Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Prémios dão um novo alento”

Filmado em Macau em 2018, “Pe San Ié”, longa-metragem documental sobre a vida de Camilo Pessanha, recebeu, em Fevereiro, quatro distinções no festival New York Movie Awards. Mas a realizadora Rosa Coutinho Cabral não tem parado. Depois do lançamento no ano passado de “A Casa da Rosa”, está na forja um projecto de filme e peça de teatro sobre Natália Correia, que poderá ser apresentada em Macau

 

A longa-metragem documental de 2018 “Pe San Ié” continua a ganhar prémios. Como encara esta longevidade da obra?

Fico muitíssimo satisfeita, sobretudo porque foi um trabalho que eu gostei muito de fazer na companhia do Carlos Morais José e apoio da produtora Inner Harbour. Contou ainda com a colaboração de muitas pessoas, tal como Susana Gomes e Pedro Cardeira na fotografia e José Carlos Pontes na música. Estes quatro prémios [Melhor Longa-metragem Documental, prémio Prata para Melhor Música Original, Melhor Edição e Melhor Cinematografia] dão um novo alento ao filme. No fundo, um filme vive do seu reconhecimento e da sua projecção, e se não for visto é, de alguma maneira, um arquivo morto. O facto de estar a ser desarquivado, digamos assim, e procurado [é bom], porque são muitos destes festivais que nos procuram, convidando-nos a enviar o filme para concurso. Não há dinheiro envolvido, mas estes prémios trazem o reconhecimento. Saber que fizemos um objecto artístico e cultural com interesse que vai além do momento em que a produção termina, o facto de continuar a ser solicitado depois destes anos traz uma revitalização muito grande. Dá uma grande importância ao tema, passado em Macau, algo que também está muito presente no imaginário das pessoas, bem como a figura de Camilo Pessanha.

Passaram alguns anos desde que fez o filme. Como olha hoje para o projecto?

Tive a oportunidade de rever o filme muito recentemente. É muito raro ver filmes meus já terminados e, muitas vezes, nem os vejo quando passam nos festivais. No entanto, vi-o num outro dia e considero que continua muito actual no propósito que tinha. Não mudaria nada. Acho que a escolha do Carlos Morais José para personagem aglutinadora faz com que o documentário seja ficcional, um misto de detective com Pessanha, da nossa própria condição de português no Oriente, é muito importante. Isso faz com que o filme ganhe um trajecto temporal entre aquilo a que se refere, que é o tempo de Pessanha, e o tempo que vivemos hoje em dia, que é o tempo em Macau. Esta actualidade que se prende com o tempo anterior está muito bem resolvida no filme e não mudaria nada. Ainda hoje recebi um convite de outro festival [para apresentar o filme a concurso]. Há ainda outro aspecto que queria sublinhar: sempre considerei que isto era um ensaio cinematográfico que colocava o olhar de um morto num sítio vivo. Acho que isto foi conseguido e, passados estes anos, ainda acho que é isso que está no filme: um contrato com a pessoa que morreu e com o seu olhar sobre um espaço que ele escolheu viver e morrer e onde escreveu grande parte da sua obra. Confesso que esta ideia de ter um espaço que vacilava entre o campo, que é o olhar dele, e o contracampo, que é o presente, ainda lá está no filme e fico contente com isso. Ainda consigo achar o que tinha proposto e não fiquei zangada comigo. Quando acabo os filmes fico sempre um pouco zangada, com a sensação que não era aquilo que queria.

Venceu também outros prémios neste festival, nomeadamente com o recente documentário “A Casa da Rosa”. Fale-me desse projecto.

