Filmes do século XXI

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ra impossível isto não aparecer. Uma lista de filmes preferidos do século XXI. Saiu uma semelhante na BBC e esta, pessoal e necessariamente apenas produto da investigação pobre de um curioso, é inspirada nessa. Apresenta-se em ordem alfabética porque valorizar uns sobre outros seria quase impossível.
Estas listas do século XXI introduzem, agora que já não há inocentes, um aviso. O de constatar que já estamos quase em 2017 e que, no meio de tantos filmes muito bons e filmes óptimos, já não há grandes filmes ou já não existe capacidade de espanto.
O artigo que acompanha a lista da BBC argumenta que se vive uma época de ouro do cinema. A ideia nuclear que nele se descobre é a de que existe um número crescente de espectadores exigentes que se não contentam com o ubíquo blockbuster norte-americano. Dá-se (concordo) como exemplo The White Ribbon, de Haneke, um filme de art-house com um público muito vasto – porque é acessível mas também atraente a vários níveis. Outro argumento é o da diversidade de tipos de filmes existente, da animação japonesa ao noir californiano.
Na lista que nesta página se apresenta há uma quantidade vasta de filmes onde se encontram temas e estilos não muito convencionais mas que mantêm um apelo a que será sensível um público alargado. Se The Turin Horse, Goodbye, Dragon Inn ou Instructions for a Light and Sound Machine não entram nesta classificação, Ida, Black Coal, Thin Ice ou The White Ribbon, entre muitos outros, conseguem-no.
Outro argumento que tende a elogiar a riqueza do cinema contemporâneo é o da diversidade da sua origem (concordo). Na lista que se mostra em baixo há autores de mais de 30 países diferentes, do Irão ao Mali, da Argentina à Palestina e à Tailândia (não foi intenção própria). Que estes filmes estejam acessíveis a um mero curioso e não apenas a um profissional que frequente festivais é prova de que a riqueza do cinema contemporâneo (muito ligada ao aparecimento das facilidades técnicas que o digital permite) é cada vez mais acessível.
O que é irritante é que o cinema se pode estar a tornar numa espécie de coisa gira nesta época de coisas giras, produto da Wallpaperização e Monoclização do mundo, um mundo onde tudo é cool e tem design e pequenos cafézinhos como há em Taiwan e em Lisboa, um mundo de tapas, foodies, cocktails de assinatura, craft beer e suecos de barba.

About Elly (Asghar Farhadi, 2009)
Address Unknown (Kim Ki-duk, 2001)
All About Lily Chou-Chou (Shunji Iwai, 2001)
Amores Perros (Alejandro Inarritu, 2000)
Amour Fou (Jessica Hausner, 2014)
A Separation (Asghar Farhadi, 2011)
Aurora (Cristi Puiu, 2010)
Bad Guy (Kim Ki-duk, 2001)
Bamako (Abderrahmane Sissako, 2006)
Black Coal, Thin Ice (Diao Yinan, 2014)
Blind Mountain (Li Yang, 2007)
Blind Shaft (Li Yang, 2003)
Brand Upon the Brain (Guy Maddin, 2006)
Bullhead (Michael Roskam, 2011)
Colossal Youth (Pedro Costa, 2006)
Dark Water (Nakata Hideo, 2002)
Devils on the Doorstep (Jiang Wen, 2000)
Distant (Nuri Bilge Ceylan, 2002)
Dogtooth (Yorgos Lanthimos, 2009)
Downfall (Oliver Hirschbiegel, 2004)
Enter the Void (Gaspar Noé, 2009)
Film Socialism (Godard, 2010)
Force Majeure (Ruben Ostlund, 2014)
4 Months, 3 Weeks and 2 Days (Cristian Mungiu, 2007)
Girlhood (Céline Sciamma, 2014)
Goodbye, Dragon Inn (Tsai Ming-liang, 2003)
Hard to be a God (Alexei German, 2013)
Holy Motors (Leos Carax, 2012)
Hunger (Steve McQueen, 2008)
I Am Love (Luca Guadagnino, 2009)
Ichi the Killer (Takashi Miike, 2001)
Ida (Pawel Pawlikowski, 2013)
In Praise of Love (Godard, 2001)
Instructions for a Light and Sound Machine (Peter Tscherkassky, 2005)
In the Mood for Love (Wong Kar-wai, 2000)
In Vanda’s Room (Pedro Costa, 2000)
Japon (Carlos Reygadas, 2002)
Kinatay (Brillante Mendoza, 2009)
Le Quattro Volte (Michelangelo Frammartino, 2010)
Locke (Steven Knight, 2013)
Lourdes (Jessica Hausner, 2009)
Love and Bruises (Lou Ye, 2011)
Melancholia (Lars von Trier, 2011)
Moonrak Transistor (Pen-Ek Ratanaruang, 2001)
Mother (Bong Joon-ho, 2009)
Mullholland Drive (David Lynch, 2001)
My Winnipeg (Guy Maddin, 2007)
Neighboring Sounds (Kleber Mendonça Filho, 2012)
Nymphomaniac (Lars von Trier, 2013)
Offside (Jafar Panahi, 2006)
Old Boy (Park Chan-wook, 2003)
Omar (Hani Abu-Assad, 2013)
1001 Nights (Miguel Gomes, 2015)
Pieta (Kim Ki-duk, 2012)
Pistol Opera (Seijun Suzuki, 2001)
Princess Raccoon (Seijun Suzuki, 2005)
Shirley Visions of Reality (Gustav Deutsch, 2013)
Skeletons (Nick Whitfield, 2010)
Still Life (Jia Zhangke, 2006)
Syndromes and a Century (Apichatpong Weerasethakul, 2006)
Swirl (Clarissa Campolina and Helvécio Marins Jr., 2011)
Tabu (Miguel Gomes, 2012)
The Act of Killing (Joshua Oppenheimer, 2012)
The Assassin (Hou Hsiao-hsien, 2015)
The Buffalo Boy (Minh Nguyen-Vo, 2004)
The City of God (Fernando Meirelles, 2002)
The Forbidden Room (Guy Maddin, 2015)
The Great Beauty (Paolo Sorrentino, 2013)
The Great Ecstasy of Robert Carmichael (Thomas Clay, 2005)
The Headless Woman (Lucrécia Martel, 2008)
The Lives of Others (Florian Henckel von Donnersmark, 2006)
The Return (Andrey Zvyagintsev, 2003)
The Strange Case of Angelica (Manoel de Oliveira, 2010)
The Turin Horse (Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, 2011)
The Wayward Cloud (Tsai Ming-liang, 2005)
The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)
Thirst (Park Chan-wook, 2009)
13 Assassins (Takashi Miike, 2010)
3-Iron (Kim Ki-duk, 2004)
Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (Apichatpong Weerasethakul, 2010)
Unknown Pleasures (Jia Zhangke, 2002)
Untold Scandal (E J-yong, 2003)
Venus in Fur (Roman Polanski, 2013)
Vera Drake (Mike Leigh, 2004)
Victoria (Sebastian Schipper, 2016)
Winter Sleep (Nuri Bilge Ceylan, 2014)
You Ain’t Seen Nothin’ Yet (Alain Resnais, 2012)

20 Set 2016

A propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927, Walter Ruttmann

Crise, Assassinato, Bolsa, Casamento, Dinheiro, Dinheiro, Dinheiro . . .

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s capítulos que Georges Sadoul dedica, no seu livro Histoire du Cinéma Mondial, ao cinema mudo, lembram como esta arte se implantou com uma velocidade prodigiosa um pouco por todo o mundo assim que se ultrapassaram alguns problemas técnicos.
De algum modo, que não consigo definir, penso que o cinema mudo ganhou, nos dias de hoje, uma nova actualidade. A facilidade com que na era da tecnologia digital se produzem imagens reproduz uma inocência próxima à que envolve o cinema mudo.
O à-vontade no tratamento e na recepção da imagem vem igualmente integrar de uma maneira mais natural a produção antiga de imagens no mundo de hoje. O seu aspecto e a sua gramática parecem fazer mais sentido hoje do que em alturas da história do cinema em que a maioria da sua produção seguia modelos demasiado comerciais e, sobretudo, demasiado semelhantes na sua sintaxe e nos seus desígnios.
O digital veio igualmente libertar um pouco a produção da imagem (cinematográfica também) de uma obrigação lucrativa.
Tendo-se, afortunadamente, desenvolvido no início do século XX, o cinema pôde aproveitar outras energias que lhe eram exteriores e que à altura mostravam grande fulgor. O cinema, a pintura, a escultura, a fotografia, a música e o bailado andaram, nessa época de grande excitação estética, muito mais ligados do que andam hoje*. Assim, paralelamente ao cinema narrativo, permaneceu durante vários anos uma linha mais ligada àquilo que podemos chamar a avant-garde e o cinéma pur. A diferença para hoje é que o cinema avant-garde dos anos 10, 20 e 30 parece natural e perfeitamente integrado na estética da época. Seria fastidioso estar a listar nomes mas será útil lembrar que este cinema tem origem em vários países, Alemanha, França, Itália, Rússia (e U.R.S.S.), E.U.A. ou Japão, para lá de exemplos mais isolados em outros países.**
Há, nos anos 20, uma força dentro do cinema no sentido de o libertar do jugo da literatura e do teatro criando, ao invés, uma linguagem absoluta internacional para si próprio, um programa que se publicita abertamente num filme de que aqui se falará: Man with a Movie Camera, 1929, de Dziga Vertov – um filme sem guião, actores ou cenários, como no início se afirma inequivocamente. Walter Ruttmann juntou uma série de pontos programáticos semelhantes para a apresentação do seu filme de Berlim. Mas, como todos hoje sabemos, o cinema comum, ao tornar-se uma actividade para as massas, não se libertou nunca da literatura.
Mas tudo isto vem a propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt/Berlin – Symphonie of a Big City, 1927, de Walter Ruttmann, um elogio futurista (uma Ode) a Berlim e à ideia da grande cidade, assunto dilecto das elites vanguardistas da época.
Um amante desta mais extraordinária das criações humanas, a grande cidade, não pode deixar de integrar este filme no seu complexo admirativo.
Lembre-se e releia-se a – muito mais agressiva, muito mais diversificada nas imagens e muito mais sexual – Ode Triunfal de Pessoa/Álvaro de Campos, anterior cerca de 15 anos. Por vezes o filme alemão parece ser uma ilustração do poema de Pessoa.
O documentário foi desde cedo apontado como um dos géneros (para lá do Cinema Absoluto ou Puro) próprios à modernidade do cinema. Die Sinfonie…, estreado no mesmo ano de Metropolis, é um documentário, fácil de seguir se pensarmos que Ruttmann, que era inicialmente pintor e gráfico, se dedicara anteriormente ao filme abstracto (ver os seus pequenos Lichtspiel).
Ao longo dos seus 5 andamentos, é-nos mostrado um dia na vida da grande metrópole sob a perspectiva do elogio da modernidade e das possibilidades promovidas pelas novas tecnologias (filmado ao longo de 1 ano e montado para fingir 1 dia).
Exibe-se o gosto pelo movimento e pela velocidade. Neste conjunto de afirmações os transportes públicos (como acontece insistentemente na Ode… de Pessoa) têm um lugar de destaque – como meio de transporte das massas e como elogio à beleza da máquina e da velocidade – comboios (imensos, locais, nacionais e internacionais) táxis, autocarros, aviões (já a Lufthansa) eléctricos (como ainda hoje), metropolitano, alguns carros particulares. É uma imagética que encontramos em outros filmes da época com programa semelhante.
O espectáculo do movimento, objecto do cinema abstracto e do cinema de animação, não é aqui muito diferente.
Continua-se com a fábrica, a máquina e a sedução económica mas também estética das possibilidades ilimitadas da montagem em série, a reprodução infindável do produto que permite uma abundância que se acreditava vir a ser generalizada. No Acto II, a actividade frenética das primeiras horas da vida da cidade, a foule, as massas, a abertura dos estabelecimentos, etc. …hé-lá-hô la foule!
Berlim, como sabemos, é uma cidade de muitas faces. A guerra e a divisão em duas partes obrigou-a a permanecer num estado peculiar. Não transmite hoje – mesmo que seja uma cidade vibrante e bela a muitos níveis – o vigor do tipo de cidades que este filme, Metropolis, ou até o conhecido filme de Vertov, Man with a Movie Camera, prometiam. Isso vê-se hoje em Tóquio, Hong Kong ou Nova Iorque.
Man with a Movie Camera segue uma ideia muito parecida, mostrando o acordar da cidade e a sua agitação dando especial atenção à montagem e ao ritmo. No entanto, no filme soviético (filmado ao longo de 3 anos e montado para parecer 1 dia), são várias as cidades que se mostram, permanecendo o sentido de exaltação da vida urbana em geral.
São muitos os tipos sociais mostrados no filme alemão. Há muitos pobres e uma afirmação sólida de que a cidade é insaciável no seu desejo de juntar riqueza e que não se deterá em tentar os seus objectivos seja por que meios for. A parte que corresponde ao período da tarde (depois de uma hora de almoço despreocupada e quase lânguida) é de uma velocidade frenética, favorecida pelas técnicas de montagem em moda na altura, para, mais para o fim, abrandar de novo ao mostrar o lazer do fim de tarde (o desporto, especialmente as corridas)***. Peço de novo ao leitor que leia a ode de Pessoa/Campos em conjunto com esta sinfonia. Os pontos de contacto são, na verdade, inúmeros.
O último acto, o V, é dedicado ao lazer nocturno. Não vale a pena estar a adiantar uma descrição. Recorde-se apenas que este é um filme que mostra a cidade como ela é e não uma visão de uma cidade do futuro (como Metropolis). Antes a exibição de um orgulho e uma satisfação pela pertença a uma modernidade que Berlim demonstrava.
Por muito que se mostre como um filme de exaltação das energias da grande cidade (que Berlim nesta altura era) este prende-se muito com as pessoas que a povoam, descendo ao nível da rua e tornando-se muito físico e bondoso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Manhatta, 1921, de Paul Strand e Charles Sheeler, um dos mais antigos filmes sobre uma cidade. Nem todos concordam com esta afirmação.

Existe um filme de 2002, de Thomas Schadt, chamado Berlin. Sinfonie einer Grosstadt. Como o próprio nome indica é uma versão moderna do filme de Ruttmann. Deve ver-se. É inquietante, vagamente disfórico – o futuro do Futurismo já passou. Enquanto a demonstração da montagem em série, no filme de 1927, parece moderna, no de 2002 é sinistra, como se tudo – até os produtos de pastelaria – não passasse de uma conspiração. Cria uma desconfiança em relação à Bola de Berlim.
Foi filmado antes de Berlim se tornar numa cidade da moda, artística, gira e turística, durante os anos um pouco cinzentos de Gerhard Schröder.
Também se passa durante um dia, o que faz lembrar um outro filme muito recente (não documentário) de que já aqui se falou, Victoria, de Sebastian Schipper, cuja acção se passa em Berlim durante uma noite (filmado em apenas um take de 138 minutos).
(Finalmente. Lembre-se a existência um filme brasileiro não há muito tempo referido nesta página mas que eu nunca vi: São Paulo, A Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, fortemente inspirado no de Ruttmann).

* com excepção do período do mudo, o cinema nunca andou muito próximo da dança. Hoje em dia, tirando uns exemplos alemães, o desinteresse por esta arte continua. Um artigo de Robert Gottlieb, no primeiro número da N.Y.R.B. de 2016, chamado Dancing in the Dark, chama a atenção para o modo como a dança tem sido (mal) tratada pelo cinema e pela literatura. A única excepção que Gottlieb consegue apontar é o paradigmático Red Shoes, de Powell e Pressburger.

** os admiradores do cinema japonês não devem deixar de ver o tenebroso e inquietante Kurutta Ippeji/A Page of Madness, 1926, de Teinosuke Kinugasa, passado numa instituição para doentes mentais. Mesmo que não mantenha ao longo de tudo a história uma imagem ousada tem-nas suficientes para justificar um interesse enquanto filme de vanguarda. Jujiro/Crossroads, de 1928, tem algum interesse, deste ponto de vista, mas limitado a alguns planos.
Kinugasa é o realizador do conhecido Jigokumon/The Gate of Hell, de 1954.

*** Rien que les Heures, 1926, do realizador brasileiro Alberto Cavalcanti, é um documentário que se centra na exibição do quotidiano das classes desfavorecidas, interessante do ponto de vista de alguma imagética vanguardista. Tem a mesma estrutura na apresentação de um dia na cidade, neste caso Paris. Mais tarde, Cavalcanti, que foi colaborador de L’Herbier, viria a trabalhar com Ruttmann em Berlin – Die Sinfonie der Großstadt.

