam ainda assim de nos limitar as escolhas, os pensamentos, os atrevimentos.

Navegamos por diferentes redes sociais consoante a qualidade dos nossos desejos, mas estes encontram-se a todo o momento em xeque face às reacções que vamos obtendo e acabam por ser moldados por esse novo grande Outro que é o fantasma incognoscível que preside, finalmente, às redes sociais: os algoritmos que determinam o seu funcionamento. Nelas se espoja a nossa intimidade, as nossas opções políticas; nelas encontramos as ideias que confirmam as nossas e as dos nossos; sobretudo, nelas sorvemos a informação que instrói a nossa forma de pensar e fatalmente os temas em que pensamos. Sempre no plural, sempre acompanhados. A nossa servidão – no passado voluntária, na expressão de La Boètie, portanto de algum modo consciente e racional – é já hoje e será no futuro automática, algoritmizada, escapando totalmente ao nosso controlo. Pior: proporciona-nos uma estranha sensação de reversibilidade, de ilusão de escolha individual quando, na realidade, se passa precisamente o seu oposto.

O indivíduo, tal qual o experimentara Rousseau, e que depois atingiu o seu zénite no século XIX, morreu ou vegeta num limbo crepuscular sem capacidade de acção ou pensamento realmente solitário. Por vezes, é quase cómica a tentativa nietzscheniana de o salvar, embora a cada linha do filósofo alemão, a cada construção conceptual mais ou menos radical (como o Ubermensch) se pressinta a consciência do seu irremediável desaparecimento.

Edgar Allan Poe, perante o advento do mundo industrial e das grandes cidades, identificara já, no conto “O homem da multidão”, o horror da vida urbana que remete o ser humano, ao mesmo tempo, para um paradoxal sentimento de anonimidade, solidão e falta de outro propósito que não seja o estar acompanhado, embora tal não incluísse o contacto efectivo com outros seres humanos. O “homem da multidão”, um velho magro e demoníaco, recusa estar sozinho, precisa inexplicavelmente das massas, dos seus ruídos e vociferações, independentemente das suas qualidades (estamos já a caminho do “reino da quantidade”, a travessa em largura da cruz, de que nos fala René Guénon), mas nunca interage realmente com outros seres humanos, como se a presença do outro lhe fosse, a um tempo, fundamental e repugnante. Hoje, sentados em frente aos nossos objectos tecnológicos (porque albergam um intrincado logos) ou ocupantes da nossa mão, dos nossos dígitos, somos precisamente esse homem, na impossibilidade simultânea da solidão e do contacto.

Por outro lado, a globalização imprimiu uma machadada quase final nos chamados direitos individuais. Heidegger advertira-nos para as consequências radicais da primazia da técnica e de como esta embrulharia o seu criador numa teia da qual ele seria incapaz de se desenvincilhar. No filme “The Imitation Game” é exposto como a máquina adquire o seu estatuto máximo e rex, no sentido tirânico e devorador: o aparato codificador Enigma, que serve o império nazi, só pode ser batido por outra máquina e não por um grupo ainda que vasto de homens extremamente inteligentes, como explica Alan Turing ao construir o dispositivo que prefacia o actual computador. Este episódio marca a ascensão da técnica a um patamar de superioridade sobre o indivíduo do qual não voltará a descer, submetendo os sujeitos à presença e uso constante de objectos técnicos cujo funcionamento lhes escapa.

Afastamo-nos, assim, radicalmente, do tempo em que os objectos técnicos eram produzidos como reproduções melhoradas do corpo humano (como o martelo que imitava um punho, etc.. Hoje sobra-nos a, já de algum modo ridícula, transmissão de energia eléctrica que tem ainda como modelo o acto sexual). Neste novo mundo, os objectos técnicos baseiam a sua existência e funcionamento em formulações de partículas subatómicas, teorias quânticas, que são inspiradas por representações inacessíveis aos indivíduos que as utilizam ou são utilizados por elas. O progresso tecnológico preside assim à extinção do conceito moderno de indivíduo.

Hoje, sobretudo quando nos deparamos com questões que todos afectam num planeta cada vez mais pequeno e do qual foi erradicado o mistério, são os direitos colectivos que se preparam para assumir a primazia. Estes são apresentados como a possível salvação de uma humanidade que o excesso de individualismo e dos direitos individuais parecem conduzir, inevitavelmente, à extinção. O modelo económico neoliberal transformou o capitalismo num regime acéfalo e canibal, no qual definharam as responsabilidades individuais. As corporações transnacionais, com os seus conselhos de administração impessoais e os seus anónimos accionistas, substituem o tradicional capitalista/industrial, enfeitado pelo charuto e decorado Rolls Royce, que reproduzia ainda a inveja do estar aristocrático. A exponencialização, tida como imparável, do crescimento baseado no lucro, que se apresenta como a única possibilidade (there is no alternative), não tem consciência ou qualquer culpabilidade perante o seu auto-canibalismo e tem dependido, em grande parte, da deslocação das fábricas para países onde ainda é possível explorar intensivamente uma mão-de-obra barata, e da destruição sistemática da relação da espécie humana consigo mesma e com a Natureza, como se a primeira já não dependesse da segunda para a sua sobrevivência. O “mundo enquanto fábula” cartesiano permitiu ao conhecimento abandonar os seus limites ético-religiosos e avançar sem temor para a situação em que se acredita piamente na capacidade da humanidade para recompor aquilo que cega ou racionalmente destrói.

“O sonho da razão produz monstros” avisa uma gravura de Goya, na qual vemos um homem adormecido sobre uma mesa de trabalho, cercado de estranhos mochos, morcegos e outros seres monstruosos, que o assoberbam. O pintor espanhol prevê a monstruosidade de Auschwitz, o mais racional dos grandes crimes. Aparentemente, ninguém lhe prestou muita atenção e mesmo que tivessem prestado, provavelmente, pouco poderiam fazer.

Hoje, no mundo global, a ética dá lugar a uma nova moral, construída a partir de problemas e situações que dizem respeito ao que o presidente chinês Xi Jinping chama de “comunidade global de futuro partilhado”. Assim, ninguém tem a possibilidade de estar realmente sozinho, tal como ninguém se pode eximir da sua responsabilidade para com o outro.

As doenças do indivíduo, como as velhas histerias freudianas e a paranóia, a esquizofrenia enclausurada ou mesmo a depressão do actual homem-empresa, produto da sociedade da performance descrita pelo filósofo coreano Byung-Chul Han, não cessaram a sua existência, mas são ridiculamente insignificantes quando pensamos nas doenças colectivas como o aquecimento global e a destruição dos ecossistemas, a fragilidade neoliberal dos mercados ou as neo-pandemias para as quais se adopta uma cura autocrática, que passa precisamente pela ascensão dos direitos colectivos face aos direitos individuais. Esta emergência surge-nos, ainda por cima, crismada de uma inevitabilidade derivada da actual situação do planeta e surge decorada racionalmente como a única salvação possível de uma nova humanidade a haver.

*

O advento da pandemia provocada pelo covid-19 teve como resultado a visualização concreta, nas ruas das nossas cidades, entretanto reduzidas a espaços de consumo, centros comerciais, do design futuro deste mundo contemporâneo do qual o indivíduo rousseauniano se evola. Se, durante os séculos XIX e XX, na sequência das revoluções industriais e do deslocamento massivo para as cidades, já se referia a existência de multidões anónimas, como se descreve no início deste texto, a necessária utilização da máscara reforça de modo radical a anonimidade destas massas que hoje percorrem essas cidades. A Oriente é mais evidente: nas grandes metrópoles fervilhantes de milhões, a máscara altera, uniformiza, ainda mais a paisagem urbana, subtraindo-lhe a pequena dose de diferença que constitui a face humana. Afinal, a face é o que distingue um indivíduo do outro e permite o seu reconhecimento efectivo. As roupas, os cortes de cabelo, as joias, os automóveis, são símbolos eminentemente sociais e não individuais. De máscara posta, reconhecemos um grupo, uma pertença, até talvez uma ideologia, mas não um indivíduo.

De máscara em riste, fenece a empatia. A face – lugar da irredutível diferença, da prova da existência individual, a face que nos “impede de matar” (Levinas) – surge agora ocultada. Ora se a face é o lugar da irredutível diferença, da prova do indivíduo, a sua ocultação significa a extinção desse indivíduo na massa, passando a ser unicamente reconhecido pelos símbolos colectivos que ostenta mas não por aquilo que imediata e radicalmente o diferencia de todos e o torna num ser único – a sua face ou, se quisermos, a facialidade (visageté).

Tal explica a maior, ainda que fútil e perigosa, resistência ao uso da máscara sanitária em tempo de pandemia no Ocidente, que ainda se sonha eminentemente individualista, por oposição ao Oriente confucionista, onde a moral é há muitos séculos a principal preocupação dos pensadores e dos sistemas de pensamento. Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), o confucionismo clássico só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e centra-se na regulação dos assuntos humanos.

Não por acaso, os actuais movimentos sociais de protesto utilizam a máscara para contrariar a tecnologia de reconhecimento facial, que se erigiu em arma repressiva, sustentada pela proliferação de câmaras de vigilância.

Paradoxalmente, portanto, espelham a anulação do indivíduo na sociedade contemporânea. É o caso das máscaras de Guy Fawkes, inspiradas pelo grupo virtual Anonymous e divulgadas pelo filme dos irmãos Wachowski “V for Vendetta”, utilizadas em vários Occupy; ou das máscaras negras dos activistas de Hong Kong, entre outros. A utilização de máscaras implica prescindir de uma responsabilidade individual nos protestos, de um assumido temor individual de represálias futuras, impensável, por exemplo, nas manifestações parisienses do Maio de 68. Nessa altura, a máscara não fazia parte da parafernália do cidadão, que orgulhosamente ostentava a sua face enquanto indivíduo politicamente consciente e orgulhosamente distinto da manada submissa e sem consciência de classe. A face mascarada pertencia ao reino do bandido, do assaltante, do fora-da-lei, sem consciência política e social.

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Não é que este sentimento de perda individual não existisse já antes da pandemia e do uso da máscara. Por exemplo, como explicar a extraordinária disseminação recente da prática da tatuagem? Estamos longe, por exemplo, da explicação dada por Claude Lévi-Strauss, quando nos seus “Tristes Tropiques”, refere as tatuagens dos índios Caduveros como um meio de mostrar que se pertence à comunidade dos humanos por oposição aos animais e ao estado natural. Neste caso, não tatuar o corpo significaria uma recusa de pertencer ao grupo e, portanto, de se excluir da humanidade. Por outro lado, Lévi-Strauss refere que cada tatuagem, além deste objectivo geral, representa com os seus grafismos específicos a posição social de cada um.

Já Slavoj Zizek, curiosamente em sintonia com o referido antropólogo, entende que o uso da tatuagem estará relacionado com o pudor. Para o filósofo esloveno, a proliferação das tatuagens consiste num revestimento da pele, de um corpo que não se suporta totalmente nu, de tal forma que mesmo quando está sem roupa nunca se apresenta despido e natural.

É, contudo, na nossa opinião, Jean Baudrillard quem mais se aproxima de uma explicação eficiente quando, em “L’échange symbolique et la mort”, alvitra que o desenvolvimento do individualismo foi acompanhado de uma sacralização do corpo que “investido de um valor de troca, se torna num objecto fétiche” que é preciso fazer render, seja no ginásio, seja através da sua inscrição. A tatuagem passaria assim pelo “narcisismo da pequena diferença”, uma forma de se fazer notar e suscitar o desejo.

Quanto a mim, na linha deste autor, a tatuagem, os piercings, parecem-me ser uma tentativa inconsciente, um acto desesperado de individuação, na medida em que cada sujeito julga tornar o seu corpo indelevelmente distinto pela inscrição do que ele, enquanto hiperconsumidor (Gilles Lipovetsky, Le Bonheur paradoxale), entende ser uma escolha própria, especial, de símbolos individualizados. Se, nas sociedades passadas, a tatuagem significava a pertença a um determinado grupo, hoje a tatuagem procura sobretudo marcar a diferença, com todo o desespero possível a um “escravo de Estaline”, a frase que alguns dos prisioneiros dos gulags tatuavam nas testas, como forma de denúncia e resistência. Claro que, nas tatuagens contemporâneas, os símbolos são colhidos em conjuntos pré-existentes e que muito pouco têm de individual, constituindo assim mais uma armadilha de comportamento grupal, travestido de representação individuada, neste suave gulag global da produtividade e do crescimento económico compulsivo, do que uma resposta efectiva ao pressentido pesadelo: o esvanecer inelutável do indivíduo.

