José Paulo Esperança, reitor associado da Universidade Cidade de Macau: “As línguas não podem ser controladas”

Co-autor do “Novo Atlas da Língua Portuguesa”, com Luís Reto e Fernando Luís Machado, José Paulo Esperança revela ao HM que a obra editada em 2016 e 2018 está a ser actualizada, sobretudo devido ao crescente valor global do idioma. O reitor associado e docente da Universidade Cidade de Macau sugere parcerias com Macau no âmbito do projecto editorial

 

Lançou o “Novo Atlas da Língua Portuguesa”, em co-autoria, sobre o valor global do idioma. Planeiam uma nova edição ou actualização?

Sem dúvida. Estamos a trabalhar nesse sentido, houve uma conferência recente em Macau e o professor Luís Reto, antigo reitor do ISCTE, apresentou alguns elementos mais actuais que foram desenvolvidos. Ele tem trabalhado numa questão muito importante, que é o papel do português como língua franca, que foi durante alguns séculos na Ásia. O intercâmbio entre holandeses e o reino de Sião fazia-se em português, porque era a língua comum utilizada nessa altura, antes do inglês se tornar na língua franca contemporânea. Portanto, há todo um historial interessantíssimo do português e no papel que teve nos primeiros pinyins que existiram, com o chinês e na utilização do alfabeto [romano] no Vietname. Há uma série de elementos que não estão, portanto, muito divulgados, e o trabalho do Atlas é esse mesmo, de divulgar algumas dimensões económicas da língua.

Quais são essas dimensões?

Uma delas é o intercâmbio de comércio e de investimento estrangeiro, que é muito facilitado pela língua. Falamos também das migrações, do turismo, do intercâmbio de estudantes que é muito influenciado pela proximidade linguística. Portanto, temos hoje um conjunto de elementos que são muito interessantes, e temos esperança de vir a desenvolver algumas parcerias mais importantes com Macau.

Como?

Mais ao nível do trabalho que o professor Luís Reto está a fazer, que mantém uma equipa de investigação sobre o valor do português. Ele tem colaborado com o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, por exemplo. Trata-se de um espaço museológico que foi renovado depois do incêndio que o destruiu. Além disso, tem um projecto com a Câmara Municipal de Cascais para desenvolver uma estrutura desse tipo, e temos esperança de fazer alguns trabalhos com Macau, no sentido de criar três pólos para a projecção da língua portuguesa. Quanto aos materiais do Atlas, gostaríamos de ter até um modelo de actualização continuado, pois estes dados ficam desactualizados muito rapidamente. A obra foi editada em muitas línguas, incluindo o mandarim. Este é o momento em que gostaríamos de dar ao livro uma dimensão mais histórica e profunda, com mais conhecimento sobre o ensino do português no mundo.

Que balanço faz desse ensino actualmente?

O português está a desenvolver-se muito como língua materna e, efectivamente, é uma das línguas com maior expansão devido ao crescimento demográfico em África, com países como Angola e Moçambique, que por volta de 2050 terão populações superiores a 100 milhões de habitantes, cada um deles. O português consolida-se, assim, como uma língua do hemisfério sul, mas muito mais de África, suplantando o próprio Brasil como local de maior número de falantes da língua. Tudo isso gera um enorme potencial, e tal também ocorre devido ao grande intercâmbio das universidades e internacionalização do ensino. Há hoje a possibilidade de o português ser uma língua de ciência, de haver mais publicações nesse idioma. Esse é um grande desafio, porque o inglês é a língua contemporânea dos cientistas. Queremos contribuir para todas essas dimensões, e Macau também pode ter aí um papel importante. Macau é de facto uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa, e pode desempenhar um papel significativo.

Macau é um sítio ideal para formar professores de português que não tenham o português como língua materna? Teme que o território perca relevância nesta matéria perante a oferta de cursos no Interior da China?