28 Jun 2016

A propósito de cinco realizadores

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m pouco em jeito de conclusão acho que Pasolini, Fassbinder e Bergman me bastavam. Juntando-se-lhes duas sensibilidades distantes geograficamente a este centro necessariamente europeu, Ray e Imamura. Em todos caberia o suficiente, a música e a poesia, a velocidade e o estrondo, a bondade e o corpo, um olhar distante e uma cítara e a dança.
Todos me parecem autores que não guardariam um segredo se algum valor mais alto se levantasse. Esta gente, sim, é a minha pátria de pederastas e curas, cantoras e ladrões, mães corajosas e soldados, a Capadócia, Munique, Fårö, Calcutá, Aomori.
Há num filme de Bergman duas pessoas vítimas de uma guerra civil que chega ao que eu penso ser a ilha de Fårö, a ilha onde o autor viveu grande parte da sua vida e cuja conotação bergmaniana continua a atrair forasteiros inclinados à sua memória e à meditação.
Não é dos seus filmes mais conhecidos mas é daqueles que deixam uma marca subtil mas indelével. É um filme, como o da hora do lobo, que contém cenas que usamos constantemente como termo de comparação. Por vezes acontece algo e nós pensamos que é como num filme de Bergman (por exemplo) mesmo que não o consigamos identificar. Neste é a instabilidade dos dois membros do casal, o medo mal escondido de participar na guerra, um comprazimento na incompreensão e no conflito ou apenas o patinar das rodas de um velho Volvo numa estrada lamacenta.
Quem quiser perceber até que ponto a análise e a exposição dos conflitos sociais é interior ao mundo de Bergman pode ler Laterna Magica, o livro em que Bergman expõe uma longa lista de situações conflituosas com membros da família, mulheres a que se associou, amigos e relacionamentos profissionais. Mas não é obrigatório. Começa bem, com a possibilidade do pequeno Ingmar morrer de malnutrição, como se logo de início houvesse alguém a quem fosse imperioso atribuir culpa. Álcool e silêncios, os mesmos silêncios dos seus filmes, pardos, indecisos e um pouco antes de haver mistério. Nos seus filmes realistas uma das suas qualidades reside em se deter antes do mistério.
Será tudo isto demasiadamente centrado nas suas obsessões pessoais? Sim, mas é esta fúria individualista que está na base da energia, da violência e da imensa nostalgia e sentido de desilusão que percorre o seu cinema e o torna belo.
Este é um filme realista. Outros serão menos. Mas em todos a emoção estética é intensa porque em todos os registos aquilo que Bergman filma – quase sempre bem mas nem sempre – são partes de nós em cuja existência não queremos acreditar ou não queremos lembrar. Fassbinder faz o mesmo mas do realizador alemão já aqui se falou muitas vezes, insistindo-se na sua urgência e na sinceridade da exposição.
Eu acho que os filmes de Bergman vão envelhecer mais depressa que os de Fassbinder. Isto é, vão continuar a ser admirados mas como objectos um pouco datados. A violência directa dos diálogos de Fassbinder não vai deixar que isso aconteça tão depressa. Além disso, há muitos bocados de filmes do autor alemão que vão continuar a desagradar a muitos, enquanto que os de Bergman continuarão a ser recebidos com boa vontade, cada vez mais, com condescendência.
Este é o meu corpo, este é o meu sangue. Se o cinema tivesse sido inventado muito antes seria provavelmente como o de Pasolini, apaixonado, com sentido do espectáculo, tocado pelo espírito santo ou outro pneuma de outro mundo. Este é o cinema que une os pobres ao céu, um que não se fará nunca mais, generoso como nenhum outro. Não há plano nenhum que Pasolini não tenha concebido como uma dádiva – pescador de homens. Fassbinder e Pasolini gostariam certamente de saber que os esperavam mortes com efeitos cinematográficos.
Lembrei-me que todos estes realizadores acompanharam a sua carreira no cinema com outras actividades, Bergman e Fassbinder muito ligados ao teatro, Pasolini à poesia, à prosa e ao teatro também, Ray (nascido numa família com ligações às artes) à música e também à escrita e à caligrafia. Imamura dedicou, na sua juventude, energias ao teatro e à actividade política mas parece-me que mais para o fim se inclinou para a vida boa dos copos e do convívio com os amigos. O melhor filme autobiográfico de Imamura não foi ele que fez. Foi, sem o saber, Paulo Rocha. Nele, o velho japonês parece pouco interessado no interesse que Rocha e o mundo lhe dedicou e não terá percebido o que viam nele. Talvez por esta razão estes autores parecem estar um pouco para lá do cinema.
Este um pormenor muito amusant. Imamura parece não ter percebido, de início, que os retratos tribalistas do Japão que compôs têm um forte apelo universal. Daí o seu agora famoso espanto. A sabedoria de Imamura consiste em mostrar o modo como o ser comum se insere na sociedade e na grande complexidade do mundo. As suas figuras são sempre o ser das camadas baixas e, muitas vezes, o retrato é o da personagem marginal e criminosa. Imperfeitos sobreviventes.
Todos estes realizadores, com a excepção de Pasolini, assassinado aos 53 anos com 12 filmes realizados, têm obras consideráveis, Ray e Fassbinder quase 40 filmes, Bergman perto de 50, Imamura mais de 20. São obras consideráveis, sólidas, consistentes, com poucos momentos baixos.
Conhecer a obra de Ray é um privilégio elevado, a sua poética dos injustiçados difícil de igualar. Não me parece que seja possível fazer uma ideia do que é a riqueza do cinema sem pensar na sua contribuição. Ainda hoje Pather Panchali, seu primeiro filme, parece um milagre. Tal como Imamura, Ray mostra o lugar que ocupamos no grande estado das coisas e essa é uma contribuição de que poucos conseguem igualar.
Eu sei que há muitos realizadores que faltam aqui, Godard, Resnais, Oliveira, Murnau, Buñuel, os russos, uns iranianos, Kurosawa, Dreyer, Fellini, Rossellini, etc., mas estes cinco constituem pilares suficientemente sólidos para fingir que se percebe o mundo e para se desejar o céu.

21 Jun 2016

As Mil e Uma Noites, Miguel Gomes, 2015

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início do primeiro dos três filmes constituintes de As Mil e Uma Noites o autor, augusto, quase austero mas também com um sorriso sacana fininho no canto dos lábios, levanta-se da cadeira onde se encontra, num café, dá uns passos tímidos e, de repente, foge. Pois não. Qualquer um faria o mesmo que Miguel Gomes se se visse confrontado com semelhante desafio. Tentar fazer um bonito filme (as palavras são do próprio, não há aqui nada de inventado) e ao mesmo tempo acompanhar a situação de Portugal durante um ano de obrigação de um regime de extrema austeridade em que quase todos os portugueses empobreceram, não é tarefa que se inveje. Como poderá o maravilhoso e o belo fazer justiça às injustiças e às imposições que os filmes relatam ?
Contar umas histórias e não outras, tratá-las com afecto mas sem esquecer a solidez metálica necessária à crítica e à melancolia, juntar muitas figuras lembrando que a realidade é mais estranha que a ficção e que esta é indispensável ao cinema para que este possa continuar a surpreender, a irritar e a maravilhar como se fosse um conto oriental não é tarefa para qualquer um.
O que é certo é que se o Miguel se tivesse deixado seduzir mais pelas sagas nórdicas ou pelo Beowulf, pelo Decameron ou pelos Contos de Cantuária, mesmo com a carga de problemas que se propôs mostrar, o seu filme seria muito menos solar. O filme será mais inquieto, desolado ou encantado? É os três. A responsabilidade de juntar tudo isto dá, realmente, vontade de fugir.

Não sei se pensou nisso mas ele que fique a saber que os seus contos são encantadores, pela sua sinceridade e por não se saber muito bem onde é que ele nos levará a seguir (como acontece com Tabu) e pela sua recusa em ser apenas amargo durante 6 horas. Provavelmente Miguel Gomes não sabia muito bem em que direcção seguia, mas isso nunca foi impedimento para que se alcance o encanto.
Não esqueçamos que o primeiro dos filmes, O Inquieto, começa com uma demonstração de maravilhamento perante a dimensão de um estaleiro. Começa-se pelo espanto. A figura que o demonstra afirma, com humildade, que nunca pensara que tivesse tanto para aprender. Todos aprendemos aqui, o realizador, os seus colaboradores e nós.
Não esqueçamos igualmente que seguinte à história dos comerciantes e dos governantes cheios de tesão, onde a Senhora Ministra das Finanças pouco mais pode fazer que exibir um rubor pouco convincente, se apresenta uma outra verdadeira em que se julga o comportamento de um galo que canta a desoras – o primeiro episódio num setting de luxo meridional understated, na zona de Cascais, e o segundo num rural interior com bombeiros, fogos postos e GNR’s – Resende, Distrito de Viseu.
Tudo isto já se passa no enquadramento das histórias que Xerazade conta ao Rei para que este não a mande matar e a diversidade dos lugares onde as histórias se passam (onde elas se passam e o que elas evocam segundo a nossa experiência) será uma constante ao longo dos contos das noites.
Ia-se rir . . . porque não há ninguém que creia numa coisa destas – afirma uma das personagens do episódio do galo. . . . foi ali a vizinha do lado que mandou o galo para tribunal. Felizmente que há um juiz (o primeiro de dois) que ainda percebe a fala dos animais, o que permite que o galo se defenda. Não é apenas o português e o galês (língua dos galos) que é falada nestes filmes, e a diversidade dos lugares e da luz é acompanhada pela diversidade das línguas onde apenas uma vez – no episódio dos tesudos em que os portugueses confrontam os responsáveis europeus pela imposição do regime de austeridade – existe necessidade de tradução. Neles encontramos também o francês, linguagem gestual, o inglês, o alemão, o mandarim por 3 vezes, uma estranha língua escrita das mensagens de telefone móvel e até, no segundo filme, o silêncio de um refinado filho da puta em fuga da GNR (outra vez) em cujo episódio não falta uma cena paradisíaca bastante desarabizada mas ainda assim muito pasoliniana, com belas mulheres jovens nuas e um assado acompanhado de vinho.
Este episódio não culpa directamente ninguém mas no seguinte, o da Juíza, todos parecem ter sido destinados pela necessidade a serem culpados de alguma coisa – um dos episódios mais humorísticos (e não posso deixar de pensar que este é um registo que dificilmente se traduzirá com sucesso para outras línguas) e que não nos prepara para o que encerra o segundo filme, o chamado Os Donos de Dixie, muito suburbano, em total contraste com o lugar do julgamento e os montes agrestes onde se esconde o já referido sacana, de seu nome Simão “Sem Tripas”.
Não sei porque razão mas, como acontece em Tabu, tudo isto me parece imensamente moderno e inventivo mas, ironicamente, não estava à espera de outra coisa.
Sai-se de As Mil e Uma Noites e de Tabu a pensar que nunca se viu nada assim. Junta-se o mais hippie de todos os quadros, o do início de O Encantado, o terceiro filme, em que Xerazade quer viver verdadeiramente, fora dos limites do palácio, com o dos passarinheiros habitantes do antigo bairro da Musgueira em Lisboa num registo comum aos dois e que parece natural. Neste quadro, assim como em Os Donos de Dixie, Miguel Gomes mostra uma capacidade que distingue igualmente Pedro Costa e que me parece perder-se na estilização do seu último filme, Cavalo Dinheiro – a de transformar a banalidade numa cerimónia quase operática, uma coisa que Manoel de Oliveira sabia fazer e que César Monteiro não fez porque não quis.

31 Mai 2016

O Limite, Mário Peixoto

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e eu vir o António Mega Ferreira na rua, o que é muito improvável, vou direito a ele e agradeço-lhe ter-me despertado a curiosidade para ler dois autores: Clarice Lispector e Sebald, autores acerca de quem li duas crónicas suas. O caso do Sebald é sério, muito sério, porque provocou em mim reacções transformadoras e um gosto pela deambulação (e pela discussão que em torno dela se gera) que ganhara através de Chatwin mas que apenas com Sebald se aperfeiçoou. O caso de Clarice é pessoal porque ler a sua prosa implica aceitar que ela nos julgue. Ou até zangarmo-nos um pouco com ela devido ao seu atrevimento.
Não vale a pena estar a inventar mistérios. Se Limite, de Mário Peixoto, me faz lembrar a prosa de Clarice Lispector é porque em ambos há algo que está ali mesmo ao pé mas depois nos escapa. Quando parece que estamos a descobrir o que é há um movimento lateral que o impede. Lê-se num dos seus romances: (…) Mas se com a aproximação a casa ganhara em nitidez, perdera a síntese anterior da distância. É esta distorção de perspectivas que me atrai aos lugares (especialmente aos lugares e daí o gosto por um romance como A Maçã no Escuro) e a algumas das figuras dos seus livros. Em Limite esta distorção também se dá porque esperamos algo diferente do cinema.
Ou então porque há uma irritação escaldante por baixo de tudo, por baixo dos pés e por baixo das mesas, que depois não se manifesta. Aprende-se a lidar com esta gente mas uma pessoa como Lispector, que percebe as galinhas (é ela própria que o diz) não se pode dar a perceber muito bem.
É a ignorância que obriga a fazer este tipo de associação entre estes livros e este filme. A fuga de Martim, em A Maçã no Escuro, será sempre pelas mesmas estradas do filme de Mário Peixoto em que uma mulher fugiu da prisão e um homem caminha para um destino que, felizmente, não é revelado (Limite, que tem uma duração de quase duas horas, tem apenas três intertítulos).
É difícil livrarmo-nos desta opressão, a do estabelecimento indelével de um tipo de imagem, semelhante à que me obriga a imaginar a casa de Clarisse e Walter (na Áustria) em O Homem sem Qualidades, como sendo a de Marie Krøyer do filme de Bille August com o mesmo nome. Esta mecânica é ditactorial e pensar nela leva a lembrar que cada um construirá uma imagem diferente a partir daquilo que lê, ao contrário do que se vê no cinema ou no teatro, que é mais comum a todos. É um pouco como sentirmo-nos cúmplices de uma fraude. A minha Lispector é muito diferente da tua mas o meu Limite tem obrigatoriamente muitas semelhanças com o teu. Toma.
E já agora acrescento que o livro de Lispector que se refere em cima, que começa com uma longa caminhada de um homem que cometeu ou pensa que cometeu um crime tem semelhanças muito estranhas com um dos poucos filmes transformacionais que vi ultimamente – Japón, de Carlos Reygadas.
Para quem nunca esteve no centro do Brasil e não é ornitólogo (de profissão ou por amor) um pequeno pássaro do centro do Brasil poderá muito bem ser um que lá não existe, um blue tit ou um rouxinol. Mas será sempre uma forte impressão visual. Como explica Colm Tóibín num artigo sobre Lispector (NYRB, Volume LXII n. 20), esta, por vezes, na sua abstracção, parece ter mais pontos de contacto com artistas plásticos da sua época, como Lígia Clark ou Hélio Oiticica, do que com outros autores de prosa.
Limite, de Mário Peixoto, tem uma imagética semelhante à construção que eu faço dos livros de Lispector. É um filme mudo de inícios dos anos 30 que tem um lugar especial na história do cinema brasileiro. É particular pela combinação de planos ousados – uma espécie de pequena colecção do que se fizera nos anos 20 na Europa – com uma atmosfera onírica que encontramos em muitos outros filmes mudos, e que se perdeu à medida que a ditadura do cinema narrativo de decifração fácil passou a ter cada vez mais importância.
A recusa de uma linha narrativa clara, comum a muito do cinema mudo (e não apenas do cinema avant-garde) origina, hoje, uma re-avaliação do cinema antigo como particularmente moderno, mais próximo da música e das artes plásticas. Já aqui se tinha feito referência a este encontro de estéticas a propósito da imensa possibilidade que se abriu com o uso do digital e com a facilidade de filmar e montar. É finalmente chegado (ou recuperado) o tempo de experimentar ao lado do cinema narrativo que, com 100 anos de insistência, se revela tantas vezes repetitivo e falho de imaginação – ao mesmo tempo que indisponibiliza o espectador para uma experiência livre dos constrangimentos da simplicidade da narrativa linear.
Limite parte de um grupo de três pessoas, duas mulheres e um homem mostrados à deriva num pequeno barco, e constrói vários quadros em analepse em género de lamento sobre a futilidade e a fugacidade da vida. Filmado em 1930, exibido em Maio de 1931, mostra um conhecimento do cinema europeu da década de 20 (Man Ray, Vertov, Dozhvenko, Murnau) por parte de Peixoto e provavelmente com um contributo importante do seu cameraman, de origem alemã, Edgar Brazil.
Esta informação não desvaloriza de modo nenhum o filme de Mário Peixoto, que mostra um atrevimento singular ao mostrar histórias aparentemente banais e desinteressantes, passadas num lugarejo obscuro, longe do gosto contemporâneo pelo elogio futurista da cidade (*) numa estética vanguardista extremamente melancólica e misteriosa. O maior elogio que lhe faço é o modo como material banal é tratado filmicamente de modo a criar um interesse constante. Não há praticamente plano nenhum de Limite que não seja belo e envolvente.

*Outro filme significativo da vanguarda brasileira da altura é São Paulo, Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, um decalque local do filme de Ruttmann sobre Berlim.

24 Mai 2016

A propósito de alguns filmes recentes

Tenho dedicado parte do último ano, ao contrário do que acontecera antes, ao visionamento de filmes contemporâneos. A colheita não tem sido boa. Com a excepção de filmes cujo aspecto visual é extraordinário, como Shirley, Hard to be a God ou The Forbidden Room, cujo interesse pouco mais vai para lá do peculiaridade do aspecto, o resto tem-se resumido a filmes interessantes por um ou outro aspecto mas que rapidamente caem no esquecimento.
Da América do Norte não lembro um filme recente que mereça menção. Do Japão, da Coreia ou da China há bastante tempo que também não vejo nada de excepcional. Da Tailândia permanece apenas Apichatpong Weerasethakul, cuja última instalação ainda não vi.
Da Europa os sinais são contraditórios. Registo com agrado, de Lars Von Trier, Nymphomaniac I e II, o último filme de Polanski, envolvente, sedutor e teatral, Venus in Fur, Filme Socialisme, de Godard, ou, um pouco mais antigo, Vous n’avez encore rien vu, de Resnais, no sentido em que se erguem (e é isto que é muito raro) como filmes de referência futura, filmes que contêm matéria para uso futuro em comparações ou tentativas de entender ou criar um quadro modelar. Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino, 2010, também pode ser uma boa ajuda.
Filmes giros tenho visto alguns, como Tangerine, Bande de Filles, Ida, Victoria, Love, The Lobster, Mr. Turner, Locke, Timbuktu, Catch me Daddy ou L’Enlèvement de Michel Houellebecq, mas fica uma impressão de embrutecimento. Fica a impressão de que há muitos filmes interessantes mas poucos filmes que interessem verdadeiramente e que se torna desgastante ver muitos filmes que pouco mais sejam que giros.
Sou levado a pensar, mais com surpresa que com irritação, que as pessoas (os espectadores) deixaram de ser exigentes e se acomodaram confortavelmente à opalescência do Cinema Giro, como se acomodaram ao latte e ao croissant e mostram algum sobressalto quando alguém vem agitar o seu mundo certo e seguro. Talvez por estas razões os filmes de Fassbinder têm sido aqui tantas vezes objecto de admiração, a prova perfeita de que um filme pode ser exigente – porque exige muito do espectador – e ao mesmo tempo popular e viável comercialmente.
Do Irão ou da Turquia continuam a chegar filmes bons e densos mas repetitivos nas temáticas e na estética.
Autores que não conheço mas que têm provocado uma curiosidade que tem sido difícil de saciar são os filipinos Lav Diaz e Kidlat Tahimik. O recente cinema romeno é um filão que não tenho conseguido explorar igualmente por falta de acesso aos filmes.
Alguns documentários de Errol Morris ou John Gianvito não são suficientes para entrar em grandes entusiasmos. O contrário poderá ser dito dos dois filmes em jeito de documentário de Joshua Oppenheimer sobre as atrocidades cometidas sobre os comunistas na Indonésia na década de 60. Ao contrário de muitos, prefiro o absurdismo um pouco desarticulado do primeiro deles.
O único filme relativamente recente que se institui, com pompa e brilho, como um filme de referência, é Japón, de Carlos Reygadas (mas é de 2002). Nele pode falar-se de um universo, um que tem um valor exemplar, no desenho cru e agressivo das personagens e das intenções que exibe e da aridez violenta da paisagem. Em Japón o céu junta-se à terra para nos explicar as nossas insuficiências e a nossa pequenez e para nos expulsar do paraíso da inércia.
Lembre-se que este vosso escritor não é crítico de cinema (o que o iliba de muitas obrigações) nem tem acesso a muitos filmes que se lançam pelo mundo fora. Mas dos exemplos que tem visionado não retira motivo para muitas alegrias. É suficiente para escolher uma dedicação exclusiva ao documentário ou ao cinema avant-garde ou, mais sensatamente, a uma arte a sério como a música.
Vi com um carinho que raramente dispenso ao cinema brasileiro, Girimunho, 2011, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. (faz lembrar Clarice Lispector, muito) e O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2012. Nunca me decidirei, creio, a divulgar um dos meus filmes mudos preferidos, Limite, 1931, de Mário Peixoto, preferindo continuar agarrado a um medo (que se estende a outros filmes preferidos) de não lhe fazer a justiça que merece.
Este medo estende-se a outros filmes mudos e pode revelar também uma incapacidade para escrever sobre algo tão puro (e, ironicamente, avançado) como o cinema mudo, na sua vertente avant-garde de filmes de Man Ray, Walter Ruttmann ou Hans Richter (um fotógrafo e dois pintores) ou em exemplos mais acessíveis como Ménilmontant, de Dimitri Kirsanoff, A Paixão de Jeanne d’Arc ou Vampyr, de Dreyer, The Wind, de Sjöstrom ou Schatten, Eine Nächtliche Halluzination, de Arthur Robison (lembro, com brutalidade, que este sim, já foi alvo de atenção).
Não tenho encontrado grande eco junto a outras pessoas para a ideia de que hoje em dia, graças ao digital e à qualidade de equipamento de filmagem e montagem relativamente barato e de fácil transporte, há relações de semelhança com a época do cinema mudo. Divago.
Deve agora o leitor preparar-se para aceitar sem indignação uma ideia digna de uma séria Acção Patriótica. Do mais interessante que tenho visto são alguns filmes portugueses e registo com agrado a internacionalização de nomes como João Pedro Rodrigues, Gabriel Abrantes, Pedro Costa e Miguel Gomes (que eu ainda não percebi, desde Tabu, um dos melhores filmes que vi nos últimos anos, se ele anda ou não a gozar connosco, um dos maiores elogios que lhe posso fazer).
Uma vez que Pedro Costa parece ter, com Cavalo Dinheiro, esgotado o filão que tem vindo a explorar, não havendo nele a sincera invenção e sentido de cerimónia dos filmes anteriores mas uma estilização esperada que bastará a um filme apenas, a expectativa sobre o que fará a seguir é enorme. Por que não um musical?
Sobre Miguel Gomes e sobre o longo e necessário As Mil e uma Noites falar-se-á em breve.