Não vale a pena insistir na ilusão, como se o desaparecimento do Outro, proclamado por Byung-Chul Han, em “A Agonia de Eros”, significasse um reforço de Si. Han tem razão quando atribui ao sujeito contemporâneo um narcisismo primário, relacionado com o sucesso e distante do amor-próprio. Contudo, este sucesso precisa do reconhecimento alheio. É, nesse sentido, predador como a sociedade que o inspira. Mas, bem vistas as coisas, o outro apenas se extingue, impossibilitando Eros, ou se torna insignificante, minimal, quando se dá ao mesmo tempo um esbatimento de Si, num movimento narcísico primevo de contemplação bacoca que implica extinção e morte de um logos único, na própria reflexão distorcida do indivíduo. Sim, somos atópicos, sem outro lugar que não seja, ainda assim, o reflexo que o outro nos proporciona. E, sem lugar próprio, sem Lago Biel para experimentarmos ao limite esse sentimento de Si, profundamente individual, somos finalmente meros sujeitos, como queria o estruturalismo, e não o homem senhor de si mesmo, capaz de justificar e responder pelas suas próprias decisões, que Nietzsche pretendeu, em desespero, imaginar como futuro. A questão ganha então um sentido trágico, irreversível, quando o dito outro, antes erotizado, deixa também de ter uma existência concreta e se resume a um devir digital, tinderizado.

Conclusão: és um peixe, parte de um cardume, numa rede. O que terei sempre de meu, de único, de irrevocável, de intransmissível na sua imensidade, é a dor. Aí, talvez, em certos casos, valência no caos, luz trémula na noite do mundo, persista ainda a permanência dessa ilusão que entendemos chamar indivíduo.

Artigo publicado na revista Torpor

13 Jan 2022

A pequena saúde e a grande vida

Na sociedade mediática, a saúde (ou o seu discurso) ganhou uma importância fundamental. Nunca como hoje as pessoas foram tão levadas a tomar a saúde como um dos principais modelos de referência nas suas vidas. Como muito bem notava Susan Sontag em “Aids and its metaphors”, existe uma concupiscência, uma estranha relação entre a doença, a comunicação, a política e, consequentemente, os comportamentos.

Para além de ser de desconfiar qualquer sobrevalorização do corpo, a posse da saúde – ter saúde, como se diz – mercantilizou-se como outra posse qualquer, é traduzível por quantidades de numerário (com o que se gasta no médico, na farmácia, no ginásio, no dealer). Hoje ter saúde significa também um determinado tipo de consumo, como significa determinado tipo de comportamento, ostentação de signos, sendo que este implica também a aderência a uma específica rede consumista.

A propagação real ou mediática das doenças restringe os comportamentos (como no caso da sida), modifica os hábitos (como o fitness e o jogging), proporciona novos gadgets à indústria (como no caso da pneumonia atípica). A doença ou a sua sombra proliferam através de uma quantidade assombrosa de revistas da especialidade, hoje predominantemente travestidas em forma física e componentes estéticas.

Na televisão são cada vez mais comuns os programas sobre doenças – em Portugal, Júlio Isidro entrevistava pessoas que sobreviveram a cancros e ataques cardíacos. Por toda a parte somos confrontados com a necessidade da precaução, da prevenção, da medicação, do rastreio; entrando para o nosso quotidiano termos bárbaros provenientes da medicina e da manutenção, cujo aspecto mais inofensivo se tornou amplamente numa mercadoria. O que o corpo tomar é o que ele é, sobretudo em termos de valor social.

Chegámos, portanto, a um tempo em que a química retomou os seus direitos, interferindo em todas as esferas. Está praticamente ultrapassado a era romântica em que a psicologia abdicava da factura química, na esperança de uma cura dita “espiritualista”. Hoje não há tempo para isso e, sobretudo, escasseia a paciência. “Quero a minha felicidade já, nem que seja em pequenas doses e tenho direito a ela, porque ela está em toda a parte” (como no caso do Viagra, outro potente mutante de comportamentos, ansiedades, emoções, relações) – sente-se e diz-se.

A saúde é, portanto, fundamental. Mas convém compreender que se trata de uma saúde especial. Muito dirigida e muito bem orquestrada. Mas raramente ultrapassa o nível farmacológico, mecanicista, que encara o corpo como um ente fragmentado, como no caso do culturista que desenvolve uma relação particular com cada músculo. O equilíbrio é agora procurado na química, na localização dos problemas. As terapias de outro tipo encontram-se agora em franca decadência.

Na verdade, lidamos com uma pequena saúde, feita de preocupações históricas sobre a decadência do corpo e a proximidade da morte. Trata-se, finalmente, do modo como a sociedade em que vivemos tira proveito das angústias (umas existenciais, outras que ela própria cria) e as molda de forma a serem mercantilizáveis. Assim, alteram-se igualmente os comportamentos e regista-se uma disciplina dos corpos e dos seus horários, bem conveniente ao circular da mercadoria, de cujo estatuto os humanos se aproximam cada vez mais e alegremente, como se nisso suspeitassem da existência de uma qualquer forma primeva de justiça.

Nem por sombras estamos perante uma relação ecológica e equilibrada ou sequer perante uma reflexão mais longínqua sobre o papel da ruptura num contexto natural. Cuidamos, amedrontados, isso sim, da nossa pequena saúde, de um corpo que encaramos como estando na nossa posse ou que nos possui, mas sempre com uma visão mecanicista e não integrada desse mesmo corpo. Este é comprado nos media, nos ginásios, nos médicos, nas farmácias, nos dealers (de algum modo, a drogadicção ilegal é uma medicina alternativa e mais generalista, talvez mesmo a que, nalguns casos, mais se aproxima de alguma espiritualidade).

As pessoas desfilam pois pela senda da pequena saúde, em muitos casos servos da sua ditadura. Por ela reorganizam as suas vidas. São induzidas a fazer do exercício físico uma parte dos seus quotidianos. As vitaminas, outra. Os programas, os filmes, as notícias, o obsceno, como o exemplo da dor alheia, vendida ao minuto nos ecrãs, são os altares desta religião, que monitoriza o dia, as refeições, o sexo, o sono, as relações, inclusivamente consigo próprio. A pequena saúde ganha foros de modo de vida. E o que fica de fora? A vida, precisamente a vida, a grande vida.

6 Jan 2022

Raiva

Raiva. É o que me invade e coloniza ao saber da morte do João Paulo. Como se não fosse possível o desaparecimento do seu olhar pleno de doçura, da sua voz fremente de ideias, do seu sempre renovado abraço solidário e cúmplice.

Tínhamos ainda tanto para fazer, João Paulo. Como é possível que nos deixes assim, de projectos nas mãos que nunca apertámos porque o nosso ritual era sempre um fraternal abraço? Raramente encontrei alguém com quem tivesse tantas coisas em comum, tantas paixões para partilhar, tantos sonhos para realizar.

Raiva. Vêm-me à ponta dos dedos palavras feias com que solitário agrido os céus. Não as quero deixar aqui, não as quero partilhar com ninguém. Ficam entre mim e Deus, cuja única desculpa é não existir.

Graças a ti, João Paulo, o Hoje Macau cresceu no mundo da lusofonia. Graças a ti, João Paulo, voltei a acreditar que este país ainda era possível. Apresentaste-me o Paulo José Miranda, o António de Castro Caeiro, o António Cabrita, o Luís Carmelo, o Valério Romão, a Rita Taborda Duarte, a Gisela Casimiro, o José Navarro de Andrade, o José Luís Tavares, o José Anjos, o Bernardo Trindade e muitos outros, que agora creio órfãos, como eu, da tua partida, mas que me fizeram acreditar que Portugal ainda era possível. Sobretudo, porque a tua capacidade de acreditar me motivava e me arrancava ao diletantismo que marca as minhas breves passagens pelo país que me viu nascer.

Já não vamos fazer o jornal de esquerda que tanta falta faz a Portugal e ao seu povo. Já não vais publicar os meus pobres livros. Mas, sobretudo, já não me vou sentar contigo, horas sem princípio nem fim, refém das tuas palavras e, sobretudo, do teu olhar. Sobre mim e sobre as coisas.

Eras um imane, um aglutinador de escritores, de artistas, de pensadores. E fazias isso sem esforço e sem tretas. E não digo que o fazias unicamente pelas letras, mas porque eras um ser humano excepcional, que sem ignorar a maldade dos homens a remetia para o seu devido lugar: o caixote do lixo do esquecimento.

Raiva. Expludo de raiva. Esvaem-se-me as palavras, impotentes para exprimir a dor. Até sempre.

28 Dez 2021

Taiwan e a Revolução Francesa

Na política internacional existe uma diferença considerável entre “adversários/competidores” e “inimigos”. Ora face ao extraordinário desenvolvimento que a China (RPC) tem conseguido nas últimas décadas é actualmente ambígua a posição dos EUA face ao gigante asiático.

O presidente Trump, a quem as questões económicas interessavam particularmente, abriu de forma grosseira as hostilidades criando múltiplas dificuldades às empresas chinesas de se expandirem no mercado global. O caso Huawei é o mais mediático, mas não é o único. Várias firmas chinesas viram erguerem-se barreiras aos seus produtos, quer alfandegárias, quer políticas. Ou seja, os EUA compreenderam que não podem deixar os chineses agir livremente no mercado global sob pena de serem ultrapassados no seu próprio jogo.

País que costuma defender a liberdade comercial, quando isso convém às suas empresas, já outro galo canta quando compreende não ter capacidade para jogar com essas mesmas regras. E quando é assim, mudam-se as regras do jogo. Foi o que fez Trump, aumentando radicalmente as taxas alfandegárias relativas a produtos chineses e invocando, cinicamente, questões relacionadas com os direitos humanos de modo a restringir o interesse por certos produtos feitos na China, como o caso do algodão produzido em Xingjiang.

Felizmente para a RPC o seu mercado interno é de tal modo vasto e a sua população conheceu um tal crescimento económico, solidificando uma extensa classe média, que as empresas chinesas conseguem sobreviver mesmo quando os mercados internacionais lhes levantam problemas, seguindo as ordens americanas.

Nos EUA o tema China é transversal aos dois maiores partidos e o actual presidente Joe Biden segue as pisadas do seu antecessor. Contudo, cada vez mais a retórica americana parece pretender transformar um adversário industrial e comercial, num inimigo global, fazendo da China um substituto da defunta URSS e criando o ambiente propício a uma nova Guerra Fria.

Para isso, a política externa dos EUA não se coíbe de tentar desestabilizar por vários meios a sociedade chinesa. Hong Kong é disso um exemplo (conseguido numa primeira fase e depois falhado, mas com graves consequências para a cidade), como a situação dos Uigures em Xingjiang (os EUA apoiam grupos no exterior sediados em Idlib, sede do Estado Islâmico) e, agora mais recentemente, Taiwan.

A questão de Taiwan é particularmente sensível para Pequim. De modo nenhum a RPC admitirá, no horizonte, outro desfecho que não seja a reunificação do país. No entanto, a RPC já deu mais que mostras da sua paciência e deixou, a partir de 1979, de empregar o termo “libertação de Taiwan”, que sugeria uma intervenção militar, preferindo “a promoção de uma reunificação pacífica, através do desenvolvimento dos laços económicos e humanos”. Sabe-se, contudo, e Pequim não se cansa de o reafirmar, que uma declaração de independência motivaria uma invasão, independentemente de pressões internacionais ou da presença militar dos EUA.

Nos últimos tempos, sentindo-se respaldada pelos EUA e pelas suas acções e discursos sinófobos, a actual administração da ilha tem-se mostrado cada vez mais reticente face à RPC. Se o Kuomitang havia enveredado por uma política de “dois gumes”, mantendo a aliança estratégica com os EUA, mas fortalecendo sobremaneira os laços económicos com Pequim e mantendo na gaveta quaisquer veleidades independentistas, já o partido agora no poder tem de tal modo hostilizado a RPC que os media internacionais, a soldo dos interesses americanos, fazem questão de proclamar, em manchetes atrás de manchetes, a iminência de uma guerra. The Economist, por exemplo, fez uma capa em que considerava o Estreito de Taiwan como “o lugar mais perigoso do planeta”. Regularmente assistimos, nos últimos meses, a notícias principais em órgãos de comunicação social que vão da direita radical e trauliteira (Fox News) à esquerda liberal e fofinha (The Guardian) em que Taiwan aparece em parangonas e a invasão da ilha é dada como algo adquirido, prestes a acontecer.

Declarações de responsáveis militares americanos reforçam esta propaganda belicista, algo que não é novo e faz parte da estratégia usual do império americano, em Taipé e noutras partes do mundo. Mais recentemente, os EUA têm procurado novos aliados na Ásia, além do subjugado Japão, como a Índia, o Vietname, as Filipinas, entre outros, sempre com o objectivo de minar os interesses chineses.

