Via do MeioFilosofia da Paz Ana Cristina Alves - 10 Nov 2022 Em “The Crisis of Hermeneutical Consciousness in Modern China” (1997), Yin Lujun da Universidade de Stanford reflete sobre os desafios da filosofia chinesa contemporânea, defendendo que esta necessita de se reconstruir, após o reconhecimento da perda de referentes da filosofia tradicional, afirmando ainda que a reconstrução não pode ser feita ao acaso nem entregue apenas a uma ou várias perspetivas filosóficas ocidentais em conflito (1997: 233). Certo fica que não bastará à filosofia chinesa apegar-se às noções da ética tradicional, nem resumir-se à tematização de perspetivas cientifistas, nem tão-pouco subordinar os interesses materiais a ideias morais e muito menos ater-se em exclusivo à noção de progresso. Ora embora se reconheça a importância de uma modernização orientada por leis, nomeadamente leis históricas, a filosofia chinesa não se esgota no seguir de um único caminho filosófico, seja ele de orientação marxista ou tradicionalista, modernista ou outro qualquer. Problemático é, segundo o autor, o que considera “o uso e o abuso da Filosofia Tradicional Chinesa” (Yin, 1997:237). Não se julgue, porém, que estamos perante uma condenação da filosofia tradicional tout court. Nada disso, pede-se antes que os filósofos e outra gente de cultura tenham consciência de que quando recorrem à filosofia tradicional chinesa devem contar com o processo hermenêutico em que se envolvem, inalianável de um intérprete, bem como de um horizonte de interpretação, ou seja, é preciso que os pensadores se consciencializem de que o passado nos é devolvido com as nossas marcas mentais do presente. Assim sendo, não devemos procurar captar o sentido puro e original da filosofia chinesa, mas tal como ele se nos oferece nos nossos dias e de acordo com as nossas vivências. Pelo que “o sentido nunca pode ser separado da interpretação e da compreensão” (Yin, 1997: 246), para todas as tentativas de reconstrução da filosofia chinesa. Aceitando esta orientação filosófica interessante e válida, há que procurar encontrar e construir caminhos semânticos possíveis para a filosofia chinesa contemporânea, incluindo, mas também indo além da carga ideológica que lhe tem vindo a ser associada. Nota-se desde os primórdios caligráficos do pensamento chinês uma preocupação constante com a noção harmonia (和/和谐 – hé/héxie), mas tamém com a de paz (和平hépíng) , que é idêntica numa das formulações caligráficas para paz (há várias!) no primeiro dos caracteres, ou seja, a noção de paz está intimamente ligada à de harmonia, integrando esta úlima.Como a escrita chinesa começou por ser monossilábica, quer dizer, constituída por apenas um caractere, pois o dissilabismo é muito posterior, admite-se sem problema que tempos houve em que “harmonia” e “paz” coincidissem no seu registo caligráfico como hé (和) , caractere cujos constituintes são “espiga” (禾 hé) e “boca”(口 kǒu), corporizando desta forma conceitos, que encheu de elementos concretos e materiais. Desde o Clássico das Mutações (《易经》Yìjing), um dos mais antigos do mundo e o primeiro na ordem dos materiais filosóficos ao dispor na China, que encontramos entre os seus 64 hexagramas, um devotado à noção de paz, o décimo primeiro, na ordenação de Richard Wilhelm em I Ching or book of changes (1989: 48). Este hexagrama, tài (泰), também significa “paz”, sendo o caractere que consta no Monte Tai (泰山 Tàishān), o Monte da Paz, fundamental na filosofia chinesa e em todas as escolas da meditação. Ora este hexagrama é constituído pelo trigrama do Céu (乾 Qián) na base e o da Terra (坤 Kūn) no topo, invertendo a posição natural dos dois princípios fundamentais da filosofia tradicional chinesa, as primeiras corporizações do princípio masculino Yang (阳 Yáng) e do princípio feminino Yin (阴 Yīn). Por que razão traz esta inversão da ordem natural paz, boa sorte e sucesso, como nos é dito no Juízo do Hexagrama? Porque, desenvolve-se na Imagem, o Céu e a Terra se unem de modo a completar-se, viabilizando a força do Céu, que é criatividade, o florescimento de toda a Terra, a receptiva. O Céu ao descer ao interior da Terra torna-se dadivoso, cobrindo-a de presentes, resplandesce em prosperidade concreta e material, que os governantes sabiamente adminstrarão. Fique-se com o Juízo do Hexagrama: “Paz, os pequenos distanciam-se, os grandes aproximam-se, boa sorte. Sucesso.” (《彖》: 泰,小往大来,吉,亨。