10 Mai 2016

Welt am Draht (World on a Wire), 1973, Fassbinder.

“(…) o homem é um ser que suporta tão mal a suspeita como o papel de seda a chuva.”
Musil. O Homem sem Qualidades.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]té que ponto o estimado leitor, que manuseia o jornal com tanto carinho, está certo da sua real existência? Certamente seria um choque vir a saber que este, o jornal, não existe verdadeiramente porque não passa de um conjunto de impulsos electrónicos. Ou, não como choque, a suspeita de que este não existe pode transformar a sua visão do mundo à medida que esta se estende para uma desconfiança sobre os que o e o que o rodeia e sobre si próprio.
Stephen Hawking já nos avisou de que poderemos não estar a viver na realidade: how do we know if we are living in our dreams or reality – well, we just don’t and perhaps can’t.
Estas considerações de Hawkins, muito recentes, surgiram a público a propósito da leitura de textos do filósofo chinês antigo Zhuangzi. Depois de um sonho em que se tornara uma borboleta, o pensador sínico perguntou-se se ele seria um homem que sonhou em tornar-se uma borboleta ou uma borboleta que sonhara ser um homem.
Pelo sim pelo não, enquanto não nos chegam certezas, ver uns filmes é uma maneira como outra qualquer do leitor passar o tempo até morrer e ir pensando na sua condição – se é que a morte, ou o próprio leitor, existe verdadeiramente.
Estas linhas servem como aviso. Welt am Draht, de 1973, é um filme de ficção científica de Fassbinder que permaneceu pouco conhecido até há pouco. É um filme feito para televisão, como muitos outros que Fassbinder compôs. Melhor, é uma série de duas partes, uma de apenas duas que ele fez. A outra, de 1972-1973, é Acht Stunden sind kein Tag (Eight Hours are Not a Day), uma série de 8 episódios que se viu cortada para 5 por razões políticas. Ambas foram feitas para a WDR.
É um ponto que por vezes é descurado nas exegeses de Fassbinder, um de que me culpo também. Se bem que Nora Hellmer seja um dos meus filmes preferidos de sempre, nos vários textos que já aqui se fizeram sobre este autor não se tem chamado atenção suficiente para a colaboração intensa que manteve com a televisão. Berlin Alexanderplatz é uma das suas criações mais ambiciosas.
Welt am Draht serve muitos gostos. O de ficção científica; o de filmes em que uma personagem inocente se vê perseguida pela injustiça do mundo; o da revisitação da estética dos anos 70; o de filmes sobre a substituição de humanos por máquinas; o de filmes sobre o imenso poder do dinheiro e das grandes corporações; ou, para quem encontra satisfação nisso, uma série onde se mostra um número elevado de actores alemães famosos da época, uma verdadeira caderneta onde se incluem 3 ou 4 planos com a presença de Werner Schroeter e da sua enigmática musa Magdalena Montezuma.
Também nesta série, onde se coloca a questão da existência do nosso mundo, Fassbinder continua a sua propensão para a utilização de planos com superfícies vidradas e espelhos (em Nora Hellmer esta é quase nauseante, em Effi Briest muito presente) que deformam os rostos ou nos dão a ver apenas a sua imagem reflectida e não o verdadeiro rosto ou corpo. Transformam a nossa percepção não apenas da imagem física mas psicológica das personagens. O espelho é um caminho para a desconfiança e o vidro interposto um caminho para a distorsão (aquários, por exemplo). É fácil de perceber que em Welt am Draht estes sejam um adereço em uso permanente. Christian Braad Thomsen pergunta, no livro Fassbinder The Life and Work of a Provocative Genius, a propósito desta série de sci-fi: “Are we nothing but projections on a screen, produced by a sick society, computer-generated figures which, incapable of reflection, confuse artificial existence with real life?” (pág.28).* O leitor pode neste momento escolher largar o jornal e ir dar um mergulho numa piscina.
Vollmer é um cientista que trabalha num projecto de grande dimensão, o Simulacron, um programa de computador que cria unidades aparentemente humanas (unidades identitárias) num mundo paralelo. Vollmer descobrira algo que ninguém sabia mas antes que o segredo deixasse de o ser morre em circunstâncias pouco claras. Stiller, o seu sucessor – e a personagem central de toda a história, tirada de um livro de ficcção científica americano de Daniel Galouye chamado Simulacron-3 (1964) – assume a sua posição e começa a ganhar as mesmas desconfianças.
As questões filosóficas da interrogação da existência do mundo de Stiller fundem-se com as questões muito actuais dos perigos da criação da inteligência artificial e com as preocupações da utilização comercial por parte de uma grande empresa de um programa cujos frutos deveriam ser apenas científicos. A United Steel, uma companhia de aço, pretende usar o Simulacron para proveito próprio, fazendo projecções sobre o uso do aço no ano 2000. Desta feita a WDR autorizou um texto que se mostra contrário às ambições de uma grande empresa alemã.
Welt am Draht é uma história policial e política. Um jornal investiga as ligações pouco claras dos responsáveis administrativos pelo Simulacron com a United Steel, uma associação a que Stiller se opõe. A primeira parte da série termina com a suspeita de que o seu mundo não passe de um mundo artificial composto por sistemas de simulação electrónicos – incluindo o próprio Stiller, o nosso ponto de contacto narrativo e afectuoso com o mundo.
Há muitos filmes sobre a criação de inteligência artificial e mesmo alguns sobre o desejo de ser verdadeiramente humano, o mais sedutor e mais conhecido dos quais será Blade Runner (1982). É também alemão um dos que primeiro chama a atenção para a ambição e o poder da máquina: Metropolis (Fritz Lang, 1927).
Chamo apenas a atenção para um filme recente que não vi mas que parece reunir vários pontos de interesse estético e filosófico: Ex Machina, de Alex Garland.

* seria interessante saber qual a reacção fílmica de Fassbinder à estupidificante obsessão actual com a constante reprodução fotográfica, a facilidade da sua manipulação e a exposição pessoal através dos novos meios de comunicação.

4 Mai 2016

Dois filmes peculiares, Shirley und Victoria

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]hirley Visions of Reality, 2013, de Gustav Deutsch, é peculiar a vários níveis. O seu programa consiste na animação, lenta, de um grupo de 13 quadros de Edward Hopper. A partir de cada um deles o realizador inventou uma ficção que rodeou de apontamentos históricos de época, desde os anos 30 aos anos 60, e que no seu conjunto contam uma história atraente sobre uma mulher determinada. Uma peça de teatro para dizer a verdade – porque esta mulher é uma actriz de teatro.

A introdução de uma dose significativa, num texto que não é muito extenso, de aspectos políticos, como referências à Guerra do Vietname ou às famosas delações de Elia Kazan, poderá chocar alguns puristas mas constitui uma adição enriquecedora a quem não se deixar prender por parvoíces.

A outra peculiaridade, que é a mais impressionante e a que marca verdadeiramente o filme como um objecto fora do vulgar é o seu aspecto visual – um conjunto de quadros, feitos em estúdio, em que o cenário e as figuras têm uma textura impressionantemente pictórica. Por isso é que estas são visões, visões da realidade que Deustche constrói. Não sendo particularmente sensível à melancolia americana de Hopper, parece-me que prefiro a de Deutsche.

Neles construiu-se um desenho cheio, de contornos muito bem definidos (mais do que os quadros de Hopper) que fazem lembrar a banda desenhada de linha clara e cores fortes, especialmente atraentes no efeito que a luz do sol imprime nos objectos dos vários lugares imaginados (vários deles quartos, lugares de trânsito e sonho).

Se se insiste na descrição do desenho é porque esta é a especialidade que marca o filme, muito mais que a sua mecânica narrativa, e é ela que ficará para sempre na memória e na história.

Shirley é um filme de actriz e a sensualidade e o calor rigoroso dos quadros de Hopper transpõem-se perfeitamente para a figura de Stephanie Cumming, muito bonita, quente mas com a determinação e firmeza de uma mulher com convicções fortes.

Não há muito falou-se aqui de alguns filmes que se relacionam com pintores ou quadros, como sejam Caravaggio, de Derek Jarman, The Mill and the Cross, de Lech Majewski e Mr. Turner, de Mike Leigh e este filme de Gustav Deutsche, mais um filme de um austríaco de que se fala aqui, pode ser visto pensando naqueles e nos modos como o cinema pode falar da pintura (mais do que propriamente sobre os pintores, no fundo muito menos importantes que aquilo que fica).
O que Shirley nos dá é, para além do efeito de novidade, a parte que tem que ver com o cinema, que é muito mais intensa que nos outros filmes que em cima se referem, muito mais que no filme de Lech Majewski (de 2011) que segue uma vontade que por vezes se assemelha a este.

Victoria, 2015, de Sebastian Schipper, figura junto de Shirley porque vem igualmente acompanhado de uma curiosidade técnica, esta a de ter sido todo filmado num take de 138 minutos na madrugada de 27 de Abril de 2014 (Russian Ark, de Sokurov, tem 96 minutos e o filme iraniano de 2013 Fish and the Cat, de Shahram Mokri, tem 134. Há outros).

Victoria passa-se durante parte de uma noite, uma concentração que notara num outro filme de interesse médio que também se prende com marginalidade e que foi há pouco aqui revisto, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Para criar algum desconforto pode pensar-se igualmente em Kinatay, de B. Mendoza, que acompanha uma inquietante (e sangrenta) viagem perto de Manila e que termina igualmente de madrugada.

Victoria, como o filme de Wolfe e Shirley giram em torno de uma mulher e os dois que aqui se apresentam são realizados por autores de origem germânica, austríaco o primeiro e alemão o segundo. O de Schipper parte da possibilidade de uma fragilidade, a fragilidade de Victoria, uma rapariga espanhola embriagada que não fala alemão e que se vê imersa em aspectos negros da noite berlinense.

É um filme sobre Berlim, um filme sobre um aspecto da cidade, à noite, conduzida por um grupo de “verdadeiros” berlinenses – de Berlim Oriental. Seria interessante perceber a que outra Berlim, menos verdadeira, é que esta visão se opõe.

O que se transforma é o tipo de fragilidades que encontramos ao longo da noite e o que parecia ser apenas uma noite de crime transforma-se numa vinheta comovente sobre a amizade e a fragilidade de quase todos os intervenientes numa dose suficiente de amargura e ingenuidade.

No fim, fica a impressão que com as câmaras de hoje a euforia que se criou em redor do filme de Sokurov, de 2002, deixou de ter razão de ser. Por que não filmar em apenas um take e, como aqui acontece, com diálogos em grande parte improvisados? Já não parece um empreendimento tão difícil.

Isto pode ser entendido como um elogio (porque no filme de Schipper não se nota nenhuma linha forçada de continuidade) ou uma leve desconsideração (porque afinal não é um problema técnico assim tão difícil de superar, as maiores dificuldades situando-se certamente a nível da manutenção de uniformidade a nível da iluminação e da cor e da organização das massas).

Victoria vem provar mais que este é um processo a ser seguido (e se não for num take poderia ser em 2 ou 3 ou 4 como o autor considerou fazer enquanto plano B) do que vem provar que este é um grande acontecimento técnico.
É difícil falar de Victoria sem rodar em torno da sua proeza técnica mas que isso não faça esquecer que tem qualidades a nível da firmeza do desenho da sua protagonista, da cidade de Berlim e dos seus habitantes que justificam a sua visionação. Aproveite-se este filme numa altura em que pouco de interessante parece vir da Alemanha em termos de filmes de larga circulação.

26 Abr 2016

Kuroi Yuki, Black Snow, 1965, Takechi Tetsuji

[dropcap style=’circle’]K[/dropcap]uroi Yuki, Black Snow, tem tudo o que se pode esperar de um filme japonês dos anos 60. É a preto e branco. Começa com a imagem de uma prostituta deitada numa cama, de barriga para cima, parcialmente coberta pelo corpo de um negro norte-americano da tropa. É um filme contra a presença dos americanos no Japão. Que mais querem?
Não há dúvidas que esta é a década mais interessante da história do cinema do Japão, mesmo que na seguinte se tenham feito filmes inesquecíveis. Contudo, nos filmes da década de 60, muito mais do que na que se seguiu, identifica-se um espírito do tempo que posteriormente se esbate em v´ảios tipos de filmes.
Não me estendo, já aqui se falou de mais de 20 filmes japoneses dessa altura e o isolamento das suas características está feito.
O que o cinema niilista, desencantado e cheio de ennui dos anos 60 nos demonstra é que nada mudou para lá das circunstâncias históricas e que hoje o Japão continua, por trás da cortina de luz e profusão frenética de artefactos e comida com que se exibe a si próprio, a ser o mesmo país lânguido do aborrecimento, da neve e da vacuidade do destino – uma doce indecisão.
Não escondo que por trás da minha dedicação ao cinema japonês está a dedicação ao próprio país. Não escondo que o cinema japonês é dos poucos que me transmite o cheiro da rotina doméstica e dos bares onde (ainda hoje) persiste um forte cheiro a tabaco.
Como acontece normalmente com este tipo de produções, por vezes filmadas em dois ou três dias, o baixo orçamento disponível não permite senão contratar um pequeno número de actores e filmar muitos exteriores – a escassez de meios uma vantagem no seu aspecto final.
As cenas seguintes ao genérico são muito sensuais: há um odor a tecidos de baixa qualidade impregnados de tabaco e humidade, enquanto se imagina um a perfume e a maquilhagem. O lugar é um de desolação e desafecto, um motel junto a uma base aérea americana ocupado por um pequeno grupo de prostitutas.
Kuroi Yuki é um filme erótico. Takechi Tetsuji tem 12 filmes listados no livro já aqui profusamente citado Behind the Pink Curtain, de Jasper Sharp, um que fala de modo muito completo sobre o cinema erótico japonês, um fenómeno típico do Japão que, inexplicavelmente, perdura.*
Repito. Não me alargo porque já aqui se falou várias vezes do cinema erótico dos anos 60, mas é útil lembrar que o erotismo aparece muitas vezes associado a preocupações estéticas e políticas radicais. É no cinema erótico que encontramos vários tipos de ousadias que estão muito para lá das sexuais.
É fácil de entender porquê. Como ainda hoje acontece em muito menor escala, o cinema erótico tinha um circuito de distribuição muito bem montado, com muitas salas exclusivamente destinadas à exibição de filmes deste género. Ao realizador de intenções estéticas vanguardistas colocavam-se dois cenários: ou fazia um filme avant-garde para ser visto por meia dúzia de pessoas num circuito muito reduzido de distribuição (se o conseguisse) ou erotizava as suas propostas fílmicas e tinha à sua disposição uma rede impecavelmente montada de distribuição que garantia que os filmes fossem mostrados e até fizessem dinheiro. Lembre-se que a dada altura o cinema erótico popular perfazia mais de 50% de toda a produção nacional.
Isto não invalida de modo algum a percepção generalizada de que uma parte muito significativa dos realizadores japoneses desta década e das seguintes não fossem obcecados por tudo o que tem a ver com o sexo (E a bebida. Um dos cheiros mais intensos do cinema japonês é o do uísque).
Takechi é conhecido não apenas por ter feito vários filmes eróticos mas como produtor e crítico de teatro (a sua interpretação moderna de peças de kabuki é ainda referência central) e teórico.
Este filme tem vários tipos de interesses e desinteresses. Um dos primeiros consiste em provocar a perturbação erótica não apenas através das imagens, como é corrente, mas igualmente através do discurso de algumas das suas personagens. Não há, aliás, tantas cenas de nudez e sexo como é normal, nem me parece que preencha à risca a obrigatoriedade de mostrar nudez de tantos em tantos minutos – uma estrutura que muitos outros passam a cumprir com rigor quando o género se formaliza.
Tem também uma cena antológica, a do genérico. Como é sabido, até hoje é proibido mostrar genitália e pêlos púbicos no cinema. Takechi contorna a obsessiva proibição, cómica e ostensivamente, mostrando um peludo sovaco em substituição.
Outro interesse reside no facto de que, ao contrário de outros autores de filmes eróticos da época que se apresentavam como revolucionários de esquerda, há uma envolvência de direita – segundo alguns até racista – nas ousadias de Takechi. Não é difícil de ver Kuroi Yuki como simplisticamente nacionalista se o virmos como veículo pouco subtil de culpabilização dos americanos pelos males japoneses. Takechi, no entanto, que pode ser entendido mais como um artista ligado ao teatro, é pouco conhecido hoje em dia, dentro e fora do Japão, não tendo sofrido a habilitação de autores de filmes semelhantes como Wakamatsu Koji ou Masao Adachi.
Por outro lado há intenções que se sobrepõem. A reacção negativa à presença dos americanos em solo japonês (ainda lá continuam e eu acho que esta base militar, a de Yokota, perto de Tóquio, ainda está activa) é uma preocupação contada em muitos filmes da época e já aqui por demais referida, comum à esquerda mais e menos radical e à direita.
Pouco interessa se nos lembrarmos da lindíssima cena horizontal em que uma das personagens corre nua ao longo da vedação da base Americana e que esteve na origem das objecções que foram levantadas ao filme e que se colocaram a nível político e a nível da moralidade.
Da base vem constantemente – algo que atravessa o filme como uma ferida ou como um grito – o barulho cortante dos aviões a aterrar ou levantar voo. Vê-lo como uma exibição de feridas (como a ferida sexual, causada pelos americanos, que aflige a boca de uma das trabalhadoras do bordel) é uma maneira de tirar prazer do filme. A menor das quais não será a que se desprende do rapaz da casa, filho de uma das funcionárias, Jiro, o causador de quase tudo. Jiro e tudo o resto, que se passa muito longe do mar, causa a náusea e a ansiedade esperadas num filme desta época e com estas características a uma escala pequena, num lugar em que, apesar da imensidão horizontal da base (que não se mostra), tudo é pequeno.