A administração de Taiwan, dirigida pelo Partido Democrata Progressista (DPP) da senhora Tsai, para agradar aos patrões americanos de forma radical, prestou-se em 2020 a envenenar o seu próprio povo, na medida em que levantou uma interdição de importação de carne de porco, alimentada com ractopamina, uma substância nociva que actua nos músculos dos animais, e que impede a sua comercialização, por exemplo, na União Europeia. Para o DPP, vale tudo, desde que isso garanta aos seus membros fartos negócios, nomeadamente de armas, com os EUA.

Se, num dia, Biden reafirma a política “uma só China”, no dia seguinte um grupo de congressistas americanos desloca-se a Taipé para “avaliar a situação”. Como se os EUA não dispusessem na capital da ilha de um chamado American Institute in Taiwan (AIT), com filiais noutras cidades da ilha. O AIT define-se como uma organização sem fins lucrativos financiada pelo governo dos EUA. Contudo, na prática, é uma das presenças mais caras dos americanos na Ásia e todos se lhe referem como sendo uma embaixada de facto, incluindo o próprio director da instituição. Ou seja, os EUA lançam mão de todos os meios para provocar Pequim e minar as relações com Taipé.

De tal modo o discurso subiu de tom que a própria senhora Tsai já veio dizer que não pretende declarar independência e assim dar sinal verde para a invasão. Mas as provocações continuam porque os EUA sabem que podem usar a carta Taiwan para denegrir a imagem internacional da China.

Muito boa gente teme a eclosão de uma guerra, que poderia ter consequências terríveis, para a região e para o mundo, mas não nos parece que as coisas cheguem a esse ponto de total irracionalidade. Cabe, principalmente, à própria ilha decidir se quer ser um peão no jogo global dos EUA ou se pretende manter o status quo e melhorar as relações com Pequim, no sentido de não excluir uma futura e inevitável reunificação.

Apesar do que vem quase diariamente esparramado na imprensa internacional, não acreditamos que a RPC prepare uma invasão, a não ser que a administração da ilha cruze a chamada “linha vermelha”. E também não acreditamos que Taipé embarque totalmente nas aventuras que lhe são postas na mesa pelos americanos.

A paz é fundamental para o desenvolvimento das condições de vida das populações e o actual status quo, reafirmado pelos dois lados do Estreito em 1992, permite uma coexistência pacífica cuja continuação fará com que a reunificação aconteça quando mudanças dos dois lados criarem a atmosfera ideal para isso. Mas isso é um assunto interno do País do Meio. A China parece nunca ter pressa e compreende de modo distinto do Ocidente o desenrolar da História, como se existissem duas diferentes velocidades. Zhou Enlai, quando perguntado sobre o que pensava da Revolução Francesa, respondeu que só tinham passado ainda 200 anos e por isso ainda era cedo para dessa revolução extrair conclusões, quanto mais exprimir uma opinião. Também por esta razão, acredito que a questão de Taiwan só poderá ter uma resolução pacífica e acabará por se atingir a reunificação.

 

PS: Porque referi o ex-primeiro-ministro Zhou Enlai, não resisto a partilhar um episódio dos anos 60. Num encontro com Nikita Kruschev, o presidente da URSS disse-lhe: “A diferença entre a União Soviética e a China é que eu tenho origens camponesas e populares, enquanto o senhor vem da classe privilegiada dos mandarins.” Ao que Zhou lhe respondeu: “Tem razão mas em comum temos o facto de ambos termos traído as nossas origens”.

25 Nov 2021

O mesmo não chega

O Chefe do Executivo começou ontem a apresentação das Linhas de Acção Governativa (LAG) sem que este primeiro discurso tenha trazido novidades importantes no âmbito político, económico ou social. Teremos talvez de esperar pelos Secretários para compreender em profundidade se este Governo produz novas ideias que aliviem a situação que a RAEM enfrenta ou se, pelo contrário, a exemplo de Governos anteriores, teremos “mais do mesmo”, o que seria efectivamente muito pouco.

Por aqui todos sabemos que, para a economia de Macau, é fundamental a abertura a Hong Kong. E tal não parece ser ainda uma prioridade para Ho Iat Seng que coloca nas mãos de Pequim essa medida. O problema é que a economia real de Macau (leia-se, além do Jogo) tem muitas dificuldades em sobreviver sem o turismo da ex-colónia britânica.

A razão é simples de perceber, dir-se-ia, numa linguagem que agrada a este Governo, uma razão “científica”. O nível de vida dos turistas do interior que nos visitam é inferior ao de Macau e os preços locais muito superiores aos praticados no interior. Por outro lado, a maior parte dos turistas do interior trazem já quase tudo pago e marcado. Logo, não são eles quem vai gastar dinheiro suficiente para manter vivos os pequenos negócios desta cidade.

Por outro lado, o nível de vida de Hong Kong é superior ao de Macau. As coisas aqui são mais baratas e por isso é fácil ao residente de Hong Kong aqui gastar dinheiro. Que o digam os donos dos restaurantes e das pequenas lojas, entre outros.

Por este motivo, parece-nos muito difícil recuperar a nossa economia enquanto os cidadãos de Hong Kong não puderem vir à RAEM sem passar por uma quarentena. Dantes, quando havia muito poucos turistas da China, Macau era sustentado basicamente por gente de Hong Kong e chegava. A economia explica porquê. E cientificamente, não é?

Sendo certo que “a pátria é o sustentáculo do desenvolvimento de Macau” (Ho Iat Seng), não podemos esquecer que Hong Kong faz parte da pátria e que a sua capacidade económica e financeira é fundamental para a RAEM. Por isso, parece-nos que o Governo devia ter como prioridade a abertura desta fronteira aos compatriotas de Hong Kong.

Neste ponto surge o grande falhanço deste Governo: a vacinação. É realmente incompreensível que Macau apresente uma taxa tão baixa e o próprio Chefe do Executivo reconheça que tenha havido um “problema de comunicação”. Um problema não. Um grande problema para uma cidade que vive do turismo. Sinceramente, não compreendemos a razão pela qual o Governo não toma medidas que levem as pessoas a vacinar-se como, por exemplo, não permitir a não-vacinados certos usufrutos como frequentar restaurantes e supermercados, entrar em edifícios públicos, passar a fronteira com Zhuhai, etc..

A postura passiva do Governo nesta matéria é, no mínimo, estranha. E faz pensar. Haverá algo por detrás deste “desinteresse? A vacinação não faz a fortuna de ninguém? E com os testes em massa, será que existem alguns beneficiados? Muito se insiste nos testes e muito pouco nas vacinas. Por quê? De facto, pode ter existido um problema de comunicação, mas o maior problema é que o problema continua. E o que pretende fazer o Governo?

Contudo, nem só de turismo vive esta cidade. E é neste ponto que será interessante analisar que medidas se propõe o Governo criar para aliviar a situação em que se encontram actualmente os residentes, que vão para além do cheque e do cartão de consumo. Estas medidas, sendo importantes para as famílias, de modo nenhum resolvem os problemas, como todos reconhecem. Na verdade, não passam de, como se diz em português, “paninhos quentes”, que não tratam da “ferida”, simplesmente aliviam um pouco as “dores”.

Então, o que fazer? Na nossa opinião, o Governo deveria lançar vários programas que permitissem, com mútuas vantagens, uma melhor distribuição de dinheiro pela população. Não falamos aqui, com certeza, de grandes obras, que essas levam o dinheiro para as empresas de construção que não são locais. Falamos, isso sim, de projectos de bairro, de melhoramentos na qualidade de vida das pessoas, mas que contem com a sua participação.

Por exemplo, já que a densidade dos turistas é consideravelmente menor, por que não lançar um programa de recuperação dos bairros antigos, que inclua a criação de mais e melhores pontos de interesse? Nomeadamente, uma maior e melhor musealização da cidade, sempre com a colaboração das pessoas locais, que permita a criação de novos empregos e a efectivação de uma cidade histórica, voltada para o turismo, mas conservando a sua identidade e autenticidade.

Por outro lado, Macau tem como dever face à Pátria estimular as relações entre a China e os Países Lusófonos, algo que nem sempre tem sido feito da maneira mais eficaz. Querem ideias que vão além do Fórum Macau e seus diplomatas? Ou seja, pretendem também que esta ponte seja construída pelos residentes de Macau ou vamos deixar a coisa só na mão de diplomatas e políticos? Ele há tanto por fazer nesta área…

Esperamos então para ouvir os Secretários e as suas medidas, na jubilosa esperança que as LAG não sejam “mais do mesmo”. É que, em tempos de pandemia e colapso económico de muitas famílias, o “mesmo” claramente não chega.

17 Nov 2021

HM/20 anos | O jornal e o elefante

2001. Ano da Serpente. No dia 5 de Setembro nascia o Hoje Macau.
Não eram tempos fáceis os primeiros anos da RAEM, sobretudo para a comunidade portuguesa remanescente. Muitos esqueceram, outros ainda se lembram. Da sensação de orfandade e da incerteza reinantes, se bem que habitadas por uma réstia de esperança misturada com amor à terra, que nos levara a ficar. Não sabíamos o que poderia acontecer, apesar dos discursos oficiais, ou como a população reagiria à nossa presença.

Ouviam-se, por vezes, algumas vozes antiportuguesas, embora nunca tenham feito um coro suficientemente forte para apagar as palavras reconfortantes e securizantes que o então Chefe do Executivo Edmund Ho esporadicamente emitia.

Eram tempos incertos quando o Hoje Macau nasceu. Tempos de luta e afirmação, de recolocação de pessoas em diferentes lugares, de emergência de novas elites, de conflitos dentro da própria comunicação social, de sedimentação de projectos em contexto de mudança extrema. Todos apalpávamos o terreno, na posse de poucas certezas. Nós, o Governo e a população. Lá fora, nesse mundo próximo e distante, seis dias depois de ter saído o primeiro número do Hoje Macau, acontecia o 11 de Setembro.

(É agora tempo, vinte anos depois, de homenagear e agradecer a João Severino, proprietário e director do Macau Hoje, publicação que este jornal veio substituir. Foi graças a ele que o Hoje Macau nasceu e deu os primeiros passos, ainda amparado pela sua mão generosa. Durante o largo período que permaneceu em Macau, João Severino deixou uma marca indelével no jornalismo local que grande parte dos leitores lembra com saudade e que a História recordará.)

Foi somente em 2003, depois do Governo Central ter designado Macau como ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa (PLP), que a nossa comunidade entendeu ter aqui uma plataforma de trabalho e a possibilidade de um contributo real para o crescimento e desenvolvimento da RAEM. Com estas directivas, Macau reafirmava a sua identidade única no contexto da nação chinesa, identidade que obrigatoriamente passava pela língua portuguesa e pela existência de relações de raízes seculares.

A comunidade portuguesa poderia agora assumir um papel relevante na construção dos pilares e do tabuleiro das pontes que Pequim encarregava a RAEM de estabelecer. Por outras palavras, o Governo Central dava-nos argumentos para justificar a nossa presença. Ou, resumindo, a criação do Fórum Macau e a constante afirmação da RAEM como ponte para a Lusofonia fez-nos exalar um enorme e sincero suspiro de alívio.

Nos anos seguintes, Macau entrou num processo desenfreado de crescimento que viria a durar cerca de década e meia. A liberalização do Jogo mudou o panorama da cidade em numerosos e profundos aspectos. Novos casinos e novas lojas mudaram o centro da cidade, o COTAI nasceu. Milhares de empregos bem remunerados elevaram de forma radical o nível de vida da população. Nem sempre o crescimento foi acompanhado por um desenvolvimento ecologicamente sustentado ou sequer preocupado com a qualidade de vida da população, mas Macau conheceu uma prosperidade fabulosa, que adveio do facto de se transformar na mais lucrativa praça de casinos do mundo.

Entretanto, em 2008, estalava mais uma crise global. Nada que por aqui nos preocupasse. Mas Portugal entrou em profunda recessão, o que motivou uma emigração em massa, parte da qual aterrou em Macau onde, de uma forma geral, foi bem acolhida e encontrou meios para sobreviver. Eram pessoas diferentes das que por aqui haviam ficado, mais novas, com outros saberes e outros fazeres. A chegada de mais duas mil pessoas reforçou de forma significativa a nossa comunidade e foi motivo de regozijo generalizado, sobretudo para quem considera importante manter a inopinada presença lusófona, idosa de 500 anos, nesta pequena cidade do sul da China.

