Refrescantes vulvares e a Vergonha

Recentemente, uma celebridade em Portugal lançou um produto que tem dado que falar, gerado inúmeros posts e até feito correr alguma tinta. Trata-se de uma bruma íntima, sugestivamente chamada Pipy, disponível por 29,90 euros. O objetivo? Refrescar e, de algum modo, empoderar as mulheres a sentirem-se bem com os seus corpos.

Desconfio sempre do mediatismo de certos produtos. Este foi, sem dúvida, criado “a pedi-las”. Seguiram-se as críticas habituais: as feministas com os argumentos do costume – muitos dos quais subscrevo de alma e coração –, apoiadas pelos profissionais de saúde. São discursos recorrentes, porque a realidade persiste: há toda uma indústria que prospera à custa da insegurança feminina. A sociedade insiste em gerar um sentimento de desadequação em relação a processos corporais normais. Se queres refrescar a tua vulva, lava-a com água – o efeito será provavelmente o mesmo.

Além disso, produtos como este, criados a partir de uma necessidade artificial, podem trazer mais problemas do que soluções. A vagina possui um sistema de limpeza sofisticado e não precisa de novas fórmulas para “se limpar melhor”. Interferir nesse equilíbrio pode causar desequilíbrios no pH, tornando a zona íntima mais suscetível a infeções como candidíase e vaginose bacteriana. E aí, sim, o cheiro e o desconforto tornam-se um problema clínico.

 O que me incomoda é a dança discursiva em torno destes temas. De um lado, há quem veja a existência de um produto como um ato de empoderamento; do outro, há quem, incansavelmente, tente educar para uma relação mais saudável com o corpo. Ora umas acham que existir um produto é empoderar as vulvas, enquanto outras tentam vezes sem conta educar para vulvas felizes. E ficamos assim. As últimas pregam para os surdos, e as primeiras pregam estupidez.

Qual é a oportunidade discursiva destes refrescantes vaginais, que oportunidades pedagógicas estamos a desperdiçar? Uma conversa sincera sobre o mau-estar das pessoas. Porque é que as pessoas sentem a necessidade de comprar produtos para esconder o cheiro natural das suas partes íntimas? Ainda que fabricada, a insegurança e o desconforto não deixam de ser reais, tocando num ponto sensível de existência: a vergonha.

A vergonha é um sistema emocional complexo, assente em crenças que têm vindo a culpabilizar as vulvas por serem como são. Assentes também em tradições discursivas milenares. Na Grécia antiga explicavam que os homens tinham um cheiro menos pungente que as mulheres, e por isso precisavam de perfumes mais delicados, e as mulheres perfumes que melhor cobrissem o seu aroma natural.

Lidar com a vergonha não é fácil – exige delicadeza. Explicar que se trata de uma vergonha fabricada não a faz desaparecer por magia. São necessárias experiências contínuas de compreensão para que a vergonha se dissolva e se transforme num verdadeiro estado de empoderamento. O Pipy é pseudo-empoderador porque funciona como um penso rápido, um alívio temporário para uma insegurança mais profunda. As discussões que temos assistido também perpetuam capelinhas ideológicas, de fácil previsão, sem grande profundidade emocional e empática.

Este será apenas um de muitos artigos escritos sobre o Pipy, mas talvez o único com o modesto objetivo de afirmar que a vergonha está a ser vista e compreendida. Fomos ensinadas a ter vergonha da vulva. Para desaprender, para alcançar um empoderamento real, temos de olhar para essa vergonha com carinho e compreensão. Esse reconhecimento seria um primeiro passo para uma libertação colectiva. Só assim deixaremos as vulvas finalmente em paz.

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