Histórias da Música Chinesa

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM

Fevereiro de 2025

Diz a tradição chinesa que as obras clássicas da cultura não eram apenas quatro livros: os Analectos (《論語/1论语》Lúnyǔ), o Livro de Mâncio (《孟子》Mèngzǐ), o Grande Estudo (《大學/大学》Dàxué) e a Doutrina do Meio (《中庸》Zhōngyōng)] , e cinco clássicos: O Clássico das Mutações (《易經易经》Yì jīng), O Livro das Odes (《詩經诗经》Shījīng), A História (《史記/太史公記//史记/太史公记》Shǐjì/tàishǐ gōngjì), Os Ritos (《禮記礼记》Lǐjì), Os Anais da Primavera e do Outono (《春秋》Chūnqiū)), mas quatro livros e seis clássicos, porque havia mais um relativo à música (樂經/乐经) Yuè Jīng, que entretanto se perdeu.

No entanto, a “música” (樂/乐 yuè) é tão importante para os chineses que o seu sinograma se confunde na forma escrita com o de “alegria” (樂/乐 lè). Do ponto de vista etimológico, é o pictograma de um instrumento musical, cuja base representa a parte de madeira e o topo as cordas do mesmo. Este, pela satisfação que suscita quando é tocado, servirá por extensão de sentido para figurar o sinograma da alegria.

A música antes de pertencer à humanidade, depende das divindades da religião animista popular chinesa e de forças naturais como o vento ou seres biológicos como os pássaros, ou mitológicos como as fénices. Sabe-se que o Imperador Amarelo (黄帝Huángdì), governou numa antiguidade mítica a que remonta a civilização chinesa organizada. Mas este, segundo um dos grandes filósofos taoistas da antiguidade chinesa, Lie Yukou (列御寇Liè Yùkòu”) em obra homónima Liezi (列子“lièzǐ·) coloca o imperador a realizar viagens espirituais nas quais encontra divindades femininas dos tempos matriarcais, como Huaxu (華胥/华胥Huáxū),mãe do primeiro imperador chinês Fuxi(伏羲Fúxī) e, portanto, matriarca ancestral de todos os chineses ou, ainda, a Mãe e/ou Mulher Misteriosa do Nono Céu (九天聖(圣)母/九天玄女 Jiǔtiān shèngmǔ/jiǔtiān xuánnǚ),que lhe terão ensinado muito, inclusive no caso desta última a apreciar música, poesia, tendo sido também iniciado por ela, que possuía rosto humano e corpo de fénix, nas artes do amor.

Quanto à fénix é a ave que simboliza a vida eterna e a paz; ao renascer das próprias cinzas, transporta a esperança de seres inteiros, renovados e pacíficos, já que apenas surge no mundo em tempos de tranquilidade e harmonia. Mas também se encontra em estreita relação com a música, porque é um pássaro mitológico que canta, tal como o vento, cujo som é composto para os chineses pelo melodioso bater das asas das aves, quando se trata de brisa, ou pelo alvoroçado batimento das mesmas em tempestade.

Linglun (伶倫/伶伦Líng Lún) criou os doze tons na sequência de um pedido do Imperador Amarelo, que depois de devidamente educado e treinado o seu ouvido musical pela Mulher Misteriosa do Nono Céu, se aborrecia nas viagens de inspeção pela terra com a monotonia das melodias. Este grande músico apressou-se a cumprir ordens e entregou-se de alma e coração a escutar todos os sons da natureza para obter a inspiração requerida à missão. Mas foi na Montanha sagrada Kunlun (崑崙山/昆仑山 Kūnlún shān) que ele obteve a iluminação necessária para a criação dos doze tons por recurso a doze tubos de bambu. Como verificou ele tratar-se dos tons certos? “Carregando os doze tubos de bambu, Linglun chegou ao sopé da montanha Kunlun para ouvir o canto das fénix. Quando as aves cantavam, o macho dava seis gritos e a fêmea respondia-lhes com outros seis. Linglun comparou os doze gritos com os seus sons e constatou que havia uma correspondência perfeita entre eles.” (Wang e Alves, 2009, 48)

Tinha atingido o seu objetivo. Já os tons seguiam o modelo dos das fénices, quando apresentou a sua criação ao Imperador Amarelo, tendo sido justamente recompensado com o título de Deus da Música [音樂(乐)之神 Yīnyuè zhī Shén] e o mundo desde então encheu-se das mais belas melodias.