Durante todo este período, a imprensa em língua portuguesa, ao contrário do que havia sido previsto, prosperou e consolidou-se. Três jornais diários, um semanário católico, outro bilingue, uma estação de rádio e outra de televisão, compõem o ramalhete de órgãos de comunicação social em língua portuguesa existente em Macau. O Hoje Macau foi lendo a realidade circundante, reflectindo sobre o seu papel e adoptando a forma que entendemos ser mais conveniente, útil aos nossos leitores e que nos agrada produzir. Assim, focámos a nossa atenção basicamente em assuntos locais, sejam eles de política, sociedade, desporto ou cultura. Se damos menos atenção a notícias internacionais ou de Portugal é porque sabemos terem os nossos leitores acesso a essa informação através de outros media melhor qualificados para o efeito. Assim, se exceptuarmos as notícias locais, o Hoje Macau preocupa-se em dar notícias da China e da Ásia, na medida em que são escassas no mundo de língua portuguesa, e em publicar artigos ou entrevistas cujo conteúdo ultrapassa a mera informação local e procuram, outrossim, estabelecer padrões éticos e políticos de comportamentos, de acordo com a nossa linha editorial, expressa desde o nosso primeiro número.

Por outro lado, criámos a secção h, de artes, letras e ideias, na qual já contribuíram e contribuem escritores, artistas, pensadores e poetas relevantes da Lusofonia, fazendo assim com que o nome de Macau continuamente ressoe nos círculos literários e filosóficos dos PLP. Nesta mesma secção, promovemos ao longo dos anos a tradução sistemática de clássicos da poesia e do pensamento chinês, além de artigos sobre História de Macau e cultura chinesa de uma forma geral.

Como diria Jacques de La Palice, tudo corria bem até começar a correr mal. Desde o início que sabíamos existirem em Hong Kong forças (estrangeiras, de Taiwan ou locais) que cuidavam poder fazer da RAEHK uma plataforma para atacar o Governo Central e o próprio país, ao abrigo da liberdade de expressão garantida pelo princípio “um país, dois sistemas”. Esses ataques foram tomando várias formas e exibindo variados pretextos mas alcançaram um ponto de viragem importante após 2016 e as mudanças operadas no contexto internacional, nomeadamente a postura muito mais agressiva dos Estados Unidos face à China, explanada em diversas campanhas internacionais e as acções de ONG’s patrocinadas pela CIA, o Congresso americano ou seus derivados. Hong Kong era o terreno ideal para lançar sombras sobre as esperadas acções do Governo chinês. Ideias de mais autonomia e até independência começaram a ser veiculadas em vários níveis comunicacionais mas que tinham sempre como alvo preferencial a juventude. Os 1000 (!) funcionários do consulado dos EUA em Hong Kong não ficaram inactivos e de mãos a abanar.

Na óptica chinesa, as garantias e os direitos vigentes no segundo sistema não podiam de modo nenhum ser utilizados para atacar o país ou o seu Governo. Pequim compreendeu a situação e exigiu “patriotismo” aos candidatos a Chefe do Executivo nas eleições de 2017. A rua explodiu, o Governo local estremeceu e as eleições nunca chegaram a acontecer.

O pretexto seguinte foi uma “casca de banana” chamada lei da extradição, na qual o Governo de Hong Kong escorregou sem pensar duas vezes. Pedida pela justiça de Taiwan para obter a extradição de um cidadão de Hong Kong, que alegadamente assassinara uma jovem na Formosa, o Governo entendeu, obviamente, que a lei não podia ignorar também a extradição para o Interior da China. E nestes termos a elaborou. Mal deu entrada no Conselho Legislativo, a rua explodiu. O governo recuou mas parte da rua, parte dos dois milhões que se manifestara contra a lei, recusou voltar para casa e entendeu pedir tudo o que sabia ser impossível de obter.

Contudo, desta vez, as coisas estavam muito mais bem montadas. Nas manifestações surgiam kits especialmente preparados, enveredava-se pela violência, dividia-se a cidade em dois (azuis e amarelos), os principais activistas desdobravam-se em viagens internacionais para obter visibilidade, apoio e sanções contra a RAEHK e o país, portanto, tudo indicava estarmos perante esquemas bem planeados e preparados para manter o caos vivo nas ruas da cidade.

E, durante meses, assim aconteceu. Hong Kong manteve-se paralisada e o seu Governo mostrou-se impotente para resolver o problema. Do lado dos activistas e, sobretudo, dos seus títeres, anunciavam-se tanques e tropas do outro lado da fronteira, rezava-se por uma intervenção militar que reavivasse os fantasmas de Tiananmen. Mas Pequim não mandou tropas, mandou uma lei. Chamou-lhe “de segurança nacional”. E com isto deixou todos com as calças na mão e a caminho do tribunal. Do resto rezará a História, conforme quem a contar.

Poderia Macau passar incólume face aos problemas da ex-colónia britânica? Sabemos que não. Nunca assim foi, desde 1848, data da fundação de Hong Kong, e nunca assim será. Em primeiro lugar, a referida lei de segurança nacional foi dotada de extraterritorialidade, o que significa que pode ser aplicada fora de Hong Kong, isto é, por exemplo, em Macau. Mas, em segundo lugar, a lei é um aspecto da questão e o ano de 2021 foi fértil em mostrar-nos outros aspectos, talvez mais sombrios, quiçá mais preocupantes, que a mera extensão de uma lei, aliás desnecessária na RAEM, quer em termos jurídicos, quer em termos político-sociais.

Antes de mais, teremos de referir os dois acontecimentos que mais ondas levantaram durante este ano: o caso TDM e a exclusão de candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa.
Claramente, o caso TDM, que se refere aos canais em língua portuguesa, está relacionado com a cobertura noticiosa que os canais efectuaram dos conflitos em Hong Kong, bem como do tom empregue em certas notícias claramente contrárias às posições do Governo chinês, que reproduziam a narrativa dos EUA e dos seus aliados sobre questões como Taiwan, Tibete ou o Xinjiang. Sendo a TDM um órgão de comunicação social que pertence, maioritariamente, ao Governo da RAEM, podemos imaginar que tipo de reacções terão existido da parte de um Gabinete de Ligação do Governo Central e de um Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros cada vez mais atentos e bem equipados com pessoal capaz de ler e entender português, ao ver que um canal de televisão de um governo local exprimia posições e opiniões, na sua maioria, contrárias à narrativa nacional.

Ora, se até certa altura o que era publicado em língua portuguesa parecia não afectar as autoridades chinesas, a partir dos eventos de Hong Kong operou-se uma mudança significativa, na medida em que a China considera, provavelmente com razão, que se encontra sob um ataque “frio” do Ocidente e de modo nenhum quer admitir no seu território um espaço que apoie, abrigue ou fomente esse ataque.

Obviamente, a recém-nomeada administração da TDM vinha com a missão de regular o estado do sítio. Não o conseguiu, contudo, fazer sem levantar ondas, de forma pacífica e harmoniosa. Ao sublinhar perante a redacção constituída por jornalistas portugueses que o patriotismo era um valor a respeitar, entre outras afirmações lost in translation, levou a uma série de demissões e rectificações na cadeia de comando da emissora. A administração da TDM pretendia uma linha editorial mais de acordo com as orientações nacionais, sobretudo em temas não relacionados com Macau mas com o país.

Muito então se questionou e berrou que a liberdade de imprensa tinha acabado em Macau, que o segundo sistema já era. O que não é verdade, porque além da TDM, os outros media não foram chamados, não foram avisados, condicionados ou censurados prévia ou posteriormente no sentido de estabelecer esta ou aquela narrativa sobre este ou aquele acontecimento. É certo que são mantidas (e ainda bem) numerosas conversas e contactos com as autoridades, que se esforçam, como em qualquer lugar do mundo, por passar a sua versão dos factos. Cabe aos jornalistas fazer o rastreio final e assim temos feito no nosso jornal sem problemas.

O que de algum modo se estranha é a surpresa que estes eventos causaram nalguns, como se não fosse prática comum dos governos em geral intervir nos media que controlam. Talvez, por inocência ou ignorância, julgassem que Macau é uma terra utópica onde as práticas banais de controlo por parte do poder não existem, que a TDM é uma cooperativa de jornalistas e que o segundo sistema (ou seja, a manutenção, em termos largos, do mesmo regime que existia antes da transferência de soberania) garante uma terra de leite e mel, onde a liberdade jorra abundante das fontes como nunca jorrou em local conhecido do Homem.

Não se lembram, por exemplo, do férreo controlo noticioso nos mesmos canais da TDM durante a vigência da administração portuguesa, que incluiu censura, despedimentos e um total servilismo ao governo, “a bem da nação” e por “patriotismo”. Isto para não falar da censura exercida sobre o canal chinês da mesma empresa. Há muita gente esquecida (ou ignorante) nesta terra…

Mas o que estava para vir não tinha a ver com jornalismo. Era pior e mais preocupante do que os acontecimentos na TDM.

Ora, em Hong Kong, juntamente com a lei de segurança nacional, emergiu no discurso político de forma radical, como resposta a expressões de maior autonomia ou independência, o conceito de “patriotismo”. Portanto, Hong Kong deixa de ser governado “pelas suas gentes” e passa a ser governado pelas suas gentes sim, mas desde que sejam “patriotas”. Neste sentido, foi nomeada uma comissão para avaliar o patriotismo dos candidatos às eleições e excluir os que não satisfaziam os critérios ou tinham um historial criticável para evitar que elementos anti-China ou anti-Governo Central chegassem a lugares de poder, como acontecera nas eleições anteriores.

(É fácil de perceber, por quem se interessa por História, que o conceito de “hai guo” [à letra, amar o país; patriotismo] encontra reverberações na alma chinesa distintas das que se verificam nas suas congéneres ocidentais. Isto porque, além do que as autoridades classificam como “século de humilhação” e que vai da Guerra do Ópio (1848) até à fundação da República Popular em 1949, a China esteve submetida, desde o século XIII, ao domínio mongol e depois manchu, com um breve intervalo de três séculos de dinastia Ming. Durante o “século da humilhação”, o País do Meio, esta civilização de cinco mil anos, viu-se repartido, invadido e espoliado por potências estrangeiras. É por isso muito natural que o conceito de “patriotismo” cale fundo na alma chinesa contemporânea, agora que o país recuperou a sua grandeza e lugar de destaque no contexto global.)

Se em Hong Kong o Governo Central poderá entender que pulula gente anti-patriótica, a soldo de interesses estrangeiros, sustentado por ONG’s duvidosas e com meios para convocar manifestações violentas e garantir excelentes resultados eleitorais, tal caso não se verifica, nem se verificou, em Macau. Nesta cidade, por motivos demográficos, entre outros, existe uma população na qual não se detecta a desconfiança e animosidade contra a China e o Partido Comunista que encontramos em Hong Kong. Nem os membros das chamadas “associações democráticas”, de uma forma geral, jamais tiveram um comportamento anti-patriótico que pusesse em questão, por exemplo, a pertença de Macau à China ou a legitimidade do Partido Comunista.

Talvez tal tenha acontecido mas disso não temos memória. A sua acção, embora pecando por escassa, limitou-se a um útil papel de vigilância de acções governativas que em nada questionaram os valores essenciais da RAEM. Só a realização das vigílias do 4 de Junho e um esporádico, quase ritual, pedido de eleições directas para o Chefe do Executivo (que, aliás, felizmente não vêm consagradas na Lei Básica), marcaram de outro modo as acções dos ditos “democratas”.

Seriam razões suficientes para os excluir das próximas eleições, importando de Hong Kong a “prova de patriotismo”? Não estará Macau a navegar sobre escusadas ondas e a criar uma desnecessária desarmonia? Por outro lado, não estará o círculo de poder na RAEM cada vez mais restrito aos poderosos que logo se apressam a exibir fulgente o seu “patriotismo”, até porque este lhes permite afastar vozes inconvenientes não para os interesses do país ou da população de Macau, mas para os seus próprios interesses.

Esta limitação de candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa leva-nos a pedir o que sempre pedimos às autoridades da RAEM. Não é mais democracia, nem mais liberdade, mas sim mais transparência governativa. É nossa vontade confiar plenamente no Governo e nas autoridades judiciais. Por isso, urgia compreender as razões, os critérios, os pecados, que levaram às exclusões. Para termos todos a certeza de que vivemos no primado da lei.

Entretanto, as coisas são o que são e não outra coisa. O senhor Jacques continua a acompanhar este texto. E neste momento, como há vinte anos, vivemos tempos incertos. A pandemia deixou-nos financeiramente de rastos e não se entrevê uma luz segura no fundo deste túnel. A comunidade portuguesa enfrenta este tempo de pandemia sem uma aberta há quase dois anos para visitar o seu país ou, simplesmente, passar umas férias que não seja na China. O que não pode garantir muita saúde mental.