* Hakujitsumu/Daydream, também de Takechi, exibido em 1964, é um dos filmes eróticos japoneses mais conhecidos – por razões históricas que o leitor facilmente poderá encontrar em busca na internet.
Kuroi Yuki é conhecido por ter sido causa de prisão para o realizador, processo que o leitor encontrará também explicado do mesmo modo. Oshima, Suzuki, Mishima e Kobo Abe testemunharam a favor de Takechi e esta mescla de gente intelectual mostra que o apoio que o favoreceu (e que no fim levou à vitória no processo que lhe foi movido) veio de fundos com inclinações políticas muito diferentes.

12 Abr 2016

Quatro ou cinco filmes, dissemelhantes.

[dropcap style=’circle’]N[/dropca]o seguimento da moda britânica do filme de acção com marginais, uma sub-espécie da longa e provinciana tradição realista das ilhas, recomenda-se, com um pequeno frisson mas com um entusiasmo comedido, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Uma história de uma noite apenas, passada no Yorkshire, começada pela fuga de Leila, uma adolescente ajudante de cabeleireiro de origem paquistanesa para junto do namorado Aaron que vive numa roulotte. A perseguição que lhe movem dois grupos, um por dinheiro e o outro por honra, a instâncias do pai, envergonhado perante o comportamento da filha, dura toda a noite e mostra um mundo cinzento e pleno de desajustes sociais.
Outros dois filmes em que este complexo marginal (suburbia/cabeças rapadas/caras de mau) se exibe como pano de fundo, de maneira exemplar mas em modo francês, são Deephan, 2015, de Jacques Audiard e Bande de Filles, 2014, de Céline Sciamma, já aqui suficientemente elogiado noutra edição desta página. 71e551b7a4
Existe já uma estética do filme chinês de actividade mineira. Exemplos são Mangjing/Blind Shaft, de Li Yang, 2003, ou a primeira parte do penúltimo filme de Jia Zhengke, 2013, Tian zu Ding/A Touch of Sin.
Consiste num cortejo já familiar, a inexpressividade dos rostos, masculinos e femininos, dos mineiros, as doenças associadas a esta profissão, os imensos riscos de desabamento, a poluição, a desumanidade, a fealdade dos lugares de extracção e de tudo, a magnitude olímpica da intervenção sobre a terra, etc.
Em Beixi Moshuo/Behemoth, de Zhao Liang, um documentário de 2015 (estreado no Festival de Veneza do mesmo ano e que consta do programa do HKIFF que decorre neste momento*), esta actividade enquadra-se em dois outros complexos: o do contraste que as feridas que a exploração mineira estabelece com a verdejante paisagem original que destrói e o da exploração de uma terra que é ocupada, a da Mongólia Interior – uma troca do verde pelo negro. Este segundo complexo torna muito mais dolorosa a ferida que expõe. As imagens mais dilacerantes são aquelas em que se sobrepõe às estepes do norte a destruição causada pela ganância do invasor. media-title-5831a
O estilo de Zhao Liang é económico, minimalista, documental e artístico. O impacto do filme é muito grande. Este é um filme sobre uma Marca, uma marca indelével sobre o corpo dos mineiros, sobre o corpo social e sobre a paisagem, seguindo um trajecto inspirado na tripartição de A Divina Comédia. O Paraíso, onde chegamos com o homem que carrega consigo um espelho, é uma cidade desumanizada e deserta (penso que a famosa cidade de Ordos), sinal de um futuro disfórico muito próximo.
A mola de L’Enlèvement de Michel Houellebecq, um telefilme de Guillaume Nicloux de 2014, é a sua improbabilidade. A improbabilidade do rapto do divertido autor e dos acontecimentos que se sucedem durante a sua captura. É muito útil por nos dar a conhecer o escritor através de um procedimento inesperado (provavelmente inspirado por um desaparecimento do autor em 2011).
Houellebecq come, fuma, bebe, resmunga, discute e fornica como se tivesse esquecido a sua condição de raptado. Pouco esperada a bonomia com que o escritor francês se deixa levar e o modo como se relaciona com os seus raptores. Inesperadamente leva-nos a lugares e a discussões para que não nos julgávamos convocados. Será que Michel foi raptado em 2011? Ter-se-á divertido?
Uma das marcas mais persistentes do cinema alemão das últimas décadas é o interesse por obras de conteúdo abertamente político. O período da segunda grande guerra, a divisão da Alemanha e o terrorismo urbano fornecem vasto material. A análise política de filmes é um costume próprio à crítica alemã. Sameena-Jabeen-Ahmed-5
Os nomes de Fassbinder, Kluge, Syberberg, Schlöndorff, Schroeter, von Trotta, Sanders-Brahms ou Uli Edel facilmente se associam a este interesse. Favoreço alguns filmes políticos dos anos 60 e 70 em que ao empenho social e político se junta uma marca densa do cinema e da literatura em língua alemã – uma extrema melancolia. Da mistura entre a agressividade e a melancolia dimana uma estética muito particular. Grande favorito é Das zweite Erwachen der Christa Klagers/The second Awakening of Christa Klagers, 1978, de Margarethe von Trotta, ou Nicht Versöhnt oder Es hilft nur Gewalt, wo Gewalt herrscht/Not Reconciled or Only Violence helps Where Violence Rules, 1965, de Straub.
Deutschland im Herbst/Germany in Autumn, de 1978, é um filme colectivo icónico. Inspirado pelos acontecimentos que rodearam o rapto de Hanns-Martin Schleyer pelas R.A.F. (Rote Armee Fraktion), em 1977, é puro cinema político dos anos 70, agressivo e glacial, urgente e com cara de poucos amigos, carregado de um desejo bestial de culpar e de expor, guerrilhamente em cima do acontecimento.
Se aqui me não alargo no seu elogio é porque em breve este poderá incluir-se num texto (outro) sobre Fassbinder (curiosidade: a parte de Rainer Werner, a mais longa e que inclui discussões acaloradas com a mãe e o namorado, foi filmada apenas num fim de semana **).
Vivemos num tempo de reaparecimento de actos de terrorismo. Como tal, alguns filmes desta época têm uma actualidade inesperada.
Na Áustria, que atravessa actualmente um período de vigor (Henckel von Donnersmerck, Haneke e Jessica Hausner, de quem eu gosto tanto), os interesses têm sido outros (nomeadamente, como há pouco aqui foi notado, a propensão para o cinema experimentalista com Peter Kubelka, Kurt Kren ou Peter Tscherkassky). maxresdefault
VALIE EXPORT é um artista feminista austríaca de muitas faces – happening, body art, performance art – influenciada pelo movimento Actionismo de Viena. Algumas das suas atrevidas performances ganharam muitos inimigos.
Mas ela está nesta página a propósito de um filme favorito – Die Praxis der Liebe/The Practice of Love, 1984.
Judith Wiener é uma repórter que denuncia situações de melindre e em Die Praxis der Liebe há uma cor amarelada que é a cor ao mesmo tempo da sedução e da desilusão, uma insistência pastosa que é irresistível. É o apelo do Norte e da solidão mesmo quando, como é o caso de Judith, se tem dois homens, um dos quais traficante de armas.
Mas, sobretudo, passados 30 anos, esta história de VALIE EXPORT ganhou o apelo de um tempo disfarçado, o tempo de uma temperatura aparentemente acolhedora mas, afinal, envolventemente fria, o tempo dos enigmáticos anos 80, da cor macia e ameaçadora, muito voluptuosa, do Betamax e do VHS e do visionamento doméstico em solidão. Entalado entre o desejo da revolução e a posterior apatia, hoje não nos resta senão retirar da década de 80 uma melancolia opressiva e sem contornos bem definidos e uma sensualidade de televisão.

* este filme sincrético, de características documentais e de art-house, Tharlo, um filme tibetano de 2015, ou Jia/The Family, de Shumin Liu, também de 2015, seriam bem vindos, assim como muitos outros documentários que na China foram recentemente banidos, a um local que se está a revelar, como se suspeitava, uma verdadeira desilusão: a Cinemateca Paixão.
** ver o artigo de Dietrich Leder em The Cinema of Germany, 2012, ed. por Joseph Garncarz e Annemone Ligensa, um livro que inclui um conjunto de artigos sobre filmes alemães escolhidos segundo uma perspectiva muito pertinaz: a da sua popularidade à altura da exibição.

29 Mar 2016

Dreams Visions Madness

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e o cinema fosse mais Maddin andávamos todos bem regalados e com uma vida prenhe de cores misteriosas. Prenhe é uma boa palavra porque carrega um sentido viscoso e cheio e os filmes de Maddin também. O primeiro filme que dele vi, My Winnipeg, 2007, passou num ciclo do Centro Cultural de Macau como sendo um documentário. Não sei se é.
Um crítico do The Guardian, estupidamente, afirma que, lembrando um pun de Eliot que transmite que um livro como Finnegans Wake é suficiente, um filme como The Forbiddem Room chega, quando, na verdade, muitos filmes deveriam ser assim.
Há poucas décadas, tomar um banho era um ritual semanal, o banho de sábado, o Grande Banho da Semana. Hoje em dia, inutilmente, toma-se banho todos os dias. Assim como os banhos, também os filmes se tornaram banais. How do I know this? People have told me, that’s how.
Depois de se ver The Forbidden Room (de 2015, co-autorizado por Evan Johnson) nada parece improvável e temos de aceitar o que nos é dito. Como pode um capitão de um pequeno submarino desaparecer e, ao invés, ser substituído por um homem da floresta que subitamente aparece aos 4 marinheiros que a pequena cápsula náutica alberga? É difícil de acreditar mas está lá, bem patente, em cores antigas, para todos verem.
Nem tudo se passa no interior do submarino. Intercala-se esta história com uma de lenhadores que se prestam a salvar uma mulher bonita do encarceramento a que a obrigaram os homens do grupo dos Lobos Vermelhos. Os filmes de Guy estão cheias de mulheres bonitas. As provas de admissão ao primitivo grupo são terríveis e incluem Bater numa Bexiga ou Empilhar Vísceras. Nem todos são admitidos.
Outras sub-tramas preenchem o filme, episódios de amor; bastante sexo e um louco que escapa de um comboio que faz a ligação entre Berlim e Bogotá; uma história faustiana; numa lógica de histórias dentro de histórias, ao contrário de, por exemplo, Brand Upon the Brain!, 2006, que segue apenas uma trama autobiográfica (ver o doc. 97 Percent True). Não tendo visto Keyhole, de 2012, não sei bem que tipo de evolução poderá ter-se dado, para lá da escolha de um conjunto de episódios pouco relacionados uns com os outros.
As histórias de The Forbidden Room aparecem envoltas num aspecto de filme mudo de cores saturadas, muitos truques e uma música sedutora, um aspecto dos seus filmes que não é secundário, a par do resto do tratamento do som, mas que Maddin molda de um modo muito subtil, por vezes quase inaudível (ver o curta metragem de Maddin Footsteps).
Brand Upon the Brain!, que foi praticamente todo filmado com câmaras de Super 8 e se passa todo ele numa ilha que alberga um orfanato, mantém sempre uma intoxicante estética do mudo, com o uso frequente de intertítulos e de imagens coadas por um filtro redondo. Não é difícil de perceber que a estética do cinema mudo – uma época de liberdade, experimentação e surpresa – sirva, com a sua dimensão obsessiva e onírica, de subtexto a muitos filmes contemporâneos. Difícil de perceber é que alguém diga que não são precisos mais filmes destes, excessivos e belos.
A propósito de The Forbidden Room recordo um autor que utiliza material já filmado para compor as suas peças, Peter Tscherkassky. Ambos exibem um trabalho aturado e saturado de manipulação de imagens.
Outer Space, 1999, (9:58min.), é o melhor filme de terror/ficção científica que há, uma espécie de Benilde ou a Virgem Mãe com apenas uns minutos – a ameaça do que vem do espaço. No seu repetitivismo martelado e cubista espelha filmes normais que nos lembram que, quando menos esperamos, a nossa vida banal pode sofrer uma súbita transformação.
Outer Space, assim como outros filmes seus, utiliza imagens do filme de 1981, The Entity, de Sidney J. Furie, em que uma mulher é violada por uma força misteriosa. Diferentemente do cinema estrutural de, a exemplo austríaco, Kurt Kren, os filmes de Tscherkassky mantém uma linha narrativa suficiente ao seguimento de uma pequena trama.
Os seus filmes são muito curtos mas levam anos a fazer (não são muitos) porque são minuciosamente trabalhados, fotograma a fotograma, um labor de amor e de paciência. Há outros autores austríacos que usam footage de outros filmes, como Martin Arnold*.
Estes não são os únicos austríacos vanguardistas. O cinema austríaco, não sendo um cinema poderoso, tem um conjunto firme de cineastas de vanguarda. A Tscherkassky juntam-se Peter Kubelka, Kurt Kren, Valie Export, Lisl Ponger (autora do delicioso Passagen) ou Martin Arnold, para além de autores mais recentes**.
Dream Work, 2002, (11min.), tem semelhanças com a sua fantasia científica, um desconforto doméstico desta feita onírico (o de Outer Space é real) repetitivo e noisy, próprio ao prolongamento da agonia e do mistério, oferecido em apreciação à arte cinematográfica de Man Ray. Usa metragem do filme de S.J.Furie acima referido.
Instructions for a Light and Sound Machine, 2005, (16:21min.), é um western. Mostra-nos minuciosamente o que se passa no íntimo deste género, de uma maneira que num western clássico não vemos, a minúcia do tiro e o momento entre a vida e a morte. De certo modo, o cinema é sempre a visão de um comboio a chegar a uma estação ou de um grupo de operários a sair de uma fábrica. Esta curta usa fita de The Good, the Bad and the Ugly, 1966, de Sergio Leone.
Manufraktur, 1985, (2:54min.), é um outro filme fracturado ou fragmentário, com carros e textos publicitários. Porsches, um Peugeot 404, um Lancia Fulvia e acho que um Ford GT. Gosto muito, é muito ruidoso e quase irritante.
Espero com indisfarçada ansiedade uma fantasia sexual, The Exquisite Corpus, último filme de Tscherkassky, estreado no passado Festival de Cannes.

* ver A.L.Rees, A History of Experimental Film and Video.

** Tscherkassky é responsável por um livro, publicado em 2012, sobre esta matéria: Film Unframed: A History of Austrian Avant-Garde Cinema, e é o fundador da sixpackfilm, uma organização destinada à promoção da experimentalia austríaca (co-editora do livro acima referido). Existe também uma editora de DVD chamada Index cujo intento reside na divulgação de filmes e vídeos experimentais austríacos.

15 Mar 2016

Trudno byt’ bogom, Hard to be a God, Aleksei German, 2013

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m pouco como as imagens de Bosch, este filme é confuso e mostra o ecrã constantemente repleto de corpos dos habitantes desta localidade deste planeta que não é o planeta Terra mas um outro que não fica muito longe e que não evoluiu para lá daquilo que chamamos a Idade Média, que em si é um nome estúpido porque não quer dizer nada, apenas que está no meio. As primeiras imagens parecem mais Brueghel que Bosch, superfícies nevadas com figuras ao fundo mas depois não, e aí começa uma demente perambulação.
Uma das suas figuras é um terráqueo enviado para o meio dos habitantes deste planeta imaginado primeiro pelos irmãos Strugatski e adaptado pelo realizador Alexei German que morreu antes da conclusão das filmagens que se arrastaram por quinze anos e que foi acabado pelo seu filho e pela sua mulher, Alexei German Jr. e Svetlana Karmalita.
É ideal no género. Escatológico, sujo, demente, com muito cuspo e ranho, cagalhões e anões, extremamente sensorial, um permanente lodaçal porque neste planeta a chuva cai com muita intensidade mesmo que durante pouco tempo e todas as pessoas andam sujas e enlameadas e de chapéus cómicos, só o protagonista (pelo menos é o que aparece mais vezes e que constitui a linha que nos guia ao longo do filme) é que tem a pele branca e mostra um tronco limpo de tempos a tempos. E algumas mulheres. Um aristocrata deve andar limpo e cheirar bem, o que constitui firme contraste num local onde tudo e todos fedem.
A câmara acompanha este principal, Don Rumata, que é uma espécie de aristocrata ou deus ou descendente de deuses, seguindo-o verdadeira e obsessivamente ao longo de uma extensa perambulação e os episódios que se sucedem parecem não ter grande relação entre si, apenas o deus ou semi-deus no meio de muitos rostos e animais e objectos (e animais) pendurados.
Seria um grande avanço se houvesse mais filmes assim caóticos e com gente suja que (isto eu gosto muito) olha directamente para a câmara como se isto fosse um documentário e talvez porque pode ser mesmo um documentário – é noutro planeta, um que ficou na Idade Média e não chegou ainda ao Renascimento, que é uma queixa que se ouve no filme.
E o Renascimento, onde está? É tentador pensar que isto seria o que a Europa podia ter sido se, como aconteceu neste planeta, a Renascença não tivesse florescido ou porque não ou porque alguma força com propensão totalitária a tivesse impedido de florescer. Aqui chegou a haver algo que não se desenvolveu.
Quem não vir este filme será mais burro. Quem o vir ficará a andar de uma maneira diferente durante algumas horas – enquanto o seu efeito perdurar, um pouco como quando as pessoas eram mais simples e saíam do cinema transformadas. Isto quer dizer que este filme tem um poder transformativo.
Não é inocente que a semana passada aqui se tenha falado de Markéta Lazarová porque há semelhanças na intensidade colocada na criação das imagens. Existem igualmente semelhanças a nível do som, mais precisamente num desfasamento entre as imagens e o som das falas, um artifício estilístico que marca todo o filme, como marca alguns filmes de Sokurov, e que equivale a um sussuro intimista no meio de tanta confusão de gentes.
Não ver este filme é um erro, porque poucos serão tão grandiosos e tão ambiciosos e tão úteis como modelo extremo, como exemplo único.*
A história passa-se num planeta que se encontra com cerca de 800 anos de atraso em relação à Terra, na cidade de Arkanar, no Oltregolfo. 30 cientistas são enviados para estudar a situação. A Renascença não chegou a florescer, a Universidade foi fechada e as mentes mais iluminadas foram perseguidas. Alguns fugiram para Irukan, onde há mais liberdade. Isto é-nos contado no início, depois das imagens frias que parecem Brueghel e enquanto um espertalhão espeta uma lança no rabo de um defecador. Depois começa a dança.
Há uma aparência de conflito. Os Grays e os de Preto, semelhantes estes últimos a um grupo de religiosos, que se disputam no Reino de Arkanar. Eu sei que o livro dos irmãos Strugatski tem uma trama muito mais clara e que Don Rumata tem como missão salvar poetas e cientistas ameaçados por um estado em estado pré-totalitário. No filme este conflito não se define, mas a vertigem de seguir Don Rumata por entre os labirintos de Arkanar é mais que suficiente a olhos gulosos e ávidos de emoções. Se a indefinição foi propositada ou não não sei mas sei que com esta “falta” a navegação de Rumata pelo meio de tantos objectos pendurados, chouriços, animais, chocalhos, pedaços de comida, de pano, a interferir constantemente com a progressão das personagens, se torna inesquecível. Fica aqui o aviso: quem não vir Trudno byt’ bogom pode vir a sofrer com isso.