Passando agora para a filosofia, o cosmos encarado como um misterioso instrumento musical é uma das metáforas preferidas de um dos grandes filósofos taoistas, o Príncipe de Huainan, Liu An [劉(刘)安Liú’ān, 179?-122 a.C] que nos deixa uma obra dos primórdios da dinastia Han, intitulada Huainanzi (《淮南子》Huáinánzǐ). A obra é conhecida na tradição chinesa também com o título de (《淮南子鴻烈》Huáinánzǐ Hóngliè), cujo significado é “A Luz Irradiante do Mestre Huainan”, tendo sido o sexto capítulo traduzido pelo sinólogo canadiano Charles Le Blanc, sob o título Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought, contendo o sugestivo subtítulo The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six.

Supor que todo o universo se encontra ligado, à maneira das cordas de um instrumento, a espalhar o som, a ecoar e ressoar quando se toca numa das cordas, terá a sua contrapartida ocidental no misticismo do filósofo pré-socrático Pitágoras e no seu pressuposto da “música das esferas”, ou seja, da melodia produzida pelos astros nas suas trajetórias celestiais.

Voltando ao Mestre de Huainan, é-se informado na secção II das IX do sexto capítulo, que “A Mútua resposta das coisas pertencendo à mesma categoria é profundamente misteriosa e extremamente subtil” (Blanc, 1985, 116), à qual corresponde o texto original se encontra no Apêndice 1 (Blanc, 1985, 221-215): “夫物類之相應玄妙深微知不能論” (6/ 3a.5)2 . Estas linhas podem ser explicadas por recurso a um outro postulado, “a mútua influência do Qì espiritual 3 (天神氣 Shén Qì)” “”(6/4a. 1 ), cuja ação visível se manifesta na semelhança das formas exteriores das coisas, mas também no jogo complementar das forças feminina e masculina que as torna criativas e transformantes, sendo que a ação superior, tal como acreditam os taoistas, é baseada na resposta mútua invisível e silenciosa (相應Xiāngyìng), ou seja, não discursiva, o que não obsta a que seja intuitiva e melodiosa.

A mútua ressonância é sustentada por um jogo complementar das energias Yin (陰/阴Yīn) e Yang (陽/阳Yáng) aos mais variados níveis, guiado pelo princípio da causalidade, que tanto age entre seres semelhantes, como nos diferentes, porque surge o Qì a viabilizar e unir o que é distinto, numa ressonância perfeita, de modo a figurar o cosmos como Taiji ou “Supremo Último” (太极/太極Tàijí) . Desta forma, se alcança a secção IV do capítulo VI, onde é exposta a ressonância musical (6/6b.9-11), que funciona metaforicamente para introduzir a ressonância universal, implicando uma “Grande imersão” na “Suprema Harmonia”, impossível de explicar (Blanc, 1985, 138). É-nos dito que um afinador de sè (瑟), um instrumento de cordas chinês com 25 cordas (recordando vagamente um alaúde árabe), ao tocar numa corda, obterá a resposta em mútua harmonia de uma mesma corda num outro instrumento. Porém “se alguém mudar a afinação de uma corda de modo a que não responda a qualquer das cinco notas, mas ao tocá-la obtenha uma ressonância com as 25 cordas, então há uma diferença no que respeita ao som, sucedendo que foi evocado aquele a governar todos os outros.” (Ibidem) “改調一弦其於無音無所比鼓之而二十五弦皆應此未始”(6/6a.11).

O sábio, santo ou supremo músico será aquele que consegue colocar-se em ligação intuitiva direta com o Tao (道 Dào), sem que ele próprio possa fornecer as razões para tal. Mergulha no mundo numenal, brinca e mistura essências, transforma-se no que quiser e vive em ressonância mútua, musical absoluta e total, com tudo o que existe, e não apenas de um modo relativo com o seu “semelhante”.