A verdade é que a saída de jornalistas, pelo seu pé, da TDM e as acções desenvolvidas junto da Assembleia da República em Lisboa, bem como a publicação de artigos de opinião e reportagens nos jornais em Portugal, críticos da situação de Macau, alvoraçaram o ambiente no seio da comunidade portuguesa, provocando intensos debates, questionamentos e até desistências.

Liberdade para frente, direitos para trás, segurança para um lado, bem-estar para o outro, etc. & tal, e mais alguma coisa. Vozes ultrajadas, olhos arregalados de conjuntivite, pularam bravas em defesa da Declaração Conjunta, da Lei Básica, do derrube dos comunistas e, na onda, talvez do governo socialista de António Costa. Sem se preocuparem com o elefante.

Felizmente, tanto o governo português como a Assembleia da República, entenderam que, campanhas internacionais aparte e delírios egóicos esgotados, o problema era outro, precisamente o elefante; o que está no meio desta sala, a quem alguns unicamente sentem a cauda, outros a tromba, sem realmente compreenderem que se trata de um elefante e que importa mantê-lo vivo: a nossa comunidade.

É que, na rugosidade do actual contexto internacional e regional, de modo nenhum, a comunidade portuguesa de Macau poderia ser vista por Pequim como um ponta-de-lança local de interesses estrangeiros. De modo nenhum, a comunidade portuguesa de Macau, com uma presença de 500 anos, poderia ser tomada por “inimiga” e, aos poucos, convidada a procurar outras paragens.

Ora, também para este jornal, a manutenção da comunidade portuguesa em Macau é um dos nossos principais desideratos e responsabilidade (esta sim, patriótica). Neste sentido, entendemos que não nos cabe a nós, comunidade portuguesa de Macau, como nunca coube, por aqui derrubar ou prejudicar dinastias ou regimes. Demo-nos com os Ming, depois com os Qing, a seguir com as duas repúblicas, e aqui continuamos em paz para cooperar e viver neste grande país, independentemente das atribulações políticas nacionais ou internacionais. O nosso objectivo é criar laços, ligar e construir, do modo que for mais conveniente ao desenvolvimento da RAEM, nomeadamente através da divulgação da civilização e da cultura chinesas em língua portuguesa.

É isso que o Hoje Macau, a par com um jornalismo independente e rigoroso, ao serviço da população, aqui faz há vinte anos. E, com a vossa ajuda, se propõe fazer por muitos mais, nesta quinta era do mundo.

3 Set 2021

APOMAC | Duas décadas de serviço exemplar

A Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) fez ontem 20 anos. Foram duas décadas de serviço a gente que seriamente serviu esta cidade de Macau. Graças a esta associação, muitos tiveram garantida uma melhor velhice, um espaço de convívio e acolhimento, cuidados de saúde primários e, sobretudo, palavras de carinho e humanidade.

É, sobretudo, disto que falamos quando nos referimos à APOMAC. Da capacidade de criar um espaço onde todos são bem-vindos, onde podem conviver, ser recebidos como família, fazer parte da vida social de Macau. Ali ninguém se sente a mais, ninguém se sente despojado de interesse. Todos contam, todos têm uma palavra a dizer e essa palavra tem peso, importância, significado.

Bem sabemos como a sociedade actual pode ser cruel para os idosos, para os que deixaram de desempenhar um papel activo, apesar de terem sido eles a contribuir de forma decisiva para o bem-estar dos mais jovens. Estes não fazem ideia do que era o mundo antigo, muitas vezes não querem olhar para trás e, por isso, não são capazes de apreciar como os seus pais e avós tiveram de trabalhar e sofrer para que eles hoje desfrutem de regalias que antes, simplesmente, não existiam.

A APOMAC, durante estes vinte anos da sua existência, foi capaz de criar uma casa e uma família coesa; foi capaz de acolher todos os que dela necessitaram e de os ajudar a enfrentar as agruras de um mundo em transformação demasiado rápida para ser entendido de forma real por muitos dos que o ajudaram a construir.

Por outro lado, a APOMAC assumiu sempre ser uma associação de matriz portuguesa e, nesse sentido, abriu em todas as ocasiões os braços a quem tinha um domínio deficiente ou incompleto da língua chinesa, no sentido de os ajudar a enfrentar este novo Macau e permitir de modo suave e sincero a sua integração.

Importa realçar o papel fundamental que nestes 20 anos tiveram Francisco Manhão e Jorge Fão, dois dos mais importantes obreiros desta associação. Foram horas e mais horas, dias e mais dias, semana após semana, ano após ano, dedicados a esta nobre causa, garantindo os meios financeiros e logísticos para a sua sobrevivência, entregando-se de corpo e alma ao trabalho de manterem viva e activa esta entidade para tantos fundamental. Foram sempre eles que deram a face pela APOMAC, que por ela trabalharam de forma exemplar e empenhada, além de outros que igualmente fazem parte de uma equipa dedicada ao serviço daqueles que serviram a cidade de Macau, em bons e em maus tempos.

Portanto, parabéns! Se vinte anos não parece ser muito tempo, basta olhar para as realizações da APOMAC para perceber que o tempo nem sempre pode ser contado da mesma maneira. Tudo o que foi conseguido parece ter já raízes bem mais profundas, parece quase impossível de entender como foi conseguido em duas meras décadas. Por tudo isto, os nossos mais sinceros e merecidos parabéns!

7 Mai 2021

O amargo fedor do sucesso

O pior que pode acontecer a alguém é ter sucesso. Ser o orgulho dos parentes, reconhecido pelo vulgo, cumprimentado pelos amigos. Experimenta produzir qualquer coisa que agrade aos outros, que te catapulte ainda que por quinze minutos para alguma fama e, mesmo que te faça entrar na carteira algum dinheiro inesperado, verás o sarilho em que inesperadamente te embrulhaste.

E não se trata aqui de lidar mal com a falta de anonimato, que isso é chato, mas na verdade não importa. Nem sequer de sentir a inveja alheia a morder-te os calcanhares, as facas a entrarem nas costas, quando tu, simplesmente, estás a passar a manteiga pelo pão. Não. É muito pior do que isso tudo junto.

O Andy Warhol inventou os tais quinze minutos de fama. Mas ele sabia muito bem no que se estava a meter. Só que não alertou ninguém para o que realmente interessa no assunto. Como bom rato que era, ficou calado e a roer queijo, a ver se esquecia a própria fama entre festas e festinhas.

O primeiro problema é que na nossa sociedade ter sucesso parece ser um objectivo primordial e imprescindível, algo de obrigatório, sem o qual não és ninguém. Mal nascemos e gatinhamos, que nos gritam ao juízo a sua necessidade, a imperiosa precisão. O sucesso é a cenoura que nos impõem para que corramos sem saber muito bem para onde, ainda que nos digam para quê. Sussurram que para o alcançar vale tudo e que se chega lá por quase nada. O sucesso é a justificação em si mesma seja lá do que for, nem que sejam as piores atrocidades. Chega a ser da dor que a outro indiferentes provocamos, sem que isso a nós possa causar qualquer dano. Pode ser de ter vendido a alma por dez réis de mel orgânico, raramente por ter escrito o texto mais belo do mundo. No fundo, o sucesso é o que importa, é a porta sempre querida, não importa se merecida e quase sempre fechada, que a custo entreabrimos.

E para quê? Ah… se soubéssemos o que nos espera além, nunca um passo seria dado, uma corrida encetada, uma finta executada, enfim, nada. Ficaríamos parados, a contar os nossos berlindes nesse saco sem fundo a que chamamos existir. Ou então, simplesmente, descansados, que é hoje tão difícil quão subir um Himalaia. “O menino não é ambicioso. O menino não faz pela vida. O menino não merece o pão que come mas, no entanto, tem fome. Onde é que já se viu?”

Não pode ser. Insistimos em vencer, em ser conhecidos, famosos e, por esses quinze minutos, quase capazes de matar. Se não o outro, a nós mesmos de tanto nos afogarmos nesse mar de tentativas. E repetimos baixinho: é por mim, é por mim… e que se lixe o vizinho.

Truz, truz, truz… bato à porta sem temor. A porta abre e eu entro, entre clamores de uma turba que, à falta de ser real, transporto nesta cabeça, antes que o mundo adoeça e a coisa seja vã. Mas… o que há do outro lado? Tu mesmo e chateado de nada de importante em ti ter realmente mudado. Conseguiste, chegaste lá, enriqueceste ou és conhecido no pequeno charco onde nadas. Mas isso o que significa, quando fechas a porta de casa e mergulhas na solidão com franqueza? O que mudou o sucesso de importante na tua vida? Na verdade, tudo parece agora mais distante: o amor, as amizades, o mundo, as cumplicidades que, num só dia, se esvaem.

Num primeiro momento, quase não dá para acreditar. Não é este o reino que nos fora prometido. Depois advém o vazio e a obrigatoriedade de guardar o que a tanto custo se conquistou. Uma trabalheira infernal e o que em ti era espontâneo passa ser algo fatal, do qual dependes para te manter nesse topo imaginário, nessa torre de cristal na qual és, afinal, prisioneiro.

Mas o pior de tudo é quando olhas o espelho e já não te reconheces. Não sabes quem é aquele, ali semi-reproduzido, nem tens a certeza dos próximos passos a dar. Vês o abismo como caminho. E, acredita, mais que nunca estás sozinho, que o sucesso é feito a sós e as gentes não têm dó quando te virem cair.

É quando um cheiro mau, repugnante, se evola – meio podre, meio a ti – que ao corpo e à mente se cola. Nunca mais te deixará, por mais cara que seja a colónia que agora usas. Não podes voltar atrás, ainda que tudo percas, nisto não há retrocesso. Todos o sentem e conhecem, mas garantem que é perfume. Não é, sabemos bem: é o amargo fedor do sucesso.

11 Mar 2021

Em Macau é diferente

É totalmente absurdo da parte das potências ocidentais julgarem que poderiam utilizar Hong Kong ou Macau como plataformas para atacarem o governo central da China. Contudo, foi a esta tentativa que assistimos nos últimos anos. Não em Macau, onde a lei e o costume não deram azo a tal desiderato, mas com sucesso em Hong Kong, onde uma poderosa campanha anti-China causou a paralisia e o caos na ex-colónia britânica.

As forças separatistas de Taiwan, apoiadas pelos EUA de Donald Trump, conseguiram introduzir em Hong Kong um cavalo de Tróia chamado lei da extradição, a propósito da fuga para a RAEHK de um criminoso comum, fomentando ao mesmo tempo numerosas manifestações contra essa mesma lei, tendo os manifestantes “esquecido” que não fora proposta pelo governo central. Rapidamente essas acções alteraram o seu mote para exigir mais autonomia ou mesmo independência. Apoiadas por uma extensa e bem financiada campanha mediática local e globalmente, as forças anti-China em Hong Kong conseguiram seduzir um elevado número de jovens locais, que se deixaram arrastar durante meses em reivindicações tão irrealistas quão absurdas, impedindo o normal funcionamento da cidade.

Foi, contudo, debalde que tentaram estender o mesmo movimento a Macau. Por aqui não resultaram o mesmo tipo de manobras, nem a cidade conheceu a mesma agitação social. Aparentemente, a população local não se deixou manobrar como os seus compatriotas de Hong Kong pelos interesses estrangeiros que cuidavam fazer das duas regiões plataformas para desestabilizar a RPC e impedir o seu desenvolvimento e abertura.

A partir de certa altura, tornou-se imperativo acabar com a situação em Hong Kong que se tornara insustentável. A RPC fê-lo através da lei de segurança nacional e não, como alguns pareciam desejar, através da força. Agora a implementação do princípio “HK governado por patriotas” surge como constituinte óbvio do “um país, dois sistemas”, pois como poderia existir “um país” num local em que se conspira pela independência e se pretende como ponta de lança no ataque ao governo central? Que outra nação qualquer admitiria isto no seu seio?

Já em Macau este problema não existe, nem nunca existiu. A RAEM implementou a sua lei da segurança nacional sem precisar de Pequim, de acordo com a Lei Básica, e os seus habitantes nunca tiveram quaisquer veleidades separatistas, incluindo os residentes estrangeiros. Em Macau é diferente.