*como acontece com filmes que se tornam inesquecíveis pela sua imagética particular, como Blue, ou Tetsuo, Querelle, Eraserhead, Markéta Lazarová, Ashes of Time, Der Tod der Maria Malibran, Delicatessen, La Jetée, ou Amor de Perdição.

26 Jan 2016

Marketa Lazarová, Frantisek Vlácil, 1967

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]arketa Lazarová é o melhor filme que conheço que mais desconhecido parece das massas. Não encontro muitas pessoas que o tenham visto ou que sequer dele tenham ouvido falar. Não que essa ignorância me perturbe, antes pelo contrário. Se há algo que Markéta nos ensina é a permanecer impassíveis no cimo de um cavalo, bem armados, prontos a dispensar o golpe a quem cometer a imprudência de nos melindrar.
Markéta arrasta-nos – brutalmente, desde o seu início invernoso belo a preto e branco – para a Idade Média. Numa história de contornos nem sempre bem definidos, seguimos os movimentos de vários grupos: um bando cruel, o dos Kozlík; os homens de Lazar, mercador medroso, pai da voluptuosa e virginal Lazarová; o regimento leal ao Rei e um grupo de alemães.
É um daqueles filmes – são poucos os que o conseguem – que nos podem levar a pensar que, afinal, o cinema é uma arte para levar a sério e não apenas um entretenimento mais ou menos artístico para adolescentes ou intelectuais preguiçosos.
A história passa-se no século XIII mas a sua estética é ousada, modernista, mesmo vanguardista – sem chegar nunca ao abstraccionismo. Os planos em câmara subjectiva e alguns zooms são particularmente eficazes. Não há nenhum outro filme de Frantisek Vlácil que mostre a tal ponto esta escolha experimentalista, uma que poderá ter sido promovida pela sua passagem pelo Czechoslovak Army Film Studio, onde se praticava um cinema (não ficcional) com estas características e pela sua ligação às artes plásticas.
O próprio Vlácil confessa que chegou ao cinema um pouco por acaso (enquanto cumpria o serviço militar) e que os seus interesses primeiros se encontravam mais perto das artes plásticas, da arquitectura e da música. E também da literatura. Quem quiser pensar no realizador checo como um poeta que usa o cinema não deixaria de cair nas boas graças do autor.
Certamente que no vivíssimo romance de Vladislav Vancura*, que serve de base ao filme de Vlácil, este encontrou inspiração visual. O próprio nos fala (num pequeno documentário) da sua dificuldade em encontrar textos para os seus filmes quando a sua preocupação é tão fortemente visual e não narrativa.
Não ter frequentado escolas de cinema nem partir para o cinema através de uma apetência por ele permite uma originalidade e uma frescura que outros, poluídos pelo amor que lhe dedicam, não exibem. O amor pode originar a fraqueza.
Se pensarmos que Vancura realizara alguns filmes de metragem longa informados pela estética vanguardista soviética podemos aqui identificar uma herança. O filme de Vlácil estrutura-se em vários quadros que espelham as opções narrativas, nem sempre de leitura fácil, do romance de que partiu. As loucuras são semeadas ao deus-dará é a primeira frase do livro.
Para além destas circunstâncias, o ambiente estético da altura era propício ao experimentalismo. Mesmo que Markéta se não inscreva naturalmente no movimento da nova vaga checoslovaca, esta é uma época de ousadias. Sedmikrásky/Daisies, de Chytilová (já aqui admirado) é de 1966, assim como o enigmático, cómico e perturbador Ostre sledované vlaky/Closely Watched Trains. Do mesmo ano de Markéta é o famoso Hori, ma panenko/The Firemen’s Ball, de Milos Forman e de 1969 é um filme também há pouco tempo cronicado nesta página, Spalovac mrtvol/The Cremator, de Juraj Herz.
Sem querer estar a procurar demasiadas semelhanças entre o livro (de difícil adaptação pela sua arrogância narrativa) e o filme, note-se que a velocidade de um é a velocidade de outro. A vantagem do filme reside também no modo excêntrico como usa o som, por vezes autónomo em relação à imagem – como se nos quisesse assustar.
O bando Kozlík é um bando de bestas, um bando canídeo, vestido de peles e com uma crença profunda no poder da força. A sedução de Markéta Lazarová começa por ser a sedução do golpe mas passa por muitas outras, carnívoras, sexuais, religiosas, católicas e pagãs (as melhores) e paisagísticas. Até tem freiras e o destino primeiro de Markéta, antes da violação e da sua conversão ao amor por Mikolás, filho preferido do bandido, é o convento.
É raro um filme de época atingir este nível de autenticidade. Quem estiver interessado poderá tentar saber em que condições de obsessiva clausura e imersão Vlácil manteve os seus actores. No fim das quase três horas que dura é difícil de afastar esta sensação de imersão total. Andrei Rublev causa um transporte semelhante mas o de Markéta é muito mais físico e muito mais brutal. Pensar em muitos outros filmes passados na mesma altura só pode causar irrisão.
Se a violência do regime autoritário sob que se vivia na Checoslováquia nos anos 60 tem par neste filme não sei. O que interessaria é saber se é possível que a arte produzida sob um regime totalitário (e especialmente uma arte de massas como o cinema) não é sempre uma referência à clausura que aquele impõe. O que é certo é que Vlácil mais não conseguiu reunir o dinheiro e condições de liberdade que lhe permitissem fazer um filme semelhante.
Quando as tropas do Capitão leal ao Rei atacam a fortificação de Kozlík, sob o olhar atento do frade, quem decide os destinos do homem não é Deus mas a guerra, a força bruta. Troça-se de tudo como o Capitão troça do alemão que é suposto proteger e ajudar a recuperar o filho.
“mein sohn, mein sohn”, diz o estúpido do velho quando o vislumbra, branquinho e amaneirado, junto da paliçada dos bandidos sujos e vestidos de peles e armados para matar. – Deves ficar sabendo, velho alemão, que o teu filho, o Conde Kristián, se apaixonou por uma das filhas do bandido, Alexandra coberta de sujidade, cabelos emaranhados e sacerdotiza de amores pagãos, assim como Markéta, filha de Lazar, e assim Lazarová, não resistiu aos encantos de Mikolás Kozlík. Um filme de bandidos, é o que é.
E o último filme de Alexei German? Trudno byt’ bogom/Hard to be a God, 2013, baseado num romance dos irmãos Strugatsky.

* Markéta Lazarová existe em tradução portuguesa, feita directamente do checo por Anna e José de Almeida, editora Quidnovi.

19 Jan 2016

5 filmes recentes

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]ande de Filles (2014, Céline Sciamma) – Quando menos se espera surge um filme verdadeiramente adulto, desenvolto e sedutor. Pouco dado ao Bildungsroman (Naissance des Pieuvres, da mesma autora, tem uma figura central, Marie, com semelhanças com a de Bande de Filles) este vosso dedicado cronista preparara-se para lhe dedicar pouco entusiasmo. Mas esta história sobre os dias de Marieme, uma rapariga de dezasseis anos, num bairro social dos subúrbios de Paris, recusa desde muito cedo os clichés da vida na suburbia tanto a nível do texto como a nível do seu aspecto narrativo, assim como recusa lugares comuns próprios às histórias de crescimento. bande-de-filles-elise-sciamma-1
Em vez da exploração do calão ou da linguagem corporal das tribos dos arredores ou da exploração do tópico da raça, de justificações sociais usadas à exaustão ou do sexo, Céline Sciamma explora o inegável charme das várias figuras que mostra e a sua tendência eufórica, ao mesmo tempo que elogia a propensão de Marieme para manter a sua independência face às várias pressões que a rodeiam. Se é a história de um grupo é muito também a história da integração e da independência de Marieme.
A gradação que se desenvolve desde as cenas de futebol americano com que o filme começa até à chegada solitária a casa de Marieme é uma introdução auspiciosa cujas promessas se cumprem encantadoramente ao longo do filme.

[dropcap style=’circle’]Y[/dropcap]outh (2015, Paolo Sorrentino) – Foi quando o monge levitou que confirmei que este filme de Sorrentino não tem surpresas para oferecer, ao contrário do que acontecera com o seu filme anterior. Este dispensa, ao invés, à medida que se desenrola, uma boa oportunidade para tentar adivinhar qual o lugar comum seguinte. O do monge é paradigmático porque pensei que uma pessoa que fez La Grande Bellezza não cometesse semelhante infantilidade.
Serve Youth para confirmar que La Grande Bellezza foi feito em estado de graça. O que não quer dizer que este tenha sido feito em estado de desgraça. Uma das suas contradições é que este realizador, que é novo, tenha feito outro filme sobre a velhice e sobre as oportunidades que este estado oferece mas que é um filme velho e gasto. Youth (2015, Paolo Sorrentino)
Há que se recomende a quem não quiser ser surpreendido: algum humor, uma narração certinha, boas paisagens (que o filme se passe na Suíça não deixa de causar um sorriso a quem o vir como um filme pastoso e quase sem razão de ser), algumas imagens a imitar Fellini e, para quem gosta, grandes planos de actores famosos – mesmo que esta opção retire, como é normal, credibilidade ao filme.
Não estava à espera da banalidade da maior parte dos diálogos nem do sentimentalismo internacional que exibe (o sentimentalismo de La Grande Bellezza, um sentimentalismo italiano, tem o seu lugar próprio nesse filme.)
Consola, no fim, ver a violinista Viktoria Mullova, que deu um concerto em Macau no F.I.M.M. deste ano, e uns grandes planos de Sumi Jo. Pena seja que estas duas aparições se encaixem num desenvolvimento desnecessário e sentimentalóide.

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ia Madre (2015, Nanni Moretti) – Confesso que prefiro o Moretti dos primeiros filmes, aqueles em que se mostra irritantemente opinativo, agressivo, insistentemente apaixonado, cómico, chato, imprevisível e impossível de ignorar.
Mas mesmo que agora Moretti nos esteja a dizer (nos esteja a repetir) coisas que nós já sabemos e que não nos diga absolutamente nada de novo, há um apelo doméstico e emocional nos seus filmes que permanece sedutor. Esta sedução vem do seu trabalho de cinema e do seu saber artesanal. Mia Madre (2015, Nanni Moretti)
Não é fácil de perceber de onde vem a credibilidade destas figuras e a facilidade com que as aceitamos como próximas (não necessariamente amadas). Para quem se deixa seduzir e comover por este tipo de cinema seria difícil fazer melhor, ser mais sério e mais convincente. É um daqueles exemplos em que se pode falar de um efeito Moretti, uma imagem de marca, uma definitiva autorização.
E se o próximo filme de Moretti for assim, aceitá-lo-emos de novo, mesmo contra a nossa vontade, vergados à evidência da sua habilidade e da sua inegável humanidade.

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]hanhe guren/Mountains May Depart (2015, Jia Zhangke) – Já tinha pensado que Jia Zhangke poderia ter chegado a uma fase de indefinição no seu cinema, esgotado o tipo de filmes sobre a China que tem vindo a fazer. Depois de Tian Zhu Ding/A Touch of Sin, que tem as suas ousadias críticas e estilísticas mas também alguma indefinição quanto aos seus objectivos, difícil seria adivinhar o que viria.

RGB tiff image by MetisIP
RGB tiff image by MetisIP

Shanhe guren não é ousado a contar nem inovador a mostrar (há quem o veja até como uma capitulação às pressões do regime). As conhecidas sequências sobre o estado da China são vazias de interesse e as tramas pessoais (que começam numa história de homem rico/homem pobre que se desenvolve numa de jovem desenraizado sem mãe que se envolve com mulher madura) não despertam grandes entusiasmos.
Infelizmente exibe um traço irritante do cinema chinês que é a obsessão com a história e com o passar do tempo, o que impõe uma obrigação narrativa enfadonha – que vem da literatura – que enfarinha muitos filmes chineses das últimas décadas. Nem as imagens da fealdade de um país em constante destruição/construção, cheias de poder a nível estético e crítico noutros filmes, aqui convencem.
A parte que tem que ver com o futuro (próximo), passada na Austrália, é quase penosa pelo número de clichés e infantilidades que dispensa, ao mesmo tempo que se desagrega totalmente a nível de algumas reflexões sobre o mundo contemporâneo que poderiam causar algum estímulo. Esse estímulo não acontece e fica apenas um filme inútil, provinciano e murcho daquele que continua a ser, desde os anos 90, o mais interessante autor de filmes chineses.
Tian Zhu Ding é um filme zangado e duro, este amolece e esfarela-se no fim. O mais aborrecido é que Shanhe guren, que é um filme interessante, seja, para quem conhece os outros filmes de Jia Zhangke, um que não serve para nada.
Esperamos muito que Jia Zhangke não venha a cair na tentação de fazer um filme ocidental, como Wong Kar-wai (o ridículo Blueberry Nights), Hou Hsiao Hsien, Kiarostami ou Tsai Ming-liang.

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]ove (2015, Gaspar Noé) – o filme de Noé sublinha que o cinema devia ter mais sexo explícito, especialmente se o objectivo é falar do amor e dos outros de um modo sincero. Nymphomaniac, de von Trier, já o havia provado não há muito tempo. É preciso trancada forte para ser exacto e é preciso mostrar um pouco de coragem.
Partilha com o filme de Lars von Trier a concentração no interior de um apartamento mesmo que no do dinamarquês este seja um local que é totalmente estranho à protagonista. É essa estranheza que liberta o seu discurso. love_4
Neste Love é difícil tirar Murphy de um interior que é o seu e será essa envolvência que nos envolve a nós e que nos intriga. Este filme teria tudo para ser um grande filme de amor se a história de Murphy fosse interessante. Como elogio da banalidade das figuras e do seu comportamento seria um desastre.
Para além de coragem e de algum poder criativo seria preciso alguém que não dissesse I love Europe por poder estar na cama com uma adolescente e a sua namorada ou alguém que não dissesse que quer fazer um filme com “sangue, esperma e lágrimas porque isto é a essência da vida” – porque é nestes pequenos momentos (de que Youth está cheio) que vamos deixando de acreditar no filme mesmo que sejam usados para trivializar a sua figura principal.
Mas acredito no seu apartamento e na justeza de algumas das suas imangens, a distância da câmara ao protagonista, perto e um pouco elevada, à mesma altura da voz off.
Se a meio do filme nos perguntamos porque é que nos interessa a banal história de um homem que engravida involuntariamente a vizinha do lado e é abandonado pela namorada é porque esperamos que surja um desenvolvimento cheio de perigo, algo que cause o medo. Mas tal acaba por nunca acontecer. O que acontece é uma pequena viagem guiada por alguns efeitos Noé já nossos conhecidos. Pela altura do desfecho este já não nos causa senão um pequeno enfado.

5 Jan 2016

Amour Fou, Jessica Hausner, 2014

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]fácil ver Amour Fou como semelhante a Lourdes (2009), o anterior filme de Hausner. Existe nos dois, central a todos os sentimentos que estes filmes da realizadora austríaca demonstram, uma doença que os corrói. Nada de espantoso que se mostrem duas histórias com este tipo de semelhança. O que me enche de alegria é que em Amour Fou permaneça a encenação que tornara Lourdes um objecto de encantadora decepção. Ainda hoje não percebo bem o que é Lourdes e quais são as suas intenções.
As críticas, facilmente observáveis, que faz a alguns religiosos ou ao sistema que explora as aparições da virgem da lenda cristã, são de uma polidez que não afastam a dúvida que desde cedo se instala no filme e que o marca indelevelmente.
Hannah McGill escreve (Sight and Sound, Dezembro 2015): “the wheelchair used by Christine in Jessica Hausner’s Lourdes (2009) is the site of a miracle, a fraud or an extraordinary coincidence.”
Amour Fou tem o que Lourdes tem, se bem que a expressão da doença não seja neste último filme tão visível como o é na demonstração da paralisia causada por esclerose múltipla que condiciona a vida quotidiana de Christine. Mas, afinal, a sua doença poderá ser, como o tumor ou a úlcera de Henriette, tão real como imaginária.
O Abandonado em Amour Fou é o pobre Heinrich (Heinrich von Kleist, o autor de Die Marquise von O, livro que é referido várias vezes ao longo do filme como exibição de um comportamento que pode causar escândalo). A extrema melancolia e tristeza que o aflige e que o eleva, de início, a uma posição de importância dramática, erode-se lentamente à medida que as circunstâncias se alteram e aparece quase como objecto de ridículo.
Hausner, cruel, não parece deixar que von Kleist se exiba como um romântico convincente – e este impedimento é da mesma ordem que a da decepção que percorre Lourdes. Nem todos, contudo, entenderão as evoluções deste grupo de amigos como tendo qualquer humor.
Neste filme de 2104, à melancolia que acomete Heinrich e depois Henriette e, de certa forma, toda a família, juntam-se as visíveis críticas que se dirigem ao conservadorismo social da Alemanha (Berlim) dos anos dez do século XIX, visível no carácter intransigente da mãe, granítica ao ponto da caricatura, no racionalismo avesso a qualquer voo de imaginação do Sr. Vogel, o marido, cuja tolerância aos possíveis transportes sentimentais ou poéticos da esposa, no entanto, o cobrem de uma benevolência também caricaturizada, e nas inconveniências que um modelo social rígido impõe à opção de uma vida mais liberta e menos humilhada por estes constrangimentos. Heinrich tem um plano para libertar Henriette da humilhação causada pela convenção.
Alguns lembrarão como em Die Marquise von O (deve ver-se o filme de Eric Rohmer com Edith Clever) a intransigência moral é um mal que leva a trama a uma atmosfera de intensa opressão (no tratamento que os pais e irmão da Marquesa dispensam à filha num momento de sofrimento e dúvida).
É à volta do contrato que Heinrich deseja celebrar primeiro com a sua prima Marie e, posteriormente, com Henriette, um pacto de morte conjunta, que todo o filme gira. Apenas Heinrich, o poeta e prosador propenso ao desgosto pelo mundo, e mais tarde Henriette, possuidora de dotes musicais suficientes para ser vista como uma alma artística, se mostram sensíveis a este cenário.
A história tem como aspecto, constantemente, um fundo de profunda e dolorosa banalidade e domesticidade. É assim que Henriette Vogel canta (Mozart e Beethoven), como uma amadora, aplaudida por uma plateia imóvel e convencional onde a enigmática criada surge como uma presença fantasmagórica quase irreal.
Uma das cenas mais divertidas do filme é a em que Heinrich tenta, pela segunda vez, convencer a atraente prima Marie, agora noiva de um francês (horror, país de onde chegam ideais de um sistema fiscal a impor na Alemanha que levanta sérias dúvidas entre o aborrecido círculo dos Vogel), a cumprir de vez o pacto de morte. “Concordo que a vida não tem sentido e as pessoas são cruéis mas não há necessidade de deixar que isso o incomode assim tanto” – diz-lhe a cativante prima Marie (Sandra Hüller).
Apenas Henriette poderá desejar e compreender a sedução do medo, como se depreende de uma das conversas que mantém, logo no início, com o poeta a propósito do destino funesto da Marquesa de O.
Amour Fou conta com uma alta vantagem, um extremo rigor na composição dos vários quadros que compõem a história, de que resulta um filme muito belo e a que se juntam as vozes urgentes e por vezes lamentosas do texto.
À austeridade dos interiores e ao tom tenebrosamente ameno dos exteriores onde praticamente não se vêem céus, acrescenta-se um cuidado minucioso no tratamento cromático (e nos arranjos florais, mais exuberantes no início do filme do que no fim).
A celeridade das vozes, off e directas, uma característica muito própria da prosódia de certo cinema de língua alemã, trazem a Amour Fou uma urgência dramática e romântica que coloca as suas personagens à beira constante do perigo. Amour Fou acaba com o espectáculo das duas figuras mais brancas e mais enigmáticas da história, a espectral serva criada à imagem de Vermeers e a pequena Pauline Vogel a quem cumpre agora continuar os espectáculos de canto amador.
Que outros males, reais ou imaginários, e que outras imagens (depois destas tão belas) nos trará no futuro Jessica Hausner?