《易经•泰卦第十一》). Percebe-se então como a paz, o florescimento e a prosperidade se encontram indissoluvelmente ligados na filosofia tradicional chinesa, aqui interpretada e reconstruída. Em Visitações, um texto poético que tive a felicidade de publicar na Editora Labirinto, em 2022, dediquei a última parte da obra à Adivinhação, tendo escrito a seguinte estrofe de um poema completmentar inspirado no hexagrama Tai (2022: 140): Invertem-se as posições Na união entre o Céu e a Terra, Haverá finalmente paz, De dentro vem a força, A luz submete os parceiros. O Céu desce à Terra com grande alegria, É gozar a oportunidade na grandeza e fantasia, O tempo é propício para casar a jovem princesa, Entregue em bodas humildes e sem valentia, O destino tomará as rédeas à monarquia. A propósito da paz, não seria correto se fosse olvidado o papel desta noção em alguns dos mais distintos pensadores ocidentais, nomeadamente no pai da filosofia contemporânea europeia, Immanuel Kant (1724-1804), que virá a tematizar a paz, especificamente, em A Paz Perpétua, Um Projecto filosófico, opúsculo datado de 1795/96. Kant assume posições muito semelhantes às que encontramos nas filosofia chinesa tradicional e, e como adiante veremos, também contemporânea. Neste pensador, o estado natural de guerrra relaciona-se com o mal que é impossível de extirpar da condição humana, prendendo-se com o egoísmo de uma humanidade ainda não domada pela lei. Para este filósofo, essencialmente legalista, só o estado de direito, e melhor uma comunidade republicana, pode pôr termo à luta incessante que as gentes, de acordo com os seus instintos e interesses, travam entre si. E ainda que Kant seja absolutamente contra a guerra, no ponto 2 da primeira secção do seu tratado deixa bem claro que nenhum estado, seja ele grande ou pequeno, pode ser adquirido por outro por troca, compra ou doação, acrescentando perentóriamente no ponto 5 que “Nenhum estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado (Kant, 1989:123)”. O ideal será então reflectir filosoficamente nas condições de possibilidade de uma paz perpétua, embora se reconheça que a tendência para a guerra na natureza humana e a vontade de poder dos governantes serão o maior dos obstáculos a este projecto que poderá ser aconselhado e esclarecido por filósofos. O plano de paz futura e perpétua não excluirá exércitos constituídos por cidadãos voluntários com o objetivo de “defender a Pátria” (Kant, 1989: 122), mas excluirá estratagemas desonrosos como, entre outros, empregar assassinos e envenenadores nas forças militares (Kant, 1989: 124). O conflito armado é sempre inferior à paz e tentar vencer através de uma “guerra de extermínio” conduziria a “uma paz perpétua sobre o grande cemitério do género humano” (Ibidem). Pelo que defende no primeiro artigo para a paz perpétua, que a melhor consituição civil de cada estado deverá ser republicana por se basear nos princípios da liberdade e da igualdade dos cidadãos perante a lei, constituindo-se no segundo artigo definitivo para a paz perpétua o direito das gentes numa federação de estados livres, uma república mundial, regida pelo sistema representativo, que assenta na separação do poder legislativo e executivo. Sendo que o poder legislativo irá conseguir travar “a maldade da natureza humana, que pode ver-se às claras na livre relação dos povos (ao passo que no Estado legal-civil se oculta através da coacção do governo )” (Kant, 1989: 133). Na verdade, a visão que Kant tem da natureza humana no estado natural é bastante pessimista, mas não difere de outras filosofias legalistas da tradição chinesa, como a de Hanfeizi (韩非子, ?280 -?222 a.C) ou a do confucionista Xunzi (荀子, 316-?238 a.C ). E apesar de se distanciar da posição de neutralidade de Confúcio (孔子 551- 479 a.C ), o fundador do Confucionismo, em relação à natureza humana, ou da claramente positiva de Mâncio (孟子, 372-289 a.C), mantém um grande otimismo nas capacidades da lei para criar “um Estado de povos (civitas gentium) , que (sempre, é claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da Terra.” (Kant, 1989: 136), seria, nas suas próprias palavras, uma república mundial, ou seja, uma federação antagónica à guerra. (Ibidem). Os estados deixavam-se assim guiar por leis com o único objetivo de fomentar a paz nos seus domínios e também do ponto de vista internacional. E, finalmente, todos viveriam bem de acordo com este direito cosmopolita, onde floresceria a prosperidade dos povos assente no “espírito comercial que não pode coexistir com a guerra.” (Kant, 1989: 148), numa federação, onde os filósofos teriam um importante papel como conselheiros dos governantes, orientando-os para uma política moral, em estados que reconheceriam como princípios máximos a liberdade e a igualdade, bem como um direito público que regesse as gentes verdadeiramente publicitado, isto é , confessado em voz alta ou publicamente. Na minha perspetiva, os pilares deste projecto de paz perpétua proposto por Immanuel