8 Mar 2021

Restaurante Harmonia

(por ocasião do Ano Novo Lunar)

Enquanto em Portugal se desenrolam vários dramas, por Macau caminha-se com pachorra p’ró Ano Novo Lunar. De nenúfar em nenúfar, no pequeno país teme-se pela pancada; no pequeno enclave é que não se teme nada: tudo aqui é passível de uma marcha regular, sem tragédias, nem lamentos: isto é bom de governar.
Com a bênção lá do Céu e as riquezas da Terra, aqui não medram tormentos. Nesta nova utopia, à sombra da grande árvore da pataca, regurgitamos e rimos: não sabemos, não vemos e não ouvimos. Mas, por enquanto, comemos. Eis o menu:

Primeiro prato: o leitão.
Ornado de luzes com um alegre piscar. Iguaria para os olhos, jovens de uniforme rosa não param de desfilar. Seguram sobre as cabeças o bicho sacrificado, a cada um distribuem elegantes um bocado. Depois, é sublime o momento em que os dentes se cravam na crocante pele enquanto, em simultâneo perfeito, afluem às narinas odores de um aipo santo. Uma respiga de picante vermelho conclui o incidente.

Segundo prato: Garoupa ao vapor.
Lascas que se elevam brancas, oferecidas, em cama de ervas claras, de coentros da ribeira, da escura soja a pontilhar. Delírio de suavidade no palato, inflamado pela sombra de gengibre. Rodou o peixe e, quando aqui chegou, restava uma ternura de óleo sobre o arroz alvíssimo. Cheirava a fresco, que delícia…

Terceiro prato: Galinha assada.
Apresente-se a condenada! Tostadinha, crepitante, de cabeça ainda agarrada. Reparta-se agora a ave p’los ilustres comensais: para ali, o peito gordo, a perna, o ovo; as peles para os demais. Não gostais? Mas a pele é nutritiva, tem gordura e bom sabor. Há quem diga que é mesmo a melhor parte, ainda que a rejeite quem parte.

Quarto prato: Sopa de tubarão.

Que delícia de odor se evola daquela panela, onde ossos e barbatanas partilham da mesma cama, do calor, da cozedura. É cálido o caldo fino, desliza pela colher e sinaliza a fartura. Aí vem a minha vez, levo ao lábios a loucura. E, quando, com prudência, engulo a carne do frango, ainda creio na língua fiapos de tubarão, que certamente nadou numa outra direcção.

Quinto prato: Camarões à Sichuão.
Polvilhados de picante, do que faz adormecer, são camarões singulares que fartamente se dão a todos os populares. Fazem beber, é certo, mas a vida não se faz a metro: é à unidade e camarões de Sichuão para todos são, não queremos excepção. Afinal, há que dar comida ao povo e o picante dormente é um achado brilhante. Saia mais uma travessa para aquela mesa do canto até que barriga cante.

Sexto prato: Bacalhau à brava.
Adaptação local do lusitano à Brás. Igual na confusão, na mistura e na falta de rigor, da caótica acepção do ovo com a batata, da cebola que todo o prato engraça, da salsa com a chalaça. À origem, acrescente-se-lhe o “vale tudo”, condimento a ser usado com toda a impunidade, sem pejo e sem poejo. Mexa-se bem, evite-se o sal, pimenta ainda vale, mas deixe de fora o mistério, público ou privado: um prato para comer como se fosse a sério.

Sétimo prato: Arroz frito, massa e sobremesa.
Para quem ainda tiver fome, eis o truque definitivo, a tranca da refeição. Que ninguém diga: ai que fome, meu Senhor! Aqui tem, senhor doutor, o complemento da casa: arroz ali de Cantão, massa e doce de feijão. É comer até fartar. De barriga bem fornida, são suaves os desgostos desta e da outra vida. Tendes queixas da comida? Não digais que estava má. Deve ser da digestão. Recomendamos um chá…

Convém uma explicação. A refeição apresentada foge ao tradicional banquete de catorze pratos. A razão é a contenção necessária em época de crise internacional, para não despertar escusadas invejas em vizinhos e parentes.
Por aqui tudo desliza, com vigor e alegria, à medida do menu do Restaurante Harmonia. Kung Hei Fat Chói!

11 Fev 2021

Girar

Macau pode embandeirar em arco com os elogios de Xi Jinping. Mas a verdade é que há muito trabalho para fazer. E convém não esquecer certas partes do encómio presidencial, nomeadamente as que referem a eterna necessidade de diversificação económica. É que, pés assentes no chão e não a voar nas asas dos elogios, é neste ponto que muito se enraíza a qualidade de vida dos habitantes de Macau.

Daí que certas medidas governamentais me surjam algo incompreensíveis. Nomeadamente, a diminuição do investimento público. E não me refiro a grandiosas obras que, em termos financeiros, retiram dinheiro da economia local. Entendo é que haveria uma necessidade óbvia de apoio às pequenas e médias empresas que, além do Jogo, constituem o tecido económico da cidade e são, afinal, a sua economia real e diversificada.

É claro que é preciso terminar o Hospital da Taipa. Até porque o São Januário abarrota de gente, em tempos de pandemia, e a população precisa de serviços de saúde pública de irrepreensível qualidade. Esse é um investimento incontornável. Mas existem pequenos negócios, pequenas empresas, que precisam de apoios razoáveis.

Repare-se: nas últimas décadas, assistimos a um significativo melhoramento do nível educativo da população. Hoje muito mais gente frequentou o liceu e a universidade, gente que sonha em montar a sua empresa e dela fazer a sua vida. Só que as condições reais para o seu estabelecimento são ainda extremamente difíceis, por causa do elevado preço das rendas e de uma dependência do turismo que, como este ano se viu, nos deixa à mercê da boa ou da má sorte.

Não percebo por isso, keynesianamente, porque razão o governo se prepara para reduzir o seu investimento. Nas crises, para isso serve o governo, por mais liberais que sejam as sociedades e os regimes. E esse não seria dinheiro a fugir pelas fronteiras. Pelo contrário, é reinvestido localmente. Faz girar as coisas. E hoje, mais que nunca, as coisas precisam de girar.

29 Jan 2021

Só respirar é importante

Não sei se algo vos posso dizer que não tenha já sido dito e redito. Ou escrito, ou talvez vomitado em rua escura, por um desses génios das lâmpadas LED que acentuam o negrume de almas chãs.

Vagamundamos, as ditas redes, motores de busca, onde tudo e nada persistem, além deste sabor a cal na boca fria dos meus dedos. A importância das coisas finou-se. Era, afinal, orvalho de madrugadas que o sol não devia ter rompido e exposto as coisas vãs, as farmácias sucessivas. Teríamos ficado em noite eterna, ainda com uma possibilidade (a última?) de alinhavar o pesadelo. Aquele que imagináramos eliminar.
Hoje o mundo arde. Deixa arder.

Visto de relance, não vale nada: não vale o rouxinol que agora se cala para dar lugar ao sol. Faltam-me as nuvens, o céu cobertor, a lua indecisa; sobra o temor de não ser e meramente estar, enquanto algo aqui grita de espanto. Deve ser um disparate, equívoco de formiga, uma idiota briga que transporto até por fim desfalecer, na estação terminal, como se o sono ainda alguma coisa afastasse.

Vou dormir, resmungo. E duvido desta verdade de me ver deitado algures. Queria esquecer, é certo, vaguear por um deserto belo e limpo. “It’s clean”, dizia Lawrence no filme. Mas esse deserto não vive em mim: os crepúsculos trazem a noite, como as auroras trarão as madrugadas. E nada, nada, nos salva da notação. Permanecemos, comemos; eventualmente, faríamos amor, se o amor fosse algo para ser feito e não encontrado num acaso.

Pois. Não é este o caso. E andamos, porque não há outra saída, não há porta sem ser ferida. Sou cego, surdo e tacteio. E só não sou mudo porque as vozes de permeio não acalmam e se a boca não gritasse com certeza explodia. Volta o dia. Outro dia e outro dia, que sem remissão nos perseguem.

Para quê, pergunta a voz malparida, essa infinita voz – doente, obcecada – só lembranças de um passado que teima em não repousar. Já chega, grito p’ra dentro. Mas isso de pouco adianta. Ela persiste, por vezes velha, doutras criança. Ainda um som compulsivo. É a canção que não quero mais ouvir.

Rádio Carlos. Desliga-te. Deixa dormir, deixa-me lá existir mas, por uma vez, sossegado. Para quê tanta fanfarra e tanta loiça partida? É a vida, é o fado, dizes tu e deverás ter razão. Mas se é assim, vale a pena, quando a alma não existe e a rua é tão pequena?

Cheira a verbena, a banana, a açucena. Mas ainda que o cheiro nos encante e por vezes alucine e atrás de uma cortina algo afinal se exponha, para quê meter travões, se na verdade os dedos se apresentam vazios? Não vejo rios ou sufoco de outra margem. Parece vã qualquer coisa que se assemelhe à coragem.

Passa um ribeiro, à porta da minha casa. Em princípio, deslizará até ao mar. É belo o seu deslizar. Os peixes escondem-se, sedentos de água, nas rochas. Chegam as tropas. Roda a girândola no céu, máquina aflita de um universo estrelado. Um joelho no pescoço. Refila o povo que é feito de refilar. Desfila tudo neste entrudo de hoje sem hortelã. Ergue-se crua a manhã, a tarde sépia, a noite, sempre de ti assombrada.

Esta semana morreu um poeta. Ele não vai para lado nenhum. Os poetas morrem todos os dias no meu país. Camilo, Fernando, Herberto. Permanecem insepultos. É esse o destino dos poetas: a vala comum dos dias, a triste morgue das noites. Nem na morte ter alguma utilidade. Eles não se queixam: sabiam que só respirar é importante.

29 Jan 2021

A lentidão do papel

Queria ser lento como o papel mas tudo me ultrapassa. Tudo se esvai, tudo se esgaça. As coisas tendem a desaparecer no digital. Passar como se não tivessem importância, apesar de transportarem os sentimentos mais básicos. Lembro-me de uma carta que nunca cheguei a escrever. Era suposto que ela deslizasse pelo mundo devagar. Que fosse de barco pelos oceanos, que fosse entregue em mão por um carteiro. E gostava da ideia de uma carta te perseguir, meu amigo, ainda que eu não soubesse bem onde realmente estás e qual a tua verdadeira morada — eu escrevi “João em Almada”, como se fosse para mim. Mesmo que a carta nunca te chegasse, talvez te perseguisse, talvez te procurasse e, por um acaso mero, te encontrasse. Aí talvez a lesses e nela ainda reconhecesses o teu amigo, ainda que ferido do muito tempo que a carta demorou para chegar.

Sim, eu gostava desta ideia: da impossibilidade da certeza, da carta que viaja de navio, de avião, de comboio, de carrinha. Talvez a carta nunca te encontre, talvez tudo o que eu escrevi nunca seja lido e a tua vida não mude realmente. Mas, penso eu delicado, talvez o carteiro saiba onde geralmente te deitas e das maleitas que a missiva talvez pudesse evitar.

Podia mandar-te um email – e entredentes o faço – mas preferia a carta lenta, paciente nos transportes, manuscrita verdadeira, sem a versão altaneira que pela net te envio. Isto não passa de um rio onde nunca pela segunda vez me banharei. E assim pretendo ser rei de um reino já esgotado. A carta segue e eu espero, tu talvez esperes, ainda que o faças sentado, distraído, entretido a dobar, para sempre o mesmo novelo. Queres lá tu saber de mim, a não ser no digital e na rede social que tão depressa nos une como o vento nos esquece. Dá para negócios, bem sei. E não tens de me lembrar. Estou aqui a afinar a minha certa fortuna. Existem as apostas, o lance da sorte pedante, impante de ter certezas que se afundam pelas mesas.

Mas existe aquela parte esquecida que o papel dava à vida. A parte táctil, o toque da árvore nos dedos, o deslizar da faca a rasgar o envelope. A folha que ainda pouco se mostra, a caligrafia adivinhada. A tua letra, a minha letra.

“Espero que esta carta te encontre bem de saúde”, dizia-se. Assim começava o discurso. Lento. Pausado. Por vezes apaixonado. Mas com ritmo de mar que avança e se despenha em sucessivas ondas de encontro à falésia. Sem pressas. Seguro de ter o seu lugar, de sempre acabar por abraçar a costa.

A carta que nunca chegou e, por essa simples razão, houve um mundo que mudou. A carta – lida à luz da tocha, do candeeiro hesitante, vela bruxuleante, sol de inverno magoado. A carta que há-de chegar; da espera, na estação férrea, no cais marítimo, no terminal de autocarros. E ela por ali virá, dia há que chegará e nas mãos de alguém brilhará tanto que será dia de lua noiva e não a noite rente da solidão. “Ainda penso em ti, meu amor. Fazes-me falta. E esta guerra que não termina.”

Não terminou nunca. “A política é a guerra por outros meios.” Interminável. Mas o papel cumpre-se como cegamente se cumpre um destino. O papel é lento, sedento de leitura e a caligrafia incerta uma prova de vida torta.