15 Dez 2015

Naruse Mikio na Cinemateca de Macau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]aruse Mikio não será o realizador japonês mais excitante. Mas depois de alguns dos realizadores com nomes mais sonantes e estridentes será dos mais interessantes pela fibra que demonstram os seus shomingeki.
Shomingeki é um tipo de filme, de imensa popularidade no Japão, que narra a vida de pessoas comuns, o constante esforço para arranjar dinheiro, o endividamento, a falta de comida ou de meios que permitam o avanço social, a vergonha, a perda de face, o desprezo pelos mais desfavorecidos, os casamentos por interesse, a inveja e a extrema abnegação de algumas das suas figuras, muitas vezes femininas. São alguns shomingeki que a nova Cinemateca. Paixão nos mostra.
A tendência para o retrato das classes comuns é uma tendência que no cinema japonês aparece nos anos 20 (com Shimazu e Gosho Heinosuke, por exemplo, o primeiro hoje em dia relativamente conhecido fora do Japão) e que se estende praticamente aos dias de hoje, mas que teve particular sucesso antes e depois da segunda grande guerra. Rapidamente o público de menos meios favoreceu a ideia de se ver retratado no ecrã.
Depois da Guerra, praticamente todos os filmes são shomingeki. A maior parte da população passava por muitas dificuldades e o cinema espelhava-o perfeitamente. É, aliás, um filme de Naruse, um dos primeiros tsuma-mono (filmes sobre esposas), Repast/Meshi, de 1951, baseado no último romance de Hayashi Fumiko, o filme que é considerado como o que relançou o género depois da Guerra.
Não é um mundo ideal, antes um registo cru e fatalista da realidade a que se acrescenta, por vezes, uma vaga tonalidade poética e uma forte ciência da transitoriedade da vida (como em Ozu, o realizador do Nada).
Pode ser, para algumas sensibilidades, um cinema repetitivo e envergonhado mas Naruse pratica-o, como Ozu, com elegância, sem excessos melodramáticos e por vezes com um forte poder evocativo. Se Naruse foi acusado de manter um estilo demasiadamente monótono, sem altos e baixos, por outro lado a sua monotonia é de uma firmeza que se torna atraente.
Nesta página, onde se contam já 64 artigos sobre cinema japonês, mais de 20 dos quais sobre filmes dos anos 60, nem um se dedicara a Naruse.
(Estas considerações tecem-se com base num universo de 8 a 10 filmes dos anos 50 e 60 de entre uma filmografia de 89 – em que 21, maioritariamente dos anos 30, se perderam. Fala-se de alguns dos mais famosos mas este é um corpus reduzido, para além de que no ciclo em questão figura apenas um dos seus conhecidos filmes dos anos 50, década em que realizou filmes que se distinguiram).
Floating Clouds/Ukigumo (1955) é, talvez a par de A Woman Ascending the Stairs, o filme mais interessante dos que se mostram na nova Cinematheque. Passion. É o mais antigo deles mas talvez um dos dois que conseguem um fôlego quase épico e será esta elevação que o tem distinguido. É uma história de Hayashi Fumiko, que cedo ganha uma tonalidade fatalista.
Começa no Vietname, durante a Guerra, onde dois amantes se conhecem. De regresso ao Japão, estes retomam o romance (mesmo que o homem seja casado) e o mais interessante é a incapacidade de reproduzir os momentos de felicidade que haviam conhecido durante a Guerra. O filme é uma longa lista de tentativas falhadas enquadradas na deprimente envolvência do Japão do pós-guerra onde não falta o envolvimento com um soldado americano.
A sua curva indica desde cedo a impossibilidade da felicidade, uma impossibilidade que se torna dolorosa porque Naruse consegue rapidamente dar-nos a perceber que os dois protagonistas da história estão irremediavelmente condenados um ao outro. Ela é a brilhante Takamine Hideko.
A Woman Ascending the Stairs/Onna ga kaidano agaru toki (1960) é talvez o mais conhecido filme deste autor. Retrata os esforços de uma mulher de 30 anos recentemente enviuvada (de novo Takamine Hideko) para sobreviver e manter a sua honra intacta num mundo materialista e masculino. Própria é a sedução que se desprende do mundo dos bares de Ginza onde se vê forçada a trabalhar, uma sedução que lhe dá um ar menos popular e menos dependente de cenas domésticas. É o mais urban cool de todos estes seis filmes.
O plano de Keiko de abrir o seu próprio bar atrasa-se sucessivamente devido a problemas de família, o habitual desfile de endividamentos, falta de dinheiro e familiares doentes dependentes de apenas uma pessoa.
A dolorosa cena final, de Keiko a subir as escadas que dão acesso a um bar que não é dela, mantêm a narrativa aberta para uma história cuja conclusão dificilmente seria eufórica.
Daughters, Wives and a Mother/Musume tsuma haha (1960) é, desta selecção, o filme que mais semelhanças tem com os filmes de Ozu mais conhecidos. Nesse género, mesmo sob a ameaça da inevitável com comparação Ozu, não desilude. A presença de Setsuko Hara, a Eterna Virgem, impede-nos de esquecê-lo.*
Os admiradores de Nakadai Tatsuya devem evitar ver este filme. O actor japonês, que nos habituou a presenças intensas como feroz guerreiro, capaz de artes marciais inultrapassáveis, parece, em Musume tsuma haha, um completo palerma.
Nesta história de inúmeras implicações familiares repete-se o tema da abnegação pessoal perante os imperativos familiares que encontramos em tantos outros filmes da época. A abnegada é Setsuko Hara. Takamine Hideko participa mas, desta feita, num papel mais secundário. Quem toma o papel de mulher independente e ocidentalizada é uma outra personagem, interpretada por Reiko Dan, mas com um relevo pouco significativo. Naruse escolheu sublinhar o elogio da abnegação a sublinhar a afirmação da independência – que nestes filmes tantas vezes vem associada à ocidentalização. **
Her Lonely Lane/Horoki (1962). À habitual exposição da vida das camadas mais destituídas, uma verdadeira obsessão do cinema dos anos 40 aos anos 60, acrescenta-se o interesse de se tratar da vida de uma escritora, Hayashi Fumiko.
Foram vários os livros de Hayashi de que Naruse se serviu para os seus filmes mas o que nos é mostrado é essencialmente a parte da sua vida anterior à consagração, um período de extrema pobreza e sucessivas histórias amorosas desastrosas.
Yearning/Midareru (1964) é uma agradável surpresa, uma história de problemática familiar que se transforma numa intensa história de amor. De repente começa a desenhar-se um improvável desenvolvimento e as cenas que se passam na viagem de comboio ganham uma independência original. Tal como acontece em Floating Clouds, o espectador, que se espera bondoso, é levado a pensar que no final da viagem se encontra a felicidade. A última imagem do rosto de Takamine Hideko, é tão emblemática como a imagem final da subida das escadas em A Woman Ascending the Stairs. Yearning é, com Floating Clouds, o mais intenso dos filmes em exibição.
Scattered Clouds/Midaregumo (1967) é uma história sentimental que se distingue pela justeza da sua realização. Não há um cabelo fora do lugar, pode falar-se de um sentimentalismo mecânico. O seu último filme é também centrado, como acontece em tantos outros (todos os que se mostram) numa figura feminina.
A trama é sedutora: uma mulher apaixona-se pelo homem que acidentalmente matara o seu amado marido.
Naruse manteve-se, mesmo no final dos anos 60, afastado de usos praticados por outros autores mais ousados como Oshima, Wakamatsu Koji, Suzuki, Nakagawa Nobuo ou Teshigahara, tendo escolhido continuar a fazer o mesmo tipo de retratos de gente comum.
Sem que se retire mérito à selecção de filmes de Naruse mostrados este Novembro, é pena que se não tenha conseguido mostrar um dos seus filmes mais conhecidos, Mother/Okaasan, de 1952. Este é o filme que Naruse considerava como o mais feliz dos seus filmes, verdadeiramente um rio tranquilo em que a consciência da fugacidade de tudo se exprime com uma sinceridade inultrapassável.
De 1952 é Lightning/Inazuma (um dos meus preferidos, que não faz parte deste ciclo). Também uma adaptação de um livro de Hayashi Fumiko e também com Takamine Hideko, é uma história comovente vista, mais uma vez, através dos olhos femininos de uma guia turística em idade de casar. Praticamente tudo anda à volta do pouco dinheiro de um seguro de vida de uma sua meia irmã. É um filme pouco conhecido e simples, que nada acrescenta às muitas manifestações do género, mas é um bom exemplo de outro filme em que não há falhas, em que no seu simples desenvolvimento há uma firmeza narrativa impecável.
Lightning é interessante em que, ao contrário do que acontece com os filmes deste ciclo, termina numa linha narrativa muito aberta em que se percebem vários traços de optimismo, o menor dos quais não será a confiança de uma mulher solteira de construir o seu próprio futuro. ***
Kyioko é o exemplo perfeito (e lembre-se que Lightning é de 1952) de uma heroína determinada e com ideias próprias que não receia fazer face a ideias ultrapassadas e que expressa um optimismo que não é comum em Naruse.
Por fim, como o título deste artigo sugere, faça-se um grande elogio à abertura, na Travessa da Paixão, n.13, junto das ruínas de São Paulo, da Cinemateca .Paixão., cujos desígnios são ainda vagos mas que desejam auspiciosos. Oferece uma atraente sala de 60 lugares e, por agora, um pequeno átrio na porta contígua.
Ao pequeno ciclo Naruse junta-se, até dia 8 de Dezembro, a mostra de 3 filmes do realizador formosino Edward Yang a serem vistos no C.C.M., de um filme de 2015 de Du Hai Bin, e vários filmes de Macau e Hong Kong.
Para lá da exibição de filmes que se distingam dos que habitualmente se mostram nas salas tradicionais, conta-se acrescentar uma videoteca e um arquivo e a promoção de seminários pertinentes à área do cinema e do vídeo. Este poderia vir a ser um local muito útil. O edifício em si é de uma justeza inultrapassável.

* Setsuko Hara, que fez 6 filmes com Ozu e ganhou desse modo uma fama que se internacionalizou, morreu com 95 anos no passado dia 5 de Setembro. O desejo de levar uma vida recatada, desde que se retirou em 1962, levou a que a notícia do seu falecimento tenha sido apenas tornada pública a semana passada.
** Para tudo isto poderá ver-se Russell, Catherine, The Cinema of Naruse Mikio. Women and Japanese Modernity, 2008.
*** Takamine Hideko tem, aliás, um tipo de rosto que inspira confiança no futuro e não o típico rosto sofredor de algumas das heroínas dos shomingeki como Setsuko Hara ou a mãe em Okaasan – a enternecedora Tanaka Kinuyo.

1 Dez 2015

As longas metragens de Jean Eustache, La Maman et la Putain e Mes Petites Amoureuses

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]a Maman et la Putain traz sobretudo a lembrança de uma era que passou, o início do nosso tempo, um em que as mulheres já se não deixam seduzir pelos soldados, um tempo em que o uniforme militar perdeu o seu charme para se ver substituído pelo prestígio do homem de sucesso, os seus carros e o seu emprego fixo.
Quando o nosso herói, Alexandre, no início do filme, pede emprestado um carro a uma vizinha esta diz-lhe, aproximadamente, que o carro não tem o pisca do lado esquerdo e que, para contornar esta falha, inventou um pequeno truque – evitar virar à esquerda. É aí que o filme de Eustache nos convence. Um homem de sucesso não conduziria um carro sem indicador de mudança de direcção, acho eu. Alexandre não tem direcção e esse é o seu segredo e o seu charme.
O que em La Maman et la Putain causa uma nostalgia paralisante é o modo como é usado o tempo. Como pode aquele que era o tempo do ócio e da largueza ter-se transformado, hoje, num tempo dedicado todo ele à utilidade?
Este filme não precisava, além disso, de ter 3 horas para se explicar, mas, no fim, percebemos que a ele se poderiam generosamente juntar mais 3 horas e meia porque esta história, autorizada já longe dos primeiros entusiasmos da nouvelle vague, faz parte de uma fase de confirmação, de uma fase em que se perdeu a necessidade de anunciar um cinema novo com estridência e em que se pode permitir uma auto satisfação.
Os temas, longamente debatidos, são os do costume, o amor, o ciúme e a frequência da cidade, neste caso, como em tantos outros filmes da época, Paris, e, sobretudo, a necessidade imperiosa da liberdade. Aqui a liberdade é a do amor e a do usufruto do ócio.
A imagem é a dos cafés, a dos cigarros constantes, da música e das referências ao cinema e, mais escassamente, ao sistema político. O que mais perturba é a incontornável instalação do tempo burguês, a instalação do tempo comercial e o tópico da pressão social em direcção ao conformismo – que levou à ditadura actual dos produtos gourmet, do design, da correcção política e do desporto.
Por isso este filme teria de ser longo e extremamente palratório, para lembrar como a conversa e os cigarros são essenciais à felicidade. Num dos seus primeiros filmes curtos, Le Père Noël a les yeux bleus, um dos personagens fala de um outro referindo-se-lhe nestes termos: não me consigo lembrar dele senão com um cigarro na ponta dos lábios. Hoje ele serve para percebermos que nos roubaram o tempo.
Não é, como se poderia esperar, mais um filme francês de conversa, mas não é fácil de isolar de onde é que vem a sedução que o envolve.

Jean Eustache realizou, para lá de várias curtas metragens, apenas duas longas, La Maman et la Putain e Mes Petites Amoureuses, respectivamente em 1973 e 1974. Não viveu muitos anos, escolheu suicidar-se com um tiro. Não conheço muitos cineastas que se tenham suicidado com um tiro. Talvez o cinema não seja uma actividade muito séria.

O mes petites amoureuses,
Que je vous hais!
Plaquez de fouffes douloureuses
Vos tétons laids! (Rimbaud)

Mes Petites Amoureuses é menos urbano e menos cool. Não tem jovens de cachecol e o centro das atenções não é um jovem urbano, intelectual e irritante mas um pré-adolescente de cidade de província, acólito de igreja e de ideias fortes.
Pode ser uma história autobiográfica de Eustache mas se não o for sê-lo-á de muitos outros jovens pré-adolescentes de cidade de província. Seja como for, uma infância na província, com os seus odores fortes e uma imobilidade húmida, marca mais que a juventude na grande cidade. É emblema da sua cruel intenção o início irónico do filme, uma canção: (. . .) douce France, cher pays de mon enfance (. . .) mon village (. . .) où les enfants de mon âge/on partagé mon bonheur/oui je t’aime . . . douce France. Será tudo menos doce esta França estática, monótona e triste e é difícil, dado o título do filme, não pensar na infância difícil e cheia de peculiares agressividades do autor do poema que o informa, Rimbaud.
Quando o pobre rapaz é obrigado a deixar a avó e a escola para ir viver com a mãe e um espanhol de semblante duro e sofredor com quem mantém uma relação ainda meio escondida da sociedade local, dá-se o começo do incómodo (a mãe distante) e do fascínio que algumas mulheres lhe causam. O crescimento de Daniel far-se-á de silêncios e de faltas de oportunidade, estas inevitáveis a partir da altura em que a mãe o retira da escola para o pôr a trabalhar.
Se o protagonista de La Maman et la Putain praticamente não se cala durante todo o filme, em redor do jovem Daniel permanece um silêncio que o distingue dos que o rodeiam.
A sentença a que não poderá fugir é declarada por um amigo (Maurice Pialat) do mecânico de motas para onde a mãe o envia para trabalhar: nunca serás mais que um pobre diabo como nós.
Em Mes Petites Amoureuses (muito mais do que em La Maman et la Putain) há uma imensa capacidade de nos dar a ver os perigos que o futuro nos pode reservar, uma imensa capacidade de nos dar a ver como se instala em torno de um jovem talentoso, apodrecenta, uma inevitável desilusão.