Kant à beira do século XIX são muito semelhantes às linhas filosóficas assinadas pelo presidente Xi Jinping (习近平) no Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, datado de 16 de Outubro de 2022, com o seguinte eixo temático “Manter Erguida a Grande Bandeira do Socialismo com Características Chinesas e Lutar com União pela Construção Integral de um País Socialista Moderno. ” Depois de definidas no ponto 3 a missão e as tarefas do Partido Comunista Chinês na Nova Era, que são: fomentar a prosperidade do povo, o seu progresso material, cultural e ético, bem como auxiliar à convivência harmoniosa do ser humano com a natureza, percebe-se que um importante vector desta modernização recairá, segundo o Presidente, sobre o “desenvolvimento pacífico. Não repetimos o antigo caminho de alguns países de realizar a modernização através de guerra, colonização e saqueio.” (Xi, 2022: 20). Encontramos o mesmo tipo de negação do caminho do conflito armado em Kant e em Xi para sustentar o progresso dos povos. Este último é absolutamente legítimo, não podendo o progresso ético e cultural ser cindido do material, e deve ser conduzido de forma pacífica, de modo a não prejudicar uns para o bem de outros. Também em Xi, à semelhança do que já havia proposto Kant, se nota uma preocupação constante, nomeadamente no ponto 7, com o desenvolvimento do estado de direito na China, o país deve ser integralmente administrado pela lei, pois só esta pode “assegurar a felicidade e o bem-estar do povo, a paz e a estabilidade duradouras do Partido e do Estado” (Xi, 2022: 37). É, no entanto, no ponto 14, intitulado “Promover a paz e o desenvolvimento mundiais e a criação de uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade” que as afinidades entre ambas as propostas filosóficas se tornam completamente visíveis, quando Xi Jinping defende uma comunidade de futuro compartilhado, viabilizada, antes de mais pela paz, logo seguida de desenvolvimento, cooperação e benefício mútuo entre os estados. Ora nada mais pernicioso, como vimos em Kant, ao espírito comercial do que a guerra. E recorda o presidente Xi: “A China adere sempre ao propósito da política diplomática de defender a paz mundial e promover o desenvolvimento comum e dedica-se à criação de uma comunidade de futuro” (2022: 57). Só a paz, recordemos o hexagrama Tai do Clássico das Mutações, pela união do Céu da Terra, que é duma fertilidade imensa, conduz à comunhão de todos os seres, que seguem com vontade o exemplo deste primeiro casal primordial, viabilizando, pela harmonia gerada, a riqueza material e espiritual, e a prosperidade dos dez mil seres (万物 wànwù) ou tudo o que existe debaixo do Céu. Por fim, e à luz da felicidade e do bem-estar que a comunidade compartilhada e a coexistência pacífica prometem ao País do Meio, não surpreende que o presidente chinês repetidamente frise a sua crença na paz: “A China adota a política de defesa nacional de natureza defensiva, o desenvolvimento chinês representa um engrandecimento das forças pela paz no mundo, e o país jamais buscará a hegemonia nem praticará o expansionismo, não importa qual nível o seu desenvolvimento alcance.” (Xi, 2022: 57) Em conclusão, a paz não é apenas um princípio ideal, nem um valor moral, mas um caminho que na filosofia chinesa se tem vindo a desenvolver existencialmente, activamente construído pelos governantes, doa a quem doer, desde a mais remota antiguidade. E quando a guerra vinda do exterior, na história, bateu à porta dos chineses, os seus governantes tiveram tendência a fechar-se, construindo muralhas para afastar o mal radical, que morava ao lado, a Norte, nas hordas guerreiras de mongóis, manchus, japoneses, ou que ameaçava do Oeste Europeu e de outros povos ocidentais. O futuro promete ser diferente, porque é construído em tempos de paz, já que a China insiste em manter-se neutra, sempre que a procuram aliar à guerra, por acreditar ser esta a melhor forma de trazer o bem-estar material e espiritual a 1.4 biliões de chineses e à comunidade humana. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Editora Labirinto. Kant, Immanuel. 1989. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70. Xi Jinping (习近平). 2022. Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, 16 de Outubro. 中央广播电视总台欧拉中心葡萄牙语部译 (Trad. pelo departamento de Português do Centro EuroLatino da Rádio e Televisão Chinesa). Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. Yin Lujun. 1997: “The Crisis of Hermeneutical Consciousness”. New Essays in Chinese Philosophy. Editor Hsueh-li Cheng. Asian Thought and Culture. General Editor Wei-hsun Fu. Peter Lang. Vol. 28, pp. 233-249. 張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/