A vida descrita, a tinta azul ou negra, a vida possível de descrever a quem se gosta. A mão já trémula, hesitações. Risco ainda uma palavra mas esse risco é a prova do meu cuidado por ti porque, por vezes, saem ásperas as palavras. E não é isso que eu quero. Quero-te dizer que estou bem, ainda que chore sobre o papel, que penso em ti, que és importante para mim. E a carta leva os meus beijos. Vai lenta, talvez não chegue. Não sei. Algo de mim vai nela e deste lado fico morto, despido nas frases que te escrevi.

O papel viaja lentamente e repete-se. Provavelmente, nunca te encontrará, meu amigo. Agrada-me a ideia de uma carta minha a perseguir-te, a procurar-te pelas cidades, pelos campos, pelos quartéis, já suja de carimbos vários, de mãos generosas de gorduras, do latido irado dos cães do outro lado dos portões. A minha carta é lenta e, provavelmente, nunca às tuas mãos chegará. Mas nela mora ainda a beleza das coisas impossíveis. E todas as crenças digitalmente perdidas.

26 Jan 2021

Os bárbaros chegaram

d’après Kavafis

Há quanto tempo nos quedamos, sentados nos bancos da praça, e esperamos para ver os bárbaros chegar? Eles enviaram os seus guardas avançados, os seus espiões, os seus sofistas, mas nós não acreditámos que algum dia pudessem franquear as portas da nossa cidade, que cuidávamos sagradas.

Por isso, esperar os bárbaros podia até ser um passatempo divertido, como se os bárbaros não existissem ou existissem apenas num outro mundo, chamado América, por exemplo, e desfilassem como histórias de estarrecer nos ecrãs das nossas televisões.

Esperar os bárbaros era um modo de se mostrar contra o sistema que nos permitia estar sentados na praça da cidade e discutir os nossos ornamentos, as fivelas de ouro ou pechisbeque, e vilipendiar os nossos vizinhos, insinuando que algum sangue bárbaro lhes corria nas veias adormecidas pelo álcool dos trabalhos e dos dias.

E ríamos, sem realmente ter vontade de rir. E chorávamos, sem realmente ter vontade de chorar. Porque realmente rir e realmente chorar é ainda fazer alguma coisa e sentir alguma coisa e nós nada fazíamos e nós nada sentíamos, a não ser esperar os bárbaros como se a sua potencial chegada nunca se viesse a resumir em acto e nos servisse apenas como hipótese divertida de considerar.

Por vezes, um bárbaro passava e bradava, mas nós não acreditávamos que ele, na nossa cidade, pudesse erguer a sua tenda e com sucesso vender a sua mercadoria. Assim nos limitámos a esperar os bárbaros, com a certeza íntima de que os bárbaros não chegariam.

Mas os bárbaros foram chegando. Não em hordas como no passado, não em manadas como as vacas do Velho Oeste ou em cáfilas como os comerciantes. Ululavam, é certo, mas faziam-no com as mesmas palavras que nós em tempos idos usáramos e depois esquecêramos de usar.

E daí termos com eles alguma complacência porque acreditávamos que estes bárbaros não nos pretendiam destruir e talvez nos despertassem o sangue adormecido de tanto nos sentarmos na praça à espera deles e nunca mais nos termos dado ao trabalho de nos encontrarmos a nós próprios.

E os bárbaros aos pouco foram ocupando as ruas, as praças, as mentes das gentes simples. E mesmo de outros que, mais finos, rapidamente perceberam que seria melhor converterem-se ao barbarismo pois sempre haviam sonhado ser carrascos de alguém, ainda que esse alguém fosse a sua mãe, o seu primo, o seu vizinho ou mesmo o amor da sua vida.

As mulheres sonhavam que os bárbaros as arrebatassem nos seus cavalos de aço e as transportassem para castelos de pesadelo, mas ainda assim castelos e não as vivendas de tédio que os seus homens haviam construído nos arredores da cidade.

Contudo, na praça, nós, firmemente sentados, ainda esperávamos os bárbaros sem compreendermos que eles já estavam no meio de nós, e discutíamos o que haveríamos de fazer se um dia eles pretendessem invadir-nos a cidade e apoderar-se da praça onde permanecíamos sentados, sem saber como realmente rir ou como realmente chorar.

Era como se precisássemos da ideia dos bárbaros para fingir que podíamos ainda sentir coisas como a indignação ou a vergonha.

Na verdade, não conseguíamos nunca chegar a um consenso ou ter sequer uma ideia comum, entabular em conjunto uma acção. A cada um de nós horrorizava a ideia de podermos concordar com o outro porque, afinal, não éramos bárbaros.

Gritávamos poemas sem que alguém nos ouvisse (isso também não interessava) e assim decretámos a morte da poesia.

Foi então, à saída do cemitério, que os bárbaros se mostraram. Sopraram nas trompas, que a todos ensurdeciam, esgrimiram palavras como punhais, que a todos assustavam. E por todo o lado eles andavam.

Entravam no tédio das nossas vivendas e levavam as nossas mulheres para os seus castelos de pesadelo. Sentavam-se nas esplanadas, que enchiam com a sua música bárbara. Destruíam as nossas arruinadas livrarias, que há muito haviam perdido a força para lhes resistir. Rasgavam as nossas leis, que lhes haviam permitido franquear as portas da nossa cidade. Serviam-se dos aquedutos onde se dessedentavam para depois os sujarem no seu cretino afã de parecerem civilizados.

Percebemos então que os bárbaros há muito haviam deixado de usar as suas roupagens de peles e se vestiam como nós. Sem elegância, é certo, mas com os atavios que inventáramos para nos distinguirmos uns dos outros, como faz a gente civilizada.

E aí compreendemos que o desejo íntimo de todo o bárbaro é parecer civilizado, ainda que para isso se veja obrigado a destruir a civilização que, superior, o irrita e enxovalha.

Não sei se conseguirei fugir a tempo ou serei capaz de reunir forças e bens para o fazer. Ou se terei de me fingir bárbaro para sobreviver.

Ouvi falar em terras distantes onde talvez os bárbaros não tenham chegado, mas onde ainda nada foi construído. Será difícil alcançá-las. Quantos desertos, quantas montanhas, teria agora de atravessar?
Estou velho e cansado para começar tudo de novo. Mas aqui, na minha cidade de sempre, não cederei à barbárie.

Resistirei em silêncio. Uma vez mais fechado, confinado, na minha biblioteca, agora proibida.
Por certo, morrerei no momento em que me baterem à porta. E comigo tudo morrerá.

26 Jan 2021

A nova era por haver

Ao longo destes 21 anos de RAEM, as instruções de Pequim têm sido cruciais para garantir algum desenvolvimento nesta região “governada pelas suas gentes”. Aliás, algo que percebemos é que sem elas a comunidade portuguesa aqui residente teria muito mais dificuldade em encontrar um espaço de subsistência. Lembramo-nos, por exemplo, do ano de 2003, no qual o Governo Central determinou que Macau seria uma ponte para os Países Lusófonos o que, em grande parte, justifica a nossa presença e utilidade enquanto peças desse processo que, infelizmente, ainda não conheceu a desenvoltura desejada, na medida em que tem encontrado escolhos locais que vão do desinteresse à oposição.

O estabelecimento do Fórum Macau tem conhecido altos e baixos. Estes últimos devem-se, sobretudo, à sobranceria de alguns decisores locais e a escolhas menos felizes para a liderança deste processo. Os altos acontecem quando Pequim resolve “puxar algumas orelhas”, como aconteceu por ocasião da visita do primeiro-ministro Li Keqiang, em 2016, 13 anos depois do estabelecimento do Fórum, cujo discurso estabeleceu 19 (!) pontos que faltavam realizar para que Macau atingisse, minimamente, aquele desiderato.

A verdade é que temos de analisar com especial cuidado e atenção as “quatro expectativas” que o Presidente Xi Jinping aqui deixou, quando do seu discurso em Dezembro de 2019, e que, oportunamente, o actual Chefe do Executivo Ho Iat Seng relembrou na sua intervenção de ontem. Contudo, não basta analisar e relembrar: antes de mais, é preciso executar.

Em primeiro lugar, o Presidente sublinhou a necessidade de “melhorar a qualidade da governação”, nomeadamente através da modernização dos processos burocráticos, aproveitando o desenvolvimento das novas tecnologias.

Contudo, Xi chamou especialmente a atenção para que o “estado de direito” seja rigorosamente respeitado como “princípio básico da governação” e que, nesse contexto, os melhoramentos se realizem. Isto é, no nosso entender, que não dêem somente privilégios aos privilegiados e que estes encontrem na lei as fronteiras para a sua acção, descartando a possibilidade de inusitadas benesses só para alguns, em geral os mesmos. É que, como dizia o jovem Carson Fong, na nossa edição de ontem, a maior parte da população tem consciência do que realmente se passa nos bastidores.

Em segundo lugar, Xi Jinping referiu a diversificação económica sustentada, sobretudo, nas relações com o exterior, devendo Macau aproveitar as possibilidades criadas pela iniciativa nacional “Uma Faixa, Uma Rota” para potenciar os negócios locais, quer com os Países Lusófonos quer no contexto da Grande Baía. Ao disponibilizar uma enorme fatia de terra na Ilha da Montanha (Henqin), Pequim pouco mais pode fazer para proporcionar aos investidores e empreendedores de Macau possibilidades competitivas, assim aqui exista suficiente visão e capacidade de aproveitar oportunidades de negócio que ultrapassem o âmbito do Jogo e da especulação imobiliária, as duas áreas que têm satisfeito enormemente as ambições financeiras dos privilegiados locais.

Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, o Presidente recomendou que se coloque em primeiro lugar a população e a melhoria da sua qualidade de vida. Para Xi, “tem de estar muito claro que o objectivo do desenvolvimento é melhorar a vida das pessoas. Assim, a RAEM precisa de adoptar arranjos institucionais mais justos, mais equilibrados e que beneficiem todos, para que os frutos do desenvolvimento possam ser partilhados por toda a comunidade.” Nós não diríamos melhor, mas, durante anos, insistimos neste discurso. Macau, inexplicavelmente devido ao seu extraordinário PIB per capita, apresenta deficiências nas áreas da saúde, educação, trânsito, habitação, meio ambiente, etc. O dinheiro, por muito tempo, não tem sido alocado à melhoria dos sistemas públicos, nomeadamente na área da saúde, mas deslocado para o privado, servindo os interesses de alguns, ao invés de servir o interesse geral. A demora na construção do Hospital da Taipa é o sintoma mais grave deste problema.

Em quarto lugar, Xi Jinping falou da preservação da harmonia social, entendendo que tal objectivo só pode ser conseguido se o Governo escutar a população através de consultas sobre os problemas prementes, que devem ser resolvidos de forma coordenada e não unicamente por decretos desligados da realidade e das aspirações das pessoas. O Presidente não esqueceu o facto de que na RAEM habitam várias comunidades, sublinhando que “sendo um lugar onde as culturas chinesa e ocidental se encontram, Macau está bem posicionado para promover trocas entre pessoas e aprendizagem mútua entre culturas”.

Oiçam o Presidente Xi, é o nosso voto para a governação de Macau. É que se, segundo ele, “nenhuma força externa tem o direito de nos ditar seja o que for”, também os desejos egoístas de alguns, que unicamente pensam em si e nos seus, não devem ter o direito de condicionar o desenvolvimento de Macau e a melhoria da qualidade de vida da generalidade da população.

Aos 21 anos, a RAEM atinge uma outra maioridade. Tal acontece num momento de crise provocado pela pandemia, mas as crises são também momentos de reflexão e de afastamento de percursos menos próprios. Esperamos que o governo de Ho Iat Seng, como foi ontem prometido no discurso, siga as vias traçadas por Xi Jinping e inaugure agora uma nova era de desenvolvimento conjunto que contemple todos e transforme Macau numa região onde seja permitido que o potencial financeiro e humano disponíveis atinja níveis nunca vistos nesta cidade multicultural que muitos exemplos, de desenvolvimento, cultura e tolerância, tem para dar ao país e ao mundo.

21 Dez 2020

Um melhor futuro

A RAEM faz hoje o seu vigésimo primeiro aniversário. 2020 foi um annus horribilis, devido ao aparecimento da pandemia, que paralisou Macau e a sua economia, porque esta cidade muito depende da livre circulação de pessoas.

Por isso, o actual Chefe do Executivo, no seu primeiro ano, teve de se defrontar com este problema, ao invés de colocar em marcha as medidas que indiciariam os propósitos da sua governação.