24 Nov 2015

Valerie a Týden divů, Jaromil Jires, 1970

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]alerie… é um filme que permanecerá sempre como algo de íntimo. Pode pensar-se que mais ninguém viu este filme e que aquilo que pensamos que ele é não passa, afinal, de um grande engano ou de algo que nos aconteceu na florescência da adolescência. Housu, de Nobuhiko Obayashi, também é assim – partindo do princípio que existe e que não é apenas uma alucinação.
Valerie… é a prova de que existem vampiros – e não apenas no cinema – e de que os padres e a religião são uma influência perniciosa para o crescimento. Assim, é um filme que sublinha um tipo de credibilidade. No que diz respeito ao crescimento e à função mágica da inocência estou preparado para acreditar mais neste filme que em qualquer outra fonte.
Seria tentador repetir algum texto que aqui já se ofereceu sobre a Nova Vaga checoslovaca mas não seria mais do que isso, uma repetição. Chegue recordar que na Checoslováquia se fizeram alguns dos mais interessantes filmes europeus dos anos 60 e 70.
Parte dos nomes mais conhecidos deste saboroso cinema já por aqui passaram, Jan Svankmajer (a propósito de um filme de 1994, Fausto), Vera Chytilová (o delicioso, voluptuoso, surrealista Sedmikrásky/Daisies, 1966) e Juraj Herz (o inquietantemente actual Spalovac mtrvol/The Cremator, 1969). gPWO7QIhpR-Zz3ZuLMe34T6RFgKkTVkXDGMRnh20qmLxSv-0EPI6-0qpTcdasvtVHPEdLjZ7lu06W1ZNBbaaMCMRgMAKppdZx4oFvDDkQhNJ-E6ivQmkwMGtfn5_gHYjvE3gkEYJRDXCsT-n6qAtaZrHhCMWrdCG8JEQnTiU4TLXeHp6es2xX_cH=s0-d-e1-ft
Lembrar que, para além dos filmes em cima indicados, o hilariante The Firemen’s Ball, de Milos Forman, o intrigante Closely Watched Trains, de Jiri Menzel e o extraordinário Marketa Lazarová, de Frantisek Vlacil (talvez o filme cujo desconhecimento geral mais me espanta) são dos anos 60, serve como alerta suficiente para a riqueza do cinema checoslovaco desta época de aberturas e repressões. Jan Svankmajer estava ainda a fazer apenas as muitas curtas metragens que o tornaram famoso e que não terão deixado de marcar toda esta geração. A sua primeira longa metragem, Alice, é de 1988.*
Valerie é a rapariga de 13 anos a cujo crescimento assistimos. O aparecimento da sua primeira menstruação marca o início de uma viagem em que ela se vê assaltada pelo mundo, num ambiente pagão e surrealista onde o sangue que os vampiros desejam tem uma marca central para além da marca da sua entrada no mundo adulto.
A jovem pende mais para a chegada de um grupo de actores que para a chegada (ansiosamente esperada pela erótica avó, fria como a neve) de um grupo de missionários. Esta avó, atraente lúbrica penitente, faz a ponte entre o universo virginal da jovem Valerie e o interesse material, sexual e monstruoso da classe clerical que invade a aldeia e a assedia constantemente. f0OnPMfTZtccOPpSuXQqlhlDqbzK-rXrBvfmet3vgVzEzyazOpycOSbo6QoYMg0SYmvM1vLfF5UvrViPaiuYv1JYt4ZVw437ng_-YqP-71-38qM4xqMJaB_B8OWxDPKTjWHkNuvFUYyo3sbTIkrOiVZ20ZxMwyp5UHY=s0-d-e1-ft
Muitos dos mistérios que se tecem ao longo do filme não alcançam resolução e esta fragmentação narrativa é uma das suas atracções. Aparentemente, os saltos e desvios que no filme se notam reproduzem os que se lêem no livro de Vitezslav Nezval em que aquele se inspirou.
De que serve saber quem é o verdadeiro pai de Valerie ou como é que esta sobrevive à fogueira a que o padre que a tenta molestar a condena, quando o que verdadeiramente desejamos é que Valerie olhe para nós de frente e nos assegure de que para lá do mal está a sua inviolável donzelice. No fim, a figura da pequena jovem sai vencedora de todas as ameaças vampíricas e clericais à sua integridade.
A opção onírico-vampírica que anima o filme de Jaromil Jires – seguindo uma tradição narrativa popular estabelecida no cinema da Europa de Leste que os vários regimes comunistas não viam como ofensiva – torna-se mais dolorosa se a virmos como um desesperado escape à repressão e ao obscurantismo que se seguiu às aberturas da Primavera de Praga. VFpojqZ4V3dUTFc8WK6IZXNeT5eWQCgeXNeHgdudyI5hX9KA0LJJhC3VVz0-NO4xiDEz4cNVYRFYuVx_jJVgnQ0dJeaqsYI1Sr6NW1QDtCxMpCfp3ZCLjZJn=s0-d-e1-ft
Explica Jana Prikril (autora do texto que acompanha uma edição recente do filme) num artigo constante de uma edição de início de Outubro de 2015 da NYRB, que esta é uma altura em que as autoridades checoslovacas baniram os filmes de alguns dos autores mais famosos mas se esforçaram, também, por manter a ilusão de uma cinematografia continuada e de sucesso. Ironicamente (veio a descobrir-se mais tarde), o poder via Menzel e Jires como dois realizadores capazes de fazer, com sucesso, filmes acessíveis ao público. Não foi isso que aconteceu com este filme que aqui se distingue.**
Com o onirismo e o cliché do filme de vampiros mistura Jires uma outra face pagã e lírica, e desta ousada fusão resulta um filme que os censores inexplicavelmente não proibiram – como acontecera com a sua longa metragem anterior, The Joke (1969), muito mais abertamente crítica e de um nihilismo mole humoristicamente contrário ao optimismo oficial dos inícios do comunismo da era do pós-guerra.
O absurdo de algumas das demonstrações de Valerie age eficazmente como exibição dos absurdos do regime mas os seus censores parece não terem entendido a sua mecânica. Passados quase 50 anos, Valerie a Týden divů torna-se cada vez mais delicioso e cada vez mais improvável. Ao contrário de Krik/The Joke ou Zerk/The Cry, a passagem do tempo tem-lhe trazido favores inesperados.

* ver as cerca de 15 curtas-metragens que Jan Svankmajer realizou nos anos 60 e 70 é um inestimável avanço no conhecimento do cinema checoslovaco destas duas décadas. Svankmajer continua em actividade e espera-se com ansiedade a conclusão de The Insects.

** O regime queria “filmes para o público, filmes para hoje, filmes para socialistas”. Quase 50 anos depois é espantoso e doloroso verificar que há países em que esta prática totalitária persiste e que filmes que deveriam ser orgulhosamente celebrados como exemplos de criatividade são, ao invés, escondidos da população ao mesmo tempo que os seus autores são perseguidos.

3 Nov 2015

A propósito de alguns filmes africanos II

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stas linhas continuam umas que se dispensaram a semana passada sobre alguns filmes africanos francófonos. Falou-se de alguns filmes de Ousmane Sembene e de alguns filmes africanos dos anos 80 que recolheram, à altura, merecido favor internacional.
Filmes como Yeelen e Yaaba ajudaram a fixar uma imagem rural e tribal do cinema africano. Vários filmes senegaleses dos anos 60 e 70 ajudam-nos a perceber, através das suas sedutoras histórias urbanas, que, felizmente, nem sempre assim é.
Eu gosto particularmente de um filme senegalês de 1973, Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty. Nele encontramos, como em Xala (de Ousmane Sembene) o à-vontade de quem sabe, com impecável segurança, demonstrar uma forte crítica ao modo de funcionamento do país e a situações pessoais através de um tom sarcástico e superficialmente despreocupado.
Apenas um nível elevado de sofisticação satírica permite esta adequação de um tom humorístico e auto-crítico a este tipo de matérias. O distanciamento irónico de Touki Bouki não é muito diferente do que Ousmane usa com habilidade em Xala e Mandabi e afasta-se da imagem tribal e rural que se veio a associar ao cinema africano.
A trama é simples. Um casal tenta reunir dinheiro para poder emigrar para Paris. É impossível não estender a Mory e Anta, os arrogantes heróis desta história, todo o nosso apoio e simpatia. Assim como Xala, este é um filme urbano e gingão, excelente exemplo de como o cinema africano desta altura não merece o paternalismo e a condescendência com que foi tratado quando, nos anos 80, se tornou mais conhecido. Apetece pensar que quem viu este cinema não conhecia o que se passara nos anos 60 e 70.
Mais ousado narrativamente é o curto (56 min.) Badou Boy (bad boy), de 1970, também de Djibril Diop Mambéty. O genérico não engana, estamos perante um objecto do tempo, uma espécie de documentário/ficção nouvelle vague onde o protagonista é um rapaz de rua em fuga de um polícia obeso e bonacheirão. Estamos igualmente longe de uma história lamechas sobre um rapazinho pobre, o tom é agressivo, urbano e cool.
Outra metragem curta de Mambéty é a comovente La Petite Vendeuse de Soleil, de 1999, o seu último filme, pouco mais de 40 minutos de retrato de um cidade confusa e cheia de animação e sol. A mistura das linhas urbanas de cor e de som de La Petite Vendeuse de Soleil, agressiva, serve de lição a algum cinema de boas intenções mas murcho que hoje se pratica.
Sili, a rapariga que protagoniza a história, comove e causa afecto. É parecido, no seu programa, com Badou Boy, e excita no espectador não a pena mas uma admiração firme e combativa. Trata-se assim de uma história que rejeita a imobilização resultante da mera compaixão mas que promove, ao invés, um impulso criativo activo.
Sili é uma pequena pedinte, aleijada, de cerca de 10 anos, que é hostilizada por um grupo de rapazes que vendem jornais. Sili impõe-se dedicando-se corajosamente à mesma actividade que eles. La Petite Vendeuse de Soleil (Soleil é o nome do jornal) causa uma disposição activa e revolucionária.
O realizador maliano Abderrahmane Sissako realizou 2 filmes, respectivamente de 2006 e 2014, Bamako e Timbuktu, que interessam a estas linhas porque são exemplos de dois filmes africanos que alcançaram reconhecimento internacional recentemente. Pode-se dizer-se sem grande erro – continuando um propósito mais bondoso que académico – que ver os filmes dos dois realizadores senegaleses aqui admirados, Ousmane Sembene e Djibril Diop Mambéty, dos dois malianos Abderrahmane Sissako* e Souleymane Cissé e do burquinense Idrissa Ouedraogo, constitui uma introdução fértil ao pouco conhecido cinema africano.**
Bamako é uma engenhosa encenação. Um filme genial na construção que se atinge, de um discurso em que paralelamente se faz desfilar um conjunto de acções e magníficos rostos locais e um tribunal contra o sistema que perpetua no Mali, e em África em geral, a fome, a pobreza e a corrupção. Os culpados são o F.M.I., o Banco Mundial, a Dívida e George Bush, mas também a administração local. É uma queixa exemplar, cujo grito se compõe tanto dos argumentos apresentados em tribunal como de gestos do quotidiano. O engenho consiste na forma como se fundem.
Os medos ocidentais da emigração e do terrorismo e a morte e exploração de inocentes são também temas deste tribunal. Bamako causa uma disposição ousada e excitante.
Timbuktu está muito bem embrulhado, as paisagens são bonitas (na Mauritânea?) e a indignação que se pretende promover cresce sem grandes violências mas com firmeza. No entanto, não mostra uma construção surpreendente, como acontece com Bamako e é, assim, mais esquecível.
Elogie-se a recusa de cair na tentação de estender a apresentação do absurdo a um nível que entre em choque com o tom suave do filme.
Permanece em Timbuktu (penso em Bamako) uma sensibilidade aguda no retrato das emoções e das acções simples do quotidiano, mas confesse-se que, conhecendo Bamako, esperava um filme mais ousado e mais surpreendente e não um que se pode fundir num gosto internacional giro. Estou certo que são muito os defensores deste filme bondoso e de ousadias tonais. Timbuktu causa uma disposição contemplativa e amolecida, longe da combatividade que Bamako promove.

* Abderrahmane Sissako nasceu na Mauritânia e emigrou cedo para o Mali. Vive em França. O filme, Timbuktu, é considerado mauritâneo.

** O autor destas linhas não desconhece o fenómeno Nollywood mas sobre ele não sabe discorrer. A Nigéria é, depois da Índia, o segundo produtor mundial de filmes.

21 Out 2015

A propósito de alguns filmes africanos I

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] meu conhecimento do cinema africano é muito escasso. São duas as razões por trás desta falha: o difícil acesso e a pouca informação que existe sobre ele. Confesso que a elas se junta um interesse médio. Tirando Yeelen, de Souleymane Cissé (Mali, 1987) e Yaaba/Avó, de Idrissa Ouedraogo (Burkina Faso, 1989), que passaram no circuito comercial ou em sessões de cinemateca em Portugal (ou terá sido na televisão?), pouco mais cinema africano (com a excepção de filmes egípcios) me lembro de ter visto durante os meus anos de formação. Assim, as considerações que aqui se tecem devem ser recebidas mais como produto de uma súbita curiosidade do que como produto de um conhecimento aturado.
Yaaba é a história da exclusão social de uma velha, Sana, que se torna amiga de um rapaz. É sobre superstição mas contém também apelos à tolerância e à compreensão. O rapaz, Bila, tem um pensamento excêntrico ao que é normal na aldeia – ele é quem tem razão nas questões que excitam o lugarejo e este torna-se um filme amigo, banhado de uma benevolência universal.
Yeelen é um filme do Mali que ganhou fama internacional nos anos 80. Também é uma aventura rural e também se debruça, como Yaaba, sobre feitiçaria. Estes dois filmes ajudaram a fixar uma ideia rural (e étnica gira) sobre o cinema africano – pouco conhecido internacionalmente até à altura – que se tem mantido.
Já aqui se falou longamente sobre o papel que os festivais de cinema têm tido na divulgação de cinematografias menos conhecidas a propósito da indiana e da japonesa. O mesmo se aplica às do Senegal, Burkina Faso e Mali.
La Noire de… (1966), de Ousmane Sembene, foi provavelmente o primeiro filme da África sub-saariana a alcançar alguma fama internacional e será um dos primeiros filmes feitos por um africano (ou o primeiro). É o primeiro filme de Sembene. A administração colonial francesa manteve até tarde uma interdição de fazer filmes a quem não fosse francês e só nos anos 60 se pode falar verdadeiramente de um cinema africano feito por africanos dos países de expressão francesa (por oposição a um cinema sobre África feito por autores ocidentais que mereceu muitas vezes a censura africana).
La Noire de… conta as desventuras de uma rapariga senegalesa enquanto empregada doméstica num país que imaginara belo e acolhedor, a França, mas que acaba por não conhecer por se ver mantida num estado de quase aprisionamento e total objectificação. O filme conta-nos a sua revolta, mostra-nos a sua frustração e interroga-se sobre a identidade de Diouana enquanto servidora.
É um filme seco e agreste, engolidor, filmado num preto e branco frio e rugoso e que deixa o espectador num estado de entorpecimento. Não existe aqui qualquer hesitação de primeira obra, esta é uma pequena (55 minutos) obra prima.
Não será o último filme de Sembene a dar uma importância central ao destino das mulheres – a par das inevitáveis referências à venalidade, ao colonialismo e ao neo-colonialismo (o Senegal tornara-se independente em 1960).
Em Mandabi (1968) Ousmane tece uma história de humor subtil em que a burocracia e a corrupção se exibem com uma calma morna. Ibrahima recebe um dinheiro de França, de um sobrinho, e antes de o poder levantar é assediado por um grupo crescente de ávidos interesseiros. Arranjar a documentação necessária para poder levantar o dinheiro do sobrinho é a grande tarefa do simples e bondoso Ibrahima.
Nesta pequena viagem encontramos a venalidade, a preguiça, o engano, a mendicidade e um sol inclemente. A cada esquina espreita um pequeno ardil para ludibriar o incauto analfabeto. Nem sempre esta técnica – a de estender a crítica a um país através de uma história pessoal quase banal – se alcança com a facilidade com que Ousmane Sembene no-la serve.
Xala (1974), outro filme do mesmo autor senegalense, também conhecido como escritor, conta a história de um casamento de um membro proeminente da Câmara de Comércio senegalesa com a terceira mulher. O tom é o tom seguro de quem sabe perfeitamente o que está a fazer. O humor resultante da sua falha sexual para com a terceira mulher acompanha a crítica da europeização da classe dirigente africana.
Um dos presentes na festa de casamento, um negro senegalês, afirma que já não passa férias em Espanha porque há muitos negros. O modo como as mulheres escolhem vestir-se, tradicionalmente ou à europeia, indica, como no cinema japonês e indiano foi marca muito útil, gostos pessoais que mostram a tensão entre o modelo europeu e o modelo local e entre o desejo de afirmação nacional (ou continental) pós-colonialista e a incontornável sedução da europeização.
Hadji, o noivo, recusa-se (como recusara outras pequenas sugestões de amigos) a vestir um kaftan e a praticar um ritual tradicional propiciatório de um bom desempenho sexual. As mulheres não deixam de o culpar por não ter aceite praticá-lo. “Vocês têm todos a mania que são europeus” – diz uma delas.
Na altura da consumação do terceiro casamento Hadji falha e não há como negar o problema: Hadji tem a xala – é necessário consultar um marabout.
Paralelamente à história de Hadji, uma em que as mulheres, muito menos submissas do que de início se poderia pensar, têm uma importância nuclear, mostra-se a corrupção e a prepotência da classe dirigente que – num caso particular, quase cómico – lava o seu Mercedes com Evian. A impotência de Hadji é a impotência do Senegal do pós-colonialismo em constituir-se como uma nação de progresso e transparência 14 anos depois da independência.
Como continuaremos a ver na próxima semana, ao falar de Djibril Diop Mambéty, estes são filmes urbanos e sofisticados, longe da impressão rural e paisagística séria que se criou posteriormente a propósito do cinema africano.

(continua)

13 Out 2015

Albert e David Maysles

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a verdade as únicas coisas que são necessárias são uma câmara e um bom microfone. Albert e David Mayles provam-no em vários dos seus documentários. Só conheço três. Um tema atraente é uma ajuda inestimável.
Grey Gardens (realizado com Ellen Hovde e Muffie Meyer) não agradará a todos. Duas mulheres de idade, mãe e filha, aparentadas à família Kennedy, vivem numa casa delapidada em condições de higiene atrozes. Agradará contudo, a todos os que encontram nele matéria para se congratular com a sua própria situação. Ou agradará a quem sentir uma propensão – ou não consiga resistir – para uma lenta queda aguda.
É muito atraente ver os resultados da queda social e mental de duas mulheres de boa família. O contraste cruel que a exibição das suas fotografias de juventude cria sublinha as nossas próprias crueldades finas. O cinema e a fotografia, mais do que a pintura, a arquitectura ou a música, são artes que exploram a fraqueza.
À exibição deste contraste junta-se o discurso de mãe e filha, um discurso ensaiado ao longo de décadas, cheio daquilo que nós pensamos que é uma tristeza e uma solidão imensas, décadas de um insistente discurso recriminatório praticado num mundo fechado, cercado por uma vegetação cerrada, espinhosa e labiríntica. É uma grande incompreensão, onde residirá também a incompreensão por um afecto e por uma dependência que pode também ser a nossa.
Esse o transporte que em Grey Gardens e em The Beales of Grey Gardens (feito posteriormente com material que sobrara do primeiro filme) se opera – a transferência para nós de um conjunto de situações que de início nos parecem inteiramente excêntricas. E, repita-se, pouco mais é preciso que dedicação, um pouco de amor, uma câmara e um bom microfone.
Salesman (1969, com realização também de Charlotte Zwerin) apresenta uma imagem pouco usual da América. Faz pensar em Wise Blood, de John Huston, que retrata uma América provinciana cuja persistência hoje não é já uma surpresa mas a confirmação de que a história não tem necessariamente de caminhar para um futuro de tolerância e modernismo,
Pouco interessam algumas críticas que se apontam aos irmãos Maysles por não serem por vezes tão verdadeiros quanto a ideia de cinema verdade – ou cinema directo – com a qual aparecem frequentemente associados, impõe. Os filmes que ficaram são testemunhos bem directos de aspectos menos conhecidos da América.
Salesman segue um grupo de vendedores de bíblias de luxo em Nova Inglaterra e na Florida. Para além de ser sobre religião é mais particularmente sobre um pobre diabo, o Senhor Brennan, que tem de vender o Livro para sobreviver. Tão atraente como a tristeza que o envolve é penetrar nas casas de classe média baixa das famílias a quem tenta vender o seu produto.
Este é um filme que explora, com compaixão, uma estética do falhanço. Um grupo de homens solitários e cinzentos cuja identificação – ou sequer afecto – para com o produto que vendem nunca vem ao de cima. O semblante carregado, a pressão de vender, o cabelo molhado, os cigarros constantes, uma linguagem corporal pesada e a persistência da referência às origens, irlandesas ou escocesas, são as parcelas visíveis desta imagem.
O espectador, cruel como um estudante liceal, delicia-se na queda lenta do pobre Brennan (diferente da queda de Grey Gardens, a que não assistimos mas que é uma queda consumada, acabada, compreendida, vivida com compulsão, e em que as duas figuras principais, mãe e filha, se acabam por constituir como verdadeiras personagens cujo comportamento excêntrico as torna quase ficcionais), no espectáculo dos motéis, das camisas de manga curta com gravata e canetas no bolso e das conversas pouco interessantes.
Assim como Grey Gardens, Salesman é sobre entrar na casa dos outros, e como ele um produto sedutor mas de um sabor amargo que questiona a justeza da nossa propensão para a coscuvilhice. Nos dois se demonstra uma domesticidade que vem acompanhada de odores e ruídos próprios e reforça a ideia de que o tom documental não é necessariamente diverso do ficcional.
A nível da intenção, a ficcional e a documental, não existem diferenças que vão para lá de uma fachada, e estes filmes ilustram com brilho a ideia que já aqui nesta página se expôs várias vezes sobre a indefinição da fronteira entre o documentário e a ficção e a ganga classificativa que tem acompanhado, inutilmente, a historização e a classificação do cinema. O cinema é a arte de que menos se devia falar.
Tal como acontece com Grey Gardens, o aparente desprendimento da equipa de filmagem vai aos poucos demonstrando afecto pelas figuras filmadas e o modo como se fixa, intensamente, nos rostos dos retratados, revela um inocente desejo de compreender e de penetrar fundo no seu sistema de desejos e desilusões.
Gimme Shelter, 1970, co-realizado com Charlotte Zwerin, é um pouco diferente. É sobre um concerto da banda Rolling Stones, o Altamont Free Concert (1969), integrado numa tournée pelos Estados Unidos – houve 4 nascimentos e 4 mortes. A inocência do Flower Power esgotara-se, a densidade que se desenvolveu neste espectáculo é violenta e natural.
É conhecido porque se centra num concerto onde se deram vários acontecimentos, não musicais, que o marcaram. Trata-se, ao contrário dos outros dois filmes, de um filme sobre um grupo de pessoas conhecidas e sobre um acontecimento famoso. Não retrata de modo nenhum uma existência doméstica.
Não nos deixemos arrastar por grandes entusiasmos. Não são grandes filmes. Cinematograficamente pouco há que os distinga para lá de um à-vontade de ir filmando, sem planos, deixando correr a filmagem, o que ficou conhecido como cinema de reacção – o seu encanto vem desta inocência. Libertam a ideia de que qualquer um, com uma câmara e um microfone poderia fazer filmes semelhantes (de certo modo é o que acontece hoje em dia, especialmente porque filmar é uma actividade muito acessível em termos de custos e em termos técnicos).
O que os distingue é o interesse que a vida dos retratados podem suscitar junto do público. O mesmo se pode dizer dos filmes de um outro autor americano que já foi alvo de atenção nestas linhas: Errol Morris. Neles se exibe uma América demente e sanguinária e uma obsessão pela morte, mas também um comprazimento (em alguns) pela descrição do interior doméstico e pela excentricidade de figuras banais. Aceder aos filmes dos irmãos Maysles e de Errol Morris permite aceder, pelo menos, a uma colorida encenação da América.