Há uma história musicada para guqin (古琴gǔqín), um outro instrumento de cordas chinês, com sete cordas, contada pelo filósofo taoista Liezi no capítulo da obra homónima anteriormente mencionado, Imperador Amarelo, 11ª secção, (《列子·黄帝》第十一部分Lièzǐ·Huángdì” dì shíyī bùfèn), que ilustra bem esta ressonância universal, mais fácil de obter a quem tem uma mente espontânea, como sucede às crianças, sendo que como nos recorda o fundador o Taoismo Laozi (老子Lǎozǐ), o coração-mente (心 xīn ) perfeito é a de um recém-nascido. Na história de que a seguir apresento a minha tradução, o protagonista é um rapaz com os quais os pássaros brincam naturalmente, mas quando o pai deste lhe pede para capturar um deles, a fim de também ele se entreter, as aves distanciam-se, por isso a partitura para guqin se intitula “O distanciamento das Corujas de Água” 《鷗鷺忘機/鸥鹭忘机》Ōu lù wàng jī 4 https://www.youtube.com/watch?v=KGte7WzUt1Y

原文 Texto original (Chinês clássico)

海上之人有好漚鳥者,每旦之海上,從漚鳥遊,漚鳥之至者百住而不止。其父曰:「吾聞漚鳥皆從汝遊,汝取來,吾玩之。」明日之海上,漚鳥舞而不下也。故曰:至言去言,至為無為。齊智之所知,則淺矣。5

Chinês contemporâneo

海边有个喜欢鸥鸟的人,每天早上到海上去,跟鸥鸟玩耍,鸥鸟来玩的有成百只以上。他父亲说:“我听说鸥鸟都爱跟你游玩,你抓一只来,我玩玩。”第二天他来到海上,鸥鸟都在空中飞翔而不下来。所以说:“最好的语言是没有语言,最高的作为是没有作为。同别人比试智慧的想法,那是很浅陋的。

Havia perto do mar um rapaz que muito gostava de corujas de água. Todos os dias, costumava passear à beira-mar onde brincava com as aves, mais de cem. Certa vez, o pai comentou: “Ouvi dizer que as corujas de água costumam brincar contigo, agarra uma para mim, a fim de que eu também me possa entreter com elas. ” Na manhã seguinte, à beira-mar, as aves dançavam sobre a cabeça dele, mas não se aproximaram. Por esta razão se diz: “o melhor discurso é sem palavras, a melhor ação é não-agir. Se a sabedoria se pode comparar, então é superficial!”

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. 2022. “Mãe Misteriosa do Nono Céu 九天玄母 jiǔtiān xuán mǔ” Visitações. Fafe: Labirinto.

Baidu. 2025.《列子·黄帝》(Imperador Amarelo, in Liezi) Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E5%88%97%E5%AD%90%C2%B7%E9%BB%84%E5%B8%9D/8828591#1-1, acedido a 31 de janeiro de 2025.

Bessada, Dennis. 2014. “A Gênese da Harmonia das Esferas do Antigo Pitagorismo”. Revista Música 14(1):85. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/312106396_A_Genese_da_Harmonia_das_Esferas_no_Antigo_Pitagorismo, acedido a 5 de fevereiro de 2025.

Blanc, Charles Le (Org. e Trad). 1985. Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought. The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six. Hong Kong: Hong Kong University Press.

《鸥鹭忘机》(O Distanciamento das Corujas de Água). Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=KGte7WzUt1Y, acedido a 5 de fevereiro de 2025.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “Linglun cria os doze tons伶伦作十二乐律Líng lún zuò shí’èr yuèlǜ” Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa; Caminho.

Os títulos relativos obras clássicas e/ou sinogramas antigos são apresentados em chinês tradicional e contemporâneo para que se possa analisar a evolução da língua no seu percurso rumo à simplificação.

A numeração é diferente no texto traduzido por Charles Le Blanc e no original, razão pela qual surgem duas numerações neste artigo, sendo a do tradutor identificada com a citação que segue o sistema de referências bibliográficas autor-data e o texto original com a numeração do manuscrito chinês da edição de Liu Wen-tien.

Procedeu-se à padronização da fonética chinesa pelo sistema Pinyin (拼音 Pīnyīn), adotado na República Popular da China.

“O distanciamento das Corujas de Água” é uma música para guqin, composta pelo músico da dinastia Song Liu Zhifang (宋代刘志芳). A partitura, que se teve o privilégio de escutar no CCCM pela professora e música Du Wanzhen (杜婉贞) em finais de 2024, foi pela primeira vez publicada por Zhu Quan da dinastia Ming (明代朱权), na edição das “Partituras Secretas Mágicas” (《神奇秘谱》). Esta peça antiga, que chegou aos nossos dias, demonstra os esquemas e cálculos humanos não funcionarem com os pássaros, mas apenas a livre espontânea brincadeira.

O texto clássico foi convertido para chinês tradicional.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/

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