Também por esta razão, é com alguma expectativa que aguardamos pelo seu discurso de hoje. Todos compreendemos já que estamos perante um Governo que alterou, em muito, o estilo a que o anterior nos habituara.

Por um lado, as mensagens passam muito mais claramente; por outro, mostrou-se decisivo na forma como nos protegeu da pandemia, apesar de tal ter afectado muitos dos interesses instalados e que nos habituáramos a ver sobrepostos ao próprio bem-estar da população.

Macau conheceu nestas duas décadas um brutal crescimento económico. Mas, infelizmente, nem sempre esse movimento foi acompanhado por uma condicente distribuição da riqueza e, sobretudo, por um melhoramento significativo da qualidade de vida da população. A nossa cidade confronta-se com problemas de diversificação económica, habitação, trânsito, saúde, educação, cultura e meio ambiente. Estamos atrasados em relação a muitas outras cidades da República Popular da China, apesar de dispormos de um rendimento per capita muitíssimo superior. Logo, há que concluir que faltou alguma capacidade de liderança e de priorização do que realmente é importante, a saber, o bem-estar da população, sem excepções.

O que não tem faltado a Macau é o apoio incondicional do Governo Central, fundamental para a manutenção da harmonia e da paz social, bem como para o fortalecimento económico da região. Tudo indica que, sob a liderança de Ho Iat Seng, poderá existir um desenvolvimento e aprofundamento do princípio “um país, dois sistemas”, que constitui a base do funcionamento da RAEM, em termos económicos, jurídicos, civis e políticos. Nesta fase, mais importante que as questões eleitorais, que entendemos poderem constituir uma ameaça real para o equilíbrio da RAEM, será a transparência democrática, uma justa distribuição da riqueza comum, o acesso às decisões que, definitivamente, deverão ser tomadas em favor dos interesses da maioria e não somente de alguns, cujo enriquecimento excessivo tem colocado entraves a um real desenvolvimento.

É por isso que aguardamos com alguma expectativa o discurso de Ho Iat Seng, no sentido de nele recolhermos pistas que nos permitam compreender por que via seguirá Macau na próxima década. Ou seja, se realmente estamos perante um virar de página ou se ficaremos mais uma década a marcar passo, enquanto o mundo à nossa volta, nomeadamente o país do qual a RAEM faz parte, parece caminhar decisivamente na direcção de um melhor futuro.

20 Dez 2020

Quarentena (2)

[dropcap]D[/dropcap]escobri pois os meandros da abulia. Eu, que não sou de meditações, de quietismos, de posições indianas. “Um pensamento de nada é um nada de pensamento”, dizia aristotelicamente o meu professor de filosofia. E ria, dentes amarelados, incrustados — “é a lógica da batata!”, rematava. E eu ria também e acreditava como aos 16 anos ainda se acredita em coisas que, à partida, nos parecem que a algum lado hão-de chegar.

Esquecera-se o bom senhor de distinguir entre o nada e o vazio, de estabelecer os dois campos, pois que o nada só na mente se vislumbra, e que para considerar o vazio logo o espaço assome como aquele lugar, extenso e sem nome, que de tudo é suposto ser sustento.

Claro! — Sobra-me o tempo! Este tempo azul da quarentena. É nele que pairo e que sou, qual nuvem bem aviada. Voo sobre as estradas, as cidades, as montanhas, mas deitado em cama alheia e desta vez sem ideia de ficar ou de fugir. A vontade deixou de ter um papel. Estou fechado, trancado, submetido, algemado. Não posso sair para nenhum lado que não seja esse abismo de nada, hiante, escancarado, a rir-se dentro de mim.

“Saltarás, saltarás e por fim te acharás”, zumbe o rifão na cabeça. Não há pressa de ser – o coração bate lento como o de uma lagosta. Tenho o tempo do meu lado (o tempo… o tempo…) e nele desmaio afogado.

Assim passa outra manhã, outra tarde, outra noite, embora tenha corrido as cortinas e invocado a visão que teima em não comparecer à chamada. Afinal, fora sempre assim, não é de agora, da quarentena, da forçada solidão. Bem me dispo para os deuses, mas eles parecem não ter interesse por meu corpo nu e sóbrio. Silêncio neste quarto que é o mundo. Depressão.

Leio então Epicuro e mergulho no jardim. Há, pela noite, de jasmim um puro odor que uma vela exala. Talvez isso me ajude à fantasia de não me encontrar rodeado de artifícios de sala. E que um gineceu aguarda a ponta do meu nariz. Ó eflúvios incessantes! Ó gardénias delirantes de um tango por dançar! E da fonte de água escura brota um som delicado. Sento-me, faço um bordado de pensamentos cruéis. O velho mestre entoa a canção da média luz, da contenção necessária, do corpo que não deseja. Mas o meu corpo boceja de tão graves intenções. Volto-me outra vez na cama, reviro de novo o lençol. Este jardim cheira a formol, a bafio. Sou gentio sem lugar em crença tão assustada. Não! Não me serve esta estrada, este caminho do meio onde as flores são astutas e se afastam quando passo. Ainda assim, eu prefiro vaguear por selva crua e, retalhado de espinhos, colher a fruta madura que num ápice se oferece, sem remorsos e sem preces, ao meu corpo desbocado. E durmo um sono pesado que me permita sonhar. Debalde. Caio num sítio vazio onde o nada me espera e nada desta quimera me alivia enquanto durmo.

Acordo exactamente no mesmo sítio onde me tinha deitado. Que esperavas, animal? Sobrevoar a cidade, ver gente, curtir um pouco, daquela vida tão pouca de que dantes tu fugias?

Sim, compreendo… o quanto falta me faz um sorriso laminar, os bons dias prazenteiros que me dava aquela velha, a mulher do meu porteiro, as discussões sem sentido que não seja discutir, a piada sem humor que me fazia sorrir e mesmo o tédio de estar no meio de uma multidão. Não, não serei feliz sozinho, tenho precisão dos outros, de partilhar o caminho, de um consolo, de um carinho, de um acolhedor regaço.
Caramba, já me desfaço em tantas elucubrações. Batem à porta e, num salto, lá vou abrir apressado. Diz que é hora de jantar, de medir a temperatura. Estendo a testa e balbucio “obrigado”. Felizmente que não medem o grau da minha loucura.

Volto ao jardim apressado, mas…, por mais estranho que seja, tenho o lugar ocupado pelo outro que não deixa de me fazer companhia. “Quem és tu?”, pergunto frio, o cenho bem carregado. “O que fazes no meu quarto, neste jardim tão privado?” O outro pouco refila. Agora creio-me Borges, num labirinto fechado, em conversa com alguém que em mim não acredita. E rio desta desdita de me crer tantos num corpo, decadente e decaído dessa cruz que eu mesmo ergui.

Toca o telefone. É já amanhã o dia, reza uma voz distante. Belisco-me, será verdade? Vai finar-se a quarentena? Vou sair, espernear, e de novo abraçar, e pela relva rolar, e voltar a respirar ar sem ser condicionado. E dou por mim agastado de outro plano não ter que não seja agradecer por ter cumprido este fado.

Pronto, acabou. O elevador transporta-me ao átrio, vejo a luz que pela porta me diz que existe a rua.
Não sei quem de aqui sai. Serei o mesmo? Quantos dos meus cabelos entretanto embranqueceram? Quantos amigos me esperam? Que fazer da liberdade? Voltar ao mesmo que dantes?

O meu filho abraça-me. Contenho lágrimas. “Tudo bem”, sussurro aliviado, “tudo bem…– É o teu pai. Eis-me de volta.”

5 Nov 2020

Quarentena

[dropcap]P[/dropcap]assar por uma quarentena só na aparência significa quedar-se encerrado num quarto sem janelas e contacto físico com o exterior. Uma quarentena é, sobretudo, uma odisseia interior. Esqueçam o espaço, as geografias ignotas. Hoje dou por mim velejador solitário, errante num mar interno, sem bússola ou GPS, ignorante das rotas, sob um apagado céu, que a razão desconhece. Não há final nem destino. Só um tempo circular, lento e espiralado, que se impõe como amigo em tão parca expedição. E, na surpresa dos percursos, quantas ilhas, quantos monstros, quantas deusas, quantos sustos, que desertos, que aldeias, se expõem nesta nave à deriva sem recursos? As horas derretem-se lentamente de encontro às paredes brancas. Moby Dick! — Afasto estas ideias!

Sou eu, mas sou também, mais que nunca, o que me observa e me julga, o que fero me aquilata e questiona as acções. Estas parecem agora longínquas, como se outro as tivesse cometido. Quem era aquele que lá fora, mergulhado na cidade descrente, andava e falava e duvidava? Em que estava ele realmente naquela hora metido? Alguma coisa, ainda que ínfima, terá valido um pouco a pena, nessa vida de cisterna, na razão flutuante, no arremesso pedante? Finalmente, o que sou eu, neste preciso instante, e o que posso fazer? Nada. Sobra viver.

De todos esses momentos, lembro com especial horror a frequência do deserto. E chamo deserto ao estado de abulia, de embrutecimento, de erosão da vontade, em que o pensamento se detém no vazio, em que absurdo pairo neste limitado espaço, sem uma ideia, um desejo, um qualquer objectivo. E sou eu, unicamente eu, na amável dor desta constância. Tudo se ergue na distância, mas tudo me advém, sem ter real importância. Fico pasmado na cama, fito o tecto e talvez além dele e sinto que não passo desse olhar prisioneiro. E é daí, desse limite impotente, que emerge o desespero. Bem tenta a razão acalmar, dizer “são só uns dias”, mas ao assim consolar, entendo que tal falar ainda mais me atordoa. “Falas de mais”, resmungo, “ó verso de poço sem fundo.”

E outras vozes se detêm, em cacofonia de sentidos e exclamações abrasivas. Quem aqui fala?! Quem grita, quem se revolta, quem obedece, quem padece e quem esmola pelo futuro?! E abúlico esqueço, recostado no vazio, nas margens daquele rio que, lá fora, insiste sempre passar. E sonho que sou ribeiro, afluente do mundo, em constante devaneio, direitinho ao mar profundo.

Revejo mentalmente os quadros de Hieronymus Bosch e vejo que me relatam: sou aqueles seres ambulantes ou eles deambulam em mim. Sou as visões do inferno, a obra do padre eterno, a mulher oferecida, uma leitura sem fim. Refaço em sobressalto as notas de uma sonata, os dedos pelo piano, o inquieto violino. E descubro, naquele tom de avidez, que não a ouvira nunca, salvo este acesso de angústia e danada nitidez. E todos os livros que li, versos que sempre amei, histórias que percorri, ideias que partilhei, se apresentam como ecos de um mundo incompreensível. E resta o sentido vago de um sentido impossível.

Procuro oásis diário, onde erguer a minha tenda, clamo pelo rebanho, que se assume refractário, busco sem cessar a água, a mágoa da salvação. Passaram mais duas horas ou assim reza a clepsidra, tão sedenta de atenção. E, mentalmente, reproduzo esse som que não existe. Pingue sem pongue, somente pingues e os intervalos vazios a marcar a sua vez. E é neles que me sustenho e tento recuperar um laivo de lucidez. Sou, por aqui afinal, o portador dessa luz, a chama infatigável de uma vela descartável, que impiedosa se assombra do meu risível engenho. E de novo, na abulia da cruz, só pasmado me detenho.

Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Mas não é esta janela tão irreal como o ecrã por onde deslizo a esmo e nesse passo me encontro dotado a mais de mim mesmo? E não será a loucura esse mero transbordar? Que parte de mim é essa, em espuma pelo chão, que me esqueci de limpar? Acordo e lavo tudo, inundado de pudor. E saio da abulia, no riso de quem a si já não fia e, finalmente, abre a porta que ficara esquecida no fundo de um corredor.

Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Nenhum tufão se compara ao mal que aqui assoma, à desordem embutida num cérebro quase doente e temente da retoma. E, demente, danço o tango, danço o samba e o bolero. Com companheira invisível, marco os passos, afino as voltas e expurgo o desespero. Será hora de jantar? Fica o tempo, a contradança, a resumir a criança que, por instantes, regressa. Não quero. Não tenho pressa. Só uma sede me abrasa, ao longo destas jornadas. Sonho que volto a casa e em leito ínvio me deito, rodeado de camélias e velas amordaçadas.

Um dia, ainda outro, outro dia se acumula. Maldigo a água do rio, que livre se entrega ao mar. E eu, fechado, sou lago em que teimo navegar. Já não dou pelo poente, só tenho olhos pr’á foz, extingue-se aquela voz, o suplício final de um destino amargurado. Telefono para o jornal. “Está lá”, questiono. “Sim. Está cá.” Desligo mais descansado. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula…

29 Out 2020