Vejo essa questão mais como complementaridade do que concorrência. Identificámos cerca de 60 instituições de ensino superior na China que têm cursos de português, mas julgo que Macau tem condições muito interessantes para começar a ensinar logo desde o ensino primário até ao secundário, para que seja possível às crianças terem uma aprendizagem desde tenra idade. Não quer dizer que não haja jovens chineses que começaram a aprender a língua na adolescência que passem a falar de forma fantástica, que me surpreende, mas é mais fácil começarem cada vez mais cedo. Isso será mais fácil em Macau. O que é importante é criar condições para uma maior colaboração económica a muitos níveis, como a investigação conjunta. Nesse aspecto, Macau tem uma oportunidade muito interessante. Na Universidade Cidade de Macau estamos muito interessados em ter cada vez mais colaboração com investigadores que nos visitem e trabalhem com as nossas equipas.

Pode dar-me exemplos?

O Brasil é hoje um dos grandes parceiros comerciais da China. Há muito intercâmbio nos dois sentidos, mas um dos temas que é pouco estudado, e no qual trabalho muito, é o da internacionalização das empresas chinesas. Até que ponto essas empresas seguem um modelo de internacionalização semelhante ao de outros países que começaram esse processo mais cedo? Falo dos Estados Unidos da América, dos países europeus, mas também do Japão e outros. A China tem, de facto, modelos diferentes de presença nos países que ainda não são muito conhecidos, e isso é importante perceber, para que saibamos como se pode facilitar esse processo de intercâmbio num mundo que vive períodos de algum retrocesso. É muito triste. Recordo sempre um grande economista de origem portuguesa, o David Ricardo, que explicou de forma clara como o comércio mundial é benéfico para toda a gente e como os países podem tirar partido dessa situação. Portanto, aplicar tarifas, fazer esse tipo de barreiras comerciais prejudica os países que são grandes exportadores, como a China ou Alemanha, e os países que têm hoje uma capacidade de exportação cultural, por exemplo, e não são apenas importadores.

Relativamente ao novo Acordo Ortográfico. Continua sem haver uma uniformização em Macau. Isso preocupa-o?

As línguas são dinâmicas e não podem ser controladas. Pensamos hoje no inglês, e percebemos que há formas quase incompreensíveis entre si, como o inglês que se fala na Nigéria ou na Austrália. Os americanos têm dificuldade em perceber os australianos. No século XIX, o português de Portugal e do Brasil estavam mais próximos, depois surgiu alguma divergência. Houve um esforço, no Brasil, de propor um acordo ortográfico, e os portugueses aderiram, resultando numa série de negociações. Sempre existiram resistências. Recordo que Fernando Pessoa sugeriu a famosa frase “A minha pátria é a língua portuguesa”. Era curiosamente uma manifestação de algum conservadorismo, porque ele achava que farmácia tinha de se continuar a escrever com PH [Pharmácia]. Na realidade não fazia muito sentido. Portugal acabou por procurar impor uma certa uniformização com base nas alterações mais genéticas do Acordo Ortográfico. Não é um processo que tenha corrido bem a cem por cento, e que tenha sido universalmente adoptado. Os países africanos acabaram por ser mais defensores do português de Portugal. Há, por vezes, alguma confusão, mas entendo que a intercompreensão ainda se mantém, conseguindo-se uma língua homogénea, mais talvez do que o inglês.

 

Entre palavras e números

José Paulo Esperança é doutorado em Economia pelo Instituto Universitário Europeu e foi presidente do departamento de Finanças e Contabilidade do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. O “Novo Atlas da Língua Portuguesa”, com edições em 2016 e 2018, contém “um amplo conjunto de indicadores que reforçam a ideia do crescimento do ensino, dos falantes e do uso escrito do português no mundo”, tendo sido alvo de uma série de iniciativas recentes em Macau.

Uma delas decorreu no passado dia 17 de Março, na Fundação Rui Cunha, com uma sessão do ciclo “Roda de Ideias”, intitulada “O potencial da língua portuguesa no mundo contemporâneo”, que contou com a participação do antigo reitor do ISCTE, Luís Reto, e o próprio José Paulo Esperança. Além do “Novo Atlas da Língua Portuguesa”, José Paulo Esperança é autor de outras obras na área financeira.

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