É um projecto sobre a perda, o outro e tem a ver comigo, com aquilo que perdi ao longo da vida, que foi bastante trágico, e que acaba por culminar com a perda de uma casa. Quis filmar todo o processo de saída, de ser obrigada a sair de uma casa que era o meu lugar, um sítio onde tinhas as minhas memórias e onde tinha tudo aquilo de que não me queria afastar, mas que fui obrigada. Na verdade, não tinha dinheiro para pagar a renda e fui despejada. Fiquei um pouco espantada com o facto de o filme ter tido todo este reconhecimento, o que é interessante para um filme muito íntimo, muito sincero, muito honesto sobre o que senti. Foi totalmente feito por mim: gravei, fiz o som, filmei-me continuamente, tive de me encenar a mim, colocar a câmara, criar um espaço. Foi uma espécie de auto-encenação, uma coisa muito intensa e feita sem dinheiro nenhum, com o meu dinheiro e de pessoas amigas. A música foi oferecida pelo José Carlos Pontes. Acho que, cinematograficamente, é um filme de grande honestidade sobre a perda. A minha pergunta é como se filma a perda, o luto, algumas situações muito trágicas. Consegui fazer o filme porque me deixei arrastar pelo meu sentimento e honestidade, de nada esconder. É uma pessoa que se despe e mostra o que é. Não sei se voltarei a fazer isso, mas dessa vez, fi-lo.

Foi uma maneira para lidar com várias situações difíceis, portanto.

Sim, pode-se dizer que sim. Este lado trágico e que culmina com o processo da catarse… possivelmente, sim. Fui muito obsessiva na filmagem, gostei bastante de a fazer, mas usei o método que quase me levou a enlouquecer com essa obsessão. Já estava farta da casa e de filmar. Andava sozinha pela casa e pelo telhado de um edifício de Lisboa sozinha, à noite, porque queria sentir tudo o que tinha a ver com aquela casa. Houve uma altura em que quase raiou a loucura, uma certa desrazão. Mas foi um processo do qual não me arrependo. Ainda bem que o fiz.

Como é ver revelado algo tão pessoal em festivais de cinema?

Não foi difícil. A primeira exibição foi no DocLisboa, foi bem recebido, segundo consta esteve muito perto de receber o prémio [principal], mas houve outro filme de que gostaram mais. As coisas são assim. Depois tive um contacto com uma curadora italiana que quis levar o filme para o festival “8 1/2”, baseado no [Federico] Fellini, e aí o filme começou a circular e recebemos convites para outros festivais. Nunca recebemos dinheiro, o que me teria dado muito jeito (risos). Houve pessoas que acreditaram no filme e ajudaram na montagem.

Está a trabalhar num documentário sobre Natália Correia. Quando termina esse projecto?

Em Setembro. Na próxima semana vou estrear uma peça de teatro, também sobre a Natália Correia, intitulada “Colheres de Prata”, que, se tudo correr bem, poderá ir até Macau.

Porquê Natália Correia?

Por várias razões: eu sou açoriana, ela é açoriana. Viemos para Lisboa praticamente com a mesma idade, não porque quiséssemos vir, mas porque a família veio. Tivemos de sair de uma ilha de que ambas gostávamos bastante para um lugar ainda desconhecido. Natália foi sempre uma mulher do lado da liberdade e da defesa dos direitos humanos. Foi uma anti-fascista. Toda a vida foi dedicada a defender estes propósitos, quer na literatura, quer na política, quer nas campanhas que apoiou, nomeadamente a de Humberto Delgado. Foi uma mulher bastante intransigente e muitos livros dela foram apreendidos pela censura. Sempre defendeu a figura da mulher, sem o feminismo um pouco bacoco da época. Ela fazia, para mim, a defesa de um feminismo mais actualizado e interessante. Ainda hoje concordo com ela. Nunca teve a ideia disparatada de as mulheres terem de substituir os homens ou de homogeneizar formas de poder. Achava que o mundo tinha de ser habitado por homens e mulheres em igualdade de circunstâncias sociais, políticas e económicas e já falava na igualdade de género. Depois do 25 de Abril de 1974, foi uma voz importante e fez um movimento crítico em relação ao seguimento da Revolução. O que também acho interessante. Nunca perdeu as características da sua voz e isso fez dela uma mulher que muita gente quis reduzir a anedota, numa mulher de direita, desbragada. Nunca foi contra as instituições democráticas e as críticas que fez foram proféticas, com coisas que hoje vemos que são verdade. Sou uma pessoa de esquerda e sempre me identifiquei com ela, por ser uma voz discordante numa época em que era difícil sê-lo, pois ser discordante era ser de direita. Mas ela nunca se inibiu, e acho isso notável. Foi ainda uma mulher extraordinária na literatura, e luto, nestes projectos que estou a fazer, contra a redução dela a uma anedota e a uma ideia política que não corresponde à verdade. Foi sempre anti-fascista, antes e depois do 25 de Abril.

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