Raul Brandão, os Açores e Macau

Raul Brandão (1867-1930), já tocado de uma certa fama pelos seu “Os Pescadores”, visitou os Açores e a Madeira em 1924 e esteve mesmo para partir num cruzeiro às colónias portuguesas da África ocidental. E se esse barco tivesse chegado a Goa, ou a Macau? Contudo, o escritor morreu apenas cinco anos após a sua viagem aos arquipélagos atlânticos, ditos adjacentes, e nem a Angola chegou a ir, muito menos a Cantão. Seria difícil imaginar em que termos leríamos um diário de viagem desse contemplador de almas ao sul da China, que um outro seu contemporâneo, no mesmo ano nascido, Camilo Pessanha, descreveu como a terra do mal. Sobretudo face às outras, as ilhas felizes da Macaronésia. Jorge Arrimar (n. 1953), poeta angolano que nos anos 80 dirigiu a Biblioteca Central de Macau, após ter passado pelos Açores, reflete sobre essa duplicação ou triangulação insular em “Viagem à Memória das Ilhas” (2002). No fundo, Macau também é uma ilha, desdobra a peninsularidade na insularidade.

Ora, os Açores e Macau mantêm ligações antigas, onde o peso da humidade não é o único denominador comum. Houve uma época em que, dizia-se, apenas açorianos e os transmontanos se aventuravam até estas paragens, daí o número vultuoso de nascidos em Freixo de Espada à Cinta ou das Velas, de São Jorge, que se encontravam ao largo do Senado. É o caso do Padre Teixeira e de José Silveira Machado, que aqui chegaram na mesma leva. Este último, açoriano que se tornou cidadão de Macau, é um dos exemplos de alguém que contribuiu para a literatura, jornalismo e educação desta península e duas ilhas ao longo de cerca de setenta anos. Por seu turno, Rodrigo Leal de Carvalho (n. 1932) — terceirense da Praia da Vitória, que desempenhou altas funções na magistratura de Macau durante várias décadas — dedicou-se também à escrita, documentando nemesianamente a vida destes outros arquipelágicos.

Já a tradição açoriana em fornecer o “Mundo Português” de hierarquia eclesiástica teve os seus pináculos em duas figuras: D. João Paulino de Azevedo e Castro (1852-1918), natural das Lajes do Pico, que foi o 19.º bispo de Macau, entre 1902 e 1918. Fundou este em 1903 o longevo “Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau” e pastoreou não só em Macau, mas em toda a vasta área do sueste asiático, algumas boas ovelhas. D. José da Costa Nunes (1880-1976), nascido na Candelária do Pico, acompanhou D. João Paulino como secretário em 1903, sendo posteriormente bispo de Macau (1920-1940), arcebispo de Goa e patriarca das Índias Orientais, chegando a receber barrete de cardeal em 1962. Costa Nunes é também escritor de monta, de quem um dia aqui falarei.

A este respeito, li recentemente o volume do investigador açorianófilo Vasco Rosa (n. 1958), publicado em 2019, sobre a recepção crítica da obra brandoneana sobre os Açores, “Raul Brandão e os Açores” (da Companhia das Ilhas, sedeada no Pico), e deparei-me com um livro que embora seja heuristicamente muito competente (quer dizer, pelo levantamento de fontes que promove, sobretudo fontes esquecidas dos jornais, esse vasto necrotério das ideias), revela-se, contudo, analiticamente insuficiente. Apresenta exaustivamente todo o contexto de recensão d’”As Ilhas Desconhecidas” (1926) de Raul Brandão, tanto nos Açores quanto no continente. Identifica os escritores contemporâneos que também se debruçaram sobre os Açores, distinguindo os partidários dos detratores do escritor nortenho. Todavia, poderia ter estabelecido comparações mais aprofundadas entre Brandão e os demais autores, demonstrando inclusivamente como o próprio Brandão provavelmente se inspirou nessas outras fontes.

Rosa prefere apresentar o autor como um génio absoluto — não o questiono — desprovido de influências, apenas gerador de discípulos. Teria sido mais enriquecedor situar a sua obra no contexto de um diálogo com outros escritores, continentais e insulares, abandonando a conceção de um livro isolado, um livro-ilha. Paradoxalmente, apesar de todas as evidências que Vasco Rosa apresenta, sugerindo precisamente que não se trata de uma obra única no panorama literário, essa dimensão permaneceu por explorar no seu, apesar de tudo, bem útil livro.

Macau também foi objeto de inúmeros relatos de viagem, de descoberta com ou sem fascínio, e todos se citam, se reescrevem uns outros. É assim que funciona. As autoridades textuais repetem-se, surgem novas, desaparecem outras, mas muita coisa é citação. Os seus nomes ficarão para próxima crónica, mas podemos perguntar-nos porque razão não funcionaria assim o belo volume de Brandão sobre as ilhas por conhecer.

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