29 Set 2015

Índia

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Uma das prendas que o cinema, como arte simples e acessível, oferece a um público largo, é a possibilidade de aceder a impressões profundas de países e lugares não visitados ou pouco conhecidos.
Um admirador de Bergman conhece, sem nunca ter ido à Suécia, o efeito que uma brisa de fim de uma tarde de Verão provoca como anunciadora do Outono assim como um seguidor de Ozu sentirá sem dificuldade, sem nunca ter estado no Japão, o odor húmido de um jardim, também no Verão, e a resignação no olhar das suas personagens simples e em geral boas. O cinema condenou-se desde cedo a ser uma arte sensual.
Poder-se-iam acrescentar muitos outros exemplos de como o cinema nos permite entrar facilmente na casa de um parvenu senegalês ou num bordel do Arkansas. Wadjad, de Haifaa al-Mansour (2012) mostra que as ruas de Riyadh não estão pavimentadas a ouro mas demonstram uma inesperada pobreza urbana. Bastam 20 minutos para que se alterem ideias sobre um país.
Um dos países que melhor conheço, sem nunca lá ter estado, é a Índia, uma Índia que se começou a insinuar suavemente em mim através dos filmes de Satyajit Ray e que com o concurso de outros autores é uma referência cinematográfica e civilizacional fundamental.
Satyajit Ray cumpriu, junto de um público mundial, o mesmo papel que Kurosawa (especialmente através de Rashomon) preenchera como foco de atenção para com o cinema japonês. Mas se no Japão Mizoguchi e Ozu se insinuaram também como responsáveis por esta onda de interesse, não se pode dizer que Ritwik Ghatak, Mehboob Khan, Raj Kapoor ou Mrinal Sen tenham ultrapassado, como aconteceu com os dois autores japoneses acima indicados, um injusto anonimato internacional.*
No que pertence ao cinema, em particular, a Índia – como a Rússia, o Japão, os Estados Unidos ou a Itália – tem filmes cujo desconhecimento impossibilita qualquer tentativa de perceber minimamente esta popular forma de entretenimento (assim como um desconhecimento do cinema mudo o provoca).
Nesta página só se falou de filmes de Ray, provavelmente porque o cinema indiano provoca em mim um desfalecimento iluminado que o tem impedido e porque o acesso a outros filmes deste país nem sempre é fácil. O cinema indiano provoca um conhecimento do mundo que previne que se descorra sobre ele.
Subarnarekha é um filme em bengali, de Ritwik Ghatak, realizado durante uma das épocas de ouro do cinema indiano, os anos 60.** Nele se discorre sobre a prepotência exercida pelos poderosos sobre os desprotegidos e a perda de inocência dos sonhadores. Como acontece com alguns filmes de Ray, Subarnarekha tem o poder de, subitamente, no meio do abandono a que nos deixara, nos espantar com uma revelação. O crescimento de Sita, de uma pequena criança para uma jovem mulher é um pequeno milagre, como milagre é o equilíbrio que tantas vezes neste cinema se consegue entre o filme de denúncia social e o de uma poderosa força poética.
Parte do encanto desta cinematografia vem sua da música e é difícil não lembrar Bruce Chatwin (mesmo que esteja errado, Chatwin tem o poder de nos convencer ou de nos deixar seduzir por algo em que não acreditamos) quando este argumenta que as línguas nasceram da canção, assim como é indispensável, ao receber o cinema indiano, deixarmo-nos arrastar pela força fluvial da sua música.
Como por milagre, a história de Sita e Abhiram transforma-se numa história de amor. Talvez seja melhor nunca ir à Índia.
O Rio Subarnarekha não podia levar-nos senão na direcção de uma outra transformação, esta trágica. Uma pequena revelação e o sistema de castas toma conta de todo o filme.*** Esta é a história de Sita mas também a história do irmão, Ishwar Chakraborty, e o comércio que faz da sua integridade revolucionária por uma vida de conforto e sucesso material. Nenhuma delas se conta aqui com pormenor, mas avisa-se que os indianos têm uma capacidade firme para transformar uma história quase banal numa de pertinência universal. O modo como as curvas do rio (que aqui não é um rio sedutor e solar mas, ao invés, agreste) se definem é o modo como se vão mostrando as curvas da vida de Sita e do irmão Ishwar.
Seria útil, e não muito difícil, fazer um trabalho em que se explicasse com detalhe como o cinema indiano e o cinema japonês dedicam uma atenção persistente à glorificação da mulher e das suas conquistas. Lembro poucos filmes indianos onde a sua presença não seja determinante.

* Pather Panchali, de S. Ray, é de 1955. Foi visto, e nunca mais esquecido, no Festival de Cannes de 1956. Rashomon, de Kurosawa, que o Festival de Veneza lançou internacionalmente, é de 1950.
** dois dos filmes de Ray de que aqui já se falou são dos anos 60, Charulata e Mahanagar. Outro, Jalsaghar, é de 1958. São os três em bengali (Ray tem apenas um filme em hindi, Sadgati/The Deliverance e um outro, o exemplar Ghare Baire/The Home and the World, falado em hindi, urdu e inglês. Todos os outros são em bengali ou, três deles, em inglês).
*** desde cedo que o cinema indiano tomou o tema das castas como assunto. É um exemplo de como esta cinematografia se debruça sobre a força do preconceito e a persistência de certo tipo de interditos cuja quebra promove a queda, a glória ou o martírio. É preciso, no entanto, lembrar que sendo a Índia o país que mais filmes produz anualmente, estes assumem expressões muito diversificadas.

22 Set 2015

The Assassin, Hou Hsiao-hsien

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]erdera um pouco o rasto a Hou Hsiao-hsien. Millennium Mambo (2001) pouco mais me parecera que um exercício incerto, perdido numa bruma incerta e sem o pneuma dos filmes de Hou dos anos 90 e, particularmente, dos anos 80. Three Times (2005) pouco fez para descontinuar essa disposição.
Flight of the Red Balloon (2008), que pode ser o melhor filme de sempre, evitei ver a todo o custo: um asiático em França é meio caminho andado para o disparate (sendo a grande excepção Love and Bruises, 2011, de Lou Ye, um realizador responsável por muitos filmes importantes para a formação de um gosto do século XXI – só tenho pena de não gostar de praticamente nenhum).
Não vejo nos filmes de wuxia de Zhang Yimou, Ang Lee, Tsui Hark, Chen Kaige ou John Woo (faço uma pequena excepção, muito pequena, para Dragon/Wu Xia de Peter Chan), filmes que lançaram o género globalmente, motivo para grandes entusiasmos. Tenho dificuldade em ver, para lá de uma vontade pornográfica de agradar a todos, algo de substancial ou de pessoal nestes grandes projectos ruidosos, ansiosos de cumprir os requisitos de uma globalização que funciona porque se atinge com efeitos fáceis.
Por todas estas razões, e umas difíceis de identificar, não esperava nada de The Assassin, nem muito nem pouco, e certamente nenhuma surpresa.
Este parece planeado de forma a contrariar a formulação com que filmes como Hero; Flying Tiger, Hidden Dragon; Red Cliff; The Promise; Seven Swords ou House of Flying Daggers têm vindo lentamente a cristalizar o género do filme de artes marciais.
Se o que The Assassin oferece de novo não é suficiente para criar um brilho ofuscante, é suficiente para ajudar a acreditar na sobrevivência do género para lá de uma formulação destinada a um mercado de massas completamente incaracterístico e anódino que transformou o wuxia num género deslavado e, curiosamente, muito semelhante a algum cinema americano.
Um outro exemplo desta formulação, mais amolecida que arrogante, é The Grandmaster, de Wong kar-Wai, o modelo perfeito de como facilmente a decadência se insinua num autor anteriormente capaz de filmes sedutores e pessoais (e, inclusivamente, de um wuxia intrigante, belo e hipnótico, Ashes of Time, valoroso porque fora do seu tempo, o melhor western noodle ou wuxia spaghetti de sempre – ou o único).
Não é de estranhar que após um filme completamente vazio, como é The Grandmaster (que fora antecedido de um filme patético, My Blueberry Nights, um desastre total) pouco se tenha ouvido falar de Wong kar-Wai. Estas coisas têm um ritmo próprio.
As águas paradas em que Hou Hsiao Hsien caíra com Millennium Mambo e Three Times, e de que se salvou com The Assassin (Flight of the Red Balloon, repito, não vi) são as águas em que Wong kar-Wai ainda parece encontrar-se.
A banda sonora de The Assassin é diferente das dos filmes em cima referidos. A música é quase inexistente e nunca é intrusiva, rejeitando o efeito fácil com que é usada nos outros. O mesmo se passa com as imagens, muito menos agressivas e muito menos manipuladoras. Não há, como é costume nos wuxia recentes, cenas com muitos figurantes, grandes cavalgadas ou barulho. É um filme sem truques de qualquer espécie, quase envergonhado em mostrar e praticamente sem imagens geradas por computador (que são, hoje em dia, ainda ridículas).
Este é o programa do filme, e é a tentativa em permanecer humilde que o distingue. As imagens de interiores não conseguem, no entanto, desviar-se suficientemente da tentação da composição histórica gira. Hou Hsiao-hsien consegue, mesmo assim, distanciar-se do tipo de imagens vazias da maior parte dos filmes de artes marciais de Zhang Yimou, Ang Lee ou de alguns de Chan Kaige. Este filme tem muitas coisas que os outros não têm: humildade e bondade. É fácil de acreditar nele (ao contrário do que acontece com um exercício oco como The Grandmaster) – até na sua suave sensualidade.
The Assassin tem a beleza gentil de um quadro inacabado, não apenas através da singeleza da sua história mas através do tom quase suplicante que demonstra. Espera-se com ansiedade um novo wuxia de Hou Hsiao-hsien um pouco menos envergonhado e com um pouco mais de ousadia – o que não é o mesmo que barulho. É prova de que é possível fazer wuxia sem demasiado ruído, assim como Ashes of Time é prova de que é possível fazer um wuxia contemplativo e quase psicadélico.
O tom intimista resulta também do enquadramento das cenas de interior, que contêm espaços reduzidos (não há grandes salões, salas de audiência ou pavilhões), e uma rejeição por uma sumptuosidade fácil a que os outros não resistiram. Não admira que fora da Ásia Extrema vários espectadores se tenham deixado encantar por este exotismo chinês fino (o que não quer dizer que não se tenham também deixado levar pelo exotismo extremo de outros projectos de objectivos mais claros).
Ao invés, as cenas de exterior são de uma finura crua e céus deliberadamente menos trabalhados que contrariam a minúcia no tratamento dos interiores. É nas cenas de exterior que o filme mais se liberta, mesmo que seja nos interiores que a sua intriga se urde. São estes céus que fazem lembrar, sem nostalgia mas com esperança no futuro, nos céus infinitos e livres dos filmes taiwaneses de King Hu.

8 Set 2015

A propósito de Seconds, John Frankenheimer, 1966

We are interfering with natural laws, em Tanin no Kao, Teshigahara

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ouco se tem falado nesta página sobre cinema norte-americano. Por falta de interesse. Ao ler uma lista de 100 filmes americanos surpreendeu-me a ausência de Seconds, de Frankenheimer (ou de um filme que seja de William Hellman ou Douglas Sirk). A classificação contém, no entanto, filmes parvos, como Forrest Gump, ou filmes estúpidos, como The Tree of Life (ou será que este filme é uma comédia?).
John Frankenheimer é autor de alguns filmes importantes/interessantes datados dos anos 60 e 70: The Manchurian Candidate e Birdman of Alcatraz (ambos de 1962), e French Connection II (1975). Seconds deve ser o seu filme mais excêntrico.
Seconds é um objecto estranho, uma espécie de mistura de drama psicológico, ficção científica e filme político. É a preto e branco, bonito, inquietante, e mostra um nervosismo de quem não sabe bem o que fazer.
É, de início, um filme distante, como se tudo se passasse numa esfera de difícil acesso e impossível de tocar. É a sua excentricidade que o traz a esta página.
Rock Hudson é Antiochus Wilson. Este é um papel muito diferente do papel de jardineiro tonto que interpreta em All that Heavens Allow porque este não é um filme típico. E é por não ser um filme típico que está aqui. Meshes of the Afternoon também esteve, assim como um filme de William Dieterle sobre uma rapariga elusiva (apenas porque me continuo a recusar a aceitar que é só por causa da música).
Arthur Hamilton é um banqueiro de meia idade que recebe um telefonema de um amigo que julgava morto, membro de uma organização secreta chamada Company. Desiludido com o vazio da sua vida profissional e doméstica, Hamilton aceita um pacto faustiano que lhe permitirá ganhar uma nova identidade sob o nome de Antiochus Wilson, um pintor com residência na Califórnia. É aqui que entra o infeliz Rock Hudson.
Como é que ainda não se conhece a verdadeira causa do assassinato de Kennedy ou a identidade de Deep Throat ? Americans love a secret, e o cinema americano está cheio de teorias conspiratórias, um amor pelo segredo e um medo de poderosas organizações que é um medo parecido com o medo chinês.
A paranóia de Seconds é um bom exemplo do receio da desestabilização e do caos (aqui não um medo de uma ameaça exterior) que percorre a história europeia da América do Norte e que o cinema dos anos 60 e 70 (anos de guerra, manifestações, hippies, assassinatos, Watergate, drogas, música popular e invasão da privacidade) não podia deixar de retratar (há, por exemplo, muito cinema político).
Algumas das cenas da transformação de Hamilton em Wilson fazem parte de uma operação plástica real e este dispositivo realista e macabro tem marcado a recepção do filme ao longo dos anos. É fácil vê-lo sob essa perspectiva do choque de um outro tipo de invasão, a invasão do corpo.
Sensivelmente a meio do filme, Frankenheimer insere uma secção hippie com uma festa dionisíaca na Califórnia. Esta serve para lembrar que Seconds não é um grande filme. Mas o resto confirma-nos que é mais do que um cult movie tradicional ou uma curiosidade de série B. Há longas secções (no início e mais para a sua conclusão) em que a descrição da paranóia e da perseguição é muito convincente. *
Depois das cenas pagãs seguem-se umas cenas de uma festa na casa de praia de Antiochus (tudo muito sunshine noir) onde se repõe o nível perturbador e conspirativo do princípio do filme – especialmente quando Antiochus percebe que os outros convivas são também, como ele, reborns (Rosemary’s Baby, de Polanski, será muito assim, dois anos depois).
É difícil não lembrar um filme japonês há vários anos aqui elogiado, e muito mais interessante que Seconds a todos os níveis, e que lida igualmente com questões de identidade: Tanin no Kao (The Face of Another), de Teshigahara Hiroshi, coincidentemente do mesmo ano de 1966*.
Também no filme japonês há uma envolvência científica e assustadora que corteja alguns lugares do cinema de terror e até do filme policial. Nele se exibe a possibilidade da produção de uma máscara, uma transformação do indivíduo que permitirá viver num mundo sem amigos, família ou inimigos – um mundo novo ao alcance da máscara que é, afinal, um mundo de liberdade, infinitas possibilidades e, como em Seconds, extrema solidão.
O filme de Teshigahara é, no entanto, muito mais pessoal. Toda a intriga se passa em torno de 2 ou 3 pessoas e não carrega nunca uma ameaça de uma organização secreta, como acontece no filme paranóico de Frankenheimer.
É difícil de decidir qual dos dois cria um desassossego maior. Em Seconds vemo-nos à mercê de uma poderosa organização. Em Tanin no Kao à mercê de nós próprios.
Quase assustador é lembrar que um filme que nos abandona numa ilha com duas mulheres, uma delas actriz de profissão, Persona, de Ingmar Bergman, e que mostra questões identitárias através do retrato do rosto destas mulheres (e que contém imagens “médicas” da mesma família das constantes nos outros dois) é também de 1966.
No entanto, em Seconds, é também difícil não nos deixarmos abandonar não tanto à sua mensagem – em torno da identidade de alguém que perde o seu rosto – como ao seu aspecto intrigante e por vezes infantil, e lembrar que grande parte do cinema norte-americano é, desde a sua origem, um cinema de uma curiosidade adolescente.

* no entanto, Seconds não é, como começa a ser hábito dizer-se, uma obra-prima esquecida.

** profundamente baseado na literatura de Kodo Abe, em especial no livro com o mesmo nome. Aproveita-se esta nota para aconselhar, do mesmo autor, The Box Man, que aborda questões semelhantes.

28